Brasil

Entenda o caso João de Deus, das primeiras denúncias à prisão

Depois de 12 relatos iniciais virem a público no GLOBO e no 'Conversa com Bial', mais de 500 pessoas já acusaram o médium
João de Deus durante atendimento a fiéis na Casa de Dom Inácio de Loyola, na pequena cidade de Abadiânia, interior de Goiás Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo/06-07-2018
João de Deus durante atendimento a fiéis na Casa de Dom Inácio de Loyola, na pequena cidade de Abadiânia, interior de Goiás Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo/06-07-2018

RIO - Famoso pela realização de “cirurgias espirituais”, João Teixeira de Faria, o médium João de Deus, já atendeu celebridades, políticos e altos funcionários públicos do Brasil e do mundo. Agora, no entanto, ele é alvo de uma série de acusações de abuso sexual.

O caso veio à tona com a revelação, entre sexta-feira (7) e sábado (8) de 12 relatos de mulheres que acusam o médium de se aproveitar da autoridade de líder espiritual para abusar sexualmente delas. As histórias foram contadas na noite de sexta no programa "Conversa com Bial" e, no sábado, no jornal O GLOBO .

Desde então, outras oito pessoas procuraram O GLOBO para revelar histórias semelhantes, totalizando 20 casos, até o momento.

Os Ministérios Públicos de Goiás e de São Paulo abriram canais para receber denúncias das vítimas: os e-mails são [email protected] e [email protected], respectivamente.

Conheça a trajetória de João de Deus: curandeiro desde os 16 anos e milionário após garimpo

Primeiras denúncias

O programa "Conversa com Bial" relatou o caso de dez mulheres que se dizem vítimas de João de Deus. Quatro delas também foram ouvidas pelo GLOBO , em uma investigação paralela, que foi publicada no sábado. Nessa reportagem, foram divulgados outros dois relatos exclusivos.

Entre essas 12 primeiras denúncias, a única vítima a autorizar a publicação de seu nome foi a holandesa Zahira Lieneke, que conversou tanto com O GLOBO quanto com a produção do "Conversa com Bial" por videoconferência. Ela afirma ter sido estuprada em 2014 e foi a única que conta ter sido penetrada por João de Deus.

— Cheguei ali impressionada com esse homem. Acreditava que ele faria um milagre. No entanto, durante aquela "consulta" algo se apoderou de mim: o sentimento de que ele era um homem sujo — contou Zahira.

Leia aqui a íntegra dos seis relatos colhidos pelo GLOBO.

'Modus operandi' dos abusos

As denúncias revelam um processo sistemático e padronizado. As mulheres contam que foram desacompanhadas à Casa de Dom Inácio de Loyola, o “hospital espiritual” mantido pelo médium em Abadiânia, interior de Goiás. Todas tinham entre 30 e 40 anos no momento em que relatam terem sofrido os abusos. Elas dizem que o médium, durante os atendimentos ao público — quando estaria incorporado por uma entidade espiritual —, escolhia algumas em meio à multidão e pedia que o encontrassem em uma salinha após o fim da sessão.

Sempre colocadas como últimas na fila de espera para o atendimento pessoal, elas entravam em um escritório que dava acesso à sala de cirurgias. Neste momento, ficariam no local apenas o médium e a paciente. Com a porta trancada e as luzes apagadas, seriam tocadas nos seios pelo líder espiritual de 76 anos, e/ou ordenadas a tocá-lo no pênis, parte de uma “limpeza espiritual”.

Novas acusações aparecem

Desde que as primeiras 12 denúncias vieram a público, outras mulheres se sentiram encorajadas a contar suas histórias. O GLOBO ouviu mais oito pessoas com relatos semelhantes aos primeiros, totalizando 20 casos.

Uma delas, ouvida pelo GLOBO no domingo, contou, sob anonimato, que "foi muito sujo, muito traumático. Ele me levou para esse corredor estreito, que dava num banheiro, e começou a me apalpar, se esfregar em mim". Leia aqui o relato completo.

Outra mulher, uma carioca de 41 anos, que se dispôs a contar seu caso também no domingo sem se identificar, questionou: "Como pode um monstro fazer milagres?". Leia aqui o relato na íntegra.

Veja abaixo um vídeo com uma das denunciantes.

Além disso, outros veículos da imprensa trouxeram mais denúncias. A "Folha de S.Paulo" publicou um relato não anônimo, e o "Fantástico", da TV Globo, levou ao ar uma reportagem com cinco casos, dos quais apenas um revelava a identidade da vítima.

O programa dominical, no entanto, mencionou que foi procurado por uma quantidade bem maior de pessoas: 25 denunciantes, ao todo. Como, em quase todas essas denúncias, as vítimas preferiram não se identificar, não está claro se algumas delas são as mesmas já ouvidas pelo GLOBO ou se são relatos novos.

João de Deus nega

Em resposta às denúncias feitas pelas mulheres, a assessoria de João de Deus encaminhou uma nota ao GLOBO na qual afirma que “a situação trazida, além de ser fantasiosa, é lamentável, uma vez que o Médium João é uma pessoa de índole ilibada. Tal situação é muito grave. Se estivéssemos falando no âmbito Jurídico, para que uma situação se caracterizasse como criminosa, a parte lesada teria que demonstrar a materialidade do ocorrido".

A nota diz ainda que "a sala em questão é pública e qualquer um tem acesso a ela e jamais fica trancada, é livre para o entra e sai das pessoas, é aberta a todos".

A assessoria de João de Deus acrescenta que, "uma vez que está sendo atingido a honra e imagem de uma pessoa pública conhecida mundialmente, e muito respeitada, pergunto o que as motivam (as vítimas)? Estas pessoas não só estão prejudicando ao médium João, mas milhares de pessoas que precisam de cuidados na casa de Dom Inácio, além de elas mesmas serem prejudicadas, em razão do que foi dito, da índole cristalina do Médium João. Pergunto novamente, porque não procuraram a delegacia ou o Ministério Público, e se não o fizeram, qual a razão desta omissão?”.

Ministério Público anuncia força-tarefa

O Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO) informou ao GLOBO, no domingo, que o médium João de Deus vinha sendo investigado pelo órgão desde o primeiro semestre de 2018, quando a procuradoria do MP de Abadiânia, no interior de Goiás, começou colher as primeiras denúncias de abuso sexual contra o líder religioso.

Na segunda-feira, 10, O MP de Goiás anunciou a criação de uma força-tarefa exclusivamente para investigar as denúncias contra o médium. Ela será formada por cinco promotores e dois psicólogos. Na quinta-feira, 13, o órgão informou que o número de denúncias contra João de Deus era de 330 .

Vítimas também serão ouvidas pelo Ministério Público de São Paulo (MP-SP), que encaminhará todas as informações para o MP de Goiás.

Foram criados canais especificamente para receber denúncias de vítimas. Para o Ministério Público de Goiás, o e-mail é [email protected], e para o MP de São Paulo, o endereço eletrônico é [email protected].

Centro pode ser fechado

O MP de Goiás afirmou, ainda, que estuda interditar a Casa de Dom Inácio de Loyola, centro espiritual onde João de Deus atende semanalmente milhares de fiéis.

Repercussão internacional

Veículos como a rede inglesa "BBC", a emissora árabe "Al Jazeera" e o jornal espanhol "La Vanguardia" noticiaram as denúncias divulgadas pelo GLOBO e pelo programa "Conversa com Bial", da TV Globo.

Na BBC, sob o título "João de Deus: curandeiro espiritual do Brasil acusado de abuso sexual", a matéria destaca que, embora baseado em Abadiânia, interior de Goiás, João de Deus tem seguidores no mundo todo e menciona a apresentadora Oprah Winfrey, uma das devotas mais proeminentes do médium.

A Al Jazeera cita ainda que, além do Brasil, a figura do médium tem ampla inserção nos Estados Unidos, na Europa e na Austrália.

Médium aparece em Abadiânia

Na quarta-feira, 12, João de Deus fez a primeira aparição desde a divulgação das acusações de abuso. A visita à Casa Dom Inácio de Loyola seria para atendimentos, mas advogados do médium o aconselharam a cancelar os planos para "não afrontar a justiça". Nos poucos minutos em que esteve na casa, acompanhado por centenas de fiéis, João de Deus fez um breve comunicado:

"Meus irmãos, queridas irmãs. Agradeço a Deus por estar aqui, mas quero cumprir a lei brasileira. Estou nas mãos da lei brasileira. João de Deus ainda está vivo. Que a paz de Deus esteja com todos".

A assessoria do líder espiritual explicou que a visita de João foi relâmpago porque "ele passou mal (a pressão teria subido)". João de Deus estaria se recuperando em um sítio em Anápolis, no interior de Goiás.

Ministério Público pede prisão do religioso

Ainda na quarta-feira, 12, como noticiado pela coluna do jornalista Lauro Jardim , a força-tarefa do MP de Goiás pediu a prisão do religioso. O pedido foi protocolado no Fórum de Abadiânia.

Na quinta-feira, 13, a defesa de João de Deus compareceu ao Fórum de Alexânia para apresentar a versão do líder espiritual ao juiz Fernando Chacha, que deve se pronunciar sobre o pedido de prisão. O advogado Alberto Toron disse ao magistrado que João de Deus quer continuar seu trabalho e propôs que ele seja filmado e vigiado por policiais enquanto consulta no seu centro espiritual.

Esposa acredita na inocência de João de Deus

Ana Keyla Teixeira, atual mulher do médium do João de Deus, declarou na quinta-feira, 13, que acredita na inocência do marido. Em entrevista ao GLOBO , ela afirmou que as denúncias de abuso são "um grande circo montado contra ele, uma mentira". Keyla disse também que o líder espiritual tem a confiança dela e de todos que trabalham na cidade de Abadiânia, onde seguidores realizaram uma passeata a favor do médium .

Filha diz ter sofrido abuso dos 10 aos 14 anos

Dalva Teixeira, filha de João de Deus, afirmou em entrevista à revista "Veja" que foi abusada pelo pai pela primeira vez aos 10 anos . Ela conta que, na ocasião, o médium a mandou ficar nua e passou o pênis por seu corpo. Os abusos aconteceram até seus 14 anos, quando ficou grávida de um funcionário de João e foi espancada pelo líder espiritual, a quem chama de "monstro".

Prisão preventiva de João de Deus é decretada

Na manhã desta sexta-feira, 14, o juiz Fernando Chacha acolheu o pedido de prisão preventiva elaborado pelo Ministério Público de Goiás contra o médium. Agentes da Polícia Militar já fazem buscas tanto em Abadiânia quanto em Anápolis para prender o líder espiritual, que estaria em um sítio.

Médium é considerado foragido

No sábado, 15, o Ministério Público de Goiás incluiu a ordem de prisão contra João de Deus no Banco Nacional de Monitoramento de Prisão. Para o MP, João de Deus tornou-se oficialmente considerado foragido da Justiça .

Os investigadores justificaram a medida afirmando que as diligências de localização em todos os seus endereços resultaram negativas, e o comparecimento espontâneo não ocorreu nas 24 horas seguintes à ordem de prisão, a despeito das tentativas de negociação com a defesa.

João de Deus faz saques milionários

O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), que recebe notificações de bancos sobre movimentações atípicas, informou aos investigadores que João de Deus fez saques de R$ 35 milhões às vésperas da decretação de sua prisão preventiva. A informação foi revelada pelo GLOBO na tarde de sábado, dia 15 .

A descoberta destas operações fez com que a polícia de Goiás e o Ministério Público do estado acelerassem o processo para pedir a prisão do médium. Os investigadores acreditavam que a quantia poderia ser usada para bancar a fuga do líder espiritual.

Médium se entrega à polícia e diz ter sido ameaçado

No domingo, 16, João de Deus se entregou à Polícia Civil de Goiás em uma estrada de terra perto de Abadiânia. Interrogado por cerca de quatro horas na Delegacia de Investigações Criminais (Deic), em Goiânia, o médium negou todas as acusações sobre 15 casos que estão sendo investigados.

No depoimento, ele afirmou que, antes de as denúncias de abuso sexual contra ele virem a público, recebeu um telefonema de um homem que o ameaçou . Segundo o médium, o homem teria dito: “Eu tenho 50 pessoas para acabar com você. Se você colocar 100, eu coloco 200 e, se você aumentar isso, eu coloco mil. Eu vou acabar com você”.

O líder espiritual passou a noite do núcleo de custódia do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia, em uma cela de 16 metros quadrados.

Defesa pede habeas corpus e prisão domiciliar

Na segunda-feira, 17, seu advogado, Alberto Toron, protocolou um pedido de habeas corpus do líder religioso . A intenção é que o médium tenha direito a prisão domiciliar durante as investigações. Entre os argumentos da defesa para solicitar tal benefício, estão a idade — já que o preso tem 76 anos — e a saúde debilitada.