Brasil

Mourão e Defesa apresentam balanços discrepantes da militarização no combate a crimes na Amazônia

Vice-presidente citou apreensão de 800 toneladas de minérios, enquanto ministério afirmou serem oito toneladas e, depois, oito mil toneladas. Números sobre incêndios e madeira ilegal também não batem
Vice-presidente Hamilton Mourão durante cerimônia militar alusiva ao 100º Aniversário de criação do Serviço de Intendência do Exército Brasileiro no início do mês Foto: ROMERIO CUNHA / Agência O Globo
Vice-presidente Hamilton Mourão durante cerimônia militar alusiva ao 100º Aniversário de criação do Serviço de Intendência do Exército Brasileiro no início do mês Foto: ROMERIO CUNHA / Agência O Globo

BRASÍLIA - O vice-presidente Hamilton Mourão e o Ministério da Defesa apresentam dados divergentes sobre a Verde Brasil 2, uma operação das Forças Armadas na Amazônia, determinada a partir de um decreto presidencial de garantia da lei e da ordem (GLO) . Os números sobre minérios apreendidos são discrepantes, assim como de focos de incêndio debelados e de ações de fiscalização em geral.

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Desde a militarização das ações de combate a crimes ambientais na região, Mourão passou a ser a principal autoridade a responder pela atuação militar em uma área antes controlada por civis - normalmente servidores com expertise em fiscalização ambiental, lotados no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) ou no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Os números sobre o desempenho das Forças Armadas são discrepantes, variando a depender de quem os divulga.

Em um programa semanal veiculado no último dia 14 na emissora pública Rádio Nacional, protagonizado pelo vice-presidente e dirigido à população da região amazônica, Mourão afirmou que foram apreendidos, em quatro meses, 800 toneladas de minério ilegal. O número não bate com um balanço atualizado da Operação Verde Brasil 2, solicitado pela reportagem do GLOBO ao Ministério da Defesa. Conforme dados enviados pela pasta na última quinta-feira (1°), minérios ilegais apreendidos somam "aproximadamente 8,05 mil kg de minerais". Ou seja, pouco mais de 8 toneladas. O número difundido pelo vice-presidente, portanto, seria cem vezes maior do que a realidade.

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Consultado pela reportagem, diante do dado divulgado pelo vice-presidente, o ministério sustentou que houve um equívoco no primeiro número da pasta. E apresentou um novo dado, no começo da noite de sexta-feira: as apreensões feitas correspondem a "aproximadamente 8 mil toneladas de minerais, como manganês, ouro e pedras preciosas". Assim, o total seria dez vezes maior do que o divulgado pelo vice-presidente.

O GLOBO pediu que o Ministério da Defesa informasse as quantidades por minério e os locais de destino de 8 mil toneladas desse material. A pasta não forneceu a informação até a publicação desta reportagem.

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A fala de Mourão no rádio, com um balanço da Verde Brasil 2, foi recortada e distribuída via Whatsapp. O áudio tem duração de 1 minuto e 38 segundos. Diversas lideranças na região receberam o áudio. Na mensagem, o vice-presidente se dirige a "minhas amigas e amigos da Amazônia".

A quantidade de minério ilegal que teria sido apreendido pelos militares, informada pelo vice-presidente, é dez vezes maior do que a quantidade de ouro legal beneficiado anualmente no Brasil. Segundo dados da Agência Nacional de Mineração (ANM), o país processou 85,3 toneladas de ouro em 2018 e 78,4 toneladas em 2019. A última quantidade informada pelo Ministério da Defesa é quase cem vezes maior.

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O garimpo ilegal de ouro e outros metais é um dos principais problemas ambientais na Amazônia, e um dos mais difíceis de se combater, diante da grande quantidade de áreas ilegais de exploração; da grande quantidade de garimpeiros envolvidos; do poderio financeiro de quem controla esses garimpos, com o fornecimento de máquinas e equipamentos; da dificuldade de acesso; e do estímulo à atividade pelo presidente Jair Bolsonaro. Desde a sua eleição, disparou a quantidade de garimpeiros em territórios indígenas.

A terra ianomâmi é uma das mais exploradas: já chega a 20 mil a quantidade de garimpeiros ilegais no território em Roraima, segundo estimativa de lideranças indígenas. O ouro extraído de forma criminosa movimenta a economia de Boa Vista.

Discrepâncias além do minério

As discrepâncias sobre a Verde Brasil 2 não se resumem à quantidade de minério apreendido. Segundo Mourão, até aquele dia 14, "combatemos 355 focos de incêndio". Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostravam a existência de mais de 20 mil focos de calor na Amazônia naquelas duas semanas. No balanço do Ministério da Defesa, apresentado na noite de sexta, 2, a quantidade de focos de incêndio debelados superava 6,8 mil.

Mourão e Ministério da Defesa, até a sexta à noite, falavam a mesma língua sobre a quantidade de madeira ilegal apreendida: 29 mil metros cúbicos. No domingo, um novo balanço da pasta registrou uma quantidade seis vezes maior: 173,6 mil metros cúbicos de madeira.

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O vice-presidente inflou dados genéricos da Operação Verde Brasil 2. No programa de rádio, ele disse: "Militares e agentes de órgãos federais e estaduais, trabalhando realmente numa parceria extremamente objetiva, realizaram, observem o número, hein, cerca de 134 mil ações, entre elas: apreensões, inspeções, fiscalização, autos de infração e combates ao focos de incêndio." O balanço do Ministério da Defesa não aponta o número divulgado pelo vice-presidente.

A pasta diz que foram feitas mais de 39 mil inspeções navais e terrestres, vistorias e revistas em embarcações. Houve ainda 371 inspeções em madeireiras, serralherias e fazendas e apreensão de 372 quilos de pasta-base de cocaína, conforme os números do Ministério da Defesa. Outros números do balanço da pasta: 991 embarcações, 345 veículos, 173 tratores e 529 máquinas de serraria apreendidos; 171 prisões feitas; e 3,4 mil multas aplicadas, que somam quse R$ 1,4 bilhão.

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A Vice-Presidência da República afirma que não há discrepância de dados. "A fonte da informação é a mesma para todos, pois os dados emitidos são oriundos do Ministério da Defesa, coordenador da operação", diz a assessoria de Mourão.

As discrepâncias:

Minério apreendido:

Mourão, em 14/09: 800 toneladas

Ministério da Defesa, em 01/10: 8 toneladas

Ministério da Defesa, em 02/10: 8 mil toneladas

Ações em geral:

Mourão, em 14/09: 134 mil ações

Ministério da Defesa: 39 mil ações

Madeira apreendida:

Mourão, em 14/09: 29 mil m3

Ministério da Defesa em 02/10: 29 mil m3

Ministério da Defesa em 04/10: 173,6 mil m3

Focos de incêndio debelados:

Mourão, em 14/09: 355

Ministério da Defesa: 6,8 mil