Brasil

Negros em cursos como Medicina e Direito sentem-se ainda mais minoria

Estudo do Instituto IDados mostra que faculdades concorridas não democratizaram o acesso e têm maioria de alunos brancos
Natália Nunes é uma das duas negras de sua turma de Odontologia na USP Foto: Jefferson Coppola / Agência O Globo
Natália Nunes é uma das duas negras de sua turma de Odontologia na USP Foto: Jefferson Coppola / Agência O Globo

SÃO PAULO — Maioria nas universidades públicas brasileiras em 2018, segundo dados do IBGE divulgados na semana passada, os negros e pardos são minoria nas faculdades mais concorridas , como Medicina, Odontologia e Engenharia.

E, para os que fazem parte dessa minoria, a sensação é de que ela é ainda mais minúscula.

É o caso de Natália Olimpio Nunes, de 23 anos. Estudante de Odontologia da Universidade de São Paulo (USP), a jovem conta que há apenas ela e uma amiga negra na turma do sexto semestre, composta por pouco mais de 40 alunos.

— Quando vi o dado sobre os negros em universidades públicas, achei muito duvidoso. Não representa a realidade. Tanto que estamos tentando fazer um coletivo negro na Odonto e só temos 16 pessoas em toda a escola. Mesmo assim, não é fácil encontrar, estamos pescando as pessoas.

Segundo um estudo feito pelo Instituto IDados com informações dos microdados do Censo da Educação Superior, divulgado na última segunda pela coluna de Antônio Gois , o curso de Odontologia é o que menos tem negros nas universidades públicas do país. Medicina aparece em segundo lugar e Engenharia, em terceiro.

Matrículas por curso no ensino superior público
Em % de negros (inclui pretos e pardos)
Serviço Social
60,20
Pedagogia
57,50
Enfermagem
53,70
Direito
43,80
Engenharia
40,00
Medicina
39,90
Odontologia
38,70
Fonte: Levantamento da Idados com base
no Censo da Educação Superior 2018
Matrículas por curso no
ensino superior público
Em % de negros (inclui pretos e pardos)
Serviço Social
60,20
Pedagogia
57,50
Enfermagem
53,70
Direito
43,80
Engenharia
40,00
Medicina
39,90
Odontologia
38,70
Fonte: Levantamento da Idados com base
no Censo da Educação Superior 2018

Para Natália, os jovens negros optam por fazer cursos menos concorridos como uma garantia de que podem conseguir entrar.

— O fato de a pessoa olhar e enxergar que está tão distante, ela já acha que não vai conseguir. Pensa em fazer algo mais fácil porque os cursos mais difíceis exigem estudo, e a pessoa negra tem um histórico socioeconômico baixo, a maioria tem que ajudar de alguma forma em casa — analisa.

"Saí do ensino médio semianalfabeto"

Foi o que aconteceu com Felipe Gonçalves da Costa, de 25 anos, estudante do primeiro período de Medicina na USP.

Desde novo, precisou estudar e trabalhar para ajudar a mãe e as irmãs mais novas a completar a renda de casa. Após quatro anos de cursinho, conseguiu entrar na USP pelo sistema de cotas para negros que estudaram em escola pública.

— Saí do Ensino Médio semianalfabeto, não tinha escrita e leitura suficientes. Estudei em escola pública, onde tem presença, mas vai passando ano e você não aprende nada. Da primeira vez que fiz a Fuvest, fiquei assustado, parecia outro idioma. Eram 90 questões e eu não sabia nenhuma.

Assim como na turma de Natália, na sala de aula de Felipe, que tem 175 alunos, apenas 20 são negros.

— Temos casos de fraude, de pessoas que se autodeclaram negras e usufruem de cotas. Não tem fiscalização, o critério é apenas a autodeclaração. Imagina como ocorre na USP, que é a escola mais visada do país?

De acordo com o estudante, as turmas mais adiantadas de Medicina da USP quase não têm alunos negros.

— É bizarro, a diferença racial é gritante. Hoje, a faculdade de Medicina é branca, tem um perfil muito claro de alunos que fizeram escola particular e são brancos. O perfil muda a passos lentos, mas essa ainda é a realidade da USP.

Desistência de concorrer

Em outro estado, porém vivenciando realidade parecida à de Felipe, Emilie Luzia de Moraes, de 18 anos, é estudante do primeiro período de Medicina da Unimontes, a Universidade Estadual de Montes Claros, no Norte de Minas Gerais.

Nascida em Carbonita, no Vale do Jequitinhonha, Emilie entrou na faculdade também pelo sistema de cotas para negros que estudaram em escola pública e preenchem o perfil socioeconômico de baixa renda.

Segundo a estudante, em sua sala de aula apenas três dos 37 alunos são negros.

— Quando vi os dados (do IBGE), até parei e pensei: não, não é assim. Acredito que (estudantes negros) acabam escolhendo um curso cuja nota não seja tão alta como Medicina e Odonto para ter certa garantia de que vão passar e conseguir ter um ensino superior. Às vezes, a realidade familiar não colabora e, se são de uma família muito carente, pensam que o primeiro curso em que passarem vão ter que entrar. Dificulta muito o processo.