Brasil

Negros não podem apenas ser; é preciso parecer

‘Rouba-se da comunidade preta o direito de ter valor simplesmente pelo caráter’
Flávia Barbosa, editora executiva Foto: Arquivo
Flávia Barbosa, editora executiva Foto: Arquivo

Uma das faces inequívocas do racismo que opera nosso cotidiano de injustiças toma emprestado da mulher de César o ditado: aos negros, não basta ser; é preciso parecer.

Da infância à vida adulta, são orientados —nem sempre explicitamente — a seguir um perverso manual de sobrevivência.

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Ele descreve como se vestir "bem", ter cabelo "normal", sempre portar documentos e nunca andar em turma, enquanto rouba da comunidade preta o direito de moldar uma identidade e de ter valor simplesmente pelo caráter. Com exemplos, fica mais claro por quê.

Um garotinho branco correndo suado na direção da portaria de um prédio está voltando para casa após brincadeiras; o negro arrisca ser tratado como um trombadinha.

O adolescente que curte música e anda em grupo de touca é um rebelde em busca de identidade, se branco; negro, pode integrar gangue em vias de um arrastão.

O cara branco de bermuda, camiseta e chinelos em Búzios às vésperas do reveillon curte férias; o negro é abordado pela polícia para explicar o que ali faz.

Não são cenas hipotéticas ou raras. São três histórias cariocas - do filho de amigos da Zona Sul, do primo que amava grunge na Zona Norte e do marido chegando para a farra no balneário.

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Negras sofrem o mesmo, comumente postas em posição subalterna. Adolescente e adulta, já tive que responder ao atender a porta se trabalhava em minha própria casa.

E é uma realidade universal. Nos EUA, desde crianças pretos são ensinados a lidar com a polícia: dispensar movimentos bruscos e ironia, ouvir calado.

Quando fui correspondente lá, assim meus entrevistados resumiam: família branca não tem que ensinar a sobreviver durante cada refeição.

Na última década, o movimento negro vem rapidamente moldando um novo manual, no qual a afirmação das características negras é protagonista na construção de uma nova cidadania.

Enquanto escrevo, espero Theo nascer a qualquer momento. Desejo que meu filho não precise de roteiro para viver. Que ele apenas seja.