Brasil

Quem são as mulheres que respondem na Justiça pelo crime de aborto

Nos últimos 12 anos no estado do Rio, 42 foram criminalizadas: a maioria delas pobre e negra
Mulheres criminalizadas pela prática de aborto fazem parte de um dos grupos mais vulneráveis da sociedade, o negras e pobres. Ao responder a um processo penal, elas vivem uma 'dor solitária', segundo a pesquisadora Carolina Haber, da Defensoria Pública do Rio Foto: Shutterstock.com/GemaIbarra
Mulheres criminalizadas pela prática de aborto fazem parte de um dos grupos mais vulneráveis da sociedade, o negras e pobres. Ao responder a um processo penal, elas vivem uma 'dor solitária', segundo a pesquisadora Carolina Haber, da Defensoria Pública do Rio Foto: Shutterstock.com/GemaIbarra

RIO - A maioria delas é negra, pobre, tem filhos, não chegou ao ensino superior e não tem antecedente criminal. Para abortar, algumas usaram remédio, outras chás e até cesariana improvisada; umas fizeram sozinhas no banheiro de casa, outras tiveram complicações e precisaram ser levadas para hospitais públicos. Este é o “rosto” da mulher que responde na Justiça pelo crime de aborto no estado do Rio, segundo levantamento da Defensoria Pública entre 2005 e 2017.

Leia mais: ‘É um ciclo perverso’, diz defensora sobre mulheres negras e pobres serem as mais criminalizadas por aborto

(Veja aqui a cobertura completa do GLOBO sobre aborto)

Elas formam um grupo restrito: ao longo desses 12 anos, apenas 42 foram identificadas. O número é ínfimo perto dos 503 mil abortos clandestinos feitos por ano no país, segundo a Pesquisa Nacional do Aborto.

— Quem chega na ponta do sistema criminal é o “funil do funil" — diz Carolina Haber, pesquisadora responsável pelo levantamento na Defensoria. — É uma lei que criminaliza somente as mulheres mais vulneráveis, sem recursos ou a quem recorrer. É uma dor solitária.

Os relatos dessas mulheres, que constam no levantamento, evidenciam o desespero: “Tomei diversos chás caseiros, apertava a barriga com cinta e dava socos em mim mesma”, diz uma das criminalizadas, que é negra, casada e tinha 33 anos quando foi detida.

Segundo a pesquisa, 55% são negras, 70% já são mães e 75% das que fizeram aborto sozinhas, sem ir a clínicas, estavam com mais de 12 semanas de gestação — quando não se pode mais fazer o procedimento de forma segura.

Pouco mais de 30% dessas mulheres que respondem na Justiça do Rio pela prática foram denunciadas pelos próprios profissionais de saúde que as atenderam, o que fere o sigilo entre agente de saúde e paciente.

No país, 18 estados registraram 331 processos por autoaborto em 2017, segundo pesquisa nos Tribunais de Justiça feita pelo Portal Catarinas em parceria com a GHS Brasil.

perfil das que respondem na justiça
No estado do Rio, de 2005 a 2017, a Defensoria Pública compilou dados de 42 mulheres que responderam criminalmente por terem abortado, sozinhas ou com ajuda de terceiros. Destas, 20 fizeram autoaborto e 22 fizeram em clínicas
Cor da pele
Possui filhos?
19
19
7
Negra
Sim
Não
7
16
16
Branca
Sem
informação
Sem
informação
Escolaridade
Idade no momento do aborto
8
4
Ensino médio
Entre 15 e 19
13
Entre 20 e 24
6
Ensino fundamental
10
Entre 25 e 29
Ensino superior
2
8
Entre 30 e 34
Analfabeta
1
5
Entre 35 e 39
Sem informação
1
25
Mais de 40
1
Sem informação
Método abortivo*
SUS gastou R$ 486 milhões para tratar mulheres internadas após complicações de aborto (75% deles provocados), de 2008 a 2017
Nesse período, o Brasil teve entre 9,5 milhões e 12 milhões de abortos inseguros
14
Remédio Citotec
3
Chás abortivos
Chás e permanga-
nato de potássio
1
1
Cesariana em clínica
Sem informação
1
Onde o aborto foi finalizado*
Ranking de estados com mais
processos contra gestantes que
fizeram aborto (2017)
6
São Paulo
Hospital
94
Banheiro de casa
5
Paraná
54
Em casa
4
Rio de Janeiro
34
Banheiro do hospital/
posto de saúde
3
Minas Gerais
28
1
Banheiro do trabalho
Sergipe
23
1
Clínica clandestina
*Entre as 20 mulheres que iniciaram o aborto sozinhas
Fonte: Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Pesquisa Nacional do Aborto 2016 (PNA)
e Ministério da Saúde
perfil das que respondem na justiça
No estado do Rio, de 2005 a 2017, a Defensoria Pública compilou dados de 42 mulheres que responderam criminalmente por terem abortado, sozinhas ou com ajuda de terceiros. Destas, 20 fizeram autoaborto e 22 fizeram em clínicas
Cor da pele
19
Negra
7
16
Branca
Sem
informação
Possui filhos?
19
7
Sim
Não
16
Sem
informação
Escolaridade
8
Ensino médio
6
Ensino fundamental
2
Ensino superior
1
Analfabeta
Sem informação
25
Idade no momento do aborto
4
Entre 15 e 19
13
Entre 20 e 24
10
Entre 25 e 29
8
Entre 30 e 34
5
Entre 35 e 39
1
Mais de 40
1
Sem informação
Método abortivo*
14
Remédio Citotec
3
Chás abortivos
Chás e permanga-
nato de potássio
1
1
Cesariana em clínica
Sem informação
1
SUS gastou R$ 486 milhões para tratar mulheres internadas após complicações de aborto (75% deles provocados), de 2008 a 2017
Nesse período, o Brasil teve entre 9,5 milhões e 12 milhões de abortos inseguros
Onde o aborto foi finalizado*
Hospital
6
Banheiro de casa
5
Em casa
4
Banheiro do hospital/
posto de saúde
3
1
Banheiro do trabalho
1
Clínica clandestina
Ranking de estados com mais
processos contra gestantes
que fizeram aborto (2017)
São Paulo
94
Paraná
54
Rio de Janeiro
34
Minas Gerais
28
Sergipe
23
*Entre as 20 mulheres que iniciaram o
aborto sozinhas
Fonte: Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Pesquisa Nacional do Aborto 2016 (PNA)
e Ministério da Saúde

Discussão retorna ao STF

O tema voltará à tona no Supremo Tribunal Federal (STF) na próxima sexta-feira, quando acontece uma das duas audiências públicas convocadas pela corte. A discussão é provocada por uma ação que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. A ação é de autoria do PSOL e do Anis — Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.

— O Brasil disputa o 1º lugar do mundo em população carcerária. Aumentaríamos em mais de dez vezes esse número se encarcerássemos todas as mulheres que fizeram aborto — diz a advogada Gabriela Rondon, do Instituto Anis. — Queremos que todas essas mulheres estejam na cadeia?

A prática de interrupção da gravidez prevê pena de um a três anos de detenção tanto para as mulheres que provocam aborto em si mesmas, quanto para as que consentem que outra pessoa o faça, de acordo com o artigo 124 do Código Penal. Os únicos três casos em que o aborto é considerado legal são se ele é feito em decorrência de estupro, de risco de vida para a gestante e de feto com anencefalia. Em qualquer outra situação, cabe processo penal.

Pela conduta, as mulheres podem até ser submetidas ao Tribunal do Júri — que, além de aborto, julga basicamente casos de homicídio. No caso das 42 mulheres criminalizadas no Rio, nenhuma tinha antecedente criminal, o que tornou possível que elas respondessem em liberdade e não chegassem a júri popular.

— O processo delas teve suspensão condicional, por falta de antecedentes. A partir daí, elas tinham que comparecer ao cartório a cada dois meses, por dois anos. Se não responderem nenhum novo processo pelos cinco anos seguintes, terão a ficha criminal apagada — explica Carolina Haber.

Gastos do SUS com complicações passam dos R$ 400 milhões

A advogada Gabriela Rondon destaca que, também pelo fato de a pena ser baixa — de um a três anos —, a prisão pode ser substituída por prestação de serviços ou outras formas de punição. O maior perigo, ela destaca, a mulher sofre antes mesmo de ser indiciada:

— Na verdade, os efeitos da existência desse crime são muito anteriores ao processo penal em si. Os maiores riscos a mulher sofre antes, ao submeter à possibilidade de morrer.

Calcula-se que, no Brasil, a cada minuto, uma mulher interrompe voluntariamente a gravidez, segundo a Pesquisa nacional do Aborto. A historiadora Giovana Xavier ressalta ainda um dado do Sistema de Morbidade Hospitalar do Ministério da Saúde: em 2016, houve 195.860 casos de internação por consequências de aborto. Destes, 62,4% envolveram mulheres negras.

— Esse dado, assim como outros relacionados ao atendimento desigual para mulheres negras e brancas no Sistema Único de Saúde, como o fato de as negras esperarem mais e muitas vezes não receberem anestesia, evidenciam o óbvio — diz Giovana, que é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). — A história dos direitos reprodutivos de cada mulher está ligada à sua condição de raça, de classe, de sexualidade.

Ainda de acordo com o Ministério da Saúde, entre 2008 e 2017, o SUS gastou R$ 486 milhões para tratar mulheres internadas após complicações de aborto — 75% deles provocados.

(Esta é a primeira reportagem de uma série sobre aborto que O GLOBO publica até o final de semana. Nesta quinta-feira, dia 2, a série trará detalhes sobre o debate que começa sexta no STF; entenda a ação e conheça a posição dos ministros sobre a questão)