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Brasil Religião

Crescem as igrejas evangélicas que incluem população LGBTI

Receosos em relação ao novo governo, centros religiosos pregam interpretação da Bíblia diferente daquela que é feita pela maioria das congregações tradicionais
Na Igreja Cristã Contemporânea, em Madureira, o pastor Marcos Gladstone faz pregações com especial atenção a gays, como ele próprio; ao seu lado, os casais Danielle e Paula, com seus bebês gêmeos, e Dalton e Laércio Foto: GABRIEL MONTEIRO / Agência O Globo
Na Igreja Cristã Contemporânea, em Madureira, o pastor Marcos Gladstone faz pregações com especial atenção a gays, como ele próprio; ao seu lado, os casais Danielle e Paula, com seus bebês gêmeos, e Dalton e Laércio Foto: GABRIEL MONTEIRO / Agência O Globo

RIO - O movimento de cristãos que não veem qualquer pecado no comportamento da população LGBTI ancorou suas ideias no Brasil há pouco mais de uma década e, de lá para cá, não para de crescer. A “teologia inclusiva” gerou a criação de novas igrejas, reunindo fiéis em sua maioria homossexuais. Eles pregam uma interpretação da Bíblia diferente daquela que é feita pela maioria das congregações evangélicas tradicionais. E veem com receio os próximos anos por causa de posições defendidas pelo presidente Jair Bolsonaro e pelo repúdio de parte da população em relação à educação sobre sexualidade nas escolas.

— Há 13 anos, quando fundei a igreja, sofri muito preconceito. Mas, a cada ano que passava, a sensação era de que a situação melhorava um degrau — afirma o pastor Marcos Gladstone, que criou a Igreja Cristã Contemporânea (ICC) e é gay. — Agora, parece que tudo está voltando, que os discursos de ódio estão se intensificando. Como se estivéssemos lá no início novamente.

O primeiro encontro da ICC reuniu menos de 20 pessoas no terceiro andar de um sobrado na Lapa, no Rio. Treze anos depois, a congregação soma unidades em cinco estados e conta com uma catedral inaugurada há menos de quatro anos em Madureira, na Zona Norte da cidade. O pastor Marcos não consegue mais precisar quantos fiéis a igreja tem ao todo, mas somente a unidade de Madureira reúne 3 mil deles. E ainda há muitos pedidos para que a ICC chegue a outros estados do Brasil e até ao exterior.

O pastor se converteu aos 14 anos e, antes de fundar a ICC, foi noivo de uma mulher. Até que, numa viagem aos EUA, entrou em contato pela primeira vez com a “teologia inclusiva”.

— A Bíblia não condena a homossexualidade — afirma Marcelo Natividade, antropólogo da Universidade Federal do Ceará e coordenador do Observatório Nacional de Política LGBTI. — O que trouxe esse entendimento foi uma interpretação dela em um determinado momento histórico. Quando cresceram os movimentos pelos direitos civis, surgiram as reações. Por isso, não há essa diferenciação entre o divino e ser gay. A interpretação da Bíblia parte de quem lê.

'Cura gay'

Segundo o pesquisador, em toda capital há ao menos uma igreja inclusiva. O grupo “Evangélicxs pela diversidade” — assim mesmo, com “x”, para destacar a não definição de gênero — é uma dessas iniciativas e está em 15 estados. No Rio, os encontros são feitos para debater textos bíblicos.

Participante do grupo, Antônio Valente foi criado desde pequeno em igrejas de denominação evangélica. Ele conta que passou por experiências traumáticas, desde terapia reversa, a chamada “cura gay”, até o incômodo de pertencer a um espaço que não o aceitava.

— Lutei muito contra (a homossexualidade) porque eu queria ser cristão. Depois, fui encontrando pessoas de igrejas progressistas e vi a possibilidade de ser, ao mesmo tempo, as duas coisas — afirma o jovem de 26 anos.

A partir de pesquisas, o coordenador nacional do grupo, Bob Luiz Botelho, aponta cinco tipos diferentes de igrejas inclusivas:

— Existem as restritivas, em que o LGBTI só assiste e não participa; e as irrestritas, que aceitam participação, mas não trazem a temática em seus encontros. Também há as afirmativas, que trazem a pauta LGBTI; as normativas, que incluem, mas são conservadoras nos costumes; e as históricas, como a luterana, que mudaram sua ação sobre essa população.

A pluralidade não surgiu da noite para o dia. Com inspiração em igrejas americanas ainda na década de 1970, o movimento ganhou força no Brasil na virada para o século XXI. Hoje, a Igreja da Comunidade Metropolitana (ICM), por exemplo, conta com 12 unidades em todo o Brasil. A de Salvador é liderada por uma pastora trans. No Rio, quem coordena é o pastor Gustavo, que é homossexual.

— A pessoa LGBTI vê outra igual a ela no altar e se identifica. Na igreja onde temos uma pastora lésbica, há mais presença feminina, por exemplo — analisa Gustavo.

O pastor destaca que o diálogo inter-religioso às vezes é mais fácil:

— Nós temos muito mais facilidade em conversar com outras religiões do que com as próprias igrejas evangélicas. Quando puxam para a ofensa, indicamos aos nossos fiéis que é melhor sair do diálogo.

Deus perto de mim

O radicalismo e a leitura dos textos bíblicos que marginalizam a população LGBTI é combatida pelo pastor Marcos, da ICC. Em seus sermões, ele se dedica às passagens bíblicas mais usadas por críticos. Marcos compilou uma extensa lista de traduções do texto bíblico original que ele classifica como malfeitas:

— Existe um trecho em Coríntios que diz, segundo muitas traduções: “Efeminados e sodomitas não herdarão o Reino dos Céus”. Outras traduções chegam ainda a substituir “efeminados e sodomitas” por “homossexuais ativos e passivos”. Mas o texto em grego traz duas palavras que seriam mais bem traduzidas se fossem “depravados e pessoas de costumes infames”, o que não tem relação direta com qualquer orientação sexual.

Entre os fiéis, o pastor identifica casos parecidos com o seu. Laércio Guedes, casado hoje com Dalton Costa, ficou 22 anos afastado da religião por não se sentir aceito. Na juventude, ele já tinha passado por oito meses de tratamento de “cura gay” em uma igreja que frequentava à época:

— Quando vi que não tive “sucesso”, me frustrei ainda mais. Achava que Deus não tinha um plano para mim. Hoje estou realizado, feliz.

Frequentadora da ICC desde 2016, Danielle Barreto conta que, antes de entrar para a congregação, precisou lutar para ter aceitação da sua família e dos parentes da então namorada, Paula Novaes. Hoje, elas são casadas e têm filhos gêmeos de sete meses:

— Tenho eterna gratidão a essa igreja. Antes, as pessoas diziam que Deus ia me condenar, mas eu jamais senti Deus longe de mim.