Brasil Celina

'Ser mulher negra e chefe é entender que eu carrego o navio negreiro inteiro'

Fundadora do movimento Black Money, Nina Silva fala da importância da representatividade em ambientes corporativos
Nina Silva, criadora do Movimento Black Money, que fomenta o empreendedorismo negro dentro do conceito "Não me vejo, não compro". Foto: Alexandre Cassiano / Agência O Globo
Nina Silva, criadora do Movimento Black Money, que fomenta o empreendedorismo negro dentro do conceito "Não me vejo, não compro". Foto: Alexandre Cassiano / Agência O Globo

RIO - No mercado corporativo brasileiro, menos de 5% dos executivos são negros, segundo dados do Instituto Ethos. Quando se fala de mulher negra, então, o percentual é de apenas 0,4%. Nina Silva é uma das que estão tentando mudar estes números. Ela é project manager lead (gerente de programas) na ThoughtWorks e fundadora do Movimento Black Money, que busca conectar pessoas negras através do empreendedorismo gerando renda. Nina integra a lista da ONU "100 pessoas afrodescendentes mais influentes do mundo com menos de 40 anos" e a lista Forbes "20 mulheres mais poderosas do Brasil".

Como é ser uma mulher negra em posição de liderança?

Quando falamos de mulheres negras, partimos de um pressuposto de que não podemos partir da questão de gênero para depois discutir raça. A gente tem que discutir primeiro a questão do racismo estrutural para depois chegar na questão de gênero, porque a população negra é quem mais sofre com o desemprego, as taxas de homicídios e a desigualdade salarial.

Ser mulher negra e em cargo de liderança é entender que, na empresa em que eu estiver, carrego o navio negreiro inteiro. O ambiente empresarial acaba sendo hostil com mulheres, pessoas negras, ou com deficiência. No entanto, se esses grupos não estiverem devidamente inseridos na equipe, eles boicotarão esses mesmos espaços e constituirão suas próprias instituições, alicerçadas em suas próprias demandas.

Eu carrego várias questões de representatividade. Não consigo pensar na minha carreira individual sem pensar nos coletivos que me apoiam. As empresas que não trabalham com inclusão de grupos “minoritários” estão fadadas à morte. Não entendem que nós estamos conectados em redes. A gente não deve achar que vão nos inserir em conselhos administrativos, que vão nos convidar para as mesas diretoras. Nós precisamos criar as nossas próprias mesas.

O que é black money?

É um hub de transformação negra dentro e fora das instituições. Nosso objetivo é que o consumo e os meios de produção da população negra - o nosso capital, tanto financeiro quanto educacional, ou intelectual - se mantenha por mais tempo em mãos negras para aumentar nossa empregabilidade, nossos negócios.

Se a gente mantém a nossa riqueza por mais tempo em nossas próprias mãos, conseguimos ser nossos próprios mentores, alavancamos negócios e, assim, impactamos diretamente a pirâmide socioeconômica do Brasil como um todo. Se aumentamos a renda per capita da população que está na base, geramos impacto em toda a pirâmide.

O movimento Black Money trabalha educação e acesso a serviços financeiros para grupos minoritários, com foco na população negra. Fazemos assim porque nossos pedidos de crédito são três vezes mais negados em instituições financeiras, por exemplo.

Qual a importância da representatividade nos espaços corporativos?

É a mudança de paradigma. É não mais você entrar nos espaços, olhar uma pessoa negra e perguntar “Cadê a sua patroa?” e não entender que essa pessoa pode ser a referência ali enquanto chefia. É estar em espaços e ter representatividade, ver que somos diferentes sim, mas que são as diferenças que trazem a possibilidade de melhores soluções. A representatividade também é importante para mover nossos jovens e crianças que precisam de diferentes referenciais. É olhar para uma pessoa e saber que não há limites para a atuação dela. Só porque é negra, mulher, LGBTI tem que estar em determinadas áreas?

Nós sabemos que não é nossa raça que dita nossa capacidade. Não é, também, nosso gênero ou nosso estado de limitações físicas, que vai limitar nossa atuação. A importância da representatividade é tirar essa pequenez que foi nos colocar em caixinhas e dizer no máximo “tente ser incluído”. Nós não precisamos mais mudar nossas vozes ou falar mais alto para sermos ouvidas. Se não quiserem nos ouvir, viramos as costas e construímos nosso próprio legado.

Como as empresas podem atuar em busca de igualdade de oportunidades para mulheres e pessoas negras?

Eu não costumo falar igualdade, mas equidade. Igualdade é quando todos saem do mesmo ponto de partida. A gente precisa falar de equidade, porque programas diferenciados precisam ser feitos.

Não adianta agirem no pensamento de “Não sou racista, tenho até jovens aprendizes negros”. Sim, porque são os que nunca têm oportunidade de crescimento na empresa. Quando acaba o tempo de atuação, são jogados de novo na marginalização social. Não adianta só incluir e não colocar em espaços de influência de diferentes níveis da organização. A diversidade deve buscar a normalidade. E a normalidade são pessoas convivendo com suas diferenças, não tentando se encaixar em moldes.

Não adianta querer atingir mais consumidores se eles não são pensados dentro da empresa.

Como foi chegar a este posto?

O grande problema nesse caminho foram todos os questionamentos de por que eu estava ali, de que eu não deveria estar naquela posição, naquele lugar. Para mim foi um exercício de desmitificar que o racismo e o machismo não fazem parte de mim, são estruturas da sociedade. Estar em liderança sendo mulher e negra foi um trabalho de fortalecimento interno.

Eu não tenho só que estar em determinados espaços, eu tenho que levar as pessoas comigo. Tenho que ser o motor que muda a dinâmica desses ambientes. Toda a questão de diversidade vem dentro da minha figura, porque as pessoas não estão acostumadas comigo nesses espaços, principalmente sendo uma especialista.

Tenho 17 anos de carreira em tecnologia, é muito difícil ver mulheres nessa área por tanto tempo. Ainda mais uma mulher negra que não se moldou apenas para ser aceita. Quando vemos uma pessoa negra nesses espaços, ela acaba querendo buscar uma igualdade com os outros no mesmo cargo, mas essa igualdade não vai existir, não enquanto ela for a única pessoa negra ali. A representatividade é muito forte para mim porque eu sempre fui o que não esperavam que eu fosse.

Muitas vezes a gente acredita que tem que se moldar ao ambiente para se sentir pertencente, mas na verdade não estão nos incluindo, estão nos suportando. É mais fácil fingir que toleram nossa presença sem abrir as portas para outras pessoas iguais a nós.

O que significa e qual a importância de estar na Lista da Forbes de Mulheres mais poderosas?

A importância é que sou um rosto de representatividade. É poder falar da minha carreira, mas ao mesmo tempo trazer diferentes olhares para histórias distintas e não histórias apenas de sucesso, de pessoas que “chegaram lá”. Eu já tive burnout (síndrome provocada pela sobrecarga de trabalho, que resulta em exaustão extrema), já tive um empreendimento e fali.

Estou mostrando que, quando temos oportunidade e uma base forte, conseguimos transgredir algumas barreiras. Como não falar de representação se infelizmente você é a única peça que parece estar fora do baralho, que parece um corpo estranho, mas que na verdade pode trazer uma nova realidade para o futuro?

* Estagiária sob supervisão de Renata Izaal