RIO - Em 2020, em plena pandemia, a Terra Indígena Yanomami, localizada entre os estados do Amazonas e Roraima, seguiu com sua floresta derrubada, seu solo retalhado e os rios contaminados por mercúrio, enquanto os garimpeiros se multiplicavam por suas bacias trazendo malária, Covid-19 e violência. Essa é uma fotografia da maior reserva indígena do país e vem à luz agora com o relatório “Cicatrizes na Floresta: a evolução do garimpo ilegal na TI Yanomami” a ser divulgado nesta quinta-feira, e que aponta para um avanço de 30% da atividade garimpeira, com 500 hectares devastados de janeiro a dezembro. No total, o garimpo ilegal já destruiu o equivalente a 2,4 mil campos de futebol em todo o território. Pouco ou quase nada se fez para conter os invasores, que já beiram os 20 mil na região.
STF : Governo Bolsonaro é intimado para apresentar plano de isolamento de invasores em terras indígenas
Sob tensão por conta de recentes conflitos com mortes do lado dos índios e dos invasores, a TI Yanomami registrou uma disparada de atividades de garimpo nas bacias dos rios Mucajaí, Catrimani, Parima e Uraricoera, este último responsável por mais da metade (52%) de toda a área degradada na terra indígena.
Câmara : Projeto que revê demarcação de terras indígenas ganha força na CCJ
A escalada de invasões, aponta o documento, acontece em um momento no qual há um enfraquecimento da capacidade dos órgãos públicos de realizar a proteção territorial da terra indígena, com perda de infraestrutura instalada e menor frequência e alcance de operações de fiscalização, o que vem facilitando a aproximação de núcleos de garimpeiros no interior da reserva.
Hoje, além da concentração já existente no rio Uraricoera com o garimpo "tatuzão do mutum", surgiram três novas áreas próximas às comunidades de Aracaçá, Korekorema e dos Ye’kwana de Waikás. Seis regiões estão entre as mais afetadas pela devastação, como Waikás e Kayanau, com 35% e 23%, respectivamente da área desmatada.
Covid-19 : Brasil já registra mais de mil mortes de indígenas, aponta entidade
"Com o afrouxamento dos mecanismos de proteção territorial, abriu-se o caminho para a intensificação da atividade garimpeira, estimulada pelo discurso oficial de apoio à atividade e a consequente expectativa de não impedimento e eventual legalização", diz trecho do relatório que associa o aumento da atividade garimpeira como resultado da interrupção de políticas de proteção territorial na terra indígena.
Demarcação : Sob Bolsonaro, Funai e Ministério da Justiça travam processos sobre terras indígenas
Os garimpos têm utilizado maquinários cada vez mais sofisticados e pesados para extração de ouro na região e conta com uma extensa e complexa rede logística com atividades terrestres, fluviais e aéreas, que acelera ainda mais a devastação.
40 aviões e 35 pistas de pouso ilegais
Dário Kopenawa Yanomami, da Associação Hutukara, entidade reponsável pela realização do relatório ao lado da Associação Wanasseduume Ye´kwana, chama a atenção das autoridades para a gravidade do problema:
— É preciso que haja resultados diante de tanto desmatamento, de tanta poluição e destruição dos nossos rios. Esse relatório comprova que o garimpo ilegal só aumenta. Nós povo yanomami queremos que o garimpo saia de nossa terra indígena. Queremos viver em paz sem a presença dos garimpeiros. Pedimos ao governo federal que retire os garimpeiros imediatamente. As autoridades precisam cumprir suas responsabilidades — afirma.
Filho do xamã e líder dos yanomami Davi Kopenawa, que está isolado em seu território por conta da pandemia, Dário contou ao GLOBO que todos os dias cerca de 40 aviões sobrevoam o território Yanomami para transportar garimpeiros, levar combustível e deixar alimentação. Os grupos contam ainda com o apoio de oito helicópteros.
Piripkura em risco : Desmatamento avança sobre terra de índios isolados em MT
— Eles começam a sair por volta das 6h quando o sol ainda está nascendo e retornam às 18h, levando mais garimpeiros, poluição, surto de malária e Covid — conta Kopenawa.
O relatório identificou 35 coordenadas geográficas que indicam a localização de pistas de pouso clandestinas para abastecimento do garimpo na Terra Indígena Yanomami.
A TI Yanomami é um das sete terras indígenas com a presença de povos isolados à espera de um plano do governo para a retirada de invasores. O Supremo Tribunal Federal (STF) já deu prazo para que o Ministério da Justiça e a Polícia Federal apresentem um plano de desintrusão. Completam a lista as terras Karipuna, Uru-EuWau-Wau, Kayapó, Araribóia, Munduruku e Trincheira Bacajá.
Covid e malária em alta
Não bastassem os impactos ambientais que degradam a terra indígena Yanomami, há ainda doenças trazidas pelos garimpeiros, como a Covid-19 e a malária. Há também relatos no documento de aliciamento e prostituição de jovens indígenas a partir da introdução de bebidas alcoólicas por esses invasores.
Com 13 mortes e cerca de 1.500 casos de Covid-19, os índios já vinham sofrendo com o aumento exponencial da malária: em cinco anos (2014-2019) aumentou cerca de 500% e 80% dos polos base apresentavam alto risco para a doença. Até outubro de 2020 foram registrados 949 novas ocorrências.
O estudo mostra que há uma forte relação da incidência dos casos de malária com o aumento do desmatamento, uma vez que áreas mais abertas facilitam a proliferação dos mosquitos vetores da doença.
Ameaça aos isolados
O avanço das doenças na TI Yanomami coloca em risco a sobrevivência de um grupo de indígenas isolados que habitam a região da Serra da Estrutura, denominados Moxihatëtëma, considerados ainda mais vulneráveis às doenças por terem uma resposta imunológica menos eficiente para combater infecções virais, como a Covid-19, e bacterianas.
"Um eventual contato forçado, nesse estágio, arrisca desencadear num trágico episódio de genocídio”, sustenta o relatório.
— O que eu vejo é um retorno do modus operandi que funcionou nos final anos 1980 e início do anos 1990 e que culminou no massacre de Haximu (1993).É uma ação pensada que tem pelo menos três eixos: aparato legal legislativo, que pretende desconstruir o capítulo 231 da Constituição; atos administrativos, resolvem com portarias e decretos impulsionando as invasões e limitando a capacidade dos órgãos dos controles de fiscalização; e a "expansão colonial" , ou seja, tentam empurrar essas frentes de exploradores desordenadas e depois vem o Estado e tenta dar uma regularizada como pacificador e quase sempre atendendo os interesses que não o dos índios — afirma Rogério do Pateo, antropólogo e professor da Unviersidade Federal de Minas Gerais (UFMG) que estuda os yanomami há mais de 20 anos.
— Na prática, há um incentivo das invasões no discurso oficial do governo, que faz vistas grossas ao que está acontecendo nessa região. É mesmo o "passar da boiada" — completa.
O massacre de Haximu se deu quando um grupo de ao menos 16 yanomamis foram atacados durante uma emboscada feita por garimpeiros fortemente armados. O episódio foi reconhecido como o primeiro caso de genocídio pelo Estado brasileiro.
Exaltada por sua importância em termos de proteção da biodiversidade amazônica, a Terra Yanomami possui 96, 6 mil km² de área, e foi homologada em 1992, pelo ex-presidente Fernando Collor.