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Garimpo ignora pandemia e avança 30% na Terra Indígena Yanomami em 2020

Relatório mostra que em um ano foram desmatados 500 hectares de floresta e prenuncia uma tragédia caso garimpeiros não sejam retirados em breve
Foto aérea do garimpo semimecanizado no rio Parima, na Terra Indígena Yanomami, em dezembro de 2020 Foto: ISA/HAY
Foto aérea do garimpo semimecanizado no rio Parima, na Terra Indígena Yanomami, em dezembro de 2020 Foto: ISA/HAY

RIO - Em 2020, em plena pandemia, a Terra Indígena Yanomami, localizada entre os estados do Amazonas e Roraima, seguiu com sua floresta derrubada, seu solo retalhado e os rios contaminados por mercúrio, enquanto os garimpeiros se multiplicavam por suas bacias trazendo malária, Covid-19 e violência. Essa é uma fotografia da maior reserva indígena do país e vem à luz agora com o relatório “Cicatrizes na Floresta: a evolução do garimpo ilegal na TI Yanomami” a ser divulgado nesta quinta-feira, e que aponta para um avanço de 30% da atividade garimpeira, com 500 hectares devastados de janeiro a dezembro. No total, o garimpo ilegal já destruiu o equivalente a 2,4 mil campos de futebol em todo o território. Pouco ou quase nada se fez para conter os invasores, que já beiram os 20 mil na região.

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Sob tensão por conta de recentes conflitos com mortes do lado dos índios e dos invasores, a TI Yanomami registrou uma disparada de atividades de garimpo nas bacias dos rios Mucajaí, Catrimani, Parima e Uraricoera, este último responsável por mais da metade (52%) de toda a área degradada na terra indígena.

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A escalada de invasões, aponta o documento, acontece em um momento no qual há um enfraquecimento da  capacidade dos órgãos públicos de realizar a proteção territorial da terra indígena, com perda de infraestrutura instalada e menor frequência e alcance de operações de fiscalização, o que vem facilitando a aproximação de núcleos de garimpeiros no interior da reserva.

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Encontro de lideranças Yanomami e Ye'kwana, onde os indígenas se manifestaram contra o garimpo em suas terras. Foto: Divulgação
Encontro de lideranças Yanomami e Ye'kwana, onde os indígenas se manifestaram contra o garimpo em suas terras. Foto: Divulgação

Hoje, além da concentração já existente no rio Uraricoera com o garimpo "tatuzão do mutum",  surgiram três novas áreas próximas às comunidades de Aracaçá, Korekorema e dos Ye’kwana de Waikás. Seis regiões estão entre as mais afetadas pela devastação, como Waikás e Kayanau, com 35% e 23%, respectivamente da área desmatada.

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"Com o afrouxamento dos mecanismos de proteção territorial, abriu-se o caminho para a intensificação da atividade  garimpeira, estimulada pelo discurso oficial de apoio à atividade e a consequente expectativa de não impedimento e eventual legalização", diz trecho do relatório que associa o aumento da atividade garimpeira como resultado da interrupção de políticas de proteção territorial na terra indígena.

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Os garimpos têm utilizado maquinários cada vez mais sofisticados e pesados para extração de ouro na região e conta com uma extensa e complexa rede logística com atividades terrestres, fluviais e aéreas, que acelera ainda mais a devastação.

40 aviões e 35 pistas de pouso ilegais

Detalhe de pista clandestina indicando
ao menos 6 aeronaves operantes, no rio Couto
Magalhães, Região Papiu, TI Yanomami, em dezembro de
2020 Foto: ISA/HAY
Detalhe de pista clandestina indicando ao menos 6 aeronaves operantes, no rio Couto Magalhães, Região Papiu, TI Yanomami, em dezembro de 2020 Foto: ISA/HAY

Dário Kopenawa Yanomami, da Associação Hutukara, entidade reponsável pela realização do relatório ao lado da Associação Wanasseduume Ye´kwana, chama a atenção das autoridades para a gravidade do problema:

— É preciso que haja resultados diante de tanto desmatamento, de tanta poluição e destruição dos nossos rios. Esse relatório comprova que o garimpo ilegal só aumenta. Nós povo yanomami queremos que o garimpo saia de nossa terra indígena. Queremos viver em paz sem a presença dos garimpeiros. Pedimos ao governo federal que retire os  garimpeiros imediatamente. As autoridades precisam cumprir  suas responsabilidades — afirma.

Filho do xamã e líder dos yanomami Davi Kopenawa, que está isolado em seu território por conta da pandemia, Dário contou ao GLOBO que todos os dias cerca de 40 aviões sobrevoam o território Yanomami para transportar garimpeiros, levar combustível e deixar alimentação. Os grupos contam ainda com o apoio de oito helicópteros.

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— Eles começam a sair por volta das 6h quando o sol ainda  está nascendo e retornam às 18h, levando mais garimpeiros,  poluição, surto de malária e Covid — conta Kopenawa.

O relatório identificou 35 coordenadas geográficas que  indicam a localização de pistas de pouso clandestinas para abastecimento do garimpo na Terra Indígena Yanomami.

A TI Yanomami é um das sete terras indígenas com a presença de povos isolados à espera de um plano do governo para a retirada de invasores. O Supremo Tribunal Federal (STF) já deu prazo para que o Ministério da Justiça e a Polícia Federal apresentem um plano de desintrusão. Completam a lista as terras Karipuna, Uru-EuWau-Wau, Kayapó, Araribóia, Munduruku e Trincheira Bacajá.

Covid e malária em alta

Vista aérea do tatuzão do Mutum, em dezembro de
2020, considerado o maior garimpo da Terra Indígena Yanomami Foto: ISA/HAY
Vista aérea do tatuzão do Mutum, em dezembro de 2020, considerado o maior garimpo da Terra Indígena Yanomami Foto: ISA/HAY

Não bastassem os impactos ambientais que degradam a terra indígena Yanomami, há ainda doenças trazidas pelos garimpeiros, como a Covid-19 e a malária. Há também relatos no documento de aliciamento e prostituição de jovens indígenas a partir da introdução de bebidas alcoólicas por esses invasores.

Com 13 mortes e cerca de 1.500 casos de Covid-19, os índios já vinham sofrendo com o aumento exponencial da malária: em cinco anos (2014-2019) aumentou cerca de 500% e 80% dos polos base apresentavam alto risco para a doença. Até outubro de 2020 foram registrados 949 novas ocorrências.

O estudo mostra que há uma forte relação da incidência dos casos de malária com o aumento do desmatamento, uma vez que áreas mais abertas facilitam a proliferação dos mosquitos vetores da doença.

Ameaça aos isolados

Um outro ângulo de imagem aérea do acampamento de garimpeiros, no tatuzão do Mutum, na Terra Indígena Yanomami, em dezembro de 2020. Foto: ISA/ HAY
Um outro ângulo de imagem aérea do acampamento de garimpeiros, no tatuzão do Mutum, na Terra Indígena Yanomami, em dezembro de 2020. Foto: ISA/ HAY

O avanço das doenças na TI Yanomami coloca em risco a sobrevivência de um grupo de indígenas isolados que habitam a região da Serra da Estrutura, denominados Moxihatëtëma, considerados ainda mais vulneráveis às doenças por terem uma resposta imunológica menos eficiente para combater infecções virais, como a Covid-19, e bacterianas.

"Um eventual contato forçado, nesse estágio, arrisca desencadear num trágico episódio de genocídio”, sustenta o  relatório.

— O que eu vejo é um retorno do modus operandi que funcionou nos final anos 1980 e início do anos 1990 e que culminou no massacre de Haximu (1993).É uma ação pensada que tem pelo menos três eixos: aparato legal legislativo, que pretende desconstruir o capítulo 231 da Constituição; atos administrativos, resolvem com portarias e decretos impulsionando as invasões e limitando a capacidade dos órgãos dos controles de fiscalização; e a "expansão colonial" , ou seja, tentam empurrar essas frentes de exploradores desordenadas e depois vem o Estado e tenta dar uma regularizada como pacificador e quase sempre atendendo os interesses que não o dos índios — afirma Rogério do Pateo,  antropólogo e professor da Unviersidade Federal de Minas Gerais (UFMG) que estuda os yanomami há mais de 20 anos.

— Na prática, há um incentivo das invasões no discurso oficial do governo, que faz vistas grossas ao que está acontecendo nessa região. É mesmo o "passar da boiada" — completa.

O massacre de Haximu se deu quando um grupo de ao menos 16 yanomamis foram atacados durante uma emboscada feita por garimpeiros fortemente armados. O episódio foi reconhecido como o primeiro caso de genocídio pelo Estado brasileiro.

Exaltada por sua importância em termos de proteção da biodiversidade amazônica, a Terra  Yanomami possui 96, 6 mil km² de área, e foi homologada em 1992, pelo ex-presidente Fernando Collor.