Uma das coisas mais difíceis na ficção é construir uma voz convincente — um narrador ou uma narradora que, mais que contar uma história, é a melhor parte da história que conta. José Luiz Passos faz isso com perfeição. Quando li “O sonâmbulo amador” (Alfaguara, 2012), romance que venceu o prêmio Portugal Telecom de 2013, a voz de Jurandir ficou grudada no meu ouvido por semanas. Ela era tão cristalina que eu tinha a impressão de escutá-lo de verdade.
Em “Um álbum para Lady Laet”, o mais recente romance de Passos, aconteceu algo parecido com isso. Lucy, a narradora, nos conduz com graça e agilidade — como numa conversa regada a muita cerveja — pelos meandros da vida da mãe, Neide, a Lady Laet, cantora que foi ícone da música alternativa num passado não muito distante mas caiu em completo ostracismo.
Lucy mal teve contato com ela. Mas conhecia sua lenda, e isso a deixa intrigada. Já adulta, se muda de São Paulo para Los Angeles para catar os caquinhos da vida de Lady Laet. E acaba escrevendo uma biografia.
Mas o romance que lemos não é o livro de Lucy, e sim o relato que ela faz do processo — os bastidores do trabalho da biógrafa. Esse processo é a crônica de uma filha à procura da mãe.
Para Lucy, narrar a vida de Lady Laet é um modo de falar de si mesma: da orfandade, dos perrengues com grana e com o idioma que não domina, da amizade com o velho produtor dos álbuns da Lady, de como se envolve com uma amiga num triângulo amoroso e passa a viver com o namorado dela, Pablo, um boxeador trans que quase disputou uma Olimpíada e agora se vira com pequenos bicos.
“Um álbum para Lady Laet” é um romance sobre vidas em transição. Tudo é provisório, nenhuma identidade se estabiliza. Até os nomes não param de mudar: Lucy é também Lucineide e Lucy Inde-Sky, a Lady é Neide, Pablo já foi Paola e Pila Coyote, o produtor Saboia é Sabby, Zaboyan ou só “old man”.
A vida da biografada também é cheia de mistério: sabemos que as letras da Lady eram doidonas, que as canções eram experimentais, que foi capa da revista Manchete e ficou barrada no baile com Tim Maia. Mas a pessoa real por trás da lenda permanece um enigma. Ainda assim, o pouco que Lucy descobre é suficiente para tecer uma história a partir de migalhas.
Mas qual história? Não a de Neide, e sim a da Lady. Sentimos a presença de Laet em cada página — a atmosfera da música que ela e sua banda faziam. Há sempre um vinil da Banda Barata girando na vitrola, e alguém que folheia os encartes e se maravilha com as fotos, as roupas, os penteados.
Tudo isso faz do romance de Passos um álbum nos dois sentidos da palavra. É álbum de fotografias, já que cada capítulo abre com ilustrações feitas pelo autor (assim como os sonhos de “O sonâmbulo amador”, as imagens dão o tom do que vamos ler na sequência). E é também um álbum musical, com jeitão de lado B e som de caixa valvulada: o acompanhamento de fundo para a voz de Lucy, a trilha sonora para os improvisos que ela faz com o pouco que restou da vida de sua mãe.
Com “Um álbum para Lady Laet”, o pernambucano José Luiz Passos, de 50 anos, se consolida como um dos mais inovadores escritores brasileiros contemporâneos. Formado em Sociologia, o autor de “O marechal de costas” (Alfaguara, 2016) também é PhD em Letras pela Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), onde é professor titular de literaturas brasileira e portuguesa do Centro de Estudos Brasileiros.
Felipe Charbel é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de “Janelas irreais — Um diário de releituras” (Relicário Edições)