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Por — São Paulo

Quando era garoto, o escritor carioca Bernardo Carvalho se rebelou contra seu bisavô, morto dois anos antes de seu nascimento, que era reverenciado pela família como um verdadeiro deus: o marechal Candido Mariano da Silva Rondon (1865-1958), desbravador da Amazônia e primeiro diretor do Serviço de Proteção ao Índio. O bisneto acusava de “paternalista” o projeto de assimilação das populações indígenas empreendido pelo velho militar positivista. Com o tempo, Carvalho se reconciliou com Rondon, que foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz por Albert Einstein e cujas expedições contribuíram para a integração do território nacional e a catalogação da biodiversidade brasileira.

Rondon faz uma ponta no novo romance de Carvalho, “Os substitutos”, precisamente em um dos capítulos mais bonitos da obra, “Impotência”. Com saudades da esposa, o marechal não encontra meios para aliviar seu desejo no meio da selva.

O poder do desejo, aliás, é tema frequente na ficção de Carvalho, autor de títulos como “Simpatia pelo demônio” e o premiado “Nove noites” (que antecipa debates de “Os substitutos”).

Ambientado na ditadura militar, o novo romance é protagonizado por um pai e um filho. O pai é um fazendeiro que devasta a floresta e assedia povos indígenas com as bênçãos dos generais no poder. O filho lê e relê um livro de ficção científica sobre a colonização de um outro planeta depois que a vida na Terra se tornou inviável.

A certa altura da trama, os dois tomam um táxi numa cidadezinha amazônica e o motorista repete uma história ouvida do tio-avô, que participara de uma das expedições de Rondon.

O marechal era implacável. Exigia disciplina máxima da tropa e impunha castigos físicos aos que se embriagassem ou se envolvessem com mulheres indígenas. Mas um dia Rondon amoleceu. Ingressara na expedição um homem de meia-idade que fugira da esposa porque não conseguia mais “consumar o ato do amor”. Pego em flagrante tentando estuprar uma indígena, ele é levado ao marechal, “mas em vez de mandar amarrar o sujeito numa árvore, como exemplo, e o espancar até a morte, como fazia com os outros, Rondon ordenou que o prendessem e o mantivessem sob vigília”. O militar não encosta um dedo no criminoso, mas passa a noite ouvindo-o falar de sua humilhação.

Masculinidade tóxica

O capítulo ilustra um tema que perpassa “Os substitutos”: a associação entre colonização e masculinidade, da qual os indígenas são testemunhas no romance — tanto a indígena violentada pelo velho impotente quanto outra, que acusa o pai-protagonista de faltas que não sabemos quais são. Com frequência, o pai abandonava o filho sozinho e saía atrás de parceiras sexuais. “Buscava a degradação”, diz o narrador. Não apenas a degradação da natureza (“desbravar esta terra antes que ela passe de virgem a puta”), mas também das próprias relações afetivas.

— Falar sobre essa masculinidade branca e terrível virou tabu, como se um livro sobre esse assunto fosse necessariamente um mau livro. Mas é sobre isso que eu quis falar, porque acho que o problema está aí, nesse pai. Quis fazer um livro que tivesse variações de masculinidade, incluindo relacionamentos homossexuais e uma relação de amor entre um pai e um filho que beira o incesto — explica Carvalho, em conversa com o GLOBO. — Normalmente, o pai encarna a lei, mas no livro a lei está com o filho, e isso incomoda, está tudo fora de lugar. Mesmo dentro dessa masculinidade tóxica, há possibilidades de amor e muita contradição.

“Era um homem emotivo, embora também pudesse ser sádico, o que não resultava propriamente em contradição. Uma coisa não excluía a outra e era possível que até se completassem”, diz o narrador sobre o pai, reproduzindo as percepções do filho. Ao construir essa complexa relação pai-e-filho, nos quais um é “adversário”, mas também “substituto” do outro (o pai dizia amar o filho como “continuação” de seu próprio corpo), Carvalho faz um elogio da ambiguidade, que encontra na literatura solo fértil para florescer. “Ninguém é puro crime”, diz o filho (já adulto), embora aprenda que o amor às vezes nos faz cúmplices dos crimes dos outros.

Não é de hoje que Carvalho é um dos defensores mais veementes da ficção que encontra na ambiguidade sua matéria-prima e que, na avaliação dele, anda perdendo espaço para uma literatura em defesa de boas causas, que conforta e confirma as opiniões do leitor.

— Criou-se um leitor que busca o apaziguamento. Para mim, isso é um problema, porque a paz deve ser buscada nas leis, na justiça, não na literatura. Hoje existe uma demanda por livros que “abracem”, que “empoderem”. Livro não abraça, não confirma o que você pensa, não te acalma. Isso é religião — afirma. — A literatura é o lugar da verdade. E verdade é conflito. O ser humano está destruindo todas as suas possibilidades de vida, e a literatura não pode ser cúmplice disso dizendo que está tudo bem. Está tudo péssimo. A literatura é mais interessante quando parte da dúvida, do conflito. Toda tradição moderna ocidental partiu daí: Kakfa, Proust, Joyce, Dostoiévski. Nenhum deles fez elogio do capitalismo ou da colonização. Se bem que dizem que Dostoiévski apoiava o imperialismo russo, né?

Sem ressentimentos

Autor premiado de uma obra sólida e reconhecida pela crítica, Carvalho diz que o interesse por seus livros tem diminuído.

— Hoje entrei numa livraria e... cadê meu livro? Acabou de sair e não está em lugar nenhum. Lá, tinha uma mesa com os livros mais vendidos. Escondida atrás dessa mesa, achei uma pilha com cinco, seis cópias do meu livro. Vai ver que o livreiro achou ruim demais, que ninguém vai comprar, e decidiu colocá-los lá. Pode ser — conta o escritor carioca. — O último lugar que eu quero ocupar na vida é o do ressentimento. Não quero isso para mim. Construí um caminho nesses 30 anos e tenho uma editora que continua me publicando, está tudo beleza. Mas percebo que hoje não importa o que eu pense ou diga, porque tudo já está determinado pelo meu lugar de fala. Mas, para mim, literatura não é isso. Nunca foi.

Capa do romance "Os substitutos", de Bernardo Carvalho, publicado pela Companhia das Letras — Foto: Reprodução
Capa do romance "Os substitutos", de Bernardo Carvalho, publicado pela Companhia das Letras — Foto: Reprodução

Serviço:

‘Os substitutos’

Autor: Bernardo Carvalho. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 232. Preço: R$ 69,90.

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