Um Só Planeta Coronavírus

'Homem branco não pode mais falar que Yanomami não existe', diz Davi Kopenawa

Líder indígena assina roteiro de "A última floresta", que mostra o mundo encantado do povo amazônico e a luta contra o garimpo; Filme estreia no Festival de Berlim
'Não estamos isolados, estamos na floresta. Na nossa floresta sagrada', diz o xamã Davi Kopenawa, que assina o roteiro de 'A última floresta' Foto: Divulgação
'Não estamos isolados, estamos na floresta. Na nossa floresta sagrada', diz o xamã Davi Kopenawa, que assina o roteiro de 'A última floresta' Foto: Divulgação

RIO - Uma cena logo no começo do filme “A última floresta” mostra guerreiros yanomamis se cobrindo de preto com tinta de jenipapo — misturada a cinza de madeira moída — e se armando com arcos e flechas. A câmera, então, segue o grupo enquanto o contingente, liderado pelo xamã Davi Kopenawa , caminha pela mata densa até a beira de um riacho onde se veem três homens brancos sentados.

“Garimpeiro!”, grita Kopenawa, enquanto um guerreiro prepara o arco: “Vocês não podem trabalhar aqui, meu povo não aceita mineração”, avisa o xamã, enquanto os intrusos se levantam. Suas palavras são seguidas por uma flecha que sibila até atingir a terra ao pé dos invasores. Sem oferecer resistência, os inimigos deixam o local carregando suas bugigangas.

PODCAST: Ouça entrevista com Davi Kopenawa, líder dos Yanomami

A sequência reproduz algo que ocorre com certa frequência no território Yanomami, no Norte da Amazônia. Quando uma aldeia identifica a presença de garimpeiros por perto, é preciso afugentá-los antes que descubram ouro, para evitar que mais invasores cheguem e, com maquinário e armamento pesados, condenem a região à morte, como vem ocorrendo em grande parte da reserva.

Pandemia: 'Voltar ao normal seria aceitar que a Terra é plana', diz Krenak

Selecionado para o Festival de Berlim, que acontece de 1º a 5 de março, “A última floresta” tem direção de Luiz Bolognesi, premiado roteirista de “Bicho de sete cabeças” (2001), que assina o argumento do novo filme junto com Davi Kopenawa. Rodada ao longo de cinco semanas de 2019, na aldeia Watoriki, a duas horas de voo de Boa Vista, em Roraima, a produção não apenas expõe a luta daquele povo para proteger seu território do garimpo ilegal. Também transforma em cinema o universo encantado dos Yanomami.

— Para eles, o mundo é mágico, e a dimensão do sonho é da ordem do real. Os yanomamis acreditam que, quando eles dormem, o espírito vagueia — conta Bolognesi. — Um dia, durante as filmagens, o nosso guia reclamou de cansaço porque tinha passado a noite inteira fugindo de uma onça que queria comê-lo.

No documentário “Ex-pajé” , que recebeu uma menção honrosa na Berlinale em 2018, Bolognesi mostrou o drama de um líder indígena subjugado por religiosos evangélicos. Agora, sua intenção é exibir a potência de um povo que luta para proteger sua tradições.

Assim como a cosmologia dos Yanomami, o filme trata o lado “encantado” do povo como fundamento da realidade. Quando um pai de família desaparece, ele pode ter sido levado pelo “feitiço do celular” oferecido pelos garimpeiros. Mas também pode ter sido seduzido por um espírito da floresta.

Entrevista: 'Como vocês vão viver sem a floresta?', pergunta Dario Kopenawa

Em outro trecho do longa, dois jovens de bermudas e calçando Havaianas, ornados com penas coloridas e pintura no corpo, representam os gêmeos Omama e Yoasi, que estão na origem do mundo, segundo os Yanomami. Eles vivem solitários até que Omama “pesca” do rio a primeira mulher, Thuëyoama. Enquanto o casal povoa a floresta, Yoasi se afasta e cria a morte.

— Eu quis levar para o filme o mundo mágico em que eles vivem. Ainda que não fizesse sentido para os brancos, funcionaria para o público indígena do país. Já seria ótimo — diz Bolognesi, que trabalhou em parceria com as produtoras Gullane e Buriti Filmes.

'Governo precisa tirar garimpeiros, antes que tenha guerra'

Infelizmente, não há como abordar a cultura yanomami, hoje, sem tratar do garimpo ilegal. A descoberta de jazidas minerais na área, nos anos 80, causou uma invasão em massa, levando desmatamento, conflitos e doenças como a malária, que mataram milhares de indígenas.

Com a demarcação do território, em 1992, e as sucessivas operações do Exército e da Polícia Federal, o problema foi reduzido. Porém, desde 2019, hordas de garimpeiros voltaram, sem a devida ação do governo para removê-los. Estima-se em até 15 mil deles, destruindo florestas e envenenando os rios com o mercúrio usado para separar o ouro de outros materiais na mineração.

Berlinale: Série do Canal Brasil é selecionada para festival

— Tem muitos garimpeiros entrando e saindo da reserva, trazendo destruição, doença, malária, coronavírus... O governo precisa tirar os garimpeiros, antes que tenha guerra entre eles e nosso povo. Se o garimpeiro atacar nossos filhos, vai ter guerra — afirma Davi Kopenawa, que luta contra o garimpo ilegal desde os anos 80 e hoje é presidente da Hutukara Associação Yanomami. — Eles também trazem outra doença, a cachaça, que não existe na minha terra. Eles levam para embebedar o povo.

Yanomami aponta flecha para o alto, numa cena de “A última floresta”: um aviso para a retirada dos garimpeiros Foto: Divulgação
Yanomami aponta flecha para o alto, numa cena de “A última floresta”: um aviso para a retirada dos garimpeiros Foto: Divulgação

De acordo com o xamã, ao longo do ano passado, grande parte dos yanomamis contraiu a Covid-19, também levada por invasores para dentro da reserva, e houve mortes entre os mais velhos. O próprio Kopenawa ficou doente e sentiu sintomas como perda de paladar e dores no peito. Hoje, porém, a maior preocupação do líder indígena é com uma outra enfermidade disseminada pelo garimpo.

- Tem muita malária no território, muita gente doente -  conta o xamã, que chegou a Boa Vista esta semana para tentar conversar com as autoridades. - Vim falar com o coordenador da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena). Não temos remédio, não temos médico, enfermeira. A autoridade precisa ajudar a gente.

Milton Hatoum : Obra de Kopenawa é o livro para entender Amazônia

Em 2015, Kopenawa lançou, com o antropólogo francês Bruce Albert, o livro “A queda do céu” (Companhia das Letras) . Com o seu relato sobre os Yanomami, a obra se tornou uma leitura fundamental para quem quer entender os povos originários que resistem na Amazônia. “A última floresta” é um gesto do xamã nesse mesmo sentido de dar visibilidade à cultura de seu povo e lutar pela defesa da área.

— Fiquei emocionado quando vi o filme pronto. Eu sonhei em falar com uma pessoa que usa a máquina, a câmera, para tirar uma imagem nossa e mostrar lá longe, na Europa, no Japão. Convidei Luiz Bolognesi para mostrar quem somos. Assim, o homem branco pode querer nos ajudar. Não pode mais dizer que Yanomami não existe, que estamos isolados. Não estamos isolados, estamos na floresta. Na nossa floresta sagrada.