Por que o novo relatório da Agência Internacional de Energia defende que emissão zero até 2050 é uma ruptura?
Documento propõe esforço global para neutralizar contribuição da cadeia energética para o aquecimento global. Para analistas, há um risco econômico para países produtores de petróleo como o Brasil
Akshat Rathi e Eric Roston, Bloomberg News
19/05/2021 - 09:00
/ Atualizado em 24/05/2021 - 10:07
Chaminé em usina de energia de Belgrado, na Sérvia Foto: Marko Djurica / Reuters
NOVA YORK - Debates eternos e mudanças graduais distribuídas ao longo de vários anos não vão funcionar para tirar o mundo da ameça da mudança climática.
Essa foi a mensagem do relatório “Net Zero by 2050” (saldo zero até 2050, em tradução livre), divulgado na terça-feira pela Agência Internacional de Energia (AIE), que defende a descarbonização da geração de energia no mundo dentro de menos de trinta anos.
A transição energética, é um desafio que “depende de um foco único e inabalável de todos os governos — trabalhando juntos entre si e com empresas, investidores e cidadãos”, diz o documento.
Ondas atingem um paredão em frente a edifícios em Taizhou, província de Zhejiang, leste da China. Os mesmos oceanos que nutriram a evolução humana estão prontos para desencadear a miséria em escala global alerta um projeto de relatório da ONU Foto: - / AFP
Alimentadas pelo rio Zambezi, as Victoria Falls (Cataratas de Vitória), na fronteira entre Zâmbia e Zimbábue, no Sul da África, enfrentaram, em 2019, a pior seca já registrada na região em um século. A paisagem, antes marcada pela queda d'água de tirar o fôlego, se tranfromou num grande abismo seco Foto: STAFF / REUTERS
Iceberg perto da ilha de Kulusuk, na costa sudeste da Groenlândia. Aquecimento global causado pelas atividades humanas terá consequências dramáticas para os oceanos e a criosfera, que inclui gelo marinho, geleiras, calotas polares e permafrost (tipo de solo encontrado na região do Ártico, constituído por terra, gelo e rochas permanentemente congelados) Foto: JONATHAN NACKSTRAND / AFP
Geleira na região do Everest, no Nepal, no distrito de Solukhumbu, a 140 km a nordeste de Katmandu. As montanhas devem perder uma parcela significativa de sua cobertura de neve, com impactos significativos na agricultura, no turismo e no suprimento de energia Foto: PRAKASH MATHEMA / AFP
Imagem fotografada por Steffen Olsen, do Centro de Oceano e Gelo do Instituto Meteorolítico Dinamarquês, mostra cães de trenó andando pela água parada no gelo do mar durante uma expedição no noroeste da Groenlândia. Relatório da ONU sobre oceanos e mudanças climáticas destaca efeitos que China, Estados Unidos, União Europeia e Índia enfrentarão Foto: STEFFEN OLSEN / AFP
Calotas polares da Antártica e da Groenlândia perderam uma média de 430 bilhões de toneladas por ano desde 2006, tornando-se a principal fonte do aumento do nível do mar
Foto mostra uma a geleira Apusiajik, perto de Kulusuk, na ilha de Sermersooq, na costa sudeste da Groenlândia Foto: JONATHAN NACKSTRAND / AFP
Dunas ao pé do edifício "Le Signal", em Soulac-sur-Mer, sudoeste da França, estão sendo lavadas devido às importantes marés do Atlântico Foto: JEAN-PIERRE MULLER / AFP
Áreas da Nona Ala, em Nova Orleans, inundadas após os furacões Katrina e Rita. O aumento do nível do mar pode deslocar 280 milhões de pessoas em um cenário otimista de um aumento de 2°C na temperatura global em comparação com a era pré-industrial. Com um aumento previsível da frequência de ciclones, muitas megacidades costeiras, bem como pequenas nações insulares, seriam inundadas todos os anos a partir de 2050 Foto: ROBYN BECK / AFP
Moradores usam barcos para atravessar um rio Ganges inundado, à medida que os níveis de água nos rios Ganges e Yamuna aumentam, em Allahabad, Índia. Relatório do IPCC diz que chuvas de monção do verão indiano, uma fonte vital para regar as culturas destinadas a alimentar centenas de milhões de pessoas, enfraqueceram significativamente desde 1950, provavelmente devido ao aquecimento do Oceano Índico Foto: SANJAY KANOJIA / AFP
A região do Ártico registrou temperaturas recorde nos últimos anos, com derretimento extenso das camadas de gelo e neve Foto: Evan Vucci / AP
A elevação dos níveis dos mares também já provocou o desaparecimento de ao menos cinco ilhas nas Ilhas Salomão, país no Oceano Pacífico considerado um dos mais ameaçados pelas alterações climáticas no planeta Foto: REPRODUÇÃO
Um urso polar pula entre pedaços de água congelada no Canadá. O fotógrafo Florian Ledoux capturou o momento usando um drone em agosto de 2018. Animais estão enfrentando uma série de ameaças que estão afetando seu futuro status populacional. "Eles estão entre os primeiros refugiados da mudança climática", escreveu Ledoux Foto: Florian Ledoux
Rio sub-glacial vindo de dentro de uma geleira e caindo num grande buraco Foto: Florian Ledoux
Imagem aérea mostra os corais brancos na Grande Barreira de Corais da Austrália, que está sendo destruída pelo aquecimento e acidificação dos mares Foto: ARC Centre of Excellence for Coral Reef Studies / Terry Hughes
Gelo flutuando na Groenlândia durante o inverno. Local costumava estar completamente congelado durante a estação Foto: Florian Ledoux
Nos EUA, uma comunidade formada por cerca de 600 pessoas no estado do Alasca decidiu mudar de lugar por causa da elevação do nível do mar provocada pelo aquecimento global Foto: AP / Diana Haecker
Manguezal com 7.400 hectares morreu de "sede" no Golfo de Carpentária, na Austrália Foto: AFP / NORMAN DUKE
Pescador mostra caranguejos capturados por ele em manguezal na Bahia, no Brasil. Espécie vem se tornando cada vez mais escassa à medida que o aquecimento global vem causando o aumento da temperatura da água e, consequentemente, a morte de caranguejos e outros animais em sua cadeia alimentar Foto: NACHO DOCE / REUTERS
No Brasil, o atual período de estiagem no Nordeste, considerado o pior em um século, transformou a barragem mais antiga do país num cemitério de tartarugas Foto: AFP / EVARISTO SA
Carcaças de renas mortas cobertas pelo gelo. Um estudo da Universidade de Oxford mostrou que 80 mil renas morreram na Sibéria por causa das alterações no ciclo das chuvas Foto: Universidade de Oxford
O relatório está repleto de números. Alcançar a meta de um balanço neutro de emissões de carbono, de acordo com a modelagem da agência, começa com investimentos anuais da ordem de US$ 820 bilhões em redes elétricas até 2030.
Isso seria necessário, por exemplo, para aumentar o número de pontos de carregamento de veículos elétricos de 1 milhão atualmente para 40 milhões na próxima década e construir 20 novas fábricas gigantes de baterias de íon-lítio a cada ano até 2030. E por aí vai.
‘Um chamado à ação’
Para entender todas as implicações do relatório da AIE, no entento, vale focar nas palavras do texto.
— Não é um modelo de resultados — afirmou Dave Jones, um analista do instituto de pesquisas Ember, voltado apra energia limpa. — É um chamado à ação.
Reduzir a mudança climática precisa se tornar prioridade, defende AIE Foto: AFP PHOTO / RAMMB/CIRA/HANDOUT
Considerando essa frase, tirada de uma passagem do relatório sobre as sérias implicações de segurança para os que atualmente dependem da produção de combustíveis fósseis:
“Nenhum novo campo de óleo e gás é necessário nesse nosso caminho, e as reservas de petróleo e gás natural se tornam crescentemente concentrados em um pequeno número de produtores de baixo custo”.
O “caminho” citado no texto da agência é projetado para estar em conformidade com o que dizem os cientistas, com base em décadas de evidências, sobre que ações são necessárias para evitar catástrofes em escala civilizacional que nos aguardam enquanto o planeta aquece além de 1,5º Celsius.
É também um caminho projetado para garantir, de acordo com a missão da IEA, “suprimentos de energia seguros e acessíveis para promover o crescimento econômico”, diz o relatório.
— A forma como vemos esse cenário é que é um caminho muito, muito estreito, mas ainda viável — disse Laura Cozzi, chefe de modelos de energia da agência.
O relatório da AIE representa uma ruptura impressionante em relação ao trabalho recente da agência, que ficou aquém da visão de um mundo de emissão zero e sua missão de meio século de manter a estabilidade nos mercados de energia de combustíveis fósseis.
Essa missão precisa ser equilibrada com o risco econômico que essa mudança representa para países produtores de óleo e gás (como o Brasil) e companhias petroleiras. Empregos podem desaparece e receitas tributárias, como royalties, despencarem.
Afinal, reservas de energia e demanda moldaram a ordem política global no século XX. Há também o risco de se apostar em certas tecnologias e isso significar criar outros problemas.
Aquecimento Global e os impactos na Antartica. Foto: Elcio Braga Foto: Élcio Braga/Agência O Globo
A demanda por bioenergia pode competir com a produção de alimentos, por exemplo. Entre os muitos parâmetros que a AIE adotou para seus modelos está o de que deixou de confiar em compensações florestais controversas.
Reduzir emissões de carbono não é um problema de subtração, uma eliminação linear de poluição a cada ano.
Acelerar fontes limpas de energia
Significa não só implementar rapidamente fontes limpas de energia, como renováveis e baterias, mas também desenvolver tecnologias que têm pouco ou nenhum impacto hoje, incluindo captura de carbono, hidrogênio verde e armazenamento de energia de longa duração.
O presidente Joe Biden, em campanha, durante visita a um empreendimento de energia solar em New Hampshire: incentivos à economia verde Foto: REUTERS/Brian Snyder/4-6-2019
A mudança climática está se tornando mais invasiva, com suas ondas de calor mais intensas, tempestades de enchentes. A AIE alerta que transformar o sistema de energia deve ser prioridade em cada região, nação, cidade, companhia e residência.
Chegar a esse ponto não foi fácil. Por anos, grupos ambientalistas e ativistas do clima têm demandado da AIE a construção de um caminho para a emissão zero até 2050.
Como uma agência que só respondia aos ministros de países ricos até agora, teve que esperar até que a maior parte deles se comprometesse com esse objetivo, com os Estados Unidos — o maior financiador da agência — entrando para essa lista no mês passado com o plano do presidente Joe Biden.
É esperado que, daqui para frente, o cenário de emissão zero esteja em todos os principais relatórios da agência. O que significa que continuaremos a ver essa grande distância que ainda existe ente onde o mundo está e onde deveria estar.