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Por que o novo relatório da Agência Internacional de Energia defende que emissão zero até 2050 é uma ruptura?

Documento propõe esforço global para neutralizar contribuição da cadeia energética para o aquecimento global. Para analistas, há um risco econômico para países produtores de petróleo como o Brasil
Chaminé em usina de energia de Belgrado, na Sérvia Foto: Marko Djurica / Reuters
Chaminé em usina de energia de Belgrado, na Sérvia Foto: Marko Djurica / Reuters

NOVA YORK - Debates eternos e mudanças graduais distribuídas ao longo de vários anos não vão funcionar para tirar o mundo da ameça da mudança climática.

Essa foi a mensagem do relatório “Net Zero by 2050” (saldo zero até 2050, em tradução livre), divulgado na terça-feira pela Agência Internacional de Energia (AIE), que defende a descarbonização da geração de energia no mundo dentro de menos de trinta anos.

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A transição energética, é um desafio que “depende de um foco único e inabalável de todos os governos — trabalhando juntos entre si e com empresas, investidores e cidadãos”, diz o documento.

O relatório está repleto de números. Alcançar a meta de um balanço neutro de emissões de carbono, de acordo com a modelagem da agência, começa com investimentos anuais da ordem de US$ 820 bilhões em redes elétricas até 2030.

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Isso seria necessário, por exemplo, para aumentar o número de pontos de carregamento de veículos elétricos de 1 milhão atualmente para 40 milhões na próxima década e construir 20 novas fábricas gigantes de baterias de íon-lítio a cada ano até 2030. E por aí vai.

‘Um chamado à ação’

Para entender todas as implicações do relatório da AIE, no entento, vale focar nas palavras do texto.

— Não é um modelo de resultados — afirmou Dave Jones, um analista do instituto de pesquisas Ember, voltado apra energia limpa. — É um chamado à ação.

Reduzir a mudança climática precisa se tornar prioridade, defende AIE Foto: AFP PHOTO / RAMMB/CIRA/HANDOUT
Reduzir a mudança climática precisa se tornar prioridade, defende AIE Foto: AFP PHOTO / RAMMB/CIRA/HANDOUT

Considerando essa frase, tirada de uma passagem do relatório sobre as sérias implicações de segurança para os que atualmente dependem da produção de combustíveis fósseis:

“Nenhum novo campo de óleo e gás é necessário nesse nosso caminho, e as reservas de petróleo e gás natural se tornam crescentemente concentrados em um pequeno número de produtores de baixo custo”.

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O “caminho” citado no texto da agência é projetado para estar em conformidade com o que dizem os cientistas, com base em décadas de evidências, sobre que ações são necessárias para evitar catástrofes em escala civilizacional que nos aguardam enquanto o planeta aquece além de 1,5º Celsius.

'Caminho estreito'

É também um caminho projetado para garantir, de acordo com a missão da IEA, “suprimentos de energia seguros e acessíveis para promover o crescimento econômico”, diz o relatório.

— A forma como vemos esse cenário é que é um caminho muito, muito estreito, mas ainda viável — disse Laura Cozzi, chefe de modelos de energia da agência.

O relatório da AIE representa uma ruptura impressionante em relação ao trabalho recente da agência, que ficou aquém da visão de um mundo de emissão zero e sua missão de meio século de manter a estabilidade nos mercados de energia de combustíveis fósseis.

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Riscos para países dependentes de petróleo

Essa missão precisa ser equilibrada com o risco econômico que essa mudança representa para países produtores de óleo e gás (como o Brasil) e companhias petroleiras. Empregos podem desaparece e receitas tributárias, como royalties, despencarem.

Afinal, reservas de energia e demanda moldaram a ordem política global no século XX. Há também o risco de se apostar em certas tecnologias e isso significar criar outros problemas.

Aquecimento Global e os impactos na Antartica. Foto: Elcio Braga Foto: Élcio Braga/Agência O Globo
Aquecimento Global e os impactos na Antartica. Foto: Elcio Braga Foto: Élcio Braga/Agência O Globo

A demanda por bioenergia pode competir com a produção de alimentos, por exemplo. Entre os muitos parâmetros que a AIE adotou para seus modelos está o de que deixou de confiar em compensações florestais controversas.

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Reduzir emissões de carbono não é um problema de subtração, uma eliminação linear de poluição a cada ano.

Acelerar fontes limpas de energia

Significa não só implementar rapidamente fontes limpas de energia, como renováveis e baterias, mas também desenvolver tecnologias que têm pouco ou nenhum impacto hoje, incluindo captura de carbono, hidrogênio verde e armazenamento de energia de longa duração.

O presidente Joe Biden, em campanha, durante visita a um empreendimento de energia solar em New Hampshire: incentivos à economia verde Foto: REUTERS/Brian Snyder/4-6-2019
O presidente Joe Biden, em campanha, durante visita a um empreendimento de energia solar em New Hampshire: incentivos à economia verde Foto: REUTERS/Brian Snyder/4-6-2019

A mudança climática está se tornando mais invasiva, com suas ondas de calor mais intensas, tempestades de enchentes. A AIE alerta que transformar o sistema de energia deve ser prioridade em cada região, nação, cidade, companhia e residência.

Chegar a esse ponto não foi fácil. Por anos, grupos ambientalistas e ativistas do clima têm demandado da AIE a construção de um caminho para a emissão zero até 2050.

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Como uma agência que só respondia aos ministros de países ricos até agora, teve que esperar até que a maior parte deles se comprometesse com esse objetivo, com os Estados Unidos — o maior financiador da agência — entrando para essa lista no mês passado com o plano do presidente Joe Biden.

É esperado que, daqui para frente, o cenário de emissão zero esteja em todos os principais relatórios da agência. O que significa que continuaremos a ver essa grande distância que ainda existe ente onde o mundo está e onde deveria estar.