Caminho do Amor
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Sobre este e-book
Na Primavera de 2013, o Alexandre e a Anabela pegaram nas suas mochilas e percorreram a pé o milenar Caminho Francês de Santiago. Mas calcorrear os 800km que separam a vila francesa Saint-Jean-Pied-de-Port de Santiago de Compostela foi muito mais do que a viagem geográfica que antecipavam. Foi acima de tudo uma viagem interior, de reflexão, de descoberta…
O Caminho, entre as imponentes montanhas dos Pirenéus e a capital galega, é composto por uma infinidade de minúsculos mosaicos compostos por encontros e desencontros, rascunhados de estórias de vida, pincelados de sorrisos e lágrimas, esboçados de sonhos e medos, moldados por conquistas e derrotas, adornados por sinais, abrilhantados de Amor. Foram dias únicos, irrepetíveis, incomparáveis.
É o relato desses dias que o leitor agora tem na mão. Bom Caminho!
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Caminho do Amor - Alexandre Narciso
Caminho do Amor
Diário de um Caminho a dois rumo a Santiago
Alexandre Narciso e Anabela Narciso
img1.jpg© 2014 Alexandre Narciso & Anabela Narciso
Todos os direitos reservados.
Caminho do Amor: Diário de um Caminho a dois rumo a Santiago
Alexandre Narciso e Anabela Narciso
Revisão: Miguel Santos
Capa: Angie Zambrano
Fotografia de capa: © 2013 Alexandre Narciso
Mapa: © 2014 Anabela Narciso
Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida sob qualquer forma ou por qualquer processo sem a autorização prévia e por escrito dos autores, com exceção de excertos breves usados para crítica e apresentação da obra.
Para a nossa família
que caminha sempre a nosso lado.
Índice
Caminho do Amor
Índice
Prólogo
A Montanha
Altos e Baixos
A Família
Atitude
A Tempestade
A Bonança
A Morte
Renascer
Caminho do Amor
Pequenos Passos, Grandes Objetivos
Campo de Estrelas
Sobre os Autores
Índice de Distâncias
img2.jpgPRÓLOGO
A partir de um certo ponto, não há retorno.Este é o ponto que é preciso alcançar.
Franz Kafka
O comboio acabou de sair da estação.
A escuridão começa a dar lugar ao dia no preciso momento em que o comboio arranca da estação de Saint Jean, em Bordéus. Tomamos os nossos lugares num misto de nervosismo incrédulo e expectativa infantil. Cerca de três horas de viagem neste cavalo de ferro separam-nos agora de Saint-Jean-Pied-de-Port, ou seja, do início do nosso Caminho de Santiago.
Bordéus foi a última escala de uma viagem que teve início em Lisboa há muitos meses atrás, no dia em que nos olhamos nos olhos e, em uníssono, os nossos corações decidiram que percorreríamos a pé os oitocentos quilómetros que separam a pequena vila francesa de Saint-Jean-Pied-de-Port da capital da Galiza, Santiago de Compostela.
Serão oitocentos quilómetros a transpor montanhas colossais e a palmilhar extensas planícies em trilhos de terra batida e pedras soltas por entre campos de cultivo e densas florestas. Mesmo antes de tal decisão ser aceite pela razão, já os nossos corações a abraçavam sem hesitação. Como ou porquê, não o sabemos. Ainda.
Pelo meio houve muitos meses de preparação, física e mental; muitos dias em que fomos assolados de dúvidas sobre a nossa decisão de percorrer este caminho milenar, dias em que tudo nos pareceu insensato e inalcançável. Em raros momentos, pura e simplesmente dispensámos à martirizante voz da lógica os nossos mais apurados ouvidos de moucos e encarámos a decisão como algo definitivo. Procurámos moralizar-nos com testemunhos de outros peregrinos que também passaram pelo mesmo dilema e que, apesar da incerteza, fizeram o Caminho e chegaram a Santiago. Esta injeção de moral uns dias resultou. Outros, nem por isso. E no entanto, continuámos a programar os nossos dias em função dos treinos físicos.
Certo dia, achámos que era chegada a hora de comunicar à família que íamos fazer o Caminho de Santiago. Uma das primeiras observações, proferida sem hesitação, foi que não iríamos conseguir. Pareceu-nos ler nas entrelinhas o tom paternalista daquela frase ameaçadora que paira como um espectro ominoso da desgraça para todos os que empreendem em altos voos: vede lá no que vos ides meter!
Mas é perfeitamente compreensível. Os pais não querem tolher os passos que escolhemos dar na senda da vida, ainda que pressintam o perigo nas pedras que nos podem fazer cair. Só gostariam de evitar a tristeza e a dor caso não consigamos escapar da queda. Sabemos que não foram palavras de desencorajamento. Foram os medos deles a falar mais alto.
Agora, à medida que o comboio se afasta de Bordéus deslizando vagarosamente pelos carris rumo a sul, ecoa-nos no pensamento o inquietante aforismo que Franz Kafka escreveu: a partir de um certo ponto, não há retorno. Este é o ponto que é preciso alcançar.
Ambos sentimos que atingimos esse ponto de não retorno, que agora não há como voltar atrás. Hoje, aqui neste comboio, relembramos estes últimos meses, as nossas hesitações e incertezas, e interrogamo-nos: seria a voz da sensatez que nos alertava para a possibilidade do fracasso? Ou estaríamos a arranjar desculpas?
Racionalmente, tudo nos diz que aquilo a que nos propomos é uma loucura. Oitocentos quilómetros? A pé? Olhamos para nós e pensamos que fisicamente encaixamos tão bem no papel de peregrinos como um pinguim numa escola de aviação.
Amanhã será o grande dia, o dia de pôr pés ao Caminho. E temos consciência que na mochila carregamos muito mais do que bagagem. Nela vão também os nossos sonhos e medos, anjos e demónios. Estamos certos que estes serão companheiros diários do nosso Caminho. Se bem que uns serão alento, contra os outros teremos que descobrir as armas para os vencer. Carregamos também muitas perguntas que esperamos ver respondidas, ou melhor, cujas respostas partimos em busca, sem a certeza de as encontrarmos. A maior delas todas fervilha na nossa mente: o que nos leva a fazer o Caminho?
Sabemos que o queremos fazer porque precisamos, precisamos de nos esforçar para além do que nos é normal, precisamos de nos cansarmos para não vivermos uma vida cansada
, precisamos de ter dores para não vivermos uma vida onde já nada se sente, precisamos de saber o que é viver com o básico para podermos valorizar a riqueza do que temos
. Não a riqueza dos objetos, mas sim das pessoas e dos afetos...
Partimos em busca da vertente humana que muitas vezes nos questionamos se existe, por onde anda, o que fizeram com ela. O mundo moderno suga-nos a espiritualidade, tolda-nos os sentidos com os néons, promessas de fama, luxos e aventuras. Perdemos muita da nossa humanidade.
Ainda assim nos questionamos sobre o porquê dos nossos corações nos pedirem para percorrer oitocentos quilómetros de mochila às costas. Contudo, ambos sabemos que hoje não é dia para obter respostas... Hoje é dia de perguntas, de medos, de ansiedade.
Acima de tudo, hoje é dia para sonhar!
A MONTANHA
"Para llegar a Santiago como un joven, empieza el Camino como un viejo.{1}"
Dito popular
Esta manhã tínhamos pela frente a temerosa travessia dos Pirenéus e uma enorme dúvida instalada nas nossas cabeças. Sabíamos de antemão que dispúnhamos de duas opções para chegar à localidade espanhola de Roncesvalles. Ou seguíamos pela rota de Napoleão, que atravessa a montanha, ou avançávamos pela rota de Valcarlos, que grosso modo acompanha a estrada nacional que liga a França à Espanha.
A Rota de Napoleão é um pouco mais longa e tem um desnível superior à Rota de Valcarlos, o que faz com que seja indubitavelmente mais exigente, logo mais assustadora. Mas é também aquela que permite ao peregrino embrenhar-se na natureza, apreciar a magia da Criação e deixar-se envolver pela serenidade da montanha, longe da civilização, longe da poluição sonora dos carros, longe do martirizante alcatrão.
O problema é que a tranquilidade tem um preço. E aqui o preço pode ser alto demais. É que, para além da exigência, a Rota de Napoleão granjeia da fama de ser bastante perigosa o que leva a que se encontre frequentemente fechada, visto que foram já muitos os peregrinos que perderam a vida neste troço do Caminho de Santiago. E mesmo quando a passagem está aberta, é preciso ter em consideração que o tempo é extremamente incerto e um dia de verão em Saint-Jean-Pied-de-Port pode rapidamente transformar-se num dia invernal na montanha.
Apesar dos perigos e da dificuldade acrescida, seguir a Rota de Napoleão apresentou-se-nos como o mais apelativo dos desafios. Com dois meses de antecedência tratámos de todos os preparativos que nos facilitariam a travessia da montanha, quebrando a etapa em dois e pernoitando em Orisson que fica a somente oito quilómetros de Saint-Jean-Pied-de-Port. Como programámos a travessia dos Pirenéus para inícios de maio, supusemos que não haveria problemas meteorológicos de maior: a neve já não impediria a passagem e o frio seria mais suportável. Uma suposição que nos poderia ter saído muito cara!
Ontem, ao chegarmos a Saint-Jean-Pied-de-Port fomos informados no centro de acolhimento dos peregrinos que um forte nevão havia assolado a região na última semana, levando a que as autoridades fechassem a rota durante vários dias.
A boa notícia era que a rota havia acabado de reabrir. A má notícia é que, apesar das previsões apontarem para uma melhoria do estado do tempo, este continuava instável e ninguém nos podia garantir uma travessia tranquila. Um bonito panorama começou a desenhar-se aos nossos olhos: ainda somos apanhados por um nevão na montanha e para isso não estamos preparados. Ainda assim, motivaram-nos para seguirmos pela Rota de Napoleão e nós, espicaçados pela provocação do desafio, ficámos inclinados a arriscar. Até porque lá fora o astro rei brilhava com intensidade encerrando nos seus raios a promessa dum dia esplendoroso. Recebemos o carimbo de estreia nas recém-adquiridas Credenciais do Peregrino e foram-nos oferecidas as conchas de vieira, que nos identificam como peregrinos de Santiago, para pendurar na mochila.
A noite esteve longe de ser uma força apaziguadora. A dúvida assaltou-nos madrugada dentro e nem a alvorada ajudou a desvanecê-la. Já de mochilas às costas e de bastões em punho, saímos à rua e fomos recebidos por uma espessa neblina. O grande dia da partida não podia começar melhor!
Com as palavras o tempo na montanha é imprevisível e muda subitamente
a ressoarem nas nossas cabeças, demos os primeiros passos no nosso Caminho, atravessando as empedradas ruas medievais de Saint-Jean-Pied-de-Port. No silêncio das ruas vazias, a vila devolveu-nos o eco dos nossos passos, dos nossos cajados e dos nossos pensamentos.
Ao sairmos da localidade surgiu a famosa bifurcação, a grande culpada pela dúvida que tanto nos atormentou desde a tarde de ontem. Ainda estávamos a tempo de seguir pela Rota de Valcarlos... Mas não o fizemos. Algo em nós sussurrou que aquele não era o nosso Caminho.
Apesar do espesso nevoeiro, que não nos permitia ver mais que um par de metros, avançámos pela Rota de Napoleão, seguindo as setas amarelas que nos hão de conduzir até ao túmulo do Apóstolo. Cedemos ao magnetismo da montanha, deixando nas mãos de Santiago o nosso destino. Um bendito instante que nos encheu de ímpeto.
À medida que fomos superando as primeiras subidas, com os chocalhos dos animais invisíveis e o canto dos pássaros como banda sonora, a neblina começou a dissipar-se. E com ela, as nossas dúvidas. O sol inaugurou o dia, afastando em definitivo o manto de névoa que nos toldava a visão, enfim revelando prados dum verde intenso pincelado por flores de prodigiosas cores, exibindo as ondulantes formas dos montes e vales. Uma verdadeira pintura esboçada pelo Criador, da qual fazíamos parte ainda que efemeramente.
É verdade que hoje o Caminho obrigou-nos a superar íngremes e penosas subidas, mas presenteou-nos com vistas de outro mundo.
Fosse a vida sempre assim tão justa... Era bom que os nossos esforços, a nossa persistência e coragem fossem sempre assim recompensados... Bem, hoje foram! E só podemos estar agradecidos por isso.
Mas porque é que o ser humano vive sempre insatisfeito com as recompensas concedidas ao seu esforço?
Talvez o problema esteja, muitas das vezes, na leitura que fazemos das recompensas. Quantas vezes somos realmente capazes de sentir como recompensa estas oportunidades únicas de contemplarmos a natureza em todo o seu esplendor? Ou de sentirmos o calor do sol quando beija a pele? Ou saborearmos a suave brisa que faz dançar as árvores? Ou apreciarmos um pôr do sol na companhia de quem mais amamos? Talvez o problema esteja em não darmos valor suficiente a estas pequenas grandes coisas, à sua simplicidade. Perdemos o foco, perdemos a capacidade de nos deixarmos maravilhar, esquecemo-nos de estar gratos, assumimos como dado adquirido tantas coisas, demasiadas coisas.
Para apreciar o sol é preciso andar à chuva, para apreciar o calor é preciso passar frio, para valorizar a água é preciso ter sede.
Esta linha de pensamento levou-nos a refletir sobre a nossa vida partilhada a dois. Os últimos anos têm sido difíceis, mas temos permanecido sempre juntos, como uma sólida equipa e o nosso Amor tem saído reforçado a cada dificuldade ultrapassada, a cada montanha superada. O nosso Amor vale todas as lágrimas derramadas, todo o suor, todas as dores.
Assim foi hoje o nosso Caminho: mereceu todas as dores e medos. O universo conspirou a nosso favor e nós piscámos-lhe o olho em sinal de agradecimento.
Já estamos em Orisson desde a hora do almoço e foi um deleite saborear uma refeição com a imensidão dos Pirenéus a nossos pés. A tarde foi passada à conversa com outros peregrinos. As razões que os levam a fazer o Caminho ainda estão como a manhã de hoje: envoltas em neblina. Mas o ânimo é grande e a alegria de termos vencido o primeiro dia é geral.
Das várias pessoas que hoje conhecemos, houve três com as quais sentimos uma maior empatia. As canadianas Lauren e Ellen, ambas na casa dos cinquenta anos, e a britânica Nancy, cerca de dez anos mais nova.
A Lauren tem um gigantesco espírito positivo e aparenta ser um poço de tolerância. Transpira tranquilidade e tem uma alegria contagiante. Começou a ser viajante aventureira muito nova, o que nos cativou de imediato, pois a nossa paixão pelas viagens já nos levou a calcorrear quase meio mundo.
A Ellen é uma vivaz cinquentona que quer sorver a vida toda. Como tinha o cabelo rapado, pensámos que teria passado recentemente por um tratamento de quimioterapia, mas não. A Ellen rapa o cabelo para angariar dinheiro na luta contra o cancro. São pessoas assim, anónimas, que ajudaram a salvar as nossas mães.
Quanto à Nancy, apesar de ser natural de Cambridge vive há cinco anos em Goa, numa pequena aldeia costeira nos arredores de Palolem. Está a fazer o Caminho sozinha e vem cheia de medos, até porque está longe de ter as condições físicas ideais, mas uma etapa já superou e está a lutar contra os seus medos – e não estaremos todos? Um dia de cada vez! É assim o Caminho. E a vida… Soubéssemos nós ter esta calma e conseguir no nosso dia a dia embriagarmo-nos
da vida com a mesma intensidade de um dia a Caminho de Santiago!
Amanhã espera-nos um dia muito difícil! Temos dezoito quilómetros para trilhar antes de chegar a Roncesvalles, sem nenhuma localidade pelo meio. Apenas nós, a natureza e, claro, os outros peregrinos. Sabemos que, apesar de ser apenas a segunda, é uma das etapas mais difíceis de todo o Caminho. Temos medo, como é óbvio, mas hoje o dia encheu-nos de coragem e temos fé de que tudo correrá bem. Sim, porque na vida é preciso ter fé.
***
Ver o nascer do sol no alto dos Pirenéus foi como se Deus nos tivesse convidado para assistir ao amanhecer da sua varanda.
Lentamente a luz quebrou a penumbra e a lua, como que envergonhada, recolheu-se dando lugar ao sol que sorrateiramente se ergueu por entre as curvas das montanhas. A quietude, que durante a noite havia reinado, foi cedendo aos sons da vida que despertava. Os madrugadores pássaros abandonavam as árvores, uma manada de cervos corria por entre os bosques que ladeavam o caminho e ao longe escutavam-se os chocalhos dos rebanhos. Foi um grandioso espetáculo, conduzido por um maestro que não carece de aplausos. E nós, tal e qual uma flor, desabrochámos.
Foi o bálsamo perfeito para superarmos as primeiras subidas do dia. À medida que nos fomos aproximando do Collado Lepoeder, a cota máxima da passagem do Caminho pelos Pirenéus, a paisagem foi-se tornando mais agreste: os densos bosques renunciando presença a favor dos despidos e pedregosos prados; o verde muitas vezes vencido pelo branco ofuscante da neve que ainda há poucos dias havia forçado ao encerramento da Rota de Napoleão. Tal como a paisagem se despojava da exuberância verdejante da floresta, o cansaço físico foi despindo o nosso espírito do ânimo matinal.
Chegámos ao topo, já do lado espanhol, ofegantes e completamente de rastos. Um gasto marco jacobeu assinala a