A conquista do Brasil
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"Este livro merece ser lido por todos aqueles que se interessam pela história do Brasil e buscam entender o nosso país de hoje". Laurentino Gomes, autor de 1808.
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A conquista do Brasil - Thales Guaracy
Copyright © Thales Guaracy, 2015
Copyright © Editora Planeta do Brasil, 2015
Todos os direitos reservados.
CONSULTORIA EDITORIAL: Diego Rodrigues e Leonardo do Carmo (Obá Editorial)
PREPARAÇÃO DE TEXTO: Solange Lemos
REVISÃO: Maurício Katayama, Jumi Oliveira e Ricardo Paschoalato
MAPAS: Sonia Vaz
PROJETO GRÁFICO DE MIOLO E DIAGRAMAÇÃO: Gleison Palma
CAPA: Bloco Gráfico
IMAGENS DE CAPA: Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro; Museu Regional de Wolfhagen, Oldenburg, Alemanha
ADAPTAÇÃO PARA EBOOK: Hondana
CIP-Brasil. Catalogação na Publicação
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
G947c
Guaracy, Thales, 1964-
A conquista do Brasil: como um caçador de homens, um padre gago e um exército exterminador transformaram a terra inóspita dos primeiros viajantes no maior país da América Latina / Thales Guaracy. – 1. ed. – São Paulo: Planeta, 2015.
ISBN 978-85-422-0473-5
1. História do Brasil. I. Título.
2015
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA PLANETA DO BRASIL LTDA.
Rua Padre João Manuel, 100 – 21o andar
Ed. Horsa II – Cerqueira César
01411-000 – São Paulo-SP
www.planetadelivros.com.br
Para Cleci, conquistadora de um selvagem
SUMÁRIO
Prefácio
Para entender o Brasil – por Laurentino Gomes
Introdução
Uma história contemporânea do Brasil
Os donos da terra
O homem sem passado
Senhores da floresta
Os peros
Porto dos escravos
O guerreiro e o missionário
A guerra santa
Palavras na areia
Pay Colás e os huguenotes
No fio da espada
A queda de Coligny
O grande cerco
Berço de sangue
A paz dos derrotados
Resistência e morte
A grande armada
O exército exterminador
A ordem do progresso
Leituras
PARA ENTENDER O BRASIL
POR LAURENTINO GOMES
Este livro merece ser lido por todos aqueles que se interessam pela História do Brasil e buscam entender o nosso país de hoje. Jornalista veterano e respeitado nas redações brasileiras, com bem-sucedida passagem pelo mercado editorial de livros, Thales Guaracy alia conhecimento profundo do tema a um texto leve, fluido e fácil de entender para conduzir o leitor a uma viagem repleta de surpresas e encantamento. Seu roteiro tem como ponto de partida a épica aventura de Portugal pelo Mar Tenebroso
, como o oceano Atlântico era conhecido no final do século xv, rumo às terras incógnitas e cujo resultado seria a ocupação do maior país da América Latina, hoje também o maior herdeiro da cultura portuguesa no mundo.
Dono de uma capacidade invejável de pesquisa, Guaracy recorre às mais variadas fontes – da bibliografia clássica de Capistrano de Abreu às mais recentes descobertas na área da Antropologia – para apresentar aos leitores uma importante contribuição para o entendimento das circunstâncias, dos personagens e dos grandes acontecimentos relacionados ao Descobrimento e ao primeiro século da colonização do Brasil. Logo nas primeiras páginas o leitor se surpreenderá com a descrição de acontecimentos e personagens fascinantes, em especial aqueles que dizem respeito aos primeiros e misteriosos aventureiros que desbravaram e habitaram o território dos primórdios da nossa civilização tropical. É o caso de João Ramalho, chamado de Pirá-tininga, em tupi peixe seco
, ou o homem sem passado
, que teria chegado ao Brasil ainda antes de Cabral, não se sabe como nem por quê.
Os navegadores e colonizadores portugueses são apenas parte do grande panorama deste livro. Com o recurso de testemunhas da época, como o mercenário alemão Hans Staden, autor do primeiro estudo etnográfico do Brasil, Guaracy também descreve em detalhes raramente vistos em livros do gênero os hábitos e costumes dos primitivos habitantes da América portuguesa, incluindo suas habitações, o cultivo das lavouras, a rotina nas aldeias, o indomável espírito guerreiro e os rituais de canibalismo que tanto assustavam os europeus.
Na introdução do livro, Guaracy define sua obra como uma história contemporânea do Brasil
. Essa história contemporânea
poderia ser definida por duas características principais. A primeira é a linguagem acessível, generosa com o leitor, fácil de entender, típica dos bons livros-reportagens e muito diferente do texto denso, técnico e, muitas vezes, quase intransponível que em geral caracteriza as obras de cunho acadêmico no Brasil. Um segundo aspecto está no esforço bem-sucedido feito pelo autor para desmontar alguns mitos recorrentes na história oficial brasileira.
Um desses mitos sustenta que o brasileiro seria um povo pacífico, tolerante e cordial, que aceita de forma resignada as transformações políticas, sem sangue e sem sofrimento. Não é isso que se vê ao longo dos capítulos de A conquista do Brasil. Essa é um história violenta, cruel, repleta de sangue e sofrimento – como a de qualquer outro povo em qualquer outro período da história da humanidade. A verdadeira história do Brasil
, defende Guaracy, com fatos e personagens, saiu da espada de guerreiros inclementes e sanguinários, da chibata dos mercadores de escravos, da rudez de desbravadores belicosos e da ambição de nobres que encontraram no ambiente inóspito do Novo Mundo campo para enriquecer à margem da lei e do próprio mundo civilizado
.
UMA HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL
Por gerações, o brasileiro se acostumou a ver seu país, sua história e sua cultura como exemplos de paz e confraternização sem paralelo entre as nações. A imagem do brasileiro como um povo cordial que aceita melhor a miscigenação e é mais tolerante com as diferenças sociais e políticas, num país conciliador, que não se envolve em guerras e se mantém neutro diante de conflitos, se sobrepôs como traço cultural, sem grandes traumas nem contestações.
Os brasileiros se orgulham de pensar que o Brasil não precisou de uma guerra como a que separou os Estados Unidos da Inglaterra, nem passou por conflitos internos sangrentos como a Secessão. Manteve-se afastado de conflagrações, a começar pelas duas guerras mundiais que marcaram a primeira metade do século XX – na segunda delas, meio pró-forma, enviou expedicionários à Itália, numa fase em que o conflito já se encaminhava para o fim. O país manteve-se neutro na maioria dos grandes conflitos passados, recentes e contemporâneos. E saiu pacificamente de uma ditadura militar de 21 anos em 1985, com o restabelecimento do governo civil e, depois, da democracia.
Ao construir um modelo de concórdia, que combina com a fachada do povo pobre, mas alegre, que se expressa pelo carnaval, o samba e o futebol, o Brasil esqueceu muita coisa. Foi o último país do mundo a abolir a escravidão, em 13 de maio de 1888. Um de seus maiores heróis nacionais, Tiradentes, foi esquartejado. O Brasil dizimou a população masculina de um país vizinho na Guerra do Paraguai. Deixou uma esteira de mortos nos porões do regime militar, que pela via do golpe havia derrubado em 1964 o presidente João Goulart.
Aliviaram-se tensões sociais latentes e sepultou-se o passado beligerante sobre o qual foi construída uma nação homogênea, mesmo em meio a tanta diversidade. O Brasil acomodou-se à versão oficial de sua história, em que foram escondidas as rupturas, as questões sociais e os fatos que não interessam tanto a sua autoimagem dentro do mundo civilizado. Essa cultura foi sedimentada a partir do período militar, que entre os anos de 1964 e 1985 procurou neutralizar não apenas os opositores da esquerda como qualquer sugestão de conflito interno.
O marco zero da História oficial do Brasil, convencionado por historiadores, educadores e escolas e que busca consolidar a identidade brasileira pelo vértice da colonização portuguesa, é a viagem de Pedro Álvares Cabral à costa brasileira em 1500. Segundo essa versão, aprendida durante sucessivas gerações nos bancos escolares e edulcorada no período do regime militar, a colonização portuguesa no Brasil começou na Bahia, em um encontro fraterno entre a esquadra de Cabral e os índios. E ali o frei franciscano dom Henrique Soares de Coimbra, capelão da esquadra, rezou a missa celebrizada como a inauguração de um país sob a marca do cristianismo e idealizada no quadro de Victor Meirelles.
Nessa época, de acordo com os números mais aceitos por historiadores e antropólogos, estima-se que havia no território correspondente ao Brasil atual cerca de 3 milhões de índios, população duas vezes maior que a de Portugal, então com 1,5 milhão de habitantes. Ao longo da costa, estima-se que havia 1 milhão de tupis. O que a história registra a partir daí é apenas a versão do colonizador sobre a terra descoberta
. Mesmo assim, os documentos oficiais de autoridades administrativas, cartas dos jesuítas e registros de viajantes envernizados de civilização europeia revelam sem culpas, como um direito quase natural, a violência bárbara da ocupação portuguesa, marcada pela escravização e, depois, pelo extermínio da civilização nativa, além do confronto mortal com outros europeus que ousaram disputar a riqueza brasileira.
Implantou-se a América portuguesa a ferro e a fogo, como aconteceu com a América espanhola. A erradicação dos nativos belicosos permitiu a dom João VI, dois séculos depois, instalar-se na colônia a salvo tanto dos tupis quanto do exército de Napoleão Bonaparte, a quem tirara um dos prazeres da conquista ao debandar com toda a corte de Lisboa em 1808, deixando o país entregue aos franceses. Como escreveu o antropólogo Darcy Ribeiro, o povo-nação
surgiu de processos tão violentos de ordenação e repressão que constituíram, de fato, um continuado genocídio e um etnocídio implacável
[1].
Começamos a revisar a História do Brasil, não apenas para uma melhor compreensão do que aconteceu, como para entender o país contemporâneo, suas raízes e sua identidade. Não houve propriamente uma descoberta
do Brasil, já que o atual território brasileiro era habitado por uma civilização de traços culturais e modo de vida bem definidos, embora se permitisse dentro disso grande diversidade. A cultura, os meios de produção e a organização social e militar dos nativos locais eram bem mais sofisticados do que sugere a imagem do silvícola nu, como no paraíso bíblico. Foram tão marcantes e presentes na realidade brasileira que, mesmo com a escravização, a guerra de extermínio e as epidemias trazidas pelo europeu, deixaram forte influência na linguagem, cultura e comportamento da população.
Cabral não foi o primeiro europeu a aportar no que hoje é a terra brasileira – uma questão tão discutida quanto a de que foi Cristóvão Colombo quem descobriu a América ao desembarcar na ilha de Guanahani, hoje Bahamas, em 1492. E certamente não foi o primeiro a abordar a América do Sul, onde já tinham estado viajantes de diferentes nacionalidades. A passagem de Cabral pela costa brasileira só ganhou mais importância para portugueses e sobretudo brasileiros séculos depois, quando o Brasil já era um império independente de Portugal e precisava construir para si um enredo histórico coerente com a dominação portuguesa da qual descendia sua coroa.
Os contemporâneos de Cabral, especialmente o rei e seus conselheiros, entendiam que a fonte de riqueza ainda estava nas Índias, como chamavam metonimicamente, tomando o todo pela parte, todas as terras recém-descobertas além do Mar Tenebroso
. A Índia, assim chamada por conta do rio Indo, emprestou seu nome a toda a região, e depois à metade do mundo conhecido pelos portugueses na época, o que incluía as Índias Orientais, como os portugueses denominavam a costa africana, e depois as Índias Ocidentais – a costa do Brasil.
O termo índio
não aparece entre os primeiros cronistas. Nas cartas dos jesuítas, viajantes e governantes portugueses do século XVI, eles se referem aos nativos brasileiros como gentios
, os pagãos, em contraposição aos cristãos, ou mesmo negros
, como os chama o padre Manoel da Nóbrega – termo que na época não designa necessariamente a cor, mas a gente da terra, com certa conotação de inferioridade, que o jesuíta empregava também para os mouros. O padre francês André Thévet, que relata sua viagem às terras recém-descobertas do outro lado do Atlântico no livro Singularidades da França Antártica, publicado pela primeira vez em Paris, em 1557, já chamava as novas terras de América, tributo a Américo Vespúcio, por conta de sua primeira viagem à atual América do Sul, em 1499. E referia-se aos nativos, tupiniquins e tupinambás, como americanos
.
Das Índias vinham especiarias de potentados que dividiam o território da Índia atual, como Goa, que Portugal conquistara em 1510; Ormuz, no golfo Pérsico; Ceilão (hoje Sri Lanka); Malaca (Malásia) e China. De lá se traziam porcelana, seda e especiarias como canela, pimenta, noz-moscada e açafrão, importantes como tempero e sobretudo conservantes dos alimentos, num tempo em que não havia geladeira. Nos 25 anos seguintes, Portugal incorporou os potentados de Damão, Salsete, Bombaim, Baçaim e Diu, além de Macau, na China – o Estado das Índias Portuguesas, que teve Goa por capital.
Já o Brasil era à primeira vista uma terra sem riquezas importantes, habitada por um povo cuja economia era de subsistência. Como os negros africanos, que os portugueses tomavam de Angola e da Guiné, os nativos podiam tornar-se no máximo escravos, o que, com o tempo, se revelaria um negócio contraproducente. A ocupação inicial do Brasil não teve relação com a cruz fundadora de Cabral, e sim com a atividade de uns poucos portugueses abandonados em solo brasileiro. A Terra de Santa Cruz esteve de fato entregue nesse período a degredados, náufragos e piratas, dos quais alguns acabaram por tornar-se figuras lendárias
, afirmou o historiador e filósofo Francisco M. P. Teixeira[2].
A ocupação do vasto território brasileiro com o objetivo de fundar uma colônia hegemônica demorou a começar. Pero Magalhães Gândavo, considerado o primeiro historiador brasileiro, autor da História da Província Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil, publicada em Lisboa, em 1576, tinha essa impressão:
[…] Havendo já setenta e tantos anos que esta província é descoberta; a qual história creio que mais esteve sepultada em tanto silêncio pelo pouco caso que os portugueses fizeram sempre da mesma província […] Porém já que os estrangeiros a têm noutra estima, e sabem suas particularidades melhor e mais de raiz que nós (aos quais lançaram já os portugueses fora dela à força de armas por muitas vezes), parece coisa decente e necessária terem também os nossos naturais a mesma notícia, especialmente para que todos aqueles que nestes reinos vivem em pobreza não duvidem escolhê-la para seu amparo […].
Somente a partir da década de 1550 a corte portuguesa tomou maior interesse pela exploração da América. E, diante da resistência armada dos seus habitantes, foram necessárias outras duas décadas para a ocupação se efetivar. Nesse período, os portugueses travaram uma guerra acirrada contra os indígenas, cujas diferentes tribos se reuniram contra o inimigo em comum. Essa liga foi chamada mais tarde de Confederação dos Tamoios, nome com que os índios se intitulavam: tamoio, em língua tupi, significa o mais velho
, no sentido de o mais antigo
, ou, por precedência, o dono da terra
.
Formada entre os anos de 1554 e 1555, a Confederação dos Tamoios durou até 1567, com sua derrota final diante da campanha militar sob o comando do governador-geral Mem de Sá. O momento-chave da aniquilação em massa das tribos litorâneas de língua tupi-guarani foi a construção da fortaleza que marca a fundação da cidade do Rio de Janeiro, no coração do território hostil, base para a vitória militar dos portugueses, com o massacre dos tupinambás. O Brasil não foi, dessa forma, descoberto e ocupado. Foi conquistado em uma luta na qual pereceram milhares de pessoas, entre índios e europeus, portugueses e franceses. Nela, sacrificaram-se velhos, mulheres, crianças e religiosos. Morreram guerreiros e soldados anônimos, chefes de tribo e comandantes, entre os quais um sobrinho e um filho do próprio Mem de Sá.
Dali em diante, o caminho estava aberto para a hegemonia de Portugal, tanto sobre os franceses, que tentaram se instalar no Brasil a partir da Guanabara, quanto sobre os índios remanescentes, dispersos e incapazes de oferecer resistência. É certo que os manuais escolares não esquecem a valiosa contribuição das populações nativas para a nossa formação sociocultural, mas pouco informam sobre o seu extermínio, quando não o explicam como consequência inevitável, quase natural, de um longo e difícil processo de acomodação de interesses conflitantes
, afirmou Francisco M. P. Teixeira[3].
Comparável nas Américas ao cometido na conquista do meio-oeste americano, o genocídio dos tamoios deixou poucos nativos no litoral entre o atual Espírito Santo e a costa de São Paulo. A maior parte da população indígena restante desapareceu nas duas décadas seguintes. Desse período épico, ficaram personagens quase mitológicos, como o português que tinha o poder do trovão e o cacique considerado imortal, batalhas sangrentas e versos de areia, amores improváveis que selaram alianças e esquadras que cruzaram o Atlântico com mensageiros da morte. A verdadeira História do Brasil saiu da espada de guerreiros inclementes e sanguinários, da chibata dos mercadores de escravos, da rudeza de desbravadores belicosos e da ambição de nobres que encontraram no ambiente inóspito do Novo Mundo campo para enriquecer à margem da lei e do próprio mundo civilizado.
Num lugar estranho, com feras e doenças desconhecidas, onde não valiam as velhas regras, portugueses e indígenas se enfrentaram vendo um no outro gente com uma cultura repulsiva, que consideravam feras, diante das quais se podia morrer a qualquer instante. Esse cenário, muitas vezes macabro, explica a conduta de personagens decisivos para a formação do Brasil, como os padres jesuítas Manoel da Nóbrega e José de Anchieta. Santificados como missionários que arriscavam a vida para converter índios selvagens
ao catolicismo, na realidade eram homens devotados à Inquisição portuguesa, com vocação política e moral por vezes duvidosa, se considerada pelos critérios do mundo contemporâneo. Também por vezes cruéis e impiedosos, não destoavam muito dos comerciantes ávidos e aventureiros com quem eventualmente precisavam se associar para implantar seu projeto de dominação religiosa e política no Brasil.
A paradoxal imagem da civilização indígena, ora constituída pelo bom selvagem
, ora pintada como bélica e bestial por natureza – uma cultura inferior de bárbaros antropófagos voltados para a guerra –, também é resultado de uma deturpação. Os índios, especialmente os tupinambás, não eram nada disso: bons selvagens, antropófagos sem lei nem rei ou civilização inferior. O próprio nome indicava o orgulhoso conceito que tinham de si mesmos: tupinambá significava filho do pai supremo
, ou, na interpretação do historiador Teodoro Sampaio, a geração do progenitor
. Eram conquistadores que reivindicavam sua primazia sobre a terra, que já haviam tomado de outros povos. Possuíam uma sofisticada organização política e social, adaptada ao meio ambiente. Combatendo por sua liberdade, foram dizimados barbaramente por um inimigo igualmente feroz, militarmente mais preparado, que só viu como saída para a ocupação do território sua erradicação completa.
Da mesma forma que na América espanhola, onde se ergueram igrejas cristãs sobre os alicerces dos templos ao Deus-Sol e os edifícios de pedra dos incas foram transformados em casarões coloniais, varreram-se no Brasil as aldeias indígenas, de cujas estruturas de madeira e forros de palha nada restou. A diferença é que a América que falava português tornou-se um só país, enquanto a espanhola se fragmentou.
A partir de um passado de guerra e conflito, construiu-se uma nação que podia falar uma só língua num território de dimensão continental. Porém, isso se deveu mais à força de um império aniquilador, que sujou as mãos de sangue antes de consolidar-se. Examinar melhor essa história é fundamental para se entender o Brasil, um país complexo, nascido de um passado de conflitos, de espírito belicoso e cheio de ambições, que dominou uma natureza tão adversa quanto em outras partes do mundo. No passado estão a formação e a verdadeira essência do Brasil atual, com suas virtudes e problemas.
Erradicar a pobreza e tornar o país não só democrático, como socialmente mais equilibrado e justo, é uma tarefa histórica em uma nação acostumada desde sempre a massacrar a parte mais fraca e muitas vezes discriminada de sua sociedade. Para isso, devemos buscar o mesmo espírito daqueles que, mesmo entre os lançados à aventura como refugo de seu país de origem, no Brasil se tornaram, por insuspeitada virtude ou pura necessidade, tão grandes quanto a própria terra.
T. G.
O HOMEM SEM PASSADO
Os índios do Brasil, incluindo os que no passado habitavam a costa do estado de São Paulo, costumam dar um novo nome em sua língua aos estrangeiros que acolhem, para identificá-los em sua própria sociedade. Esse nome tribal tem características totêmicas – refere-se a algum fenômeno e forma da natureza, animal ou vegetal, ou à primeira impressão que têm do indivíduo. O nome indígena não apenas designa a pessoa como define simbolicamente a sua personalidade: revela o que ela é. João Ramalho foi chamado de Pirá-tininga, ou Piratininga (em tupi, peixe seco
). Sugere o homem chegado do oceano sem se molhar – isto é, numa caravela, embarcação que para os índios, no início, tinha algo de assombroso, quase sobrenatural.
As naus que cruzavam o Atlântico, em forma de casca de noz, de cujas amuradas se defecava no mar, deixavam entregues à própria sorte nas terras brasileiras tanto os amotinados como os criminosos que aceitavam trocar a prisão pelo exílio. Só aqueles que apodreciam nas medievais cadeias portuguesas se inclinavam a aceitar como preço pela liberdade a vida numa terra desconhecida e inóspita, na qual tinham poucas possibilidades