O bosque das antas
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Sobre este e-book
Este romance de Francisco Fernández Naval recebeu o Prémio Xerais em 1988, tornando o seu protagonista, Pierre Francesco, numa das personagens mais importantes do imaginário contemporâneo da narrativa galega.
Finalmente, tantos anos depois, Bubok publica as edições em língua espanhola e portuguesa; levando a mais leitores um romance essencial e necessário.
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O bosque das antas - Francisco Fernández Naval
O BOSQUE DAS ANTAS
Francisco X. Fernández Naval
V Premio Xerais de novela 1988
© Francisco X. Fernández Naval
© O bosque das antas
Fotografias de capa e de autor: Maribel Longueira
Tradução: José Braga-Amaral
ISBN papel: 978-84-685-4325-3
ISBN ePub: 978-84-685-4326-0
Editado por Bubok Publishing S.L.
Tel: 912904490
C/Vizcaya, 6
28045 Madrid
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Para Antonio García, o primeiro a conhecer Pierre Francesco
Para todos que me emprestaram a sua memória
Index
Créditos
PRIMEIRA PARTE
SEGUNDA PARTE
PRIMEIRA PARTE
1
Há muito tempo que aguardava aquele momento. Às vezes o medo tirava-lhe a coragem. Despertava assustado pela possível covardia e já não voltava a adormecer. Durante o dia mantinha-se alerta contra qualquer suspeita, cismando teimosamente no seu próprio valor, esperando o momento exacto para abrir a janela e perder-se no vazio. Levou noites de insónia e maturação, espiando a rotina das sentinelas, escudando-se no silêncio para ganhar força, determinação para encarar o incerto e caminhar em direcção ao único lugar possível, a liberdade.
Espreitando as rondas dos vigias durante horas sem fim, foi educando o espírito para não duvidar. Abrigado nos bastidores olhava a distância e era como atingir o abismo. Foi nessas noites que pode recuperar memórias tão distantes já, que pareciam anteriores à sua própria vida. Parecia-lhe que nunca tinham acontecido. Tentava, então, alterado o ânimo pelo roncar monocórdico de um companheiro ou pelo ranger metálico de uma cama, refazer as sensações antes vividas, e que agora lhe pareciam alheias. O cheiro da sua cidade, Veneza, nas tardes de verão, os beijos de Marta Rinaldi, o sabor do Calvados num café de Paris, o movimento do corpo numa carruagem de comboio… Tinha as imagens, era capaz de visualizar os canais, o céu, os olhos e os cabelos ainda adolescentes, as madeiras envernizadas da carruagem de primeira, contudo não conseguia recordar o aroma, o tato, a surpresa no assento aquando do cruzamento de vias. Era como se nada tivesse existido, como se tudo sucedesse num mundo de névoa, sequências cinematográficas que converteram o seu passado em algo de fantasmagórico e alheio. Só era real a rocha sob o olhar mortífero do capataz, a boca indiferente das espingardas e o cheiro a pedra.
Quando saltou não sentiu nada. Imaginara aquele momento centenas de vezes, no ir e vir do barracão à pedreira. De forma contida olhava o ponto exacto onde cairia desafiando a morte, fugindo pelo único lugar não vigiado.
Desde criança que se considerava covarde. Impressionava-o a influência do avô, herói de guerra e Lugar-Tenente de Garibaldi na campanha dos mil. E ainda agora, ao lembrá-lo, sentia um arrepio de medo, apesar de ser o avô, juntamente com a mãe, as pessoas que mais amava. Contudo, aquele ponto de referência heroico que fixara desde a infância como um desafio, provocava nele uma sensação de insegurança, o medo da comparação, de não acolher a sua aprovação e não ser digno do seu nome.
Ergueu-se. O coração saltava-lhe nas têmporas. Dorido, com a carne rasgada pela pedra, deixou para trás o precipício recortado contra um céu sem lua.
Nos dias anteriores, tentando imaginar o que sucederia no rolar vertiginoso, chegou a acreditar que sentiria o perigo, que reviveria essa opressão paralisante que se sente no ventre. Pensava que em algum momento da queda ficaria consciente de algo, porventura uma lembrança, a intuição do fim, a imagem desconhecida de um sonho nunca recordado, algo semelhante ao que dizem acontecer aos afogados, ou aos doentes em agonia, quando as memórias mais guardadas aparecem não se sabe de onde, tumultuosamente, com uma força só comparável à vida que se vai. Porém, nada disto sucedeu. Ainda agora, já refeito, era difícil pensar e ter consciência de si, da fuga que acabara de empreender, da qual o primeiro e mais difícil passo daquele desesperado propósito de viver, resultara bem, porventura demasiado bem para o seu gosto.
Caminhava devagar rio abaixo. Tinha o mapa da zona guardado na memória. Reconhecia cada penedo, cada árvore, cada recanto e cada luz ao longe. No campo de trabalho fizera amizade com um oficial, rival político mas apesar disso um homem com quem manteve uma boa relação na medida em que os uniam prioritariamente critérios estéticos, evitando aquilo que os separava. Com Daniel Burne Vaillant partilhava essa hora da tarde, entre o lusco-fusco, em que o coração procura sempre a presença do amor ou do amigo. Por ele se mantinha informado das novidades do mundo exterior. Assim soube da derrota italiana, o velho e querido país novamente devastado. Daniel contava-lhe, sem segredos, da fome do pós-guerra, do julgamento de Nuremberga e da bomba de Hiroshima. Mas também das suas dúvidas sobre aquela cruzada em que ele próprio participara cheio de ardor e esperanças juvenis. As tardes de domingo passavam junto à aldeia de Três Ríos. Aí frequentavam as tabernas onde os velhos jogavam dominó. Nessas saídas ele aproveitava para gravar na memória os recantos e caminhos, as casas, os valados, e ainda os cheiros, os murmúrios das águas, os latidos dos cães, os silêncios. Agora reconhecia tudo, como se não fosse noite. Sabia que perto estavam o Sil e o Bubal desaguando ambos no Minho, e logo viria o cachão, a vila dos Três Rios, e uma vez aí seguiria pela estrada até que a alvorada o obrigasse a arranjar refúgio num cabouco ou na casa de algum conhecido.
Fugira vestido com a roupa de trabalho. Levara também a manta com que agora cobria o corpo. A humidade entranhava-se no corpo, agarrava-se aos ossos, ao sangue, tornando a dor mais intensa.
Em cinco noites poderia alcançar a fronteira portuguesa, através de Pontes Barxas. Atravessaria a raia pelo monte e procuraria um contacto. Um companheiro de campo tinha-lhe dito que em Portugal havia gente solidária, disposta a ajudar um proscrito.
O seu projecto não era perfeito. Sabia que era demasiado simples. Na realidade dependia mais da sorte do que si mesmo. Sorte que se mostrou esquiva ao resvalar nas pedras molhadas do cachão, precipitando-se nas águas. Recebeu um golpe como os do Mosteiro de Celanova, aquando das torturas o submergiam numa pia de água gelada, como esta do Bubal onde agora se debatia para se salvar. Nadou com força para impedir o enregelamento. Arrastava a manta com dificuldade. Já em terra despiu-se, esfregou o corpo no tronco de um carvalho. Sentia-se miserável, magoado.
Sobrepondo-se ao abatimento, tentou respirar forte, fundo, encher o peito de ar e de ânimo. Comprometido com a sobrevivência, depois de tanto tempo sonhando com a fuga, com alcançar o que agora alcançava, não podia permitir uma contrariedade tão cruel. Lutaria enquanto tivesse forças, enquanto conservasse um mínimo de razão que lhe mantivesse a ideia de que é necessário viver, mas viver em liberdade.
Sentia a doença crescer-lhe nas entranhas, o pulso acelerado pela febre. Caminhava vacilante pelo meio dos carris, entre montes cortados, sob os pinheiros escuros. Para trás ficava Três Rios escondendo-se nas sombras. À esquerda percebia o cantarolar do Minho, sinuoso e nostálgico, inundando as margens com um murmúrio incansável.
Pela manhã Pierre Francesco Borghese dormia febril num leito seco e quente, em Graíces, na casa de Artemia, viúva de Xaquín Soto, companheiro republicano morto uma madrugada, nos primeiros dias da guerra, com um disparo na nuca.
2
Pierre Francesco Borghese lembrava-se sempre do dia em que chegou a Ourense procedente de Madrid, depois de mais de vinte horas de pesadelo, naquele comboio-correio que parecia partir-se pelas encostas inclinadas e os estreitos sombrios. Vinha de atravessar a meseta, a bacia mineira do Bierzo, os maciços majestáticos de Trevinca, onde haveria de voltar anos mais tarde. Estarrecido, observava para além de Ávila e Medina, uma paisagem limpa que parecia esgotar-se em si mesma, limitada pelos outeiros isolados, colocados ao acaso contra o horizonte por alguém que tivesse medo de olhar a terra sem fim. Percorrera meia Europa e, contudo, nenhuma viagem lhe parecera tão pesada, tão lenta como esta, e ao mesmo tempo nenhuma fora tão pouco monótona, cheia de contrastes, preenchida de surpresas. Tinha podido partilhar o tempo e a impaciência com as gentes mais singelas, sentir as diferenças de pronúncia conforme se aproximava do norte, observar os rostos duros, difíceis, curtidos pela fome e pelas geadas, pelos ventos incansáveis e as ilusões perdidas. Pode sentir a tristeza, essa tristeza arrogante e não solidária nos olhos altivos. Tudo o ajudou a entender melhor a opinião pública e o espírito revolucionário que em toda a Europa se vivia relativamente a Espanha, e que esta acabava de confirmar com a instauração da Segunda República. Ventos de mudança percorriam as terras castigadas daquele país agarrado ao passado. Pierre Francesco pensava que a segunda grande revolução, a seguir à russa, seria a ibérica. Toda a península em pé e os dois extremos da velha Europa juntos para deter a agitação instalada em Itália e que ele acabava de ver com horror na Alemanha. Nesta terra que agora atravessava, a pobreza, a desigualdade e a fome sentia-se na pele, escorria pelos rostos dos homens, pelos peitos caídos das mulheres, pelos olhos das crianças, anunciava-se nas casas de palha e barro, e nas leiras vermelhas em descanso. Eram como bandeiras apelando à revolta, campos regados pela bílis e pelo sangue.
Era meio-dia de inverno, cinzento, inundado pela névoa húmida do Minho. A sensação da paisagem, o sabor do ar e a textura do céu, fizeram-lhe lembrar Veneza. Como na sua cidade havia aqui algo de fantasmagórico, agoiro de tragédia, como quando a névoa dos canais inunda as ruas estreitas, as escadarias por onde outrora subiram falsos brilhos, como quando os ruídos das casas se prolongam no desconhecido, como um eco ou um ranger surdo e misterioso que quebra o silêncio. A mesma humidade, o mesmo frio que penetra no corpo encolhendo o estômago, que remanesce nas cobertas da cama, que se prende no cabelo.
Aguardava-o na estação Claudio Naval, a quem enviara de Madrid um telegrama anunciando a sua chegada. Não se conheciam, mas um certo instinto e a descrição que de Claudio lhe fizera Pietro Giordani, contribuíram para que assim que se olharam de forma cúmplice se encontrassem num prolongado abraço.
3
Claudio Naval conhecera Pietro Giordani em Havana, dez anos antes. Ambos foram para a América atraídos pela febre da riqueza fácil que naqueles tempos percorria a Europa. Pierre Francesco desde logo ficou a saber que para Claudio existia, para além disso, outra razão, porventura mais poderosa, para empreender aquela viagem, a de escapar a um casamento forçado e não desejado, a que se vira obrigado por um descuido em consequência de uma paixão, numa noite de verão. Juntos, Giordani e Claudio, passeavam a sua saudade pelas ruas da capital cubana e pelas praias de leste, estranhando o pequeno orvalho sob a chuva grossa e quente que faz crepitar a terra, desprendendo esse aroma doce que exala em Havana no lusco-fusco e que para eles representava o significado do próprio desterro. Com seus