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A guardiã
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E-book421 páginas11 horas

A guardiã

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Sobre este e-book

"Durma bem e permaneça onde eu te deixar." Com esses dizeres e algumas doses de uísque, Maylene Barrow vale os mortos de sua cidade natal, frequenta os cemitérios cuidando das sepulturas, planta jardins e conta histórias à beira das lápides.
Quando ela morre, sua neta Rebbekah, volta a Claysville, onde passou a adolescência, e de onde fugiu depois do suicídio da irmã, Ella. Rebbekah não esqueceu os estranhos rituais que sua avó encenava nos enterros, tampouco esqueceu Byron, o agente funerário com quem vivou um conturbado romance no passado.
Ela logo entende que as estranhas tradições de Maylene e da cidade estão vinculadas a um sombrio pacto que atravessa séculos, e que ela mesma está mais envolvida nesse acordo do que poderia imaginar.
A verdadeira herança da família Barrow é revelada a Rebbekah, que descobre ser a única capaz de deter o suposto monstro que vem assombrando e matando os pacatos cidadãos de Claysville. Transitando entre o mundo dos vivos e dos mortos, e sob a escolta de Byron, Rebbekah assume o papel que pertencera à sua avó, e entende que ser uma Guardiã é a tarefa para qual sempre esteve destinada.
A guardiã é a nova incursão pelo universo fantástico da autora best-seller Melissa Marr com a qual estreia na literatura adulta, ainda se mantendo no gênero da fantasia.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de ago. de 2012
ISBN9788581221427
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    A guardiã - Melissa Marr

    Melissa Marr

    A GUARDIÃ

    Tradução de Débora Fleck

    SUMÁRIO

    Agradecimentos

    Prólogo

    CAPÍTULO 1

    CAPÍTULO 2

    CAPÍTULO 3

    CAPÍTULO 4

    CAPÍTULO 5

    CAPÍTULO 6

    CAPÍTULO 7

    CAPÍTULO 8

    CAPÍTULO 9

    CAPÍTULO 10

    CAPÍTULO 11

    CAPÍTULO 12

    CAPÍTULO 13

    CAPÍTULO 14

    CAPÍTULO 15

    CAPÍTULO 16

    CAPÍTULO 17

    CAPÍTULO 18

    CAPÍTULO 19

    CAPÍTULO 20

    CAPÍTULO 21

    CAPÍTULO 22

    CAPÍTULO 23

    CAPÍTULO 24

    CAPÍTULO 25

    CAPÍTULO 26

    CAPÍTULO 27

    CAPÍTULO 28

    CAPÍTULO 29

    CAPÍTULO 30

    CAPÍTULO 31

    CAPÍTULO 32

    CAPÍTULO 33

    CAPÍTULO 34

    CAPÍTULO 35

    CAPÍTULO 36

    CAPÍTULO 37

    CAPÍTULO 38

    CAPÍTULO 39

    CAPÍTULO 40

    CAPÍTULO 41

    CAPÍTULO 42

    CAPÍTULO 43

    CAPÍTULO 44

    CAPÍTULO 45

    CAPÍTULO 46

    CAPÍTULO 47

    CAPÍTULO 48

    CAPÍTULO 49

    CAPÍTULO 50

    CAPÍTULO 51

    CAPÍTULO 52

    CAPÍTULO 53

    CAPÍTULO 54

    CAPÍTULO 55

    CAPÍTULO 56

    CAPÍTULO 57

    Epílogo

    Créditos

    A Autora

    Para o dr. Charles J. Marr, professor e poeta, tio e inspiração, obrigada pelos anos de conversas e cartas e por incentivar o meu amor pela literatura. Eu te amo, tio C.

    AGRADECIMENTOS

    Agradeço às minhas enérgicas publishers: Lisa Gallagher (sim, o nome do bar é em sua homenagem), por adquirir o livro, e Liate Stehlik, pelo apoio ao longo do caminho. Às minhas adoráveis agentes, Merrilee Heifetz e Sally Wilcox, pelo entusiasmo insano enquanto me afogava num mar de dúvidas. E às minhas editoras, Jennifer Brehl, pelas ideias iniciais (principalmente quanto aos trajes de Charlie e quanto à taverna), e Kate Nintzel, pelas ótimas observações editoriais, energia incansável e postura fantástica.

    Não poderia ter escrito este livro sem a ajuda do Agente funerário Todd (W. Todd Harra), que respondeu as minhas perguntas constantes sobre o ofício sombrio, deixou que eu lesse sua coleção de histórias fúnebres e leu A Guardiã para garantir que eu usara os detalhes e a terminologia corretamente. Obrigada por tudo. (Observação: é evidente que qualquer erro relacionado à atividade deve ser imputado a mim. Todd fez um belo trabalho ao me ensinar, mas tenho certeza de que nem sempre sou a melhor das alunas.)

    Além de Todd, tenho uma lista de grandes amigos que leram o texto, ouviram minhas divagações e, fora isso, seguraram minha mão durante essa jornada. Agradeço a todos vocês, em especial a Jennifer Barnes, Mark Del Franco, Rachael Morgan e Jeaniene Frost.

    Meu agradecimento também a Stephanie Kuehnert por emprestar suas incríveis presilhas de cabelo para Amity.

    Pai, mãe, obrigada por ajudar na questão da compra de armas por Alicia (aqui e no conto) e pela inabalável fé habitual. Vocês sem dúvida são os melhores pais que alguém poderia ter.

    E, como sempre, a maior dívida de gratidão vai para o meu marido, Loch, e nossos filhos absurdamente pacientes. Obrigada por não me trancarem no escritório quando estava nas partes mais alucinadas da revisão. Sei que em alguns dias foi preciso muito esforço.

    PRÓLOGO

    Maylene colocou uma das mãos sobre a lápide para se apoiar. A cada dia ficava mais difícil levantar-se do chão. Os joelhos já tinham lhe causado bastante problema, mas nos últimos tempos a artrite começara a se instalar nos quadris. Ela sacudiu a terra das mãos e da saia e tirou uma pequena garrafa do bolso. Evitando com cuidado os brotos verdes de tulipa que havia plantado, despejou o conteúdo do frasco sobre o solo.

    – Aqui está, querido – sussurrou. – Não é a mesma aguardente caseira que costumávamos tomar, mas é o que tenho para dividir.

    Passou a mão pela parte superior da lápide. Não havia restos de relva acumulados nem teias de aranha se estendendo do alto. Ela cuidava dos mínimos detalhes.

    – Você se lembra daqueles dias? A varanda dos fundos, a luz do sol e os potes de conserva – disse ela, fazendo uma pausa diante do encanto da recordação. – Éramos tão bobos naquela época... pensando que havia um mundo inteiro lá fora a ser conquistado...

    Quanto a Pete, era pouco provável que respondesse: os que eram enterrados e tratados da forma correta não abriam a boca.

    Ela prosseguiu em suas rondas pelo cemitério de Sweet Rest, parando para limpar a sujeira acumulada nas lápides, despejar um pouco de bebida no solo e pronunciar suas palavras. Aquela era a última parada na agenda da semana, mas nem por isso ela tratava com menos cuidado dos residentes.

    Para uma cidade pequena, Claysville tinha um número grande de adros e cemitérios. Por lei, qualquer pessoa que nascesse dentro dos limites da cidade deveria ser enterrada lá. Por isso, o lugar contava com mais residentes mortos do que vivos. Às vezes Maylene se perguntava o que aconteceria se os vivos soubessem do pacto que os fundadores da cidade haviam feito, mas, sempre que abordava o assunto com Charles, era ignorada. Algumas batalhas ela não podia vencer – por mais que desejasse.

    Ou por mais que fizessem um sentido danado.

    Ela deu uma espiada no céu que escurecia. Já passava da hora de voltar para casa. Desempenhava sua tarefa tão bem que durante quase uma década não apareceram visitantes, mas continuava indo embora ao pôr do sol. O hábito de uma vida inteira não perdia a força mesmo quando deveria perder.

    Ou não.

    Maylene tinha acabado de enfiar o frasco no bolso da frente do vestido quando viu a garota. Era muito magra – a barriga côncava aparecia por baixo da camiseta rasgada. Estava sem sapatos e a calça jeans apresentava furos nos joelhos. Uma mancha de sujeira podia ser vista na bochecha esquerda, parecendo um blush mal aplicado. Embaixo dos olhos havia um borrão de delineador, como se ela tivesse caído no sono sem tirar a maquiagem. A garota percorreu o cemitério bem cuidado sem se ater às trilhas e sim cruzando pela grama, até parar em frente a um dos mausoléus familiares mais antigos, ao lado de Maylene.

    – Eu não estava te esperando – murmurou Maylene.

    Os braços da garota projetavam-se em ângulos esquisitos – não exatamente numa postura beligerante com as mãos nos quadris, mas tampouco de forma relaxada –, como se não estivessem por completo sob o controle dela.

    – Vim para encontrá-la.

    – Não sabia. Se eu soubesse...

    – Isso não importa agora – disse a garota, demonstrando uma atenção inabalável. – Você está aqui.

    – É... estou.

    Maylene decidiu recolher a tesoura de jardinagem e o regador. Havia terminado o trabalho com as escovas de esfregar e já empilhara a maior parte dos suprimentos. As garrafas tilintaram quando ela jogou o regador dentro do carrinho de mão.

    A garota parecia triste. Seus olhos enegrecidos estavam encobertos por lágrimas que, até então, não fora capaz de derramar.

    – Vim para encontrá-la.

    – Eu não tinha como saber – disse Maylene, estendendo o braço para arrancar uma folha grudada no cabelo da garota.

    – Não importa. – Ela levantou a mão suja, as unhas exibindo um esmalte vermelho descascado, mas não parecia ter ideia do que fazer com os dedos estendidos. Em sua expressão, temores de uma menininha lutavam contra uma bravata adolescente. A bravata venceu. – Estou aqui agora.

    – Então tudo bem.

    Maylene pegou a trilha em direção a uma das saídas. Tirou a chave antiga de dentro da bolsa, girou-a na fechadura e abriu o portão. Ele fez um leve chiado. Talvez seja bom falar sobre isso com Liam, disse a si mesma. Ele nunca consegue lembrar sem um pouco de insistência.

    – Você tem pizza? – perguntou a garota, com uma voz delicada. – E achocolatado? Adoro aqueles achocolatados.

    – Com certeza consigo arranjar alguma coisa para você.

    Maylene ouviu a própria voz estremecer. Estava ficando velha demais para surpresas. Encontrar a garota ali – naquele estado – já passava até de uma surpresa. Não era para estar lá. Seus pais não deviam tê-la deixado vagar assim. Alguém deveria ter entrado em contato com Maylene antes de se chegar àquele ponto. Havia leis em Claysville.

    Leis que eram mantidas em vigor apenas por essa razão.

    Elas saíram pelo portão e chegaram à calçada. Fora das fronteiras de Sweet Rest, o mundo não era tão ordenado assim. O calçamento havia rachado e por entre as fendas brotavam ervas daninhas espigadas.

    – Pisar numa lacuna quebra a coluna – sussurrou a garota, forçando os pés descalços no cimento rachado e sorrindo para Maylene. – Quanto maior a lacuna, pior a dor – acrescentou.

    – Essa parte não rima.

    – Não mesmo, não é? – Ela inclinou a cabeça por um momento. – Quanto maior a ruptura, pior a fratura. Agora funciona.

    Enquanto caminhava, balançava os braços sem sincronia com seus passos, fora do ritmo normal. Seu caminhar se mostrava firme, mas o padrão era irregular. Os pés pisavam no calçamento com tanta força que o cimento rachado se rompia.

    Em silêncio, Maylene empurrou o carrinho de mão pela calçada, até chegarem à entrada da garagem de sua casa. Ela parou e, com uma das mãos, tirou o frasco do bolso para esvaziá-lo. Com a outra mão, checou a caixa de correio. No fundo havia um envelope dobrado, selado e endereçado. Seus dedos tremeram, mas ela inseriu o frasco dentro do envelope, fechando-o e devolvendo-o à caixa. Levantou a bandeirola vermelha para sinalizar ao carteiro que recolhesse o pacote. Se ela não voltasse para recuperá-lo de manhã, ele seguiria para Rebekkah. Por um momento Maylene descansou a mão na lateral da caixa envelhecida, desejando ter tido coragem de contar a Rebekkah o que ela precisava saber antes daquela ocasião.

    – Estou com fome, senhora Maylene – apelou a garota.

    – Desculpe. Vou pegar algo quente para você comer. Vou...

    – Está tudo bem. Você vai me salvar, senhora Maylene. – A garota olhou para ela com um ar de verdadeira felicidade. – Sei disso. Sabia que se te encontrasse tudo ficaria bem.

    1

    Fazia anos que Byron Montgomery não pisava na casa dos Barrow. Houve um tempo em que passava por lá todos os dias para encontrar a namorada de escola, Ella, e sua meia-irmã, Rebekkah. As duas partiram cerca de dez anos antes, e pela primeira vez ele se sentia grato por isso. A avó de Ella e Rebekkah jazia agora no chão da cozinha envolta em uma poça de sangue parcialmente coagulado. Sua cabeça, retorcida, formava um ângulo insólito, e o braço fora dilacerado. O sangue parecia vir principalmente desse ferimento. Havia um hematoma semelhante a uma marca de mão na parte superior do braço, mas era difícil distingui-lo em meio a toda quantidade de sangue.

    – Você está bem? – perguntou Chris, postando-se na frente dele e bloqueando a visão do corpo de Maylene.

    O delegado não era um homem de estatura excepcional, mas, como todos os McInneys, tinha um semblante que chamava atenção sob qualquer circunstância. O porte e a musculatura que no passado faziam de Chris uma figura fácil de ser vista em uma boa briga de bar agora o tornavam o tipo de delegado que inspirava confiança.

    – O quê? – Byron esforçava-se para olhar apenas na direção de Chris e evitar o corpo.

    – Você não vai passar mal por causa do... – Chris apontou para o chão – sangue e tudo o mais?

    – Não – respondeu Byron, balançando a cabeça.

    Um agente funerário não podia ficar nauseado diante da visão – ou do cheiro – da morte. Ele havia trabalhado por oito anos em casas funerárias fora de Claysville até que cedeu ao insistente impulso de voltar para sua cidade natal. No tempo em que esteve longe, pôde ver os resultados de mortes violentas, mortes de crianças, mortes demoradas. Lamentou muitas delas, apesar de se tratar de estranhos, mas nunca chegou a passar mal. Agora tampouco passaria mal, porém ficava mais difícil não se envolver quando o morto era alguém conhecido.

    – Evelyn trouxe roupas limpas para ela – comentou Chris ao se recostar na bancada da cozinha, enquanto Byron notava que o jato de sangue não atingira aquele canto.

    – Você já recolheu as provas ou...?

    Byron parou de falar antes de terminar a frase. Não sabia o que precisava ser feito. Já perdera a conta de quantos corpos havia recolhido, mas nunca de uma cena de crime tão recente. Não era patologista nem atuava em investigações forenses; seu trabalho só começava depois, fora do local do homicídio. Pelo menos tinha sido assim nos outros lugares. Agora que voltara, nada mais acontecia do jeito como ele estava acostumado. A pequena cidade de Claysville era diferente daquelas por onde andou perambulando. Só percebeu a extensão dessa diferença quando foi embora... ou talvez quando retornou.

    – Se eu já recolhi as provas do quê? – questionou Chris, fixando os olhos nele de forma tão agressiva e ameaçadora que faria muita gente se acovardar. Mas Byron se lembrava da época em que o delegado era um dos garotos de sua turma – dos que entravam na mercearia da Shelly e compravam cerveja quando Byron ainda não tinha idade suficiente para isso.

    – Do crime – respondeu ele e apontou para a cozinha.

    Uma mancha de sangue desenhara um arco no chão, em frente aos armários. Sobre a mesa havia um prato e dois copos, prova de que uma segunda pessoa estivera ali, ou que Maylene servira dois copos para si mesma. Então ela devia conhecer seu agressor. Uma cadeira estava tombada no chão. Ela havia lutado. Um pedaço de pão e várias fatias cortadas permaneciam sobre uma tábua. Ela confiava no agressor. A faca de pão fora lavada e era o único item descansando no pequeno escorredor de madeira ao lado da pia. Alguém – o agressor? – tinha limpado tudo. Ao tentar entender o que via ali, Byron pensou que talvez Chris simplesmente não quisesse falar sobre as provas. Será que ele vê alguma coisa que eu não vejo?

    O técnico de laboratório, que Byron não conhecia, entrou na cozinha. Ele não pisou no sangue que estava no chão, mas se tivesse pisado, os sapatos já estavam protegidos por botinas. A ausência do equipamento parecia indicar que já havia realizado seu trabalho.

    Ou que não faria coisa alguma.

    – Aqui. – O técnico estendeu aventais e luvas de látex descartáveis. – Imaginei que fossem precisar de ajuda para removê-la.

    Depois de colocar o avental e as luvas, Byron desviou o olhar na direção de Chris. O esforço em se manter paciente desaparecera. Ele precisava saber.

    – Chris, é a Maylene e... apenas diga que você tem algo capaz de... Sei lá, ajudar a decifrar quem é o assassino ou pelo menos alguma pista.

    – Esqueça isso. – Chris balançou a cabeça, afastando-se da bancada. Ao contrário do técnico, pisava com todo o cuidado. Dirigiu-se para a porta que dava na sala, esquivando-se do corpo e atraindo o olhar de Byron. – Apenas faça o seu trabalho.

    – Pode deixar. – Byron pôs-se de cócoras, começou a estender os braços e em seguida olhou para cima. – É seguro tocá-la? Não quero atrapalhar se você ainda for recolher...

    – Faça o que for preciso. – Chris não olhava para Maylene enquanto respondia. – Não consigo ir adiante até que você a retire daqui, e não é justo deixá-la assim. Portanto, vá em frente. Leve-a embora.

    Byron abriu o zíper do saco onde iria colocar o cadáver. Em seguida, desculpando-se em silêncio diante da mulher que um dia ele acreditou que faria parte da família, gentilmente transferiu o corpo com a ajuda do técnico. Ainda sem fechar o saco, ajeitou-se e tirou as luvas agora sujas de sangue.

    O olhar de Chris se voltou para o corpo de Maylene. Sem fazer barulho, ele pegou outro saco, agora descartável – para depositar os resíduos de risco biológico –, e o empurrou na direção do técnico. Depois se agachou e fechou o zíper do saco onde estava o cadáver, tirando-o de vista.

    – Não é certo que ela esteja assim – declarou o delegado.

    – E não é certo contaminar o exterior do saco – completou Byron, colocando com cuidado as luvas e o avental dentro do recipiente descartável.

    Chris pôs-se de joelhos, fechou os olhos e sussurrou algumas palavras. Em seguida, levantou-se e disse:

    – Vamos logo. Você precisa tirá-la daqui.

    Lançou um olhar acusatório na direção de Byron, que, por um breve momento, desejou rosnar como resposta. Não significa que não lamentasse pelos mortos. Ele lamentava. Dava muita atenção a eles – tratava-os com mais cuidado do que muitas pessoas recebiam ao longo da vida –, mas não ficava choramingando. Não podia agir assim. O distanciamento era tão fundamental quanto as outras ferramentas de um agente funerário: sem isso o trabalho se tornava impossível.

    Algumas mortes o abalavam mais do que outras, e a de Maylene era uma delas. Ela havia ocupado um cargo na casa funerária da família de Byron e cultivara uma longa amizade com o pai dele. Fora isso, foi responsável pela criação das duas únicas mulheres que ele um dia amou. Era praticamente da família, mas isso não significava que ele iria sofrer ali.

    Em silêncio e com cautela, Byron e Chris carregaram Maylene para o catre que Byron deixara do lado de fora da casa. Logo depois, posicionaram o corpo dentro do carro fúnebre.

    Quando a traseira do carro foi fechada, Chris respirou aliviado. Byron tinha lá suas dúvidas se o delegado já havia participado de alguma investigação de assassinato. Apesar de todas as excentricidades, Claysville era a cidade mais segura que conhecia. Durante a infância e a adolescência, não se dera conta de como isso era incomum.

    – Chris, sei de algumas pessoas que talvez possam ajudá-lo.

    O delegado assentiu com a cabeça, sem olhar para Byron.

    – Diga ao seu pai que... – pronunciou Chris, com a voz cortada. – Diga a ele que vou ligar para Cissy e as meninas – emendou, depois de limpar a garganta.

    – Pode deixar.

    Chris estava indo embora quando parou perto da mesma porta lateral pela qual haviam saído.

    – Presumo que alguém terá que avisar a Rebekkah. E é provável que a Cissy não ligue para ela. Ela precisa vir para cá o mais rápido possível – declarou o delegado, sem olhar para trás.

    2

    Rebekkah passou a maior parte do dia fora de casa, vagando pelo Gas Light District com um caderno de rascunho debaixo do braço. Naquele momento estava sem projetos e, ao mesmo tempo, não se sentia inspirada para criar nada por conta própria. Algumas pessoas lidam bem com uma disciplina diária, mas ela sempre fora o tipo de artista que precisava ter um prazo ou então estar obcecada por um propósito. Infelizmente, isso queria dizer que não sabia para onde canalizar a inquietude que experimentava, portanto decidiu dar uma volta, levando consigo um caderno e uma câmera antiga. Depois de perceber que nem o desenho nem a fotografia ajudariam, voltou para casa e se deparou com mais de dez chamadas perdidas de um número desconhecido – e nenhuma mensagem.

    – Dia agitado e ligações aleatórias... O que você acha, Querubim? – divagou Rebekkah, enquanto olhava pela janela e alisava as costas do gato.

    Ela estava em San Diego havia apenas três meses, mas a comichão voltara. Ainda dispunha de quase dois meses antes de Steve retornar para reaver o apartamento, mas já se sentia pronta para partir.

    Hoje parece pior.

    Era como se nada estivesse no devido lugar. O resplandecente céu azul da Califórnia parecia pálido; o pão de frutas vermelhas que ela havia comprado na padaria do outro lado da rua estava sem sabor. Em geral, sua irritabilidade não se convertia no embotamento dos sentidos, mas naquele dia tudo apresentava uma aura entorpecida.

    – Talvez eu esteja doente. O que você acha?

    O gato malhado no parapeito da janela balançou o rabo.

    A campainha soou no andar de baixo e Rebekkah deu uma espiada pela janela. O motorista do serviço de entregas já estava de volta à caminhonete.

    – De vez em quando seria bom que uma entrega fosse de fato entregue em vez de ser apenas largada, podendo pegar chuva, ser pisada ou até mesmo roubada – resmungou Rebekkah, enquanto descia os dois lances de escada para alcançar a porta de entrada.

    Do lado de fora, nos degraus do prédio, havia um envelope marrom endereçado a ela com a caligrafia fina e alongada de Maylene. Rebekkah agachou-se para pegá-lo e quase o deixou cair ao perceber qual era o conteúdo.

    – Não!

    Ansiosa, rasgou o envelope, e a parte de cima esvoaçou até o chão, aterrissando perto de um vaso de ave-do-paraíso junto à porta. O frasco prateado de sua avó estava aninhado dentro do grosso pacote e um lenço branco com um rendado delicado havia sido amarrado em volta dele.

    – Não! – repetiu.

    Subiu correndo os lances de escada, um tanto desnorteada. Entrou no apartamento como um furacão, agarrou o celular e na mesma hora ligou para a avó.

    – Cadê você? – sussurrava, enquanto continuava ouvindo o toque do outro lado. – Atenda o telefone. Por favor, por favor. Atenda.

    Ligou várias vezes para os dois números de Maylene, mas nem o telefone de casa nem o celular – que a própria neta havia insistido que a avó carregasse – respondiam.

    Segurou o frasco entre as mãos. Ele nunca estivera longe de Maylene desde que Rebekkah se entendia por gente. Quando saía de casa, ele ia dentro da bolsa. No jardim, ficava em um dos bolsos fundos do avental. Em casa, seu lugar era na bancada da cozinha ou na mesinha de cabeceira. E a cada funeral que Rebekkah havia comparecido junto com a avó, lá estava ele.

    Rebekkah adentrou o quarto escuro. Sabia que Ella estava pronta para ser enterrada, mas o velório só começaria dali a uma hora. Fechou a porta com o maior cuidado, tentando ficar em silêncio, e foi até o final do quarto. As lágrimas escorriam pelo rosto, pingando no vestido.

    – Não faz mal chorar, Beks.

    Ela passou os olhos pelo quarto escuro, detendo-se nas cadeiras e nos arranjos de flores, até que viu a avó sentada em uma poltrona confortável localizada em um canto.

    – Maylene... Eu não... Pensei que eu estivesse sozinha com... – olhou para Ella – com... Achei que apenas ela estivesse aqui.

    – Ela definitivamente não está aqui – disse Maylene, sem desviar a atenção para Rebekkah nem sair da poltrona. Permaneceu na sombra, com o olhar fixo em sua neta de sangue, em Ella.

    – Ela não podia ter feito isso – desabafou Rebekkah.

    Naquele momento sentia raiva de Ella. Não confessaria a ninguém, mas sentia. O suicídio fez todo mundo chorar, embaralhou tudo. Julia, a mãe de Rebekkah, ficou louca: passou a vasculhar o quarto dela em busca de drogas, ler o seu diário e vigiá-la de perto. Jimmy, seu padrasto, começou a beber no dia em que Ella foi encontrada e, pelo visto, ainda não tinha parado.

    – Venha cá – murmurou Maylene, em meio à escuridão.

    Rebekkah foi até lá e deixou que a avó a enlaçasse em um abraço perfumado de rosas. Ela afagou o cabelo da neta e proferiu palavras delicadas, em uma língua desconhecida. Foi aí que Rebekkah derramou todas as lágrimas que estava segurando até então.

    Quando ela parou, Maylene abriu uma enorme bolsa e tirou de dentro um frasco prateado, gravado com rosas e parreiras que se enroscavam formando duas iniciais: A.B.

    – Remédio amargo – explicou Maylene, inclinando o frasco para dar um gole. Em seguida o ofereceu a Rebekkah.

    Com a mão trêmula e úmida de suor e muco, ela o pegou e bebeu um pouco do líquido. Começou a tossir ao sentir uma queimação se propagar da garganta em direção ao estômago.

    – Você não é sangue do meu sangue, mas é tão minha quanto ela era – disse Maylene enquanto se levantava e pegava o recipiente de volta. – E agora mais ainda.

    Ela ergueu o frasco, como se estivesse fazendo um brinde, e disse:

    – Dos meus lábios para os seus ouvidos, seu canalha. – Enquanto bebia do uísque, apertava a mão de Rebekkah. – Ela foi muito amada e continuará sendo.

    Maylene olhou então para a neta, estendendo o frasco. Em silêncio, Rebekkah tomou um segundo gole.

    – Se algo me acontecer, cuide do túmulo dela, cuide durante três meses. Da mesma forma como quando você vai comigo, tome conta dos túmulos – implorou Maylene, com a voz firme, apertando mais forte a mão de Rebekkah. – Prometa.

    – Prometo – respondeu ela, sentindo o coração acelerar. – Você está doente?

    – Não, mas sou uma velha senhora – retrucou, largando a mão de Rebekkah para tocar em Ella. – Pensei que você e Ella Mae iriam... – emendou, balançando a cabeça. – Preciso de você, Rebekkah.

    – Claro – assegurou a neta, com certo tremor.

    – Três goles para garantir. Nem um a mais nem um a menos – afirmou Maylene e estendeu o frasco pela terceira vez. – Três nos seus lábios durante o enterro. Três na terra por três meses. Entendeu?

    Assentindo com a cabeça, Rebekkah deu o terceiro gole. Enquanto isso, Maylene se inclinava para beijar a testa de Ella.

    – Agora durma. Você consegue me ouvir? Durma bem, minha garota, e permaneça onde eu a deixar.

    Rebekkah ainda estava agarrada ao telefone quando ele tocou. Pelo visor, pôde perceber que o código de área era o mesmo de Maylene, mas não se tratava de nenhum de seus números.

    Maylene?

    – Rebekkah Barrow? – perguntou uma voz de homem.

    – Sou eu.

    – Rebekkah, é melhor você se sentar. Está sentada?

    – Sim, estou – retorquiu ela, mentindo. As palmas das mãos suavam. – Sr. Montgomery? É o que...

    – Sinto muito, Rebekkah. Maylene está...

    – Não – Rebekkah o interrompeu. – Não!

    Ela deslizou parede abaixo enquanto o mundo saía de foco, e desmoronou no chão ao notar que seus medos haviam se confirmado. Fechou os olhos à medida que o peito se enchia de uma dor que não experimentava fazia tempos.

    – Sinto muito, de verdade. – A voz de William se tornou ainda mais suave. – Tentamos te ligar várias vezes ao longo do dia, mas nós estávamos com o número errado.

    – Nós?

    Rebekkah se deteve antes de perguntar por Byron. Estava apta a lidar com uma crise sem tê-lo por perto. Ele já não estava mais ao seu lado havia muitos anos, e ela vinha se virando muito bem. Mentirosa. Sentiu certo entorpecimento, uma necessidade de chorar, de gritar, um sofrimento engasgado que ainda não podia expressar. Ouviu as mesmas perguntas sussurradas que fazia para si mesma quando Ella morreu. Como pôde não me contar? Por que não me chamou, não foi atrás de mim? Por que eu não estava lá?

    – Rebekkah?

    – Estou aqui. Desculpe... Eu só...

    – Eu sei – respondeu William, fazendo uma pausa. – Maylene precisa ser enterrada dentro das próximas trinta e seis horas. Você tem que voltar para casa esta noite. Agora.

    – Eu... ela...

    Na verdade, não havia palavras. Rebekkah ficava desconcertada diante da tendência, em Claysville, de se adotarem procedimentos biossustentáveis para os enterros, que consistiam em não embalsamar os corpos. Não queria que a avó retornasse à terra: queria que ela estivesse viva.

    Maylene está morta.

    Assim como Ella.

    Assim como Jimmy.

    Rebekkah segurava o telefone com tanta força que as extremidades do aparelho marcaram a sua mão.

    – Ninguém me ligou... o hospital... ninguém me avisou nada. Eu estaria lá se tivessem me ligado.

    – Estou ligando agora. Você precisa vir imediatamente.

    – Não consigo chegar aí tão rápido assim. O velório... não vai ser possível chegar hoje.

    – O enterro é amanhã. Pegue um voo noturno.

    Ela começou a pensar no que precisaria fazer. Apanhar o cesto de Querubim. O lixo. Esvaziar o lixo. Regar a hera. Tenho alguma roupa adequada para vestir? Havia uma série de tarefas a executar. Precisava se concentrar nisso. Nas tarefas. Ligar para a companhia aérea.

    – Obrigada. Por tomar conta dela, quero dizer. Fico grata... grata não... – interrompeu ela. – Na verdade, preferia que você não tivesse ligado, mas isso não a traria de volta, traria?

    – Não – respondeu ele, suavemente.

    A morte de Maylene soava naquele instante como algo monumental, como se houvesse pedras nos pulmões de Rebekkah, tornando difícil qualquer movimento, sequestrando o espaço destinado ao ar.

    – Ela já estava doente havia muito tempo? Eu não sabia. Passamos o Natal juntas, mas ela nunca comentou nada. Parecia bem. Se eu soubesse... eu... eu... estaria lá. Não tinha a menor ideia até você ligar.

    Depois de uma longa pausa, William disse:

    – Entre em contato com a companhia aérea, Rebekkah, marque um voo o quanto antes. As perguntas podem esperar.

    3

    William largou o telefone sobre a escrivaninha, empurrando-o para longe.

    – Ela está a caminho. Você podia ter ligado para ela. Provavelmente devia ter ligado.

    – Não – respondeu Byron.

    Sentado ao lado da escrivaninha do pai, ele olhava a página com os números riscados de Rebekkah. Alguns estavam com a caligrafia de Maylene e outros com a da própria Rebekkah. Ela estava ainda pior do que ele. Isso não significa que preciso ir correndo ficar ao seu lado. Não agiria com crueldade – nem conseguiria –, mas também não correria atrás dela, à espera de outro pé na bunda.

    – Julia

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