Uma verdade indigesta: como a indústria alimentícia manipula a ciência do que comemos
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Sobre este e-book
Na atual conjuntura de concentração de poder entre os atores que controlam os sistemas alimentares da produção ao consumo, o que comemos e o que sabemos ou acreditamos saber sobre o ato de comer é fortemente determinado pelas relações de poder na sociedade. A pressão pela maximização do lucro a qualquer preço tem uma série de efeitos colaterais com sérios impactos na nossa saúde, seja do ponto de vista do efeito no nosso organismo, seja nos impactos ambientais.
Criar produtos comestíveis com ingredientes baratos, cheios de aditivos, aromatizantes, estabilizantes, espessantes, corantes, com pitadas de nutrientes para que possam ser vendidos como saudáveis, é uma das especialidades da indústria de alimentos ultraprocessados. O livro expõe essas mesmas empresas patrocinando "estudos" de produtos específicos que deveriam ser rotulados como marketing — e não como ciência.
Nenhum de nós está a salvo ou impermeável às alegações nutricionais amplamente promovidas, diretamente nos rótulos, onde são permitidas, ou por meio da disseminação de pesquisas que contribuem mais para confundir as recomendações alimentares do que para informar. O exemplo clássico é o do ovo, que de vilão da vez passou a mocinho, assim como sal, açúcar, e por aí vai.
Por muitos anos acreditei que o problema crônico de intestino preso, comum a muitas mulheres, pudesse ser solucionado tomando um determinado iogurte diariamente e, caso não funcionasse, como prometia a propaganda, poderia pedir o dinheiro de volta. Esse é apenas um, dentre inúmeros exemplos da confusão nutricional em que estamos imersos.
— Paula Johns, diretora-presidente da ACT Promoção da Saúde, no prefácio
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Pré-visualização do livro
Uma verdade indigesta - Marion Nestle
EDITORA ELEFANTE
Coordenação
JOÃO PERES
MORITI NETO
Conselho editorial
BIANCA OLIVEIRA
JOÃO PERES
LEONARDO GARZARO
TADEU BREDA
Tradução
HELOISA MENZEN
Edição
TADEU BREDA
Cotejo da tradução
JOÃO PERES
Preparação
LIVIA AZEVEDO LIMA
Revisão
MORITI NETO
Capa & diagramação
ANA LOBO
Direção de arte
BIANCA OLIVEIRA
Para Charles, Rebecca e Mal, é claro
Apresentação
PAULA JOHNS
INTRODUÇÃO
Indústria alimentícia e nutrição
1. Uma história para ter cautela
PSICOLOGIA DOS PRESENTES
ATUANDO EM COMITÊS
INFLUENCIANDO A PESQUISA
GERENCIANDO A INFLUÊNCIA DA INDÚSTRIA FARMACÊUTICA
2. A complexidade da nutrição em benefício da confusão
NUTRIÇÃO E CIÊNCIA DOS ALIMENTOS
A PESQUISA EM NUTRIÇÃO É DISPENDIOSA
OS EFEITOS DO FINANCIAMENTO SÃO COMPLICADOS
3. Doce vida: açúcar e doces como alimentos saudáveis
PESQUISA FINANCIADA PELA INDÚSTRIA DE MEL
PESQUISA FINANCIADA PELA INDÚSTRIA DE DOCES
PESQUISA FINANCIADA PELA INDÚSTRIA DE CHOCOLATE
4. Venda de carne e laticínios
PESQUISA SOBRE CARNE FINANCIADA POR CHECKOFFS
PESQUISA SOBRE LATICÍNIOS FINANCIADA POR CHECKOFF
ESCÂNDALO DO LEITE COM CHOCOLATE
5. Marketing não é ciência
A SUPERFRUTA RICA EM NUTRIENTES
NOZ-PECÃ, TÃO BOA QUANTO OUTRAS NOZES
UM SUCO DE ROMÃ MARAVILHOSO
USO DA CIÊNCIA PARA COMERCIALIZAÇÃO DE ALIMENTOS SAUDÁVEIS
6. Coca-Cola, um estudo de caso
ESFORÇOS DE RECRUTAMENTO
FINANCIAMENTO À PESQUISA DA COCA-COLA
7. Comitês conflitantes: antes e agora
A CIÊNCIA NÃO RIGOROSA DO COMITÊ CONSULTIVO
RECOMENDAÇÕES QUANTO AO COLESTEROL
CRÍTICA DA INDÚSTRIA: ORIENTAÇÕES SOBRE O AÇÚCAR NÃO SÃO BASEADAS NA CIÊNCIA
8. Cooptado?
ESCOLHAS INTELIGENTES
PROMOÇÃO DE ALIMENTOS PROCESSADOS
OPOSIÇÃO A AÇÚCARES ADICIONADOS
NOS RÓTULOS DE ALIMENTOS
DEFESA DO NATURAL
PROMOÇÃO DO PATROCÍNIO DA INDÚSTRIA ALIMENTÍCIA
IMPLICAÇÕES INTERNACIONAIS
9. Soluções frágeis
PRIMEIRAS LUTAS
LUTAS ATUAIS
10. Justificativas, fundamentos e desculpas — todos estão em conflito?
A CARTELA DE BINGO DO CONFLITO DE INTERESSES
VIESES NÃO FINANCEIROS
11. Divulgação e descontentamento
POLÍTICAS DE DIVULGAÇÃO
DESCONTENTAMENTO COM A DIVULGAÇÃO
DESCONTENTAMENTO COM A LEI DE LIBERDADE DE INFORMAÇÃO
12. Gerenciamento de conflitos
FUNDAÇÃO NUTRIÇÃO: 1942 A 1985
A ERA FRED STARE
POLÍTICAS DE DIVULGAÇÃO
13. Além de divulgar, o que fazer?
14. É hora de agir
EMPRESAS ALIMENTÍCIAS DEVEM FINANCIAR PESQUISAS NUTRICIONAIS?
O FINANCIAMENTO DA INDÚSTRIA DEVE SER ACEITO?
O QUE AS UNIVERSIDADES E OS PERIÓDICOS NUTRICIONAIS DEVEM FAZER PARA PROTEGER A INTEGRIDADE CIENTÍFICA?
COMO VOCÊ DEVE LIDAR COM ESSE ASSUNTO?
Agradecimentos
POSFÁCIO
Uma verdade indigesta à brasileira
SINTA O SABOR
TUDO DOMINADO
RÓTULOS CLAROS
A ESCOLHA É SUA
ULTRA-ATAQUE
INCOMPREENSÃO
HÁ SAÍDAS
Notas
Sobre a autora
APRESENTAÇÃO
Falar de alimentação é falar de cultura, meio ambiente, relações de poder, sustentabilidade, afeto, prazer, tradição, além do aspecto mais óbvio: o impacto daquilo que comemos na nossa saúde. Marion Nestle reúne, em Uma verdade indigesta, elementos fundamentais que desfazem a aparente confusão sobre o tema. Ao trazer essa discussão para o Brasil, certamente teremos um debate mais rico para separarmos o joio do trigo.
Na atual conjuntura de concentração de poder entre os atores que controlam os sistemas alimentares — da produção ao consumo —, o que comemos e o que sabemos ou acreditamos saber sobre o ato de comer é fortemente determinado pelas relações de poder na sociedade. A pressão pela maximização do lucro a qualquer preço tem uma série de efeitos colaterais, com graves impactos na nossa saúde no meio ambiente.
Criar produtos comestíveis com ingredientes baratos, cheios de aromatizantes, estabilizantes, espessantes e corantes, com pitadas de nutrientes para que possam ser vendidos como saudáveis, é uma das especialidades da indústria de alimentos ultraprocessados. Como mostra este livro, essas mesmas empresas patrocinam e depois divulgam os resultados de estudos
sobre seus produtos, em manobras que deveriam ser rotuladas como marketing — e não como ciência.
Nenhum de nós é impermeável às alegações nutricionais amplamente promovidas nos rótulos, graças à permissividade da legislação, ou por meio da disseminação de pesquisas que, ao invés de informar sobre as recomendações alimentares, contribuem para confundi-las. O caso clássico é o do ovo, que de vilão do colesterol passou a mocinho.
Por muitos anos acreditei que o problema crônico de intestino preso, comum a muitas mulheres, pudesse ser solucionado tomando diariamente uma determinada marca de iogurte. Caso não funcionasse, podia-se pedir o dinheiro de volta, como prometia a propaganda. Esse é apenas um dentre os inúmeros exemplos da confusão nutricional em que estamos imersos.
O primeiro passo para começar a desfazer essa confusão é reconhecer que existe um problema na forma como as indústrias alimentícias utilizam pesquisas e pesquisadores para promover seus produtos. Uma verdade indigesta dá uma contribuição definitiva para a conclusão dessa etapa.
O conflito de interesses tem uma relevância crescente, não só na cobertura da área de alimentação e nutrição no Brasil, mas também nos fóruns regionais e globais de doenças crônicas e saúde. As comparações entre as táticas da indústria do tabaco e de alguns segmentos da indústria de alimentos, em especial de ultraprocessados e agrotóxicos, são muito comuns. Os cientistas, relações públicas e outros profissionais incumbidos de semear dúvidas sobre a nocividade dessa categoria de produtos são, em alguns casos, os mesmos que em outras épocas serviram aos propósitos das fabricantes de cigarros.
Como veremos no epílogo deste livro, escrito pelos jornalistas João Peres e Moriti Neto, são muitas as similaridades entre o que acontece no Brasil e os casos relatados por Marion Nestle neste livro, ocorridos majoritariamente nos Estados Unidos. Não se trata de mera coincidência
: os episódios envolvem empresas e pesquisadores com nome e endereço fixo. Está tudo interligado. Afinal, estamos falando das mesmas corporações.
A boa notícia, pelo menos em algumas bolhas, é que a comida de verdade
vem ganhando um protagonismo inegável. Cada vez mais pessoas reconhecem que bom mesmo é comer comida, frutas, legumes, verduras, grãos. Uma verdade indigesta traz dicas valiosas para todos aqueles interessados em alimentação saudável, tanto do ponto de vista de escolha individual, quanto de análise acadêmica, para identificar o que é ciência e o que é marketing.
O livro é também um convite à cidadania num contexto em que o poder das corporações é cada vez mais preponderante e coloca a democracia em risco. Precisamos de cidadãos conscientes, informados e atuantes. Por meio de cobranças e críticas a governos e empresas, podemos contribuir para nivelar o campo de ação e reduzir assimetrias na influência sobre políticas públicas e legislações.
No Brasil, a Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável está alinhada a essas ideias. Criada em 2016, reúne organizações da sociedade civil de interesse público, profissionais, associações e movimentos sociais com objetivo de desenvolver e fortalecer ações coletivas que contribuam com a realização do Direito Humano à Alimentação Adequada por meio de políticas públicas para a garantia da segurança alimentar e nutricional e da soberania alimentar no Brasil.
Organizamos nossa agenda de atuação em torno de dez temas. O trabalho de Marion Nestle, de certa forma, perpassa todos esses princípios, mas, em particular, o de monitorar e expor práticas e políticas que estimulem condutas alimentares nocivas à saúde
. Assim, este livro pode ser lido como uma chamada para ação e para o advocacy — e, portanto, está totalmente sintonizado com nossas atividades como instituição defensora do bem público e de uma sociedade mais saudável, justa e sustentável. Acreditamos que ambientes saudáveis promovem escolhas saudáveis.
Em síntese, Uma verdade indigesta ajuda o leitor a entender por que comer é um ato político.
PAULA JOHNS
Diretora-presidente da ACT Promoção da Saúde
Março de 2019
INTRODUÇÃO
Indústria alimentícia
e nutrição
Eu amo a ciência da nutrição. Em meu primeiro trabalho como professora, dei aulas sobre isso. Fiquei apaixonada. Até hoje, adoro o desafio intelectual de descobrir o que comemos, por que comemos o que comemos e como as dietas afetam a nossa saúde.
Não é fácil estudar essas questões em todos os contextos — genética, formação cultural, estilo de vida, renda e educação — que influenciam nosso bem-estar. Também tenho um fascínio infinito pela maneira como as escolhas alimentares se relacionam com muitos dos problemas mais desafiadores da sociedade, entre os quais a saúde é apenas o mais óbvio. O que comemos está relacionado com pobreza, desigualdade, raça, classe, imigração, conflitos sociais e políticos, degradação ambiental, mudanças climáticas e muito mais. O alimento é uma lente através da qual podemos examinar todas essas preocupações.
Eu amo a complexidade das questões alimentícias e a paixão com a qual as pessoas tratam delas. Não amo, porém, o modo como a indústria alimentícia acrescentou a essa complexidade uma complicação desnecessária: o envolvimento dos profissionais de nutrição em metas de marketing muitas vezes contrárias aos interesses da saúde pública.
Uma verdade indigesta se dedica a compreender como empresas de alimentos, bebidas e suplementos financiam pesquisadores e profissionais de nutrição, e como isso se associa com o objetivo final do lucro. O livro surge em um momento em que os escândalos criados por esse tipo de financiamento são notícia de primeira página. Cito um exemplo inesperado — e altamente surreal — de por que os assuntos tratados aqui devem ser importantes para todos nós.
Durante a particularmente controversa disputa presidencial de 2016 nos Estados Unidos, hackers russos roubaram valiosas mensagens eletrônicas de funcionários do Partido Democrata e as publicaram no site WikiLeaks. Roubaram também e-mails de pessoas que trabalhavam na campanha de Hillary Clinton e as publicaram em outro site — DC Leaks. Esse nível maquiavélico de intriga internacional deveria estar a anos-luz de distância do financiamento da indústria alimentícia a profissionais de nutrição, exceto por uma coincidência verdadeiramente bizarra: os dados armazenados no DC Leaks incluíam mensagens trocadas entre uma conselheira da campanha do ex-presidente Bill Clinton, Capricia Marshall, e Michael Goltzman, vice-presidente da Coca-Cola. Enquanto trabalhava com Clinton, Marshall também fazia consultoria para a multinacional, cobrando sete mil dólares por mês.¹
Os e-mails da Coca-Cola podem ter sido um efeito colateral da interferência russa nas eleições norte-americanas, mas, para mim, foram um presente. As mensagens tocam nos principais temas deste livro — e, não menos importante, expõem meu nome. Os e-mails revelados incluíam uma mensagem de janeiro de 2016 do diretor de uma agência australiana que fazia relações públicas para a empresa. O texto trazia anotações de uma palestra que eu havia acabado de dar na Austrália. Na época, eu era pesquisadora visitante na Universidade de Sydney, ligada ao grupo da professora Lisa Bero, cujos estudos sobre a influência corporativa na pesquisa científica aparecem com frequência neste livro. As anotações sobre minha palestra — muito bem-feitas, na verdade — citam alguns dos participantes da conferência, analisam o conteúdo apresentado e aconselham a Coca-Cola a monitorar futuras comunicações, pesquisas e presença nas mídias sociais, além de acompanhar o trabalho de Lisa Bero.²
Lembro-me vagamente de que alguém me disse que um representante da Coca-Cola estivera em minha palestra, mas, na época, não parei para pensar nisso. Meu livro de 2015 sobre a indústria de refrigerantes — Soda Politics: Taking on Big Soda (and Winning) [Políticas do refrigerante: desafiando os grandes fabricantes (e vencendo)] — tinha acabado de ser publicado, e presumi que alguém da indústria estaria na plateia em todas as minhas palestras. Os e-mails revelados pelo DC Leaks demonstram o grande interesse da Coca-Cola nas atividades de indivíduos de qualquer lugar do mundo que possam questionar os efeitos de seus produtos sobre a saúde, além das pressões da empresa sobre jornalistas que escrevem sobre o assunto.
Em 2015, a repórter da agência Associated Press (AP) Candice Choi investigava o recrutamento de especialistas em dietas pela Coca-Cola para promover os refrigerantes nas redes sociais. A equipe de relações públicas da empresa havia trabalhado durante anos com esses profissionais para fazê-los divulgar conteúdo patrocinado
que anunciasse como nossas bebidas podem se encaixar em uma dieta saudável e balanceada
. Como esperavam que o artigo de Choi tivesse uma perspectiva negativa e cínica
, os funcionários da companhia procuraram os editores da AP para registrar formalmente preocupações acerca da matéria
em que a repórter estava trabalhando, prometendo continuar a incentivá-los a não divulgar
suas descobertas. Nesse caso, as pressões não funcionaram. A reportagem descreveu como as empresas alimentícias trabalhavam nos bastidores para apresentar seus produtos de forma positiva, muitas vezes com ajuda de terceiros, vistos como autoridades confiáveis
. Candice Choi publicou a alegação de um porta-voz da Coca-Cola sobre aquela estratégia: temos uma rede de especialistas em dietética com os quais trabalhamos. Toda grande marca trabalha com blogueiros ou pessoas pagas
.³ Graças aos e-mails, agora sabemos como esse sistema funciona.
As mensagens mostram como a Coca-Cola influencia os repórteres que escrevem sobre esses tópicos. A equipe da corporação se relacionava com Mike Esterl, repórter do The Wall Street Journal. Havia uma pesquisa que demonstrava os benefícios dos impostos sobre refrigerantes, e a ideia era ter certeza de que Mike entendeu a fonte do estudo, e que este ainda não havia sido publicado ou avaliado por um grupo de especialistas da área
.⁴ Outra mensagem dizia: para sua informação, por favor, note que temos envolvido a repórter da AP Candice Choi nesse assunto desde abril, e tem havido numerosos compromissos — verbais e escritos
.⁵
O mesmo e-mail também se refere ao relacionamento confortável entre a então diretora científica da Coca-Cola, Rhona Applebaum — guarde esse nome —, e os cientistas que realizavam pesquisas acadêmicas financiadas pela empresa. A equipe da Coca-Cola escreveu que sabia que a reportagem de Choi incluiria uma troca de e-mails na qual Applebaum se referia com frequência ao grupo de cientistas como Cartel
e aos críticos como "trolls. O texto levantou dois pontos: a pesquisa financiada pela indústria normalmente promove os interesses do patrocinador; e alguns pesquisadores ganham a vida com trabalhos financiados por corporações alimentícias e associações empresariais. Choi apontou que um desses grupos
transmitiu regularmente conclusões favoráveis para os financiadores — ou clientes
, como esses cientistas preferem chamá-los.⁶
Outras mensagens se referiam ao lobby da companhia para influenciar a conduta de nutricionistas. A equipe de relações públicas se preocupou com a possibilidade de que o comitê acadêmico responsável por revisar as evidências científicas usadas no Guia Alimentar dos Estados Unidos de 2015 propusesse eliminar as bebidas com açúcar das escolas, taxá-las e restringir a publicidade de alimentos e bebidas com alto nível de sódio ou adição de açúcares
para todos os segmentos da população. Com isso, a equipe sugeriu que a empresa deve estar preparada para que este relatório seja frequentemente citado por ativistas
e deve trabalhar em conjunto para equilibrar a cobertura
.⁷ Posteriormente, o diretor de Relações Governamentais da Coca-Cola assegurou aos colegas que havia trabalhado em estreita colaboração com o Congresso e as agências federais para garantir que a recomendação política acerca de um imposto sobre refrigerantes não fosse incluída nas diretrizes finais
. Esses esforços foram bem-sucedidos: a palavra imposto
não aparece em nenhuma parte do documento.
Os e-mails revelados pelo DC Leaks oferecem um vislumbre precioso de como a empresa de bebidas tentou influenciar nutricionistas, pesquisas nutricionais, jornalistas que cobrem a área e recomendações dietéticas. Quando podem, outras empresas alimentícias também fazem isso.⁸ A diferença é que a Coca-Cola foi flagrada em ação.
Não foi a primeira vez, e nisso está a gênese deste livro. Em agosto de 2015, enquanto Soda Politics estava na gráfica, o The New York Times publicou uma reportagem de primeira página sobre o fato de a empresa financiar pesquisadores universitários, que criaram um grupo chamado Global Energy Balance Network [Rede Global de Balanço Energético] (GEBN). O propósito era convencer o público — contrariando muitas evidências — de que a atividade física é mais eficaz que a dieta como meio de controle do peso corporal.⁹ Como eu tinha sido citada naquela matéria, repórteres me ligaram em busca de comentários. Eles quase não acreditaram que uma empresa tão proeminente como a Coca-Cola tivesse financiado uma pesquisa escancaradamente voltada aos próprios interesses, que pesquisadores de universidades respeitadas tivessem aceitado recursos para tal ou que instituições acadêmicas tivessem permitido que o corpo docente o fizesse. Se os repórteres não tinham ideia de que essas práticas existiam, ficou claro, então, que eu devia escrever outro livro.
Na verdade, eu já estava pronta para isso. Produzi meu primeiro artigo sobre essas questões em 2001¹⁰ e, em agosto de 2015, estava no meio do que acabou sendo um projeto de um ano para coletar estudos financiados pela indústria que produziam resultados favoráveis aos interesses dos patrocinadores. Poucos meses antes, eu havia começado a publicar resumos dessas pesquisas no blog que mantenho desde 2007, FoodPolitics.com. Continuei a fazer postagens até março de 2016. Mencionarei os resultados desse exercício depois, mas, por ora, vamos a alguns exemplos, a começar pela Rede Global de Balanço Energético.
A Coca-Cola tinha financiado pesquisas sobre os efeitos da atividade física no balanço energético e na gordura corporal. Os cientistas relataram que as pessoas que participaram do estudo equilibraram a ingestão de calorias com apenas 7.116 passos por dia — uma quantidade possível para a maioria dos adultos
.¹¹ Esta pode parecer uma pesquisa básica sobre fisiologia do exercício, mas implica que a atividade física — e nem tanta assim — é tudo o que precisamos para controlar nosso peso, independentemente de quanta Coca-Cola tomemos.
A corporação não está sozinha no patrocínio de pesquisas de marketing disfarçadas de ciência básica. No final de 2017, o Journal of the American Heart Association publicou os resultados de um teste clínico que concluiu que a incorporação de chocolate amargo e amêndoas à nossa dieta pode reduzir o risco de doenças coronarianas.¹² Adoro isso. Você consegue adivinhar quem pagou por esse estudo? A Hershey Company, fabricante de chocolate, e a Almond Board, uma organização empresarial dos produtores de amêndoas da Califórnia. Eles também pagaram a sete dos nove autores por terem participado do teste — os outros dois eram funcionários da Hershey.
E se as descobertas desses estudos forem verdadeiras? E se exercício, chocolate e amêndoas forem bons para a saúde? O que há de errado em financiar pesquisas para provar isso? Essa é uma questão séria que merece uma resposta séria: este livro. Laços financeiros com empresas alimentícias não são necessariamente causa de corrupção. É possível que um pesquisador seja financiado por uma companhia e mantenha a independência e a integridade. O financiamento por empresas alimentícias, porém, costuma exercer influência indevida, e invariavelmente parece que é assim. Ou seja, uma simples insinuação de financiamento empresarial à pesquisa é suficiente para reduzir a confiança de alguns segmentos do público. Profissionais de nutrição reconheceram os riscos de aceitar patrocínio de empresas alimentícias há muito tempo, mas a maior parte deles tem considerado que os benefícios — dinheiro, recursos, contatos — superam os riscos. Do ponto de vista da indústria alimentícia, capturar
cientistas e profissionais de nutrição é uma estratégia bem estabelecida para influenciar as recomendações dietéticas e as políticas públicas.¹³
As empresas entendem que precisam dessas estratégias para sobreviver no mercado ferozmente competitivo de hoje. O fornecimento de alimentos nos Estados Unidos provê cerca de quatro mil calorias por dia per capita, incluindo desde bebês até lutadores de sumô. Isso é o dobro da necessidade média de uma pessoa. Wall Street, porém, espera que as corporações com ações na bolsa de valores façam mais do que obter lucros: espera que elas aumentem a remuneração do acionista a cada trimestre.¹⁴ A concorrência obriga as empresas alimentícias a se esforçarem para convencer os clientes a optar por seus produtos, a comer mais e a comprar produtos mais lucrativos. Os mais lucrativos, de longe, são os alimentos e as bebidas ultraprocessados¹⁵ — junk food, em inglês —, que são ricos em calorias, mas têm baixo valor nutricional. Recorrer a profissionais de nutrição para declarar a inocuidade desses produtos faz sentido para os negócios. Então, finalmente essas empresas passam a promover alimentos supostamente mais saudáveis: os superalimentos
— termo de marketing sem significado nutricional.
Como professora de nutrição, todos os dias lido com a perplexidade das pessoas acerca das escolhas alimentares. Em 2006, escrevi What to Eat [O que comer] na esperança de reduzir parte da confusão e incentivar os leitores a desfrutar a comida — um dos maiores prazeres da vida. Ao final, a recomendação dietética básica é tão constante e simples que o jornalista Michael Pollan a resumiu em poucas palavras: coma comida, não demais, principalmente verduras
.¹⁶ Infelizmente, porém, recomendações como essa não vendem produtos alimentícios. A influência de profissionais de nutrição, sim.
Muito do que sabemos sobre a influência corporativa na ciência vem de estudos sobre as indústrias de tabaco, química e farmacêutica. O exemplo mais relevante, no nosso caso, diz respeito à maneira como as farmacêuticas induzem os médicos a prescrever medicamentos mais caros — e às vezes desnecessários — e encomendam pesquisas para demonstrar que suas drogas são mais seguras e mais eficazes que genéricos ou concorrentes. Décadas atrás, médicos reconheceram os efeitos negativos criados pela ação da indústria, registraram as distorções e deram passos para combatê-las. Publicações médicas exigiram que os autores divulgassem laços financeiros com farmacêuticas que pudessem lucrar com os resultados de seus estudos. Em 2010, o Congresso dos Estados Unidos exigiu que as farmacêuticas divulgassem pagamentos a médicos. Nada próximo a esse nível de preocupação, escrutínio ou ação, porém, se aplica aos esforços das empresas alimentícias em acionar profissionais de nutrição.¹⁷
Talvez porque as práticas dessa indústria sejam mais difíceis de mensurar, os profissionais de nutrição têm falhado em reconhecer e em lidar com os riscos à própria reputação advindos de tais parcerias. A pesquisa nessa área é relativamente nova, mas os poucos estudos publicados sugerem paralelos próximos aos efeitos da indústria farmacêutica. Trata-se de um problema tanto sistêmico quanto pessoal.¹⁸ As empresas de ultraprocessados também distorcem pesquisas com o objetivo de colocar em foco questões úteis para o desenvolvimento de produtos e para o marketing; influenciam pesquisadores a enfatizar resultados equivocados; e encorajam profissionais de nutrição a oferecer opiniões laudatórias sobre patrocinadores e produtos — ou a permanecer em silêncio acerca dos efeitos desfavoráveis. Quando esses profissionais colaboram com empresas alimentícias, portanto, podem parecer mais interessados em marketing do que em saúde pública.
Deixo claro que não é fácil falar sobre essas questões. Uma razão para isso é que os efeitos do financiamento da indústria parecem ocorrer em um nível inconsciente, tão abaixo do radar do raciocínio que sua influência não é reconhecida. Além disso, a revelação dos relacionamentos financeiros com as empresas alimentícias é tão constrangedora que ninguém quer falar sobre isso. Minha própria situação ilustra essas dificuldades.
Como deve estar evidente, além de escrever sobre essa história, estou inserida nela e tenho minhas questões — profissionais e pessoais — ao lidar com as empresas alimentícias. No lado profissional, trabalho com colegas que aceitam esse tipo de financiamento e ficam ressentidos com a menor sugestão de que isso pode influenciar a pesquisa. Editores de revistas são cautelosos para publicar artigos sobre conflitos induzidos pela indústria. Ao escrever sobre esses tópicos, enfrentei minha própria parcela de dificuldades para publicá-los: várias rodadas de revisão pelos meus pares, rejeição de comentários que havia sido convidada a enviar e, em um caso especialmente doloroso, uma obrigação de retratação.¹⁹
Eu mesma não consigo evitar me envolver com empresas de alimentos, bebidas e suplementos. Elas me enviam amostras de produtos. Patrocinam as reuniões que frequento, as sociedades a que pertenço e as publicações que leio. Entregam informativos, livros, releases, materiais pedagógicos, pequenos presentes (canetas, brinquedos, lanternas e pen-drives) e grandes presentes (você acreditaria em um saco de pancadas com o formato de uma lata de refrigerante?). De vez em quando, forneço consultoria a empresas alimentícias, respondo às suas perguntas e falo em reuniões que elas patrocinam. Como expliquei no livro Food Politics [Políticas alimentares], essas interações são comuns entre os nutricionistas acadêmicos. Incomum é questioná-las.
Como professora de nutrição, preciso saber o que as empresas alimentícias estão fazendo. Interagir é um aprendizado, embora, às vezes, constrangedor. Eu estava escrevendo este livro quando Daniel Lubetzky, carismático proprietário da empresa de frutas e nozes KIND, pediu-me para ajudá-lo a selecionar o conselho da sua nova fundação sem fins lucrativos, a Feed the Truth [Alimente a verdade]. Ele havia prometido 25 milhões de dólares ao longo de dez anos para a organização, que tinha por objetivo melhorar a saúde pública, fazendo da verdade, da transparência e da integridade os principais valores do atual sistema alimentar
.²⁰ Para isso, patrocinaria pesquisas científicas e programas de educação para expor os esforços das empresas alimentícias em distorcer estudos e ir contra a saúde pública. Eu não poderia recusar.
Sempre atenta, a repórter Candice Choi, da AP, escreveu a respeito. Ela registrou minha explicação, dizendo que Marion Nestle normalmente, mantém a indústria à distância, mas achou Lubetzky ‘muito persuasivo’ e sentiu que a Feed the Truth poderia aumentar a conscientização sobre a influência corporativa na pesquisa nutricional
.²¹ O artigo de Choi também apontou que a organização tinha pagado minhas despesas de viagem para uma reunião em Washington. Choi merece todo o crédito por apurar os pagamentos recebidos, mas, particularmente, não me agradou ter esse reembolso divulgado no The Washington Post.
Deixe-me contextualizar esse dinheiro. Ao longo dos anos, precisei desenvolver uma política de gestão para lidar com pagamentos e presentes de empresas alimentícias — o que posso e o que não posso aceitar — para minimizar a influência delas e para permanecer vigilante sobre a influência exercida de modo inconsciente. De acordo com essa política, aceito reembolso de despesas de viagem, hospedagem e refeições, mas, pessoalmente, não aceito honorários, taxas de consultoria ou quaisquer outros pagamentos diretos. Em vez disso, peço às empresas alimentícias que façam uma doação equivalente à Marion Nestle Food Studies Collection, na biblioteca da Universidade de Nova York, ou, agora que estou oficialmente aposentada, ao fundo de viagens estudantis do meu departamento. Quando os pagamentos são feitos a mim, endosso os cheques a uma ou ao outro (e declaro tudo no imposto de renda).
Como veremos, muitas evidências demonstram que o pagamento de viagens, hotéis, refeições, registros de reuniões e pequenos presentes são o suficiente para influenciar o resultado de pesquisas e a prática de prescrição de médicos.²² Não tenho motivos para pensar que eu seja particularmente imune à influência de pagamento para uma coleção de biblioteca ou para um fundo que beneficia minha reputação. Apesar de imperfeita, minha política exige que eu pense cuidadosamente sobre cada interação com uma empresa alimentícia que envolva pagamentos ou benefícios.
Mais um exemplo: em 2017, fui convidada para falar em um simpósio na Suíça organizado pela Nestlé (com a qual não tenho parentesco), empresa há muito acusada de evadir-se ou violar os códigos éticos de comercialização de substitutos do leite materno e papinhas.²³ Aceitei porque estava curiosa para saber mais sobre o empreendimento científico da empresa, e queria uma oportunidade de compartilhar minhas opiniões com uma audiência à qual normalmente não tenho acesso. Críticos das ações da Nestlé, porém, avaliaram os riscos de eu ser usada pela empresa, entenderam que os prejuízos à minha reputação seriam muito grandes e me pediram para recusar o convite. A política que instituí me forçou a pensar muito sobre as possíveis consequências da escolha de falar naquele simpósio.
Estou ciente de que tenho a sorte de estar em uma posição que me permite manter tal política, tomar essas decisões e escrever livros sobre esses tópicos. Nunca dependi da concessão de fundos. Durante as três décadas que passei na Universidade de Nova York, fui privilegiada — acredite em mim, pois sei exatamente o quanto — com um cargo de professora titular que pagava todo o meu salário e fornecia bolsas de estudo, telefone, computador e biblioteca de primeira linha, tudo que preciso para o tipo de pesquisa que faço.
Ao escrever este livro, também enfrentei outra decisão difícil: o que não incluir nele. Para limitar o escopo, optei por enfatizar a influência da indústria alimentícia sobre o consumo — empresas que produzem alimentos e bebidas que as pessoas normalmente consomem. Ainda assim, decidi excluir várias categorias: bebidas alcoólicas, suplementos dietéticos e adoçantes artificiais. A similaridade da indústria do álcool com a indústria do tabaco na manipulação de pesquisas e políticas está consolidada.²⁴
Em Food Politics, escrevi bastante sobre a escassez de evidências quanto aos benefícios dos suplementos alimentares para quem tem uma dieta razoavelmente variada. Esse segmento financia muitos estudos que demonstram as vantagens para a saúde de se tomar um produto ou outro, mas pesquisadores independentes não chegam ao mesmo resultado