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Alegrias e tristezas de Martha Friel
Alegrias e tristezas de Martha Friel
Alegrias e tristezas de Martha Friel
E-book373 páginas8 horas

Alegrias e tristezas de Martha Friel

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Sobre este e-book

Todos dizem que Martha Friel é inteligente e bonita, uma escritora brilhante que sempre foi amada durante toda a sua vida adulta por um homem, o seu marido Patrick. Um presente que, segundo a sua mãe, nem todos têm.
Então, porque está tudo destruído? Porque é que Martha, prestes a fazer quarenta anos, não tem amigos, salta de um trabalho mau para outro e está sempre triste? E porque é que Patrick se foi embora?
Talvez seja demasiado sensível, alguém que acha, muito mais do que a maioria das pessoas, que viver é muito difícil. Ou, talvez (o que Martha sempre achou) algo não funcione dentro dela. Algo que explodiu no seu interior quando tinha dezassete anos e a mudou de tal forma que nenhum médico, terapia ou droga conseguiu explicar ou desfazer os seus males.
Obrigada a viver novamente com os seus pais, boémios e disfuncionais, no lar da sua infância num bairro londrino pitoresco, mas sem a ajuda inestimável e devota da sua irmã Ingrid, Martha tem uma última oportunidade: aceitar que a sua vida está demasiado destruída para a melhorar ou começar de novo e escrever um fim melhor para ela.
Um best seller internacional, um romance que se lê compulsivamente, agudo, intrigante, sombrio e enternecedor e que combina a perspicácia psicológica de Sally Rooney com o humor agudo de Nina Stibbe e a ressonância emotiva de Eleanor Oliphant.
«Surpreendentemente encantadora… Fá-lo-á rir-se às gargalhadas e ler frases inteiras em voz alta.»
—People
«Brilhante e extremamente divertido… Enquanto o lia, fiz uma lista das pessoas a quem o enviaria, até me aperceber de que o enviaria a todas as pessoas que conheço.»
Ann Patchett, autora de A casa holandesa
«Uma estreia incrivelmente divertida e devastadora, animada por uma energia aloucada e que, no entanto, consegue ser sensível e sincera.»
The Guardian
«Absolutamente brilhante, adorei. Acho que todas as raparigas e mulheres deviam lê-lo.»
Gillian Anderson
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de mai. de 2022
ISBN9788491397847
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    Pré-visualização do livro

    Alegrias e tristezas de Martha Friel - Meg Mason

    Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.

    Núñez de Balboa, 56

    28001 Madrid

    Alegrias e tristezas de Martha Friel

    Título original: Sorrow and Bliss

    © The Printed Page Pty Ltd 2020

    © 2022, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.

    Publicado em 2020 por HarperCollinsPublishers Australia Pty Limited, Australia, Level 13, 201

    Elizabeth Street, Sydney NSW 2000, ABN 36 009 913 517, harpercollins.com.au.

    Tradutor: Fátima Tomás da Silva

    Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

    Esta edição foi publicada com a autorização da HarperCollinsPublishers Australia Pty Limited.

    Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.

    Desenho da capa: Lookatcia

    1ª edição: Maio 2022

    ISBN: 978-84-9139-784-7

    Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

    Sumário

    Créditos

    Capítulo 1

    Capítulo 2

    Capítulo 3

    Capítulo 4

    Capítulo 5

    Capítulo 6

    Capítulo 7

    Capítulo 8

    Capítulo 9

    Capítulo 10

    Capítulo 11

    Capítulo 12

    Capítulo 13

    Capítulo 14

    Capítulo 15

    Capítulo 16

    Capítulo 17

    Capítulo 18

    Capítulo 19

    Capítulo 20

    Capítulo 21

    Capítulo 22

    Capítulo 23

    Capítulo 24

    Capítulo 25

    Capítulo 26

    Capítulo 27

    Capítulo 28

    Capítulo 29

    Capítulo 30

    Capítulo 31

    Capítulo 32

    Capítulo 33

    Capítulo 34

    Capítulo 35

    Capítulo 36

    Capítulo 37

    Capítulo 38

    Capítulo 39

    Capítulo 40

    Capítulo 41

    Textos citados

    Nota da autora

    Agradecimentos

    Para os meus pais e para o meu marido

    No copo-d’água de um casamento celebrado pouco depois do nosso, segui Patrick entre a multidão densa de convidados até chegarmos ao pé de uma mulher que estava sozinha.

    Patrick dissera-me que, em vez de olhar para ela de cinco em cinco minutos e sentir pena dela, o que tinha de fazer era aproximar-me e elogiar o seu chapéu.

    — Mesmo que não goste dele?

    — Claro, Martha. Nunca gostas de nada. Vá lá, vamos.

    A mulher aceitara um canapé de um empregado e estava a pô-lo na boca quando, no mesmo instante em que compreendia que era impossível comê-lo com uma só trinca, reparou em nós. Ao ver que nos aproximávamos, baixou o queixo para disfarçar que se esforçava para o engolir e, face ao fracasso, tirá-lo da boca sem largar o copo vazio e os guardanapinhos que tinha na outra mão. Embora Patrick se demorasse com as apresentações para lhe dar tempo para recuperar, a mulher respondeu a balbuciar qualquer coisa que não conseguimos entender. Como parecia envergonhada, comecei a falar como se me tivesse concedido um minuto inteiro para discursar sobre o tema dos chapéus femininos.

    A mulher assentiu várias vezes com a cabeça e, depois, assim que foi capaz, perguntou-nos onde vivíamos e o que fazíamos e, se acertava em relação a estarmos casados, há quanto tempo estávamos juntos e como nos tínhamos conhecido; com tantas e tão rápidas perguntas, tencionava desviar a atenção da coisa meio comida que repousava agora na palma da sua mão num guardanapo gorduroso. Enquanto eu respondia, procurou dissimuladamente algum lugar onde a depositar. Assim que acabei de falar, disse que não entendia a que me referia com, na verdade, Patrick e eu «não nos termos conhecido», mas ele «sempre ter estado presente».

    Virei-me para olhar para o meu marido, que estava a tentar tirar um objeto invisível do seu copo com um dedo e, dirigindo-me novamente à mulher, disse-lhe que Patrick era um pouco como esse sofá que sempre houve na casa quando era pequena.

    — Presumíamos a sua existência. Nunca nos questionávamos de onde tinha saído porque não me lembrava da casa sem ele. Mesmo agora, se é que continua lá, ninguém dedica meio segundo a pensar nele. Embora pense — continuei, já que a mulher não dizia nada —, que, se insistissem, seria capaz de enumerar todas e cada uma das suas imperfeições. E a que se devem.

    Patrick disse que, infelizmente, era verdade.

    — Sem lugar para dúvidas, a Martha poderia fazer um inventário de todos os meus defeitos.

    A mulher riu-se e, em seguida, deu uma olhadela à mala que tinha pendurada no braço com uma tira fina, como se ponderasse as suas possíveis virtudes como recetáculo.

    — Bom, quem quer outra bebida? — Patrick apontou para mim com os dois dedos indicadores e apertou uns gatilhos invisíveis com os polegares. — Martha, sei que não vais dizer que não. — Apontou para o copo da mulher, que deixou que o agarrasse, e acrescentou, depois de uma pausa breve: — Quer que também leve isso?

    A mulher sorriu com ar de estar prestes a chorar enquanto Patrick se encarregava do canapé.

    Quando se foi embora, a mulher disse:

    — Deves sentir-te muito sortuda, com um marido assim.

    Assenti e pensei em explicar os inconvenientes de estar casada com alguém de quem todos gostam, mas, no fim, perguntei-lhe onde comprara aquele chapéu tão incrível e esperei que Patrick voltasse.

    A partir de então, a história do sofá foi a nossa resposta habitual cada vez que alguém nos perguntava como nos tínhamos conhecido. Repetimo-la durante oito anos, com poucas variantes. As pessoas riam-se sempre.

    Há um GIF chamado «O príncipe William pergunta a Kate se quer outra bebida.» A minha irmã enviou-mo uma vez, acrescentando: «Estou a morrer a rir!!». Estão os dois numa espécie de receção. William usa um smoking. Acena a Kate da outra ponta da sala, finge que inclina um copo e aponta para ela com um dedo. «Olha como aponta… É o Patrick, literalmente!!», escreveu a minha irmã.

    Respondi: «É o Patrick, mas figuradamente».

    Enviou-me um emoticon a revirar os olhos, uma taça de champanhe e o dedo que aponta.

    No dia em que regressei a casa dos meus pais, voltei a encontrá-lo. Já o vi cinco mil vezes.

    A minha irmã chama-se Ingrid. É quinze meses mais nova do que eu e está casada com um homem que conheceu quando caiu à frente da sua casa no preciso instante em que ele estava a deitar o lixo fora. Está grávida do seu quarto filho. Na mensagem que me enviou para me anunciar que era outro rapaz, usou os emoticons da beringela, das cerejas e da tesoura aberta e escreveu: «Para o caso de não ficar claro, significa que o Hamish vai fazer uma vasectomia».

    Quando éramos pequenas, as pessoas pensavam que éramos gémeas. Tínhamos muita vontade de nos vestir da mesma forma, mas a nossa mãe não nos deixava. Ingrid dizia: «Porque não?».

    — Porque pensarão que é ideia minha e… — dava uma olhadela à divisão em que estivéssemos nesse momento —, nada disto foi ideia minha.

    Mais tarde, quando estávamos nas garras da puberdade, a minha mãe disse que, visto que era evidente que Ingrid teria o corpo mais bonito, pelo menos, oxalá eu acabasse por ser o cérebro. Perguntámos-lhe qual das duas coisas era melhor. Disse-nos que o melhor era ter ambas as qualidades ou nenhuma, uma sem a outra era mortífera.

    A minha irmã e eu continuamos a ser muito parecidas. Ambas temos o queixo demasiado quadrado, mas, segundo a nossa mãe, por alguma razão, não fica mal. Ambas temos tendência a ter o cabelo desgrenhado; quase sempre o usamos comprido e, antes, tínhamo-lo do mesmo tom loiro. Na manhã do meu trigésimo nono aniversário, compreendi que não podia fazer nada para evitar os quarenta e, nessa mesma tarde, fui cortá-lo à altura do queixo — do meu queixo quadrado — e, ao voltar a casa, pintei-o com tinta do supermercado. Ingrid veio enquanto estava a meio da tarefa e aproveitou os restos. Mantê-lo era um esforço horroroso; Ingrid dizia que lhe teria custado menos ter outro filho e ponto final.

    Sei desde pequena que, embora nos pareçamos muito, as pessoas pensam que Ingrid é mais bonita do que eu. Uma vez, disse-o ao meu pai.

    — Talvez olhem para ela primeiro — disse. — Mas quererão olhar para ti durante mais tempo.

    No carro, a voltar da última festa a que Patrick e eu fomos juntos, disse:

    — Quando apontas para mim e finges que disparas, sinto vontade de te dar um tiro com uma pistola a sério.

    A voz saiu-me seca e antipática, pareceu-me odiosa… tanto como Patrick me pareceu quando disse: «Está bem, obrigado», sem um pingo de emoção.

    — Na cara, não. Mas um tiro de aviso no joelho ou em algum sítio que não te impedisse de continuar a trabalhar.

    Disse que se alegrava por saber e pôs a nossa morada no Google Maps.

    Recordei-lhe que vivíamos há sete anos na mesma casa de Oxford. Não disse nada e observei-o. Sentado ao volante, esperava calmamente que se abrisse um espaço no trânsito.

    — Agora, estás a fazer aquilo do queixo.

    — Eu sei, Martha. E se não falarmos até chegarmos a casa?

    Tirou o telemóvel do suporte e pô-lo silenciosamente no porta-luvas.

    Disse mais alguma coisa e, depois, inclinei-me e liguei o aquecimento no máximo. Assim que começou a aquecer, desliguei-o e abri a janela. Tinha uma camada de gelo e fez barulho.

    Costumávamos brincar e dizer que sou uma mulher de extremos enquanto ele ajusta a sua vida numa posição intermédia. Antes de sair, disse: «A luzinha cor de laranja continua acesa». Patrick disse-me que tencionava pôr óleo no dia seguinte, desligou o motor e entrou em casa sem esperar por mim.

    Arrendámos a casa temporariamente, no caso de a coisa não correr bem e querermos voltar a Londres. Patrick sugerira Oxford porque a universidade era lá e porque pensava que, em comparação com as outras cidades dos arredores de Londres, lá, poderia ser-me mais fácil fazer amigos. Prorrogámos o contrato de seis meses catorze vezes, como se, no momento menos esperado, tudo pudesse ficar destruído.

    O agente imobiliário disse-nos que era uma «casa exclusiva» numa «urbanização exclusiva» perfeita para executivos e, portanto, perfeita para nós… e nenhum de nós é um executivo: um é especialista em cuidados intensivos e, o outro, escreve uma coluna gastronómica de humor para a revista da cadeia de supermercados Waitrose e passou uma temporada a fazer buscas no Google com a frase «preço por noite numa clínica de saúde mental» enquanto o marido estava no trabalho.

    Em termos objetivos, a natureza exclusiva da casa consistia em grandes extensões de carpete castanha e imensas tomadas de tamanhos e formas fora do comum e, em termos subjetivos, numa sensação permanente de inquietação cada vez que ficava sozinha. A única divisão em que não me sentia como se houvesse alguém atrás de mim era um quartinho que havia no último andar, porque era pequeno e havia um plátano à frente da janela. No verão, tapava a vista das moradias exclusivas e idênticas da calçada da frente. No outono, as folhas secas entravam, sopradas pelo vento, e mitigavam a carpete. A minha sala de trabalho era no quartinho, por muito que, como tantas vezes ouvia da boca de pessoas que acabara de conhecer em festas e várias reuniões, escrever seja algo que posso fazer em qualquer lado.

    O editor da minha coluna gastronómica de humor enviava-me notas do tipo «não compreendo esta referência» e «reescrever, se for possível». Usava um programa de alterações e eu carregava em aceitar, aceitar, aceitar. Depois de tirar todas as piadas, ficava uma coluna gastronómica simples. Segundo o LinkedIn, o meu editor nascera em 1995.

    A festa a que tínhamos acabado de ir era pelo meu quadragésimo aniversário. Patrick organizara-a porque lhe dissera que não estava no meu melhor momento para celebrações.

    — Temos de atacar o dia — insistiu.

    — Não me digas…

    Uma vez, tínhamos ouvido um podcast no comboio, partilhando os auscultadores. Patrick fizera-me uma almofada com a sua camisola para que apoiasse a cabeça no seu ombro. Era um podcast do arcebispo de Canterbury emitido pelo programa Desert Island Discs da BBC. Contou que, há muito tempo, perdera a primeira filha num acidente de viação.

    Quando a locutora lhe perguntara como lidava com aquilo na atualidade, respondera que, no que se referia ao aniversário do acidente, ao Natal ou ao aniversário da filha, aprendera que o melhor era atacar o dia «para que não me ataque».

    Patrick tirou partido da ideia. Dizia-a sempre que podia. Repetiu-a enquanto engomava a camisa antes da festa. Eu estava deitada na cama a ver Bake Off no meu portátil, um episódio antigo que já tinha visto. Uma concorrente tira do frigorífico o bolo Alasca de outro e derrete-se dentro da forma. Apareceu na capa de todos os jornais: sabotadora na tenda de Bake Off.

    Ingrid mandou-me uma mensagem quando o emitiram. Disse que apostava que aquela sobremesa fora tirada de propósito. Disse-lhe que não tinha assim tanta certeza. Enviou-me todos os emoticons de bolos e de carros de patrulha.

    Quando acabou de engomar, Patrick aproximou-se e, sentado a alguma distância de mim na cama, ficou a observar-me enquanto eu continuava a ver o programa.

    — Temos de…

    Carreguei no botão de espaço.

    — Patrick, a sério, acho que, neste caso, não faz sentido citar o arcebispo seja lá quem for. É o meu aniversário, mais nada. Ninguém morreu.

    — Só tentava ser positivo.

    — Está bem.

    Voltei a carregar no botão.

    Um instante depois, disse-me que faltava um quarto de hora.

    — E se te preparasses? Gostaria que fôssemos os primeiros a chegar. Martha?

    Fechei o computador.

    — Posso ir com o que tenho vestido? — Leggings, um cardigã com estampado Fair Isle e não recordo o que mais por baixo. Olhei para ele e vi que o magoara. — Lamento, lamento muito, lamento muito. Vou mudar de roupa.

    Patrick alugara a parte de cima de um bar que costumávamos frequentar. Eu não queria que fôssemos os primeiros. Não sabia se devia esperar pelas pessoas sentada ou de pé, receava que ninguém aparecesse e sentia-me incomodada a pensar na pessoa que tivesse o azar de chegar primeiro. Sabia que a minha mãe não vinha porque pedira a Patrick para não a convidar.

    Vieram quarenta e quatro pessoas, todas elas acompanhadas. A partir dos trinta anos, é sempre um número par. Era novembro e estava um frio horrível. Os convidados demoraram um bom bocado a livrar-se dos seus casacos. Na sua maior parte, eram amigos de Patrick. Eu perdera o contacto com os meus, com os amigos da escola, da universidade e de todos os empregos por que passei depois disso; à medida que foram tendo filhos e eu não e os temas de conversa começaram a esgotar-se. A caminho da festa, Patrick disse-me que, se alguém começasse a falar sobre os filhos, talvez pudesse esforçar-me por fingir que me interessava.

    Ficaram ali parados e beberam negronis (2017 foi «o ano do negroni»), rindo-se às gargalhadas e improvisando discursos. De cada grupo, saía um orador, como se fosse o representante de uma equipa. Fui à casa de banho chorar.

    Ingrid disse-me que o medo dos aniversários se chama «gerascofobia». Era um facto divertido que lera na embalagem dos pensos higiénicos que, àquela altura, diz, são o seu principal estímulo intelectual e a única coisa que tem tempo de ler. No seu discurso, a minha irmã disse: «Todos sabemos que a Martha tem o dom de ouvir, sobretudo, se for ela que está a falar». Patrick trazia algumas coisas escritas nuns cartõezinhos.

    Não houve um momento concreto em que me transformei na esposa que sou, ainda que, se tivesse de escolher um, talvez fosse o instante em que atravessei a sala e pedi ao meu marido para não ler em voz alta o que quer que escrevera nos cartõezinhos.

    Um observador atento do meu casamento pensaria que não fiz nenhum esforço para ser uma boa esposa ou melhor. Ou, vendo-me naquela noite, pensaria que decidira ser assim e que o conseguira ao fim de muitos anos de perseverança. Não poderia saber que, durante quase toda a minha vida adulta e durante todo o meu casamento, me esforcei por me transformar no contrário de mim própria.

    Na manhã seguinte, disse a Patrick que lamentava muito o que acontecera. Fizera café e levara-o para a sala, mas, quando entrei, ainda não lhe tocara. Estava sentado num extremo do sofá. Sentei-me, dobrando as pernas por baixo do corpo, mas, ao olhar para ele, pareceu-me uma posição suplicante e voltei a pôr um pé no chão.

    — Não me porto assim de propósito. — Obriguei-me a pôr a mão por cima da dele. Era a primeira vez que lhe tocava de propósito em cinco meses. — Patrick, a sério, não consigo evitá-lo.

    — E, no entanto, não sei como, com a tua irmã, consegues ser um encanto.

    Afastou-me a mão e disse que ia comprar o jornal. Demorou cinco horas a voltar.

    Ainda tenho quarenta anos. Estamos no fim do inverno de 2018; já não é o ano do negroni. Patrick foi-se embora dois dias depois da festa.

    O meu pai é poeta. Chama-se Fergus Russell. O seu primeiro poema foi publicado no The New Yorker quando tinha dezanove anos. Era sobre um pássaro, da variedade em extinção. Alguém disse que era um Sylvia Plath masculino. Recebeu um adiantamento considerável para a publicação da sua primeira antologia. Supostamente, a minha mãe que, naquela época, era a sua namorada, disse: «Precisamos mesmo de um Sylvia Plath masculino?». Ela nega-o, mas está no guião da família e ninguém pode mudar nenhuma vírgula depois de ter sido escrito. Também foi o último poema que o meu pai publicou. Diz que a minha mãe lhe lançou mau olhado. Ela também nega isso. A antologia continua à espera de publicação. Não sei o que aconteceu ao dinheiro.

    A minha mãe é a escultora Celia Barry. Faz pássaros, pássaros descomunais e ameaçadores, a partir de materiais reciclados: dentes de ancinho, motores de eletrodomésticos, coisas da casa. Uma vez, numa das suas exposições, Patrick disse:

    — Sinceramente, penso que a tua mãe nunca encontrou nenhum resto de matéria física que não conseguisse reciclar.

    Não estava a ser maldoso. Em casa dos meus pais, há muito poucas coisas que façam o seu trabalho original.

    Quando era pequena, cada vez que a minha irmã e eu ouvíamos a minha mãe a dizer a alguém «sou escultora», Ingrid articulava silenciosamente o verso da canção de Elton John[1]. Eu começava a rir-me e ela continuava e continuava, fechando os olhos e cerrando os punhos contra o peito até não ter outro remédio senão sair da divisão. Nunca deixámos de achar piada.

    Segundo o The Times, a minha mãe tem uma importância secundária. Patrick e eu estávamos a ajudar o meu pai a redecorar o escritório no dia em que a notícia saiu. A minha mãe leu-a em voz alta para os três, rindo-se tristemente ao chegar à palavra «secundária». Mais tarde, o meu pai disse que se contentaria com ser considerado importante, fosse em que grau fosse.

    — E deram-te um artigo definido, «a» escultora Celia Barry. Lembra-te de nós, os indefinidos.

    Depois, cortou a notícia e colou o pedaço de papel na porta do frigorífico. O papel que o meu pai tem no seu casamento é de uma abnegação implacável.

    De vez em quando, Ingrid manda algum dos seus filhos ligar-me para conversar um pouco porque, conforme diz, quer que tenham uma relação muito estreita comigo e, de passagem, livra-se deles durante, literalmente, cinco segundos. Uma vez, o mais velho ligou-me e contou-me que vira uma senhora muito gorda na agência de correios e que o seu queijo favorito é um que vem num saco e é meio branco. Ingrid mandou-me mensagem mais tarde: «Refere-se ao cheddar».

    Não sei quando o pirralho vai parar de me chamar Marfa. Espero que nunca.

    Os nossos pais continuam a viver em Shepherd’s Bush, na mesma casa de Goldhawk Road em que fui criada. Compraram-na no ano em que fiz dez anos, pagando a entrada com um empréstimo da irmã da minha mãe, Winsome, que se casou com um homem rico e não com um Sylvia Plath masculino. Quando eram crianças, conforme a minha mãe conta a quem quer ouvi-la, ela e a minha tia viviam num apartamento por cima de uma serralharia, «numa cidade costeira deprimida com uma mãe costeira deprimida». Winsome é sete anos mais velha. Quando a mãe morreu de repente de um tipo indeterminável de cancro e o pai perdeu o interesse em tudo, sobretudo nelas, Winsome deixou o Royal College of Music para voltar para casa e cuidar da minha mãe que, naquela época, tinha treze anos. A minha mãe nunca exerceu uma profissão. E tem uma importância secundária.

    Foi Winsome que encontrou a casa de Goldhawk Road e conseguiu fazer com que os meus pais a comprassem a um preço muito mais baixo do que valia, porque era património de uma pessoa falecida. A minha mãe dizia que, a julgar pelo fedor, o cadáver devia continuar por ali, por baixo da carpete.

    No dia em que nos mudámos, Winsome veio ajudar a limpar a cozinha. Entrei para pegar em não sei o quê e vi a minha mãe sentada à mesa à frente de um copo de vinho e a minha tia, vestida com um tipo de casaco sem mangas e luvas de borracha, no topo de um escadote a limpar os armários.

    Ao ver-me, calaram-se e, assim que me fui embora, retomaram a conversa. Encostei a orelha ao outro lado da porta e ouvi que Winsome dizia à minha mãe que não seria mau se tentasse mostrar um pouco de agradecimento, tendo em conta que, em geral, ser proprietários de uma casa não era algo que estivesse ao alcance de uma escultora e de um poeta que não cria um único verso. A minha mãe esteve oito meses sem lhe falar.

    Detestava a casa e continua a detestá-la, porque é estreita e escura; porque a única casa de banho comunica com a cozinha através de uma porta de ripas, o que a obriga a ligar a Radio 4 no volume máximo cada vez que alguém entra. Detesta-a porque só há um quarto por andar e a escada é muito íngreme. Diz que passa a vida na escada e que, algum dia, morrerá nela.

    Detesta-a porque Winsome vive num casarão no bairro de Belgravia. É enorme, é numa praça de estilo georgiano e, ainda por cima, como a minha tia não se cansa de dizer, no melhor lado, porque conserva a luz até ao entardecer e tem uma vista melhor do jardim privado. A casa foi um presente de casamento dos pais do meu tio Rowland; reabilitaram-na um ano antes de se mudar e têm vindo a fazê-lo com frequência, a um preço que a minha mãe diz que é imoral.

    Embora Rowland seja tremendamente frugal, a sua frugalidade limita-se aos seus passatempos — nunca teve necessidade de trabalhar — e às minúcias. Ao mesmo tempo que cola o último bocadinho de sabonete ao novo, aprova que Winsome gaste um quarto de milhão de libras em mármore de Carrara para uma reforma e que compre móveis que, nos catálogos dos leilões, aparecem descritos como «valiosos».

    Ao escolher uma casa para nós exclusivamente em função do seu «esqueleto» — o esqueleto da casa, dizia a minha mãe, não o que íamos encontrar se levantássemos a carpete —, a expectativa de Winsome era que fôssemos melhorando com o tempo. Contudo, o interesse da minha mãe pelos espaços interiores nunca se manifestou senão em forma de queixas. Vínhamos de um apartamento alugado num bairro dos subúrbios e só tínhamos móveis para o andar de baixo. Não fez nenhum esforço para comprar mais e as divisões continuaram vazias até o meu pai pedir uma carrinha emprestada e voltar com estantes para montar, um sofá pequeno com uma capa de bombazina castanha e uma mesa de madeira de bétula, móveis de que sabia que a minha mãe não ia gostar, mas que, explicou-nos, serviam apenas para marcar posição até publicar a antologia e começarem a entrar os direitos de autor. A maior parte continua na casa, incluindo a mesa, que a minha mãe diz que é a nossa única antiguidade verdadeira. Foi mudada de uma divisão para outra, cumprindo diferentes funções e, na atualidade, é a secretária do meu pai.

    — Mas de certeza que — diz a minha mãe —, quando estiver no meu leito de morte, abrirei os olhos pela última vez e verei que o meu leito de morte é, naturalmente, a mesa.

    Depois, encorajado por Winsome, o meu pai decidiu pintar o andar de baixo num tom terracota chamado Amanhecer em Úmbria. Como não discriminava com o pincel entre a parede, o rodapé, o parapeito da janela, o interruptor, a tomada, a porta, a dobradiça e o trinco, ao princípio, avançava a mil à hora. Porém, a minha mãe começara a definir-se como uma objetora de consciência no que dizia respeito às questões domésticas. Com o tempo, a limpeza geral, a cozinha e a roupa passaram a ser tarefas exclusivas do meu pai e nunca acabou de pintar. Hoje em dia, o corredor de Goldhawk Road é um túnel cor de terracota até meio. A cozinha tem três paredes terracota. Há partes da sala que são dessa cor até à altura da cintura.

    Quando éramos pequenas, Ingrid importava-se mais do que eu com o estado das coisas. No entanto, nenhuma de nós perdia o sono com as coisas que se partiam e nunca se reparavam, com o facto de o meu pai fazer todas as noites costeletas na grelha numa folha de papel de alumínio posta por cima da de véspera, ao ponto de, com o tempo, a base do forno se transformar num mil-folhas de gordura e alumínio. Nas poucas vezes em que sentia vontade de cozinhar, a minha mãe fazia pratos exóticos sem receita, tagines e ratatouilles que só se distinguiam entre si pela forma dos pedaços de pimento, que flutuavam num líquido de um sabor tão amargo a tomate que, para engolir uma trinca, tinha de fechar os olhos e esfregar um pé no outro por baixo da mesa.

    Patrick fez parte da minha infância e eu da dele. Quando nos juntámos, não tivemos de partilhar os detalhes das nossas vidas anteriores. Em vez disso, começámos uma competição permanente: quem tivera a pior infância?

    Uma vez, contei-lhe que, nas festas de aniversário, era sempre a última que iam buscar. «Já é muito tarde — dizia a mãe —; talvez devesse ligar aos teus pais.» Ao fim de uns minutos, a mãe desligava e dizia que não me preocupasse, que tentaríamos mais tarde. No fim, ajudava-os sempre a arrumar e, depois, jantava com a família, comíamos os restos do bolo…

    — Era horroroso. E, nos meus aniversários, a minha mãe bebia.

    Patrick esticou-se como se estivesse a fazer exercícios de preaquecimento.

    — Todas e cada uma das minhas festas de aniversário entre os sete e os dezoito anos foram na escola. Eram organizadas pelo meu tutor. O bolo vinha do armário de adereços do departamento de arte dramática. Era de gesso. De todos os modos — concluiu —, tenho de reconhecer que, desta vez, foi renhido.

    Ingrid quase sempre me liga enquanto está no carro com as crianças porque, diz, só pode falar bem quando estão todas sob controlo e, num mundo perfeito, a dormir. O carro é, fundamentalmente, um berço gigante. Há um instante, ligou-me para me contar que acabara de

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