O Herói Obscuro
De Marina Blanc
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O Herói Obscuro - Marina Blanc
O herói obscuro
O herói obscuro
Marina Blanc
Quando aprendemos a lidar com o vilão
que existe dentro de nós, nos tornamos
heróis ainda melhores.
Para Paulo,
meu guitarrista favorito
e meu pai.
1
ais um dia de trabalho intenso estava chegando ao fim.
Finalmente conclui minha pesquisa – que passei cinco M
anos trabalhando rigorosamente – sobre mutação genética e seus efeitos colaterais. Estava tentando descobrir se haveria alguma possibilidade de modificar geneticamente os seres humanos assim como as plantas, de modo a evoluir nossas habilidades.
Minhas conclusões depois de muitos testes, foram que havia 40% de chances de dar certo, sem causar nenhum dano colateral e trazer apenas benefícios. Ainda era muito arriscado fazer algum teste em uma cobaia humana, já que tudo o que eu tinha eram probabilidades. Mesmo sendo um geneticista profissional e com oito anos de experiência, eu precisava ser cauteloso antes de colocar minha pesquisa em prática.
Fechei os arquivos sobre a pesquisa na tela do computador e depois o desliguei, restando apenas a tela de vidro sobre o balcão de metal, que também era um computador. Arrastei os dedos pelo metal frio e desliguei as imagens e hologramas de DNAs que estava analisando.
A maior parte dos aparelhos do laboratório funcionava a partir de nanotecnologia avançada. O Hopnick Lab era um dos laboratórios científicos mais tecnológicos do mundo e também o que mais desenvolvia novas tecnologias, curas de doenças e inovações científicas benéficas ao mundo. A empresa crescia mais a cada ano.
Ouvi uma batida à porta, que se abriu em seguida. Um homem alto e magro, de cabelos acinzentados pela idade, mas bem 9
bem penteados e de barba bem feita, entrou no meu laboratório.
Suas expressões diziam que seu dia foi tenso, mas parecia feliz.
– Vai ficar aqui até tarde de novo, Raymond?
– Hoje não, pai. Finalmente terminei minha pesquisa que dediquei tanto tempo para concluir.
– Que bom! Acho que isso merece uma comemoração. Por que não saímos para beber e comer algo diferente?
– Acho ótimo.
Já havia fechado todos os arquivos e desligado todos os aparelhos, então vesti o meu casaco, que estava pendurado sobre uma cadeira e fechei a porta do meu laboratório de pesquisa. Eu e meu pai fomos até o elevador para descer ao térreo. Todos os funcionários já haviam ido embora àquela hora. Às nove e meia da noite apenas os guardas noturnos ainda estavam trabalhando.
Descemos os oito andares de onde estávamos e chegamos ao térreo. Na recepção, meu pai cumprimentou o guarda alto e forte que vestia uma roupa toda preta e segurava com imponência sua enorme arma à lazer, criada pela própria indústria. Eu e meu pai passamos pela grande porta de vidro que servia de entrada e saída do prédio.
Estávamos no centro de Nova York. O prédio da Hopnick Lab se localizava em Manhattan. Meu pai abriu a porta de seu carro de luxo branco de última linha que havia comprado há pouco mais de três meses. Ele tinha tanto dinheiro que gostava de direcionar parte dele para a sua coleção de carros.
Entrei no carona e ele deu partida. Fizemos o trajeto todo em silêncio até chegarmos em um restaurante de pratos finos de valor altíssimo. Só gente de classe alta ia naquele lugar. Meu pai já tinha ido lá muitas vezes.
Depois de estacionar, nós entramos no restaurante chique, com um enorme lustre adornando a entrada e escolhemos uma mesa para dois ao fundo. Como era uma quinta-feira, não estava muito cheio. Um garçom veio nos atender. Eu já sabia o que que-10
ria enquanto meu pai ainda olhava o cardápio. Pedi um salmão ao molho de maracujá com alcaparras e um vinho tinto seco.
Meu pai abaixou o menu e pediu filé mignon ao molho de vinho tinto.
Quando o garçom saiu para ir providenciar os pratos, meu pai finalmente olhou para mim e começou a falar.
– Então, me conte sobre sua pesquisa.
– Tudo bem. – Respirei fundo e tentei formular minha gran-diosa e complexa pesquisa em poucas palavras. – Eu estive estu-dando sobre mutação genética e como poderíamos modificar geneticamente o DNA humano sem causar danos colaterais e trazer apenas benefícios, como melhorar nossas habilidades.
– Em outras palavras você quer dizer dar superpoderes a humanos.
– Mais ou menos isso.
– E conseguiu descobrir como fazer isso?
– Na verdade, sei como fazer, mas ainda estou muito inseguro de fazer testes em humanos de verdade. Existe uma possibilidade de não dar certo.
– Mas na ciência sempre existe a possibilidade de dar certo e de dar errado. Você só vai saber se testar.
O garçom trouxe nossos pratos e colocou o vinho em nossas taças. Era a minha vez de perguntar.
– E como foi seu trabalho hoje?
– Tive alguns problemas para resolver em uma das filiais da empresa em São Francisco, mas no fim das contas acabei conseguindo.
Gael Hopnick, dono da maior empresa de ciência e tecnologia do século 22, não costumava dar muitos detalhes de seu trabalho. Eu estava acostumado a ouvir sempre aquele tipo de coisa. Ele nunca dizia muito sobre como foi seu dia de trabalho, mas eu perguntava, porque sabia que ele gostava de saber que eu me importava.
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– Enfim... – ele suspirou mudando de assunto – Estou ansioso para ver melhor sua pesquisa. Amanhã você pode me mostrar.
Tomei o resto do meu vinho e comi o último pedaço daquele salmão delicioso. Era o melhor que já comi na vida! Meu pai também terminou de comer. Ele olhou para mim e me analisou.
Eu sabia que ele estava prestes a me criticar de alguma forma.
Sempre que me encarava daquele jeito parecia que estava analisando o fundo da minha alma e isso me assustava.
– Raymond, estou um pouco preocupado com você.
Ergui uma sobrancelha.
– Eu só te vejo trabalhando o tempo inteiro. Não sai muito para se divertir e distrair a cabeça. Você já tem trinta e dois anos e ainda está solteiro!
– Eu fiquei muito distraído com a minha pesquisa. Precisava terminar o quanto antes e sabe muito bem o quanto demora para realizar uma nova descoberta científica.
– Mas você podia sair mais, conhecer uma garota legal, viver mais ao invés de ficar preso naquele laboratório o dia inteiro.
– Pai, eu estou bem assim. Juro para você. Quando eu precisar sair com alguém eu vou sair. Agora que terminei minha pesquisa vou ter mais tempo para fazer outras coisas.
Minha resposta não pareceu convencê-lo, mas ele apenas assentiu com firmeza. O assunto estava encerrado. Ele pagou a conta e voltamos para o carro. O trajeto até nossa casa foi igual-mente silencioso como a ida ao restaurante. Um clima tenso prevaleceu entre nós de uma forma que eu não conseguia explicar.
Nós morávamos na cobertura de um apartamento de luxo no Upper East Side. Por ficar também em Manhattan, era mais viável chegar no trabalho sem pegar muito trânsito.
Quando o elevador chegou no quinto andar, meu pai digitou a senha no painel digital ao lado da porta e então ela se destran-cou. Nós entramos e atravessamos o hall luxuoso com paredes 12
de mármore que dava para uma grande sala de estar, com um sofá bege em formato de L e uma enorme televisão de oitenta polegadas feita de vidro com o mesmo sistema de nanotecnologia do computador.
Desde que a minha mãe, Susan, morreu esfaqueada, aquela casa enorme parecia vazia e com um grande espaço faltando preencher. Eu sentia muita falta dela e meu pai também. Eu sabia que não era só o trabalho que estava o deixando cansado. A saudade que ele sentia dela era maior do que eu podia imaginar.
Ele subiu as escadas de mármore para ir para o seu quarto e eu fiz o mesmo para chegar no meu. Já eram quase onze horas da noite e meu corpo estava exausto. Tirei os sapatos e joguei ao lado do guarda-roupa. Joguei-me na cama macia e olhei para o teto. Pensei mais uma vez em tudo o que fiz ao longo do dia e adormeci.
* * *
Às sete e meia da manhã, depois de tomar o delicioso café preparado por Cecil, nossa cozinheira, eu e meu pai fomos para mais um dia de trabalho na Hopnick Lab. Era sexta-feira, então no dia seguinte eu estava livre para fazer o que quisesse.
Gael vestia um terno cinza e uma grava azul marinho. Os cabe-los grisalhos bem penteados. Ele sempre andava muito bem arrumado. Acordou com o mesmo humor de sempre. Sério e meio calado, mas sorria ao falar comigo.
Meu pai estacionou o carro na vaga reservada para ele perto do prédio da empresa. Atravessamos a grande porta de vidro e passamos o cartão de acesso para passar da roleta na recepção.
– Bom dia, senhora Walker. – cumprimentei a recepcionista com um sorriso no rosto. Martha Walker era uma mulher de meia idade que estava sempre séria. Nunca a vi dar um sorriso e nem sabia se algum dia ela já sorriu. Vivia sempre meio embur-13
rada.
– Bom dia, senhor Hopnick. – disse em resposta, com desâ-nimo na voz, como se fosse uma mensagem automática que deveria dizer todos os dias pela manhã.
Meu pai chamou o elevador e nós entramos. Seu escritório ficava no décimo segundo andar. Lá ele administrava a empresa e suas filiais. Eu desci primeiro que ele, no oitavo andar. Fui ao meu laboratório que ficava na segunda porta no corredor da direita. Passei o meu cartão no scanner ao lado da porta e então ela se abriu.
Respirei fundo e tirei o casaco, colocando meu jaleco.
– Meu pai está certo. Preciso fazer o primeiro teste.
Comecei a ligar os computadores e o grande balcão. Um holograma de DNA foi projetado acima da mesa e eu mexi nele com os dedos, analisando melhor a estrutura daquele filamento.
Observei minhas anotações no balcão computadorizado e suspirei.
– Em quem eu vou fazer os testes? Não posso arriscar tirar a vida de alguém.
Cocei a cabeça pensativo, sentindo uma grande responsabilidade em minhas costas. Eram 40% de chances de dar certo.
O que eu iria fazer era um processo trabalhoso, mas que valeria a pena.
Só tinha uma coisa a fazer. Eu não tinha nada a perder mesmo, então a única opção viável em minha mente era testar aquilo em mim mesmo.
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2
eguei um pequeno frasco, juntei saliva em minha boca e cuspi dentro dele. Coloquei detergente neutro junto P
a ela e esperei alguns minutos. Depois adicionei uma pequena colher de sal à mistura e preenchi a metade do frasco com álcool. Misturei bem o frasco e fitas do meu DNA começaram a aparecer. Coletei-as com um conta-gotas e as separei do líquido.
Coloquei meu DNA em uma placa de vidro e a ajeitei no microscópio. Usando os materiais que possuía, fui mexendo no meu DNA e modificando alguns dos meus genes, adicionando proteínas, retirando outras e, por fim, coloquei ali genes de outros animais.
O resultado daquilo tudo poderia dar em duas coisas. Todas aquelas combinações genéticas poderiam criar uma evolução em meu organismo, me dando alguma habilidade incomum para os humanos, ou poderiam ser rejeitadas pelo meu organismo, levando à morte celular instantânea e a desnaturação imediata das minhas proteínas, o que me mataria.
Coloquei o DNA modificado em uma seringa misturado com um soro que preparei durante minha pesquisa. De acordo com meus estudos, ele ajudaria na adaptação dos novos genes em minhas células e as adaptaria para as novas habilidades. Sem ele não daria certo.
Olhei para a minha obra prima que poderia me tornar um sobre-humano como também poderia me matar. Respirei fundo.
Não sabia se sentia medo ou ansiedade. Estiquei meu braço e passei um algodão com álcool na área onde aplicaria o líquido transparente com cor meio amarelada.
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– Você ainda tem 40% de chances, Raymond. – disse a mim mesmo tentando me encorajar a fazer aquilo.
Respirei fundo uma última vez e espetei a agulha no braço, injetando o líquido no músculo. Senti meu braço pesar e arder por dentro. Coloquei a seringa vazia sobre o balcão. Sobre o furo, fiz um curativo improvisado com algodão e esparadrapo.
Esperei que houvesse algum efeito imediato, mas não senti nada diferente. Comecei a cronometrar o tempo em um relógio digital. Deveria levar um tempo para a divisão celular ocorrer e meus novos genes se espalhassem pelo meu corpo.
Como tudo parecia normal, fiquei mais tranquilo. Voltei a trabalhar normalmente, revisando os dados e informações da pesquisa. Abri um novo arquivo no computador e digitei: Reações do experimento X.2p – nenhuma reação imediata.
Eu deveria continuar cronometrando para saber em quanto tempo os primeiros sintomas apareceriam. Já haviam se passado oito minutos e nada aconteceu.
– Acho melhor esperar para ver.
Estremeci em pensar no efeitos negativos que aquilo poderia causar em mim. Afastei os pensamentos imediatamente. Tinha que pensar no lado bom se quisesse ter alguma esperança.
* * *
Já eram três horas da tarde e tudo parecia bem normal. Eu me sentia tão bem quanto antes, mas também não conseguia fazer nada que já não conseguisse. Pelo menos não surtiu nenhum efeito negativo. Continuei a relatar em meu arquivo tudo o que acontecia e ainda cronometrava o tempo. Eu sabia que cedo ou tarde algum sintoma ia aparecer. Tudo o que eu tinha que fazer era ter paciência.
Alguém bateu na porta e eu fui abrir. Uma mulher bonita de cabelos castanhos e olhos cor de mel segurava um envelope 16
de carta e me entregou.
– Boa tarde, senhor Hopnick. Eu sou a nova assistente do seu pai e ele pediu para lhe entregar isto.
Peguei a carta de sua mão e observei o remetente. Era de um tal Harrisson Bens. O conhecia brevemente de uma reunião que fizera com meu pai há dois anos, querendo fazer uma parceria ou um acordo que nunca descobri qual era, mas Gael não acei-tou. Ele nunca me contou sobre isso. Desde então, supus que a empresa dele e a do meu pai eram rivais.
Agradeci a mulher que sorriu gentilmente para mim. Imaginei que meu pai a tivesse escolhido como sua assistente com a intenção de me fazer gostar dela e querer sair com ela. Eu realmente estava mais preocupado com minha pesquisa do que em sair com alguém. Até então nem sabia ainda se eu estava com os dias contados ou se me tornaria um sobre-humano.
Sentei na cadeira em frente ao balcão e abri a carta. Comecei a ler sem saber o que esperar.
Raymond Hopnick,
Eu gostaria de lhe oferecer uma vaga de emprego na Bimetech como geneticista chefe do projeto que iremos financiar.
Estamos querendo iniciar uma pesquisa sobre como reverter sintomas virais utilizando métodos de reprogramação genética.
Fiquei impressionado com a profundidade da pesquisa que está realizando. Depois de ler alguns artigos seus na comunida-de científica eu gostaria de tê-lo como um de nossos cientistas.
Financiando seu projeto, você poderia auxiliar no nosso.
Caso aceite a proposta, entre em contato.
Harrisson Bens, CEO da Bimetech.
Por mais que a pesquisa do Harrisson fosse muito interessante, eu tinha preocupações maiores para me dedicar na Hopnick Lab. Não trocaria de emprego se estava satisfeito ali. Além 17
do mais, enquanto não tivesse certeza das minhas condições nas próximas horas, não poderia