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O Brasil heroico em 1817
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O Brasil heroico em 1817
E-book331 páginas4 horas

O Brasil heroico em 1817

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Sobre este e-book

A Revolução Pernambucana de 1817 foi o primeiro movimento anticolonial brasileiro a conseguir tomar o poder. Conquista efêmera, mas não por isso menos significativa. Entre 6 de março e 19 de maio daquele ano, Pernambuco se tornou uma república independente de Portugal. Este livro, parte da Coleção IAHGP (Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano), apresenta uma narrativa dos acontecimentos de 1817 e reúne ensaios biográficos sobre os seus principais atores.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento20 de mar. de 2023
ISBN9786554390811
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    O Brasil heroico em 1817 - Alípio Bandeira

    Nota introdutória

    Ao longo dos séculos XIX e XX, a historiografia brasileira relegou a Revolução Republicana de Pernambuco a um quase esquecimento. Na narrativa da história nacional, 1817 ocupou frequentemente um posto de somenos importância, quando não foi vítima de julgamentos francamente negativos. Nos currículos escolares, nos livros didáticos e nos manuais de história do Brasil o movimento pernambucano muitas vezes se encontra reduzido a um breve comentário ou a uma nota de pé de página.

    A vida política do Brasil independente se iniciou com um regime monárquico e um imperador português com corte situada no Rio de Janeiro. Na biografia da nova nação, por razões óbvias, não era bem-vinda a presença da memória de um movimento republicano, periférico e com uma boa dose de antilusitanismo. A República instaurada manu militare em 1889 optou por não entregar a palma do martírio aos participantes de 1817. O escolhido para o papel de herói oficial da proto-independência foi o único participante da insurgência mineira de 1789 efetivamente penalizado com a morte. A data de sua execução foi declarada feriado nacional. A propaganda oficial logrou tornar o 21 de abril uma das efemérides mais conhecidas pelos brasileiros de todos os estratos sociais, em todos estados da federação.

    1817 foi o primeiro movimento anticolonial do Império Português a conseguir tomar o poder. Conquista efêmera, mas não por isso menos significativa. Entre 6 de março e 19 de maio daquele ano, Pernambuco se tornou uma república independente. A Paraíba, o Rio Grande do Norte e uma parte do Ceará aderiram ao movimento. A brutal repressão à insurgência republicana é um indicativo do que ela representou para a época em que ocorreu. A passagem do bicentenário da Revolução de 1817 apresentou-se como uma excelente oportunidade para rememorar e divulgar essa história. Por iniciativa do Governo do Estado de Pernambuco, a Assembleia Legislativa de Pernambuco aprovou a lei 15.877, de 12 de julho de 2016, que destinou uma subvenção para que o Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP) realizasse as celebrações e desse outras providências relativas às ações de salvaguarda e divulgação da história da Revolução de 1817.

    A Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) teve um papel importantíssimo na consecução dos objetivos propostos, deixando à posteridade o legado mais permanente de todo o ciclo comemorativo: a publicação de uma série de obras — inéditas e reeditadas — que são fundamentais para a pesquisa e divulgação da história da Revolução, do seu contexto histórico e de seus desdobramentos ao longo do ciclo de insurgências ocorrido em Pernambuco durante a primeira metade do século XIX. O presente volume se inclui nesta parceria editorial.

    O Brasil heroico em 1817 foi editado originalmente pela Imprensa Nacional, no Rio de Janeiro, em 1918, reunindo artigos dispersos publicados por Alípio Bandeira entre março e junho de 1917, quando se celebrava o centenário da Revolução Pernambucana. O livro apresenta uma narrativa dos acontecimentos de 1817 e reúne ensaios biográficos sobre os seus principais atores. Para esta reedição foi feita a revisão do texto e a atualização da ortografia.

    Alípio Bandeira nasceu em 15 de agosto de 1873, em Mossoró (RN). Engajou-se no Exército Brasileiro em 18 de abril de 1890, chegando em 1930 à patente de coronel. Estudou na Escola de Cadetes da Praia Vermelha no Rio de Janeiro, cidade na qual entrou em contato com a Igreja Positivista do Brasil. A partir de 1910 foi nomeado como inspetor do Serviço de Proteção aos Índios (o antigo SPI, precursor da Funai), tendo atuado nos estados do Amazonas, Pará, Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Piauí, Maranhão e Rio Grande do Norte. Destacou-se, no âmbito dos indigenistas liderados pelo marechal Cândido Rondon, como aguerrido defensor dos direitos dos povos originários, chegando a publicar séries de artigos denunciando maus procedimentos dos gestores no Amazonas e no Acre. Em 1932, por sua atuação na repressão ao movimento separatista de São Paulo, foi agraciado por Getúlio Vargas com a promoção à patente de general, mas recusou-se a aceitar a distinção alegando que não tinha realizado os cursos exigidos para o generalato. Foi reformado em 1933 e faleceu em 14 de agosto de 1939.

    Além de O Brasil heroico em 1817, Alípio Bandeira publicou, entre outras obras: Memorial com um projeto de lei em que se define a situação jurídica do índio brasileiro (em colaboração com Manuel Tavares da Costa Miranda), na Tipografia do Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 1910; Discurso de instalação do Serviço de Proteção aos Índios e localização de trabalhadores nacionais no Amazonas, na Tipografia da Livraria Palais Royal, Manaus, 1912; Antiguidade e atualidade indígenas, na Tipografia do Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 1919; A mistificação salesiana, pela Linotipo Fluminense, 1923; Jauapery, Manaus, 1926; e A cruz indígena, pela Livraria Globo, Porto Alegre, 1926.

    O IAHGP registra seus agradecimentos à equipe da Cepe, pelo apuro técnico e por todo seu empenho para o bom êxito desta iniciativa, bem como ao Governo do Estado de Pernambuco e à Fundarpe pela viabilização do apoio financeiro para esta publicação.

    George F. Cabral de Souza

    Historiador

    Membro efetivo do IAHGP

    Ilustre Cidadão dr. J. G. Pereira Lima, M. D. Ministro da Agricultura, Industria e Commercio.

    Alipio Bandeira, capitão de artilharia, tendo composto um livro sobre a Revolução de 1817, vem respeitosamente requerer-vos sua impressão nas oficinas da Imprensa Nacional, com a condição de ser aplicado em benefício dos Indígenas Brasileiros o produto da venda dessa obra em todas as edições que porventura venha a ter.

    O volume em questão se compõe essencialmente de uma apreciação sintética do glorioso levante pernambucano e de traços biográficos dos seus principais Heróis, e pretende restabelecer a feição Republicana daquela e a grandeza de ânimo destes — uma e outra desfiguradas até hoje, salvo naqueles julgamentos que estavam ao alcance do espírito reto e nobre do padre Muniz Tavares.

    Não tem o requerente outro propósito senão o de divulgar, para ensinamento da juventude, o que aprendeu sobre a Revolução de 1817, aproveitando ao mesmo tempo o ensejo de prestar à santa causa do nosso aborígene um pequeno serviço; pelo que

    E. D.

    Capital Federal, 31 de janeiro de 1918.

    Alipio Bandeira.

    Aos jovens camaradas

    do Exército e da Armada

    Duas palavras de introdução

    Opresente opúsculo nada mais é do que a incorporação em um só volume de artigos que escrevi em março e junho do corrente ano para comemorar o centenário da Revolução de 1817 e do martírio de seus heróis principais. Alguns desses escritos foram publicados no País e agora, sem nenhuma alteração do fundo ou do cunho primitivo, sofreram revisão para inserir-se um ou outro acréscimo elucidativo e para se corrigirem aqui e ali, tanto quanto isto dependia do autor, defeitos de estilo e forma.

    Tive a preocupação de enfeitar num pequeno livro de fácil leitura tudo quanto é essencial a respeito daquele movimento e de seus fatores, escovando um e livrando os outros: de inúmeros deslizes que lhe imputou a prevenção partidária e que, ainda agora, foram repetidos e não poucas vezes agravados — pela incompetência letrada, sempre tão mais nociva à apreciação dos fatos quanto mais reputada e copiosa é.

    Sendo atualmente de moda exaltar a monarquia e deprimir a república, empregando-se nisto, ora a falsa afirmação de não ter conhecido aquela a maior parte dos erros desta, ora a propaganda insidiosa da grandeza, não menos falsa, do segundo imperador — calculado ainda que vão ensinando que pretende infiltrar-se na alma dos adolescentes — pareceu-me útil adicionar aqui, com documentos de monarquistas sobretudo, as páginas que fossem estritamente indispensáveis à contradita desta dupla legenda.

    Comprova-se assim, de um lado, o que ficou afirmado no primeiro texto do Resumo histórico da revolução de 1817, isto é, que a República não inventou nenhum pecado novo; e de outro lado, que D. Pedro II estava infelizmente muito longe do tipo de sábio magnânimo que se lhe quer, a todo o transe, conferir.

    Não é agradável semelhante tarefa; passei, pois, rapidamente por ela; mas uma vez julgada necessária, adotei-a sem vacilação.

    Dedicando este modesto trabalho aos meus jovens camaradas do Exército e da Armada não o fiz para lhes ser agradável, mas para mostrar-lhes que pensei sobretudo neles quando e enquanto o escrevia. Com esta preferência sacrifiquei afetuosos impulsos que me arrastavam a outras homenagens, sagradas pela morte umas, caríssimas outras pela amizade.

    A memória do dr. Alcebiades dracon de Albuquerque Lima — cidadão modelar, pernambucano e descendente direto de alguns dos mártires de 1817; e a de Armando de Berrêdo — a mais reta e honesta alma que já conheci — reclamavam de mim este preito de gratidão pessoal não menos merecido pelo meu venerável sogro dr. Joaquim Bagueira Leal, em quem a idade apurou talvez, mas não arrefece o o civismo, e pelos meus queridos amigos Manoel Miranda — patriota cujo fervoroso devotamento não encontra rival, e Ricardo de Berrêdo — republicano tão intransigente quanto vigilante.

    Absolvo-me eu mesmo destas preterições na esperança de que os meus jovens camaradas apanhem facilmente e integralmente a minha intenção.

    Oxalá possam eles ver através do caso de que se ocupa este livro a feição geral de uma nacionalidade, a índole constante de uma gente que nunca formará ao lado da tirania e que, embora cordata, e pacífica, soube no passado e, se for preciso, saberá no futuro jogar de si toda espécie de opressão.

    Em muito poucas palavras pode resumir-se a história do Brasil,¹ a qual, se não conta fatos capitais nos destinos da Humanidade, não carrega também crimes tão monstruosos que não encontrem algumas atenuantes, nem tão indeléveis que se não possam apagar no decorrer dos tempos.

    Ocupado ocidentalmente quando já se havia consumado a dissolução do regime católico-feudal, presidiu ao seu desenvolvimento um povo habituado a delegar nos reis todo o poder e que apenas conservava da religião as cerimônias externas do culto, aliadas a uma vaga superstição feita de aspirações e temores. Desse povo somente se estabeleciam definitivamente no Brasil os indivíduos que procuravam melhorar sua própria situação material. A esses, como era de esperar, sobrava a ambição e faltava a disciplina moral: em breve, pois, a população indígena aqui encontrada viu-se a braços com uma imensa caterva de aventureiros em quem a ganância substituirá a piedade e para quem todas as maldades e todos os desregramentos eram permitidos, contanto que satisfizessem aos seus planos e caprichos.

    O clero católico, e principalmente os jesuítas, que haviam iniciado a catequese das ingênuas hordas autóctones, opuseram-se heroicamente a tais desmandos e, vencedores a princípio, acabaram vencidos pelos colonos e participando a seu turno do triste espólio fetichista — ainda que os seus processos fossem habitualmente mais brandos que os dos seus antigos opositores.

    Não quis, porém, o índio submeter-se à escravidão, preferindo a própria morte à perda da liberdade, e por isto uma grande parte das tribos africanas já escravizadas entre os seus foi, com o pretexto de aproveitamento do solo, transportada para o país, encontrando nele, a par da sujeição entre estranhos, a transfusão do seu sangue nas outras raças com que se pôs em contato.

    Assim, sob a supremacia do elemento mais adiantado, formou-se o povo brasileiro da mistura biológica das três estirpes humanas — abençoada condição que lhe permite participar ao mesmo tempo das qualidades de todas e das que são peculiares a cada uma.

    Constituindo-se por si mesma, ao sabor de administrações mais ou menos ditatoriais; não tendo conhecido a influência das classes dirigentes que o regime católico-feudal instituirá, conservou-se a nação livre do predomínio de castas e, isolada do mundo pela metrópole, se é certo que lhe ficou vedada a aquisição dos progressos industriais e científicos dos países protestantes, não é menos verdade que por essa mesma segregação foi preservada da intemperança a que uma incompleta emancipação teológica havia condenado tais países.

    Com a presidência, pois, de um catolicismo, deficiente, sim, mas conservador dos altos princípios da moral e sempre sedutor pelas práticas do seu tocante culto, empiricamente prosseguia seu desenvolvimento a tríplice família em fusão, quando um século apenas depois da ocupação da terra, na primeira grande revolução nacional, mostraram os dois ramos das raças fetichistas sua capacidade intrínseca, fornecendo, na expulsão dos holandeses, chefes e heróis em nada inferiores aos seus êmulos de origem puramente lusitana.

    Cedo, porém, e em consequência dessas mesmas qualidades, começaram as desavenças internas, ficando então patente que sem disciplina religiosa, pelo simples recurso ao poder material, toda governação que pretendesse manter a unidade dual, de a quem e de além-mar, havia de ser necessariamente despótica. Os preconceitos nativistas, assim brasileiros como portugueses, sem um regulador universal superior à estreita consideração de pátria, transformaram-se em rivalidades odiosas; as excessivas extorsões de ouro para o sustento de cortes luxuosas e fúteis agravavam a desunião.

    O descontentamento lavrou por toda a parte, determinando em várias províncias sublevações e revoltas sempre abafadas brutalmente no sangue dos seus chefes, tal como sucedeu em 1685 no Maranhão, em 1710 em Pernambuco, em 1720 em Villa-Rica.

    Nos fins do século XVIII, já estando a nação em condições de viver autonomamente, e sendo a essa independência impelida pelo próprio governo português, em virtude do jugo arbitrário que lhe impunha, eis que a emancipação das colônias inglesas da América do Norte vão incitar os patriotas, não já para movimentos de meros protestos parciais, mas para a agitação separatista, fomentada aliás por alguns brasileiros que estudavam ou residiam na Europa.

    A Inconfidência Mineira foi o sinal decisivo dessa disposição de ânimos. No mesmo ano da execução do heroico Alferes, a França derrubou a realeza, inaugurando irrevogavelmente a vocação Republicana do Ocidente, e sua influência em nossos destinos, influência que dantes só se exercia por intermédio de Portugal e, portanto, com restrições, tornou-se desde então predominante.

    Não podendo a Revolução Francesa, por falta de doutrina científica, realizar o programa, que apenas iniciou, da reorganização da sociedade sem Deus nem rei, depois de tremendas convulsões e profundos dilaceramentos cívicos, foram os seus grandes princípios substituídos pela metafísica democrática, que afinal acabou na orgíaca ditadura militar do aventureiro corso.

    Esse detestável tirano, que por uma ignóbil ambição pessoal semelhante a dos seus atuais discípulos teutões convulsionou a Europa inteira, estendeu suas invasões até Portugal, ocasionando assim a fuga da família de Bragança.

    Aqui chegando em 1808, o regente abriu os portos brasileiros às nações amigas e com isto pôs termo ao isolamento em que até então tínhamos vivido.

    Em virtude da transferência da sede da dinastia, instituiu-se grande número de serviços com os quais ficou o Brasil política e administrativamente equiparado a Portugal, sendo por fim declarado Reino Unido em 1815.

    Essa elevação, cujas vantagens eram indiscutíveis, não impediu, entretanto, a revolução de 1817, rebentada justamente naquele ponto do país onde mais se haviam acentuado os antecedentes coloniais de dissídio entre as duas partes da monarquia.

    À queda do seu nefasto ditador seguiu-se na França um governo compatível com as ideias do século, pois, embora nominalmente presidido por um rei, manteve, de fato, o regime republicano implantado em 1789.

    Esta situação reagiu sobre a Espanha determinando ali o estabelecimento do sistema constitucional, logo depois (1820) adaptado também em Portugal. A jovem nação americana aderiu de tal modo a este movimento que no Rio de Janeiro foi o monarca obrigado a aceitar a constituição organizada do outro lado do Atlântico, mesmo antes de conhecê-la.

    As cortes de Lisboa, entretanto, ao mesmo tempo que aboliam o governo absoluto, voltavam-se para o Brasil enciumadas com a posição superior em que ele se encontrava como residência manifestamente preferida pelo rei. Em consequência, começaram a exigir o regresso deste para Portugal e, com uma série de medidas vexatórias, pretenderam restabelecer o novo reino na sua antiga condição de colônia.

    Por felicidade nossa a nação possuía nessa época um homem eminente, cujos talentos e virtudes, tendo sido experimentados na administração, na judicatura, na direção de obras públicas e até no comando militar, davam-lhe suficiente prestígio para ser acatado pelos seus patrícios. Esse homem, vendo a impossibilidade de conservar-se a monarquia dual pôs-se à frente do seu povo e fez a Independência, concebendo a organização da pátria pela manutenção da integridade do território e pela fusão, cada vez maior, das três raças que o habitavam, mediante a incorporação do elemento indígena e a libertação gradual do escravo.

    Quase todo o norte, sobretudo por motivo da revolução de 1817, estava em antagonismo com o sul. Não havia centralização das províncias: entre algumas delas a comunicação era mais difícil do que de certas outras com a Europa.

    As populações disseminadas por um estado vastíssimo, onde a instrução faltava quase que inteiramente, viviam apegadas às tradições políticas e às superstições religiosas do passado.

    O Patriarca achou um meio natural de conservar, entre tamanhas dificuldades, a harmonia nacional: erigiu em chefe do novo império o regente que, ao embarcar, nos deixara o rei, e que era, além do mais, herdeiro legal da coroa portuguesa.

    Pouco tempo depois o ingrato e licencioso príncipe, conquistado pelas intrigas da corte, levianamente sacrificou seu generoso protetor, então primeiro ministro.

    Seguiu-se a chamada Guerra da Independência que especialmente se prolongou na Bahia, onde chegou até 1823, em virtude do acúmulo de forças portuguesas que ali estacionavam sob a chefia de um general absolutista.

    Dissolvida a assembleia constituinte no fim desse ano, desterrados os mais eminentes patriotas, agitou-se de novo a massa ativa do país — parte pela expulsão do monarca, parte pela implantação da república e todos pela conservação da autonomia ameaçada.

    Em 1824 levantou-se outra vez Pernambuco e proclamou a Confederação do Equador, vencida a qual, duas dezenas de brasileiros foram trucidados ferozmente, tendo-se em vão apelado para a piedade do imperador quando a condenação recaía em certos homens ilustres. Sua invariável resposta era que pronunciada a sentença de morte, imediatamente se executasse, fosse quem fosse a vítima.

    Continuaram as perturbações entre o partido nacional e o português, até que a 7 de abril de 1831 viu-se finalmente o soberano forçado a retirar-se para a Europa, deixando no Brasil, à semelhança do que fizera o pai, seu primogênito, então criança e, mais tarde, por iniciativa dos liberais e sôfrega anuência sua, elevado ao trono aos 15 anos de idade (1840).

    Prosseguiram, entretanto, as desordens partidárias: numa série de motins, insurreições e levantes parciais, prolongou-se a luta, no Sul até 1845, e no Norte até princípios de 1849.

    No exterior agravaram-se as antigas rivalidades coloniais entretidas pelas vaidades nacionalistas, nossas e dos diversos povos vizinho. De semelhante situação, além de outras contendas, resultou a sempre lamentável guerra contra o Paraguai em que o capricho pessoal do segundo imperador, não saciado com a ocupação pelas tropas brasileiras da capital adversária, e apesar da oposição do chefe do Exército, levou o extermínio da valente nação vencida até à ultima satisfação da sua ignóbil fatuidade.

    A guerra acabou em 1870 pela célebre campanha das cordilheiras, tão repugnante ao espírito nacional e ao do próprio exército que se tornou preciso que um preposto do governo a fosse pregar em Assunção.

    Nesse mesmo ano apareceu o famoso Manifesto Republicano. Era a afirmação solene e pública do partido democrata, cujo programa não podia ter é certo, verdadeiro alcance social, mas servia como denunciador das aspirações de fraternidade.

    Ao lado, porém, dessa corrente uma outra mais orgânica se constituía, e esta era a dos Republicanos inspirados pelas doutrinas positivistas.

    Um professor notável, empenhado em estudos científicos, foi levado a conhecer parte da obra do filósofo moderno, aceitando desde então seus ensinamentos sociológicos com a mesma admiração com que adotava os matemáticos. Cidadão de excepcionais qualidades de coração e de espírito, conquistou inteiramente a confiança de seus inúmeros discípulos, sobretudo dos da Escola Militar, contando em cada um deles um amigo devotado e respeitoso. Não menos considerado era nas fileiras; aí seus camaradas e antigos condiscípulos guardavam a lembrança da sua austera probidade, assim na vida pública como na privada, em que apresentava um exemplo de cavalheirismo conjugal tão nobre quanto raro.

    Foi este o homem que, aproveitando o desgosto e as agitações provenientes das questões militares, transformou um simples motim destinado à inglória tarefa de derrubar um ministério na excelsa revolução social de 1889. E o fez com flores, justamente na vigência do gabinete preposto a desfechar o golpe de morte nas aspirações republicanas, conforme a presunçosa e ingênua declaração do seu próprio chefe.

    No ano anterior, e também com festas e flores, consumara-se uma outra grande transformação nacional que desde o Patriarca da Independência interessava os melhores espíritos e para cujo advento, apesar da má vontade ou da indiferença do imperador, várias tentativas parciais se haviam assinalado em 1826, 1831, 1854 e 1871: a Abolição, coberta de bênçãos, triunfará.

    Resumindo, portanto, nossos desdouro e nossas glórias, vemos, de um lado, três grandes faltas que gravemente maculam o nosso passado e cuja reparação naquilo que fosse ainda possível, deveria constituir objeto constante das nossas preocupações: — a destruição da raça indígena, a escravidão negra, e a ruína do Paraguai; e, do outro lado, três grandes conquistas, que em outros países custaram rios de sangue, e que suavemente conseguimos: — a Independência, cujas perturbações foram mínimas diante da magnitude da causa; a Abolição e a República, em que não houve sacrifício de nenhuma vida.

    Se, por conseguinte, não temos justos motivos para colocarmos a nossa Pátria acima das outras, o que só seria cabível se ela houvesse como nenhuma contribuído para a grandeza humana, também não os temos para desdenhá-la. É uma pátria modesta, porém digna. Honremo-la com o maior acatamento, mas para isso não é necessário exaltá-la além do que é razoável. Nenhum filho esclarecido pretenderá que sua mãe seja a mulher mais eminente do mundo pelo simples fato de ser sua progenitora; mas nenhum filho amante prezará menos sua mãe pelo fato de não ser eminente.

    Amemos, pois, assim a nossa Pátria: pela tradição de suas lutas e sofrimentos, e pelo que a terra bondosa nos proporciona; pela virtude dos nossos maiores, e pela beleza incomparável do solo; pela candura inexaurível das nossas mulheres, e pela benignidade singular do nosso clima; pela suavidade inalterável do nosso céu e pela inalterável modéstia dos nossos heróis; pelos nossos honrados pais; pelas nossas devotadas mães; pelas nossas próprias reminiscências; pela confiança, pelo prazer, pelo encantamento que esta Pátria nos oferece e só ela nos pode dar.

    Amemo-la no trabalho das gerações passadas, no preparo das que hão de vir, no denodo, na constância e na dor dos nossos mártires.

    Entre estes bem merecem a nossa gratidão os de 1817. Alguns deles, todos eles, tiveram provavelmente defeitos, nem há quem os não tenha; mas o que vale em cada homem é o substractum da alma, e nesse núcleo de sentimentos, pensamentos e ações, em todos, e em cada um deles, predominou o altruísmo. Honremo-los, pois, também.

    Meditemos os seus feitos e, se quisermos avaliar a sua enorme superioridade, comparemo-los com os nossos atuais dirigentes. Essa meditação é sobremodo proveitosa na época sem estímulos que atravessamos, duplamente caracterizada pela falta e persistência nos princípios e de coerência nos atos.

    Eis aqui uma demonstração expressiva; atentemos nela: apresentou-se há pouco tempo à Câmara dos Deputados um projeto de lei visceralmente monarquista e

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