A arte da comunicação não violenta: Escritos e correspondências entre Gandhi e Tolstói
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Sobre este e-book
Gandhi é mundialmente conhecido por ter popularizado a ideia da não violência. O que poucos sabem é que a filosofia praticada por ele se forjou numa troca de correspondências com o escritor russo Liev Tolstói, que depois de se
consagrar com os romances Guerra e Paz e Anna Karenina, abandonou a vida aristocrática para se
dedicar aos estudos e ensinamentos da não violência.
Segundo os autores, precisamos substituir a norma da violência e remover a tirania começando pelas ações mais corriqueiras da vida, de modo a garantir nossa própria reforma pelo método de não resistência ao mal. Trata-se de alterar o modo de enfrentar o ódio no mundo com um olhar diferente de forma a evitar que ele nos contamine.
A troca de cartas entre duas das mais influentes personalidades do século XX imortalizou o conceito de não violência e ressurge, nessa edição exclusiva, com artigos e correspondências que abordam os mais diferentes assuntos: das relações de poder, relações profissionais e familiares, do olhar que temos sobre diversos grupos sociais, das relações com as mulheres, enfim, você encontrará a origem de toda a proposta de não violência e seus fundamentos, colhidos na origem.
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A arte da comunicação não violenta - Mahatma Gandhi
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Diretor editorial pedro almeida
Coordenação editorial carla sacrato
Preparação tuca faria
Revisão barbara parente e gabriela de avila
Capa e diagramação rebecca barboza
Imagens internas domínio público
Produção digital saavedra edições
Logotipo da EditoraSUMÁRIO
Capa
Folha de Rosto
Créditos
Introdução
Parte 1
Carta a um hindu
A sujeição da Índia: sua causa e cura, por Leon Tolstói
Parte 2
A correspondência entre Tolstói e Gandhi
Parte 3
Minha Não Violência, por Gandhi
Notas
Faro Editorial
Introdução
Por Mohandas Karamchand Gandhi
O que se segue é uma tradução da carta de Tolstói, redigida em russo, em resposta a uma carta do editor do jornal Free Hindustan1. Depois de ter passado de mão em mão, ela finalmente chegou a mim através de um amigo que me perguntou, como alguém muito interessado nos escritos de Tolstói, se eu achava que valeria a pena publicá-la. Respondi afirmativamente de imediato e disse-lhe que eu deveria fazer a tradução dela para o guzerate e induzir outras pessoas a traduzi-la e publicá-la em outros vernáculos indianos.
A carta que recebi era uma cópia datilografada. Foi, portanto, encaminhada ao autor, que confirmou sua autenticidade e gentilmente me concedeu permissão para imprimi-la. Para mim, como humilde seguidor daquele grande professor que considero há muito tempo um dos meus guias, é uma questão de honra estar conectado com a publicação de sua carta, especialmente como aquele que agora a está oferecendo ao mundo.
Trata-se efetivamente de mera declaração dizer que todo indiano, quer ele reconheça isso ou não, tem aspirações nacionais. Mas há tantas opiniões quanto nacionalistas indianos no que se refere ao significado exato dessa aspiração e, mais especialmente, quanto aos recursos a serem usados para atingir tal fim.
Um dos métodos aceitos e consagrados ao longo do tempo para alcançar o nacionalismo é o da violência. O assassinato de Sir Curzon Wyllie² foi uma ilustração desse preceito em sua pior e mais detestável forma. A vida de Tolstói foi dedicada a substituir a norma da violência e remover a tirania, ou garantir a reforma pelo método de não resistência ao mal. Ele enfrentaria o ódio, expresso em violência, através do amor, expresso em sofrimento próprio. Ele não admitia nenhuma exceção para minar essa grande e divina lei do amor, e a aplicava a todos os problemas que perturbam a humanidade.
Tolstói é um dos pensadores mais transparentes do mundo ocidental e um de seus maiores escritores. Como soldado, ele conheceu a violência e o que ela pode fazer. Quando um homem como ele condena o Japão por ter seguido cegamente a lei da ciência moderna, falsamente chamada assim, e teme pelas maiores calamidades
desse país, cabe a nós fazer uma pausa e considerar se, em nossa impaciência com o domínio britânico, não queremos substituir um mal por outro pior. A Índia, o berçário das grandes religiões do mundo, deixará de ser nacionalista quando se tornar tão civilizada
que usará seu solo sagrado para reproduzir as fábricas de armas e o odioso industrialismo que reduziram o povo da Europa a um estado de escravidão, e quase sufocaram entre eles os melhores instintos que são a herança da família humana.
Se não queremos o inglês na Índia, devemos pagar o preço. E Tolstói, o sábio de Yasnaya Polyana³, indica isso ao declarar apaixonadamente:
Não resista ao mal, mas também não participe dele: na arrecadação de impostos e nas violentas ações dos tribunais e (o que é mais importante) dos soldados. Então, ninguém no mundo o escravizará.
Não se pode questionar sua veracidade quando ele diz:
Uma companhia comercial escravizou uma nação de duzentos milhões de pessoas. Diga isso a um homem livre de superstições e ele não entenderá o que essas palavras demonstram. Qual o significado de trinta mil pessoas – não atletas, mas indivíduos comuns e fracos – terem escravizado duzentos milhões de pessoas vigorosas, inteligentes, capazes e amantes da liberdade? A imagem não deixa claro que não foram os ingleses que escravizaram os indianos, mas os indianos que escravizaram a si mesmos?
Não é preciso aceitar tudo o que Tolstói diz (alguns de seus fatos não são precisamente declarados) para compreender a verdade central de sua acusação ao sistema atual. A verdade a ser percebida é o amor, o qual é um atributo da alma, que tem um poder irresistível sobre o corpo e sobre a força bruta ou corporal gerada pelo despertar de paixões malignas em nós.
Sem dúvida, não há nada de novo no que Tolstói prega, mas sua apresentação da velha verdade é refrescantemente forte. Sua lógica é inatacável. E, acima de tudo, ele se esforça para praticar o que prega. Ele prega para convencer. Ele é sincero e honesto. Ele exige atenção.
19 de novembro de 1909
Parte 1
Leo Tolstói, por Sergei Prokudin-Gorskii, 1908Leo Tolstói, por Sergei Prokudin-Gorskii, 1908
Carta a um hindu
A sujeição da Índia: sua causa e cura
– Leon Tolstói
1
Tudo o que existe é Um. As pessoas apenas chamam esse Um por nomes diferentes.
– Os Vedas4
Deus é amor, e aquele que permanece no amor permanece em Deus, e Deus nele.
– 1 João 4:1
Deus é um todo; nós somos as partes.
– Explicação do ensino dos Vedas por Vivekananda⁵
Não busque sossego e descanso naqueles reinos terrenos, onde desilusões e desejos são gerados, pois, se o fizer, será arrastado pelo deserto selvagem da vida, o qual está longe de Mim. Sempre que sentir que seus pés estão se enredando nas raízes entrelaçadas da vida, saiba que você se afastou do caminho para o qual aceno, pois o coloquei em caminho amplo e suave, repleto de flores. Pus uma luz diante de ti, a qual podes seguir e, assim, correr sem tropeçar.
– Krishna⁶
Recebi sua carta e duas edições de seu periódico, as quais me interessam muito. A opressão da maioria por uma minoria e a inevitável desmoralização resultante dela é um fenômeno que sempre me ocupou, e o tem feito ainda mais particularmente nos últimos tempos. Tentarei lhe explicar o que penso sobre esse assunto, em especial sobre a causa pela qual os terríveis males que o senhor escreve em sua carta e no periódico hindu que me enviou surgiram e continuam a aumentar.
A razão do fato surpreendente de que a maioria dos trabalhadores se submete a um punhado de preguiçosos que controlam seu trabalho e suas próprias vidas é sempre a mesma coisa em toda parte, quer os opressores e oprimidos sejam da mesma etnia, quer sejam de etnias diferentes, como na Índia e em outros lugares. Esse fenômeno parece particularmente estranho na Índia, pois mais de duzentos milhões de pessoas altamente dotadas física e mentalmente encontram-se no poder de um pequeno grupo de indivíduos bastante estranho para elas em pensamentos, e incomensuravelmente inferiores em relação à moral religiosa.
Eu li sua carta e os artigos do Free Hindustan, bem como os escritos muito interessantes do hindu Swami Vivekananda e de outros. Parece que, como é o caso em nosso tempo com os males de todas as nações, a razão está na falta de um ensino religioso razoável. Ao explicar o significado da vida, esse ensino forneceria uma lei suprema para a orientação da conduta e substituiria os preceitos mais do que duvidosos da pseudorreligião e pseudociência, e as conclusões imorais deduzidas delas, que são comumente chamadas de civilização
.
Sua carta, os artigos do Free Hindustan e a literatura política indiana geralmente mostram que, entre seu povo, a maioria dos líderes da opinião pública não atribui mais significado aos ensinamentos religiosos que eram e são professados pelas diferentes etnias da Índia. Eles não reconhecem a possibilidade de libertar o povo da opressão que suportam, exceto adotando os arranjos sociais irreligiosos e profundamente imorais sob os quais os ingleses e outras nações pseudocristãs vivem hoje.
E, no entanto, a principal – senão a única – causa da escravidão dos povos indianos pelos britânicos reside na própria ausência de uma consciência religiosa e na orientação para a conduta que deve advir dela – uma falta comum em nossos dias a todas as nações do Ocidente e do Oriente, do Japão à Inglaterra e também à América.
2
Ó, vocês que veem perplexidades sobre suas cabeças, sob seus pés, às suas direitas e esquerdas – vocês serão um enigma eterno para si mesmos até se tornarem humildes e alegres como crianças. Só então Me encontrarão, e, tendo Me encontrado em si mesmos, vocês dominarão os mundos. E olhando do grande mundo interior para o pequeno mundo exterior, abençoarão tudo o que são e descobrirão que tudo está certo com o tempo e com vocês.
– Krishna
Preciso voltar um pouco para deixar meus pensamentos mais claros para o senhor. Nós não podemos, e ouso dizer que não precisamos, saber como os homens viveram milhões de anos atrás, ou mesmo há dez mil anos. Mas sabemos muito bem que, já que temos algum conhecimento da humanidade, sempre vivemos em grupos especiais de famílias, tribos e nações nas quais a maioria, na convicção de que deve ser assim, se curvou submissa e voluntariamente ao governo de uma ou mais pessoas – uma minoria muito pequena. Apesar de todas as variedades de circunstâncias e personalidades, essas relações se manifestaram entre os vários povos de cuja origem temos algum conhecimento. E quanto mais longe voltamos, mais esse arranjo parece absolutamente necessário, tanto para governantes quanto para governados, pois foi o que possibilitou que as pessoas vivessem juntas pacificamente.
Então estava em todo lugar. Todavia, embora essa forma de vida externa tenha existido por séculos, e ainda exista, muito cedo (milhares de anos antes do nosso tempo), em meio a essa vida baseada na coerção, um pensamento emergia constantemente entre as diferentes nações: em cada indivíduo é manifestado um elemento espiritual que dá vida a tudo o que existe, e é este elemento que se esforça para se unir com tudo de natureza semelhante a si mesmo, atingindo esse objetivo através do amor. Esse pensamento apareceu de várias formas, em diferentes épocas e lugares, com variada abrangência e clareza. Ele encontrou expressão no bramanismo, judaísmo, zoroastrismo (os ensinamentos de Zoroastro), budismo, taoísmo, confucionismo, nos escritos dos sábios gregos e romanos, no cristianismo e no islamismo. O simples fato de esse pensamento ter surgido entre diferentes nações e em momentos diferentes indica que é inerente à natureza humana e contém a verdade. Contudo, essa verdade foi divulgada àqueles que consideravam que uma comunidade só poderia ser mantida unida se algumas delas restringissem as outras, e, portanto, parecia ser bastante inconciliável com a ordem existente da sociedade. Além disso, a princípio ela foi expressa apenas de maneira fragmentária e tão obscura que, embora as pessoas admitissem sua verdade teórica, não podiam aceitá-la inteiramente como orientação para sua conduta. Assim, a disseminação da verdade em uma sociedade baseada na coerção sempre foi prejudicada da mesma maneira. Os que estão no poder, sentindo que o reconhecimento dessa verdade minaria sua posição, consciente, ou até inconscientemente, a perverteram através de explicações e acréscimos bastante estranhos a ela, e também se opuseram a ela por violência aberta.
A verdade era, e ainda é, que esta vida deve ser dirigida pelo elemento espiritual que é a sua base, que se manifesta como amor e que é tão natural para o homem. Mas essa verdade, a fim de forçar um caminho para a consciência do homem, teve que lutar não apenas contra a obscuridade com que era expressa e as distorções intencionais e não intencionais que a cercavam como também contra a violência deliberada, que por meio de perseguições e de punições procurava obrigar os homens a aceitar leis religiosas autorizadas pelos governantes e conflitantes com a verdade. Tal obstáculo e deturpação da verdade, que ainda não havia alcançado absoluta clareza, ocorreram em toda parte – no confucionismo, no taoísmo, no budismo, no cristianismo, no islamismo e no seu bramanismo.
3
Minha mão semeou amor em toda parte, dando a todos que o recebem. Bênçãos são oferecidas a todos os Meus filhos, mas muitas vezes, em sua cegueira, eles deixam de vê-las. Quão poucos são os que recolhem os presentes que jazem em profusão aos seus pés. Quantos há que, em desobediência intencional, desviam os olhos e reclamam com um lamento que não têm o que Eu lhes dei. Muitos deles repudiam desafiadoramente não apenas Meus dons, mas também a Mim – Eu, a Fonte de todas as bênçãos e Autor de seu ser.
– Krishna
Tardo um pouco a agitação e as contendas do mundo. Embelezarei e vivificarei sua vida com amor e com alegria, pois a luz da alma é o Amor. Onde o Amor está, há contentamento e paz; onde há contentamento e paz, eu também estou ali no meio deles.
– Krishna
O objetivo do Ser sem pecado consiste em agir sem causar tristeza aos outros, embora ele pudesse alcançar grande poder ignorando seus sentimentos. O objetivo do Ser sem pecado reside em não fazer o mal àqueles que fizeram o mal a ele. Se um homem causa sofrimento mesmo àqueles que