Pequenas Catástrofes
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Pequenas Catástrofes - Nicole Oliveira
CONSELHO EDITORIAL
Ana Paula Torres Megiani
Eunice Ostrensky
Haroldo Ceravolo Sereza
Joana Monteleone
Maria Luiza Ferreira de Oliveira
Ruy Braga
Pequenas catástrofes. Autor, Nicole Oliveira. Editora Alameda.Copyright © 2022 Nicole Oliveira
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.
Edição: Joana Monteleone e Haroldo C. Sereza
Projeto gráfico, diagramação e capa: Guilherme Vasconcelos
Assistente acadêmica: Tamara Santos
Revisão: Alexandra Colontini
Produção de livro digital: Booknando
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
O48p
Oliveira, Nicole
Pequenas catástrofes [recurso eletrônico] / Nicole Oliveira. - 1. ed. - São Paulo : Alameda, 2023.
recurso digital
Formato: ebook
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-5966-185-5 (recurso eletrônico)
1. Contos brasileiros. 2. Livros eletrônicos. I. Título.
23-84672 CDD: 869.3
CDU: 82-34(81)
Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439
22/06/2023 29/06/2023
ALAMEDA CASA EDITORIAL
Rua Treze de Maio, 353 – Bela Vista
CEP: 01327-000 – São Paulo – SP
Tel.: (11) 3012-2403
www.alamedaeditorial.com.br
Para Lis, porque tudo é para ela.
Agradeço ao Marcos Campos e ao Pedro Botton
por todo o apoio nessa jornada.
Sumário
Gênesis
PARTE I — das catástrofes ambientais
Água
Terra
Fogo
Ar
PARTE II. A Vida catastrófica das mulheres
Lia
Estela
Martina
Amália
Jenna
Carmem
Gracinda
Paloma
PARTE III. Dos problemas
O problema da morte
O problema dos demônios
O problema das ninfas
O problema das mães
O problema do calor
PARTE IV — A Astrologia do Final do Mundo
A astrologia do final do mundo
O juízo final
Gênesis
Numa manhã de verão, eis que o mundo, entediado em seu equilíbrio imperfeito decide criar o humano. Com um pouco de água salgada e carne de todos outros animais, o mundo confecciona o humano, e como era previsto, ele nasce angustiado.
Outros humanos são criados para perambularem junto ao primeiro humano e diminuir a sua angústia. Mas esses nascem angustiados também. E quanto mais humanos, mais angústia, de modo que o mundo perde o controle da sua criação.
Os humanos angustiados atormentam e agridem uns aos outros. Com a chegada do outono, essa angústia se expressa às vezes em socos e pontapés, outras em cuspidas na cara e puxões de cabelo, outras em tapas e beliscões, e em uma delas em um ferimento profundo, dolorido e mortal. Um humano inventa a morte dos humanos perfurando a carne e deixando escorrer sangue do seu irmão-inimigo até que este não respire mais. Mas seria ele o único culpado dessa estúpida invenção?
Será que o humano culpado realmente tinha culpa, uma vez que ele também já fora rasgado e sobrevivera? Sentir a culpa era pior do que viver rasgado, pensava ele. Sentir a culpa era o prenúncio da tragédia de todos os humanos. Sentir a culpa era sentir o dedo comprido de alguém apontado para si de modo que você não pudesse se mover sem que essa sombra o acompanhasse. O humano culpado disse que o dedo era de Deus e assim o nosso Criador estava criado para todo o sempre. Na mesma hora, o dedo que apontava se transformou numa mão aberta com a palma virada para cima, como quem pede.
O humano criou Deus e com ele a necessidade de oferecer. Deus estava sempre com a palma da mão aberta, pedindo o sangue dos outros humanos. E era preciso oferecer para que a palma ficasse aberta e não virasse novamente um dedo apontando para qualquer um. Esse era o segredo dos humanos para aliviar aquela angústia. Jorrar sangue na palma de Deus. E Deus queria mais, sempre mais sangue.
Um dia, um humano mais angustiado do que o habitual se revoltou contra a palma da mão aberta. O humano revoltado mostrou por um ângulo certeiro que a palma aberta nunca deixou de ser um dedo apontado. Era uma questão puramente angular. E então ele falou que o sangue derramado deveria ser substituído por uma coisa mais simples, chamada virtude. Ninguém achou simples. A virtude não tinha matéria.
A matéria da virtude será a carne de nossos dias, ele respondeu. A carne de nossos dias será feita de acordar, olhar lá do alto o dedo apontado para nós, se arrepender da culpa pelo sangue derramado, trabalhar para que o sangue estanque e por último, ir dormir. No dia seguinte faremos a mesma coisa. Mas não derramaremos mais sangue, perguntaram os humanos. Não para a palma da mão de Deus, porque a palma nunca foi palma, foi sempre um dedo apontado.
Desde então os humanos acordam, observam o dedo de Deus apontado, se arrependem do que são e do que foram, trabalham para estancar o sangue e dormem para começar de novo. A virtude é feita da carne de nossos dias. A virtude é feita da dívida para com Deus.
...
Estamos no ano de 2021 depois de Cristo, com possibilidade de esse número estar errado um pouco para mais ou um pouco para menos.
Algumas verdades já foram constatadas pela humanidade, enquanto outras ainda permanecem mistério ou especulação. Trataremos aqui de ambos os assuntos: os verdadeiros e os de caráter misterioso, pois creio ambos tem a mesma importância e fazem parte daquilo que construímos juntos para chamar de sociedade. Daquilo que destruímos juntos também.
Eu peço para aquele que se aventurar como leitor, que não tenha medo e nem preguiça, pois esses dois sentimentos podem surgir diante de qualquer leitura, ainda mais quando o assunto é tão desagradável como catástrofes, e tão desimportante, já que são pequenas. Pequenas catástrofes. Insuficientes para colocar tudo e todos pelos ares, mas suficientes para colocar alguns. Esse é o ponto: algumas vidas implodem, explodem, derretem ou esticam mais do que outras.
Portanto, será preciso domesticar o corpo, arregalar os olhos e aquecer o cérebro para que mulheres, homens, e outros seres de igual relevância compreendam as peripécias que levaram a Terra a se tornar um lugar triste e sombrio.
Infelizmente eu escrevo em língua portuguesa, o que pode dificultar o acesso e entendimento desse livro por uma parcela considerável do planeta. Não pedirei desculpas por isso.
PARTE I
Das Catástrofes
Água
Sabe-se, por exemplo, que as geleiras dos polos do planeta estão derretendo um pouquinho por dia, causando catástrofes ambientais previstas por ocultistas e cientistas. A população tem conhecimento do assunto, mas pode no máximo se angustiar diante da iminência de um alagamento, ou viver chateada por estar exposta ao frio ou calor extremo. Alguns pararam de comer carne ou de usar calça jeans, mas de nada adianta porque a água já esta batendo na nossa canela.
A primeira tristeza vem de o fato de que os ursos polares vão desaparecer. Inclusive, se você é um leitor do futuro, talvez você nunca tenha ouvido falar sobre eles. Ursos polares são, ou eram, animais mamíferos que habitam os polos do planeta Terra, quando este é compreendido como esférico e não plano. Eles são brancos, peludos, gelados e fofinhos, ainda que não possamos abraçá-los porque também são violentos com animais de outra espécie, como nós. Junto com eles, as focas marinhas, algumas espécies de lontras e pinguins, a raposa do ártico, a baleia branca e a andorinha do mar. Todos serão derretidos com o gelo e formarão um imenso mar de cadáveres que irá inundar nossas casas, destruir nossas estruturas sólidas e contaminar nossas redes de encanamento.
Dizem que as geleiras estão derretendo por um processo chamado aquecimento global, que tem a ver com o excesso de poluentes que as fábricas terráqueas produzem para dar conta de suprir nossas necessidades de consumo e gerar lucro para seus donos. A Terra está sob estado febril e delira quando perguntamos pra ela seu nome completo e idade. Os termômetros marcam um calor atordoante e úmido, de modo que os humanos suam sem parar contribuindo para aumentar os níveis de água não potável.
Há uma oração declamada para os céus nos dias mais quentes, que é mais ou menos assim:
Ó espaço infinito e misericordioso,
Ó Deus do impossível e das coisas possíveis também,
Ó Senhor criador de tudo que existe e que deixará de existir,
Não deixe que sequemos nem que desidratemos
Não permita que a umidade embolore nossos lares e corações
Não movimente tanto o oceano de um lado para o outro
Sobretudo, tenha pena dos humanos de fé
Nós não sabemos como resolver nossos problemas
Nem os problemas dos animais polares
Mas somos filhos do Senhor e exigimos alguma proteção divina
Segure com as suas mãos sagradas o tempo e o sol
Para que sigamos nos caminhos obscuros da vida
Amem.
A oração é insignificante e pouco conhecida, assim como o próprio fenômeno do aquecimento das geleiras, que pode ser visto como verdade, constatado na própria pele, afirmado por ambientalistas, mas mesmo assim também pode ser que não. Alguns avós dizem que já era quente em 1930, e que o fenômeno é bom pra ir à praia e tomar um sorvete no calçadão. Ninguém discorda. Há quem pense que ursos polares já estão em extinção há séculos, ou que simplesmente nunca existiram. Há quem tenha mais pena dos esquimós.
Há ainda quem não acredite mais em polos. A gente acreditou nisso por tantos séculos que de repente teve gente que enjoou e voltou a pensar que a Terra poderia ser plana como um disco. A gente sabe que isso não tem o menor sentido, mas parece que o assunto tem cada vez mais adeptos o que tem como consequência o ressurgimento de tudo que existia quando a terra é plana. Lá se vão os ursos polares e vêm à tona os monstros marinhos. Lá se vai a lei da gravidade e temos de volta barcos que nadam até a ponta do planeta plano e caem subitamente no vazio do universo. Lá se vão às estações do ano e lá se vem às sereias que encantam piratas desavisados. O eterno retorno previsto pelo filósofo. O capitalismo sente saudades do mercantilismo. Eu sinto saudades de quando nadava com a minha irmã na praia fingindo que éramos sereias. Nunca imaginei que viveria para ouvir falar de uma sereia de verdade.
Só pra não dizer que esse livro é injusto e toma partido dos ursos polares, eu quero aproveitar para falar um pouco dos monstros marinhos. Eles sumiram quando Galileu arredondou a Terra e reapareceram com a eleição do nosso atual presidente. Não há conexão clara entre os fenômenos. Há monstros de três naturezas: os escamosos, os carentes e os desaparecedores. Os escamosos são comuns e recebem esse nome porque simplesmente