Ingrid, a filha do comandante
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Sobre este e-book
Apaixonado por Ingrid, e sem saber a verdadeira identidade do pai da garota, Waldman envolve-se num relacionamento amoroso que o abalará profundamente, para sempre.
Nessa comovente autoficção, o autor nos permite acessar seus pensamentos mais íntimos e angustiantes. Pensamentos que nascem de um passado cruel. E que ressoam ainda hoje.
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Ingrid, a filha do comandante - Gabriel Waldman
1
Assisto ao filme A lista de Schindler e, enquanto vejo o horror, reflito sobre Ingrid e os monstros sagrados ou nefandos que todos nós portamos em nossa alma. Segredos de ternura e de amor desperdiçados e saturados de remorso; outros, tenebrosos, inconfessos e inconfessáveis. Todos eles acorrentados e presos a sete chaves nos recônditos mais íntimos e profundos de nosso ser, a salvo da incursão dos escarafunchadores da alma e apenas vagamente intuídos por nós mesmos em pesadelos e devaneios. (Assisto à cena da execução randômica dos presos realizada por Amon, comandante do campo.) Os segredos dormitam como Belas (e Feias) Adormecidas, quietos, contidos, e, no suspiro final de seus donos, despertam e se esvaem silenciosos, invisíveis pela última contração dos lábios e pela derradeira torção das narinas. E levam consigo sua carga pesada de ressentimentos, mágoas e culpas. (Na tela, a cena da execução dos judeus na cidade.)
Mas nem sempre é assim. Às vezes basta uma palavra, um incidente ou um filme como esse de agora para acordar e libertar os fantasmas que nos assaltam insinuante e amorosamente ou arrastando suas correntes enquanto uivam em fúria. Cabe a nós, então, confrontá-los, apavorados e constrangidos, antes da hora fatal.
Penso assim, um tanto pomposo, enquanto assisto assoberbado ao filme com meus amigos, os Três Mosqueteiros que eram quatro, o D’Artagnan (eu) incluso. Como no livro de Dumas. No início de nossa amizade, eles me toleravam um tanto relutantes devido a meu português claudicante, frequentemente incompreensível, e sotaque atroz. Eu era uma espécie de peça de museu, cada vez mais rara, por ser o único sobrevivente do Holocausto no grupo, e, ainda por cima, um autêntico fugitivo do comunismo. Nas horas vagas sou escritor, autor de alguns livros medíocres que os Três Mosqueteiros elogiam por caridade e que colhem poeira nas livrarias. Alan, Celso, Mario e eu, Gabriel, o refugiado húngaro, contemplamos as imagens sem mexer um músculo, as pupilas coladas na tela. Os Três Mosqueteiros que eram quatro.
Já não sei mais a que altura do filme Ingrid aparece à minha frente na escuridão do cinema. O fantasma-mor, a fúria mais rebelde de minha alma, a guardiã do segredo mais bem guardado de meu passado turbulento. Ela não arrasta correntes como os fantasmas traquinas habitualmente fazem, nem precisa. Está acorrentada a mim indelevelmente pela nossa história comum. A alemã, filha de um herói incensado do Terceiro Reich e genocida da gema, exibe sem ostentar sua condição ariana com ascendência racial impecável. Cordeiro em pele de lobo que trota com a alcateia, mas que, no fundo da alma, é cordeiro manso e ama um judeu proscrito, e que, pelo amor que me dedica, dobraria sem hesitar os joelhos e recitaria o kadish[*] diante do tumulo dos mártires. Cabelo loiro flamejante em rabo de cavalo, olhos azuis de agredir a vista de quem os contempla, uma verdadeira Lorelei das lendas germânicas, para quem se liga apenas ao visual. Uma simbiose da piedade de Madre Teresa de Calcutá com a determinação férrea de Scarlett O’Hara, para quem sabe ler os códigos do coração.
— Olá, Ingrid — cumprimento-a. — Você deveria aparecer na hora do meu último suspiro. Antecipou-se um pouco.
— Pois é, Gabor. — Meu nome em húngaro. — E quem resiste à Lista de Schindler?
(Cena de Amon executando os presos.)
— E agora, Ingrid, o que você diz? Entre seu pai e o imperativo não matarás
, qual deles você escolhe? Entre mim, o judeu
, e a ideologia racial, qual é a escolha mais justa?
Eu nem precisaria perguntar: a resposta brilha em seus olhos, no beijo que ela deposita em meu rosto, nos cabelos que colam em minha face, e eu a abençoo por isso. Percebo, alarmado, que cada vez mais eu penso e vejo o filme com os olhos de Ingrid.
Precisamente às dez horas daquela noite de primavera desconcertante de calor tropical intercalado por instantâneas rajadas de vento gélido, saímos do Cine Belas Artes. Zonzos, desequilibrados depois da surra na sensibilidade e no sistema nervoso, uivamos por uma caneca de chope para lubrificar a garganta seca e acalmar as emoções. Desabamos no bar Riviera, do outro lado da rua da Consolação. Os chopes já estão na mesa junto com um prato de frituras e ninguém fala nada. Não por falta de esforço. O silêncio nos sufoca, ansiamos por recuperar algum semblante de normalidade. Mas falar o quê? Detalhes técnicos do filme? A posição da câmera, talvez? A iluminação? A interpretação? Pura banalização; só as vítimas têm o direito de testemunhar sobre aqueles dez anos da noite interminável e tormentosa da história, e elas não têm mais voz. E eu continuo a pensar em Ingrid com uma dolorosa saudade e uma ponta de culpa.
Já estamos quase nos despedindo para cada um voltar à casa com a alma pesando nos calcanhares e os pensamentos voando em torno do filme e seus trechos fortes, inesquecíveis. Mario finalmente encontra as palavras certas. Não são palavras humanas, pois ninguém, vivo ou morto, dispõe da autoridade moral para verbalizar o sagrado. O Holocausto exige introversão, reverência, oração e lágrimas. E talvez um amém
contrito. Tudo a mais seria sacrilégio. Ele declara, olhando para dentro de sua alma:
— A ira do Senhor se abate sobre dez gerações de quem ouse levantar o braço contra Seu Povo. É o que diz o livro sagrado.
A perspectiva de uma justiça divina alivia-nos prontamente. O caso agora está numa instância mais alta, não somos mais protagonistas responsáveis por nossa contemporaneidade.
Nossas almas apaziguadas voltam a seu devido lugar, no peito, e os pensamentos finalmente enxergam a luz do dia na escuridão do desespero. Agora sim podíamos pensar em nos recolher, consolados pelo enunciado bíblico e reconfortados pelo castigo infalível que fatalmente atingirá os infratores da sentença divina.
Alan ainda procura contestar:
— Não me lembro dessa profecia no Talmude. Não seria apócrifa?
Mario dá de ombros, e diz:
— E a Torá e a Bíblia não o são? Ou você pensa que um dia Deus sacou sua esferográfica e escreveu de próprio punho os livros sagrados? Foram profetas e rabinos que os escreveram, e em alguns casos os cometeram. Séculos depois, algum burocrata da religião, satisfeito com seu desjejum, apôs-lhes o carimbo Imprimatur
, e eles ganharam prestígio e autenticidade. — Então, ele me mede de alto a baixo e acrescenta, com um escarnio cruel: — Que nem os teus livros, Gabor. Jamais saberemos se são biográficos mesmo ou se são pura fantasia de escritor.
Não respondo. Deixo a discussão sobre a profecia ficar entre os dois amigos. Para que me expor?
Sentindo a dúvida desfeita, Mario acrescenta, para reforçar as palavras inspiradas:
— Ai de nós. Desta vez, não bastarão dez gerações.
Frase perfeita para a ocasião. Inconteste, definitiva. Alguns de nós talvez se ajoelhem antes de dormir, agradecendo-lhe a bondade de ter tirado o peso do Holocausto de nossas costas. Crime e castigo, como diria Dostoiévski, nessa ordem infalível. Bom sono.
Celso pede a conta e apenas eu fico sentado, pensativo, hesitando entre o silêncio, com a perspectiva de uma noite de sono reparador, e a oposição às palavras de Mario, acompanhada por uma noite turbulenta de discussões. E lá mesmo, no assento plástico do bar Riviera, passo a remoer minha história pessoal.
A maldição de Deus não deveria se dirigir a mim, apesar de eu pertencer ao ‘Povo do Senhor’?
, pergunto-me. E Ingrid, não seria ela a injustiçada, apesar de pertencer ao povo que levantou o braço?
A vida é por demais complicada. Um turbilhão em perpétuo movimento no qual o joio vira trigo, o certo vira errado e vice-versa em frações de instantes. Um redemoinho de ilusões num caleidoscópio desvairado. Penso nisso e quero logo revogar o pensamento, pois não sei como transmiti-lo a meus amigos.
Mas urge dizer algo, não posso deixar a hipocrisia vencer só por ser a solução mais cômoda. Celso já está pagando a conta, e Mario calcula a parte que cabe a cada um de nós; os olhares convergem para minha postura conspicuamente inerte, como quem não pretende levantar tão cedo assim. Sei, porém, que enunciar o que penso resultaria numa noite de revelia e quatro almas confusas. Tarde demais:
— Dez gerações, você diz. — Encaro Mario relutante, porém com desafio. — Mas, quando Eros e Thanatos, em conluio íntimo, se apossam de nossas almas, aí sim se pode encontrar um atalho entre as gerações danadas e o perdão do Senhor.
Tenho a impressão de repetir o que Ingrid sussurra em meu ouvido.
Alan me rebate da altura de seu diploma de psicólogo:
— Caraca, amigo. Eros e Thanatos, amor e morte, são pulsões antagônicas em extremos opostos do espectro psicológico.
Admiro a precisão léxica de seu raciocínio. O próprio Freud não diria melhor. Ele continua:
— Um ou outro prevalece em nossa vida. Jamais os dois juntos.
Decido apelar, e dane-se a noite de sono. Em deferência a meus amigos, procuro evitar ares de intelectual esnobe e imprimir a minhas palavras a leveza de mera hipótese:
— Pelas teorias antigas de astrofísica, o homem jamais chegaria aos confins do universo. A duração limitada da vida não permitiria. Mas, pela teoria da relatividade, existem atalhos no espaço, os tais buracos de minhoca
jamais comprovados, que aparecem nos cálculos matemáticos e permitem encurtar a jornada. Se existe no espaço, por que não na psicologia? Usando a imaginação, por que não diminuir a distância entre os dois extremos, Eros e Thanatos? E, indo só um pouquinho mais longe, por que não buscar algum atalho, algum buraco de minhoca
entre as dez gerações danadas da Bíblia? E encurtar a duração do castigo?
Alan interrompe no limite de sua