Os meninos da rua Paulo
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Sobre este e-book
"Os meninos da rua Paulo" atravessou o século XX encantando gerações em todo o mundo. Escrito pelo dramaturgo, escritor e jornalista húngaro Ferenc Molnár, a história desses bravos e leais meninos conquistou leitores que se viram em situações parecidas — mesmo que em lugares muito distantes da Hungria, como o Brasil — ou que já se sentiram como o líder Boka, o pequeno Nemecsek ou os rivais Barabás e Kolnay.
Um romance que representa, de forma magnífica, a passagem da infância para a juventude, com algumas passagens comoventes e outras deliciosamente alegres.
Esta edição conta com tradução direta do húngaro, por Edith Elek, e ilustrações de Rubem Filho. O prefácio é da historiadora Elisa Defelipe e o texto de orelha é da cineasta Sandra Kogut.
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Os meninos da rua Paulo - Ferenc Molnár
Título original: A Pál utcai fiúk
© direitos de tradução reservados à Editora Nova Fronteira Participações S.A.
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
M727m
Molnár, Ferenc
Os meninos da rua Paulo / Ferenc Molnár ; traduzido por Edith Elek. – 2. ed. – Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2023.
Formato: epub com 7.140KB
Título original: A Pál utcai fiúk
ISBN: 978-65-5640-742-5
1. Literatura húngara I. Elek, Edith. II. Título.
CDD: 894
CDU: 821.511.141
André Queiroz – CRB-4/2242
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Sumário
Prefácio
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
Sobre o autor
Prefácio
Quando vou viajar para um lugar que ainda não conheço, costumo ler romances ambientados na cidade ou no país que vou visitar. Assim, as ruas, os nomes dos personagens, algumas características do clima ou os hábitos do lugar vão ganhando contornos, aguçando a minha curiosidade, e o desconhecido vai se tornando mais próximo. O contrário também bem que pode acontecer, como já diria Gilberto Gil. A partir da leitura de um livro, a curiosidade em conhecer uma época ou um lugar pode surgir. Não sei se acontecerá assim com você, caro leitor, mas foi exatamente isso que aconteceu comigo ao ler Os meninos da rua Paulo.
Ainda não conheço Budapeste, uma cidade muito antiga, dividida em duas partes, Buda e Peste, cortada pelo rio Danúbio e hoje capital da Hungria. A história se desenrola em Peste, região com menos montanhas e muitas planícies. Conheço, no entanto, a época em que o livro foi escrito e a história deste lugar: precisamente 1907, início do século XX, às vésperas da Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
Nessa época, Budapeste pertencia ao Império Austro-Húngaro (1867-1918), que dominava diversos reinos e ducados da Europa Ocidental. Enorme! Era menor apenas que o Império Russo, vizinho potente e também rival. Por ser tão grande e por ter dominado várias regiões (e perdido algumas, como parte da Itália), existiam diversos grupos étnicos e religiosos em disputa, dentro e fora das fronteiras. Eram muitos os conflitos políticos e territoriais.
Alguns dos povos que viviam ali reivindicavam direitos específicos relativos à língua ou à religião; outros queriam se separar e não obedecer mais ao poder central deste império dual liderado pelos Habsburgos.
A Europa vivia o que os historiadores chamam de barril de pólvora
. Em um intervalo relativamente curto, aconteceram diferentes guerras nacionalistas e imperialistas, disputas por mercados ou pela construção de ferrovias. Era nesse ambiente que viviam os meninos da rua Paulo, nessa atmosfera que cheirava a pólvora e tensão. E eles não poderiam passar incólumes por isso. Repare na disputa imperialista (por territórios) destacada nesta passagem:
Pois é, eles tomaram a decisão de guerrear pelas mesmas razões que os verdadeiros soldados costumam ir à guerra. Os russos precisavam de mar, por isso brigavam com os japoneses. Os camisas vermelhas precisavam de um lugar para jogar bola e, como não conseguiam de outro jeito, iriam tentar pelo caminho da guerra.
(p. 68, grifo meu.)
Em meio a tal clima beligerante, alguns países europeus formaram alianças militares, a fim de se defenderem ou atacarem de forma mais organizada. Foi o caso do Império Austro-Húngaro, do Império Alemão e da Itália, que, juntos, formaram a Tríplice Aliança. Havia, no entanto, o outro lado, a aliança rival: a Tríplice Entente, formada por Reino Unido, França, Rússia (até 1917) e Estados Unidos (a partir de 1917). Deu-se a Primeira Guerra Mundial e a derrota da Tríplice Aliança ocasionou o fim daqueles dois impérios e a formação de novos países na antiga região. É por isso que Budapeste hoje é a capital da república da Hungria.
Foi vivendo tão de perto essa realidade que Ferenc Molnár escreveu Os meninos da rua Paulo. Molnár chegou inclusive a trabalhar como correspondente durante a Primeira Guerra e, posteriormente, teve que emigrar para fugir dos horrores da política nazista e da Segunda Guerra. Você poderá perceber, durante a leitura do livro, o ambiente tenso e de batalhas em que aqueles meninos cresciam, numa clara militarização do cotidiano infantojuvenil. A forte hierarquia militar sob a qual as brincadeiras eram organizadas, os valores como honra, bravura e coragem apontados nos meninos que se destacavam, a obediência a um líder, a valorização de símbolos de guerra — a bandeira roubada, os brados, os uniformes, as armas —, juramentos a leis e, por fim, a honra e a defesa do grund como se aquele lugar fosse a pátria dos meninos, tudo isso faz mais sentido quando entendemos o contexto histórico em que o Império Austro-Húngaro estava envolvido. Repare como a bandeira, tão cara aos meninos, ganha contornos militarizados:
A pequena bandeira estava amassada, rasgada, se via que já passara por brigas. Mas era exatamente isso que era bonito de se ver. Ela estava em trapos como uma verdadeira bandeira que foi estragando em meio a batalhas. (p. 135.)
A disputa e a rivalidade com o grupo dos camisas vermelhas revela também particularidades do que é ser jovem na Europa de mais de um século atrás. Contudo, é importante destacar que a juventude, como categoria social, era um fenômeno então recente. Até pouco tempo, em termos históricos, brincar era um privilégio para poucos. Crianças e jovens mal cresciam e já precisavam trabalhar. A configuração das escolas como instituição de massas se relaciona diretamente com a Revolução Industrial. Por muitos séculos, foram os adultos com alguma relação de parentesco que ensinavam às crianças os valores da própria comunidade. Com as fábricas e a crescente urbanização, os pais precisaram trabalhar por longos períodos fora de casa. A educação então deixou de ser uma função familiar e passou a ser uma necessidade do Estado para com os filhos dos trabalhadores.1
Nas escolas, além de aprender a ler, escrever e ter uma profissão, os jovens fortalecem laços com pares etários homogêneos, ou seja, se relacionam com pessoas de idades próximas, mas que não pertencem necessariamente à mesma família. Nesse espaço que os aparta do restante da sociedade tantas horas por dia, eles criam acordos, novos hábitos, novas formas de ser, modos de falar, de se vestir, a necessidade de pertencer, de excluir... Tudo isso foi moldando um novo grupo social formado por aqueles que não são bebês (que precisam de atenção e cuidado integral dos pais) nem adultos (que precisam trabalhar), criando o que chamamos de cultura juvenil.2
Na história de Molnár, percebemos que esse ambiente de socialização, de performar a juventude, não se limitava apenas aos muros da escola, mas transbordava para o grund. O grund era o espaço construído por aqueles meninos, o acordo que eles selavam entre si, um território para brincadeiras, mas também uma representação do que eles entendiam sobre o mundo. Conhecer as dinâmicas desse espaço nos permite entender melhor o que era ser um jovem húngaro no início do século passado.
Analisar as mudanças e permanências entre o passado e o presente é justamente a função da História, aquela com H maiúsculo. Certamente existem passagens do livro que nos remetem ao Brasil do século XXI, da mesma forma que tantas outras nos afastam da realidade brasileira. Como historiadora, tento fazer esse paralelo, especialmente em sala de aula, mas a leitura de Os meninos da rua Paulo também me levou a imaginar como seria a rua Paulo hoje em dia... Como os netos e bisnetos de Boka e sua trupe se divertiriam na Budapeste que ainda não conheço? Quais espaços, hoje, ocupariam esse lugar de afeto, de brincadeiras, mas também de disputas, que o grund representava para aqueles meninos?
Elisa Defelippe
Professora de história,
mestre em ensino de história pela UERJ
Notas
1 A princípio apenas para os meninos. Cabia às meninas cuidar das tarefas domésticas.
2 Tempos depois, após a Segunda Guerra Mundial, o mercado percebeu que os jovens eram bons consumidores e, assim, construíram uma cultura juvenil que garantia enormes lucros ao modo de produção capitalista.
I
Às quinze para uma, naquele exato momento, quando na sala de ciências naturais, sobre a mesa principal, após longas e inconclusivas experiências, finalmente, a muito custo, atingimos algum resultado, depois de uma longa e ansiosa espera, com a explosão de um lindo feixe verde-esmeralda na chama incolor do bico de Bunsen, demonstrando que com aquela mistura, com a qual o professor queria provar que pintaria a chama de verde, e ele de fato pintou a chama de verde, como eu disse: justo às quinze para uma, naquele triunfante momento, no quintal da casa vizinha, soou uma pianola e com isso toda a seriedade simplesmente se rompeu. As janelas estavam escancaradas naquele dia quente de março e, nas asas do ar fresco primaveril, a música voou para dentro da sala de aula. Eram algumas notas alegres de uma canção húngara, que lembravam uma abertura garbosa, ressoando como qualquer coisa vienense, e a classe toda desejou sorrir, aliás, teve quem de fato sorrisse. Na chama do bico de Bunsen as labaredas verdes flutuavam alegremente e ainda eram observadas por alguns garotos da primeira fileira. Mas os outros olhavam pela janela, pela qual se viam os telhados das casinhas vizinhas e, nesse dia tão lindo, a distância via-se a torre da igreja, na qual o ponteiro maior do relógio evoluía com entusiasmo em direção ao número 12. E conforme olhavam pela janela, com os ouvidos atentos, outros sons da rua, além da música, também entravam pela sala. Os cocheiros apertavam suas buzinas, em algum quintal uma empregada cantarolava, uma melodia que não se misturava com aquela do piano. E a turma começou a se movimentar inquieta. Alguns começaram a guardar seus livros nas carteiras, os mais dedicados limpavam a tinta de suas penas. Boka fechou a pequena bolsinha em que guardava seu tinteiro, forrada com couro vermelho, que tinha um fecho muito engenhoso, do qual jamais escorria tinta, a não ser que a gente a enfiasse no bolso; Csele recolheu as folhas soltas, que no seu caso substituíam os livros, porque ele era elegante, não gostava de ficar curvado carregando toda uma biblioteca embaixo do braço, como os outros; levava apenas as páginas necessárias para as aulas do dia, essas também divididas com todo cuidado, entre os bolsos de dentro e de fora do paletó; Csónakos, no banco do fundo, dava bocejos como um hipopótamo entediado; Weisz virava o bolso do avesso para se desfazer das migalhas do dia, dos seus pãezinhos que comia durante a aula, das dez da manhã até a uma da tarde, em pequenas porções; Geréb começava a arrastar os pés no chão, como quem vai se levantar; Barabás, sem nenhum pudor, estendeu sobre os joelhos o pedaço de lona encerada que lhe servia de bolsa, distribuindo os livros por ordem de tamanho sobre ela, e prendeu o conjunto com uma correia que puxava tão forte que o banco estremeceu e ele ficou vermelho como um pimentão — em suma, todos se aprontavam para sair e apenas o professor não tomava conhecimento de que em cinco minutos a aula acabaria, porque levava até o fim a afável consideração por todas as cabeças juvenis sob seus cuidados, e então perguntou:
— O que está acontecendo?
Seguiu-se um grande silêncio. Um silêncio mortal. Barabás largou a correia, Geréb recolheu os pés, Weisz desvirou os bolsos, Csónakos pôs as mãos sobre a boca para terminar de bocejar, Csele deixou suas páginas quietas, Boka enfiou rapidamente o tinteiro de couro vermelho no bolso, o qual, percebendo o bolso, imediatamente começou a vazar o belo líquido azul.
— O que está acontecendo? — repetiu o professor, mas agora todos já haviam retomado a compostura de sempre em seus assentos. Em seguida, olhou para a janela, através da qual vibravam os animados acordes da pianola, como que dizendo que não estava sob comando das ordens do professor. Mas ele insistia com seu olhar severo:
— Csengey, feche a janela.
Csengey, o pequeno Csengey, o primeiro aluno na primeira carteira, se levantou e, com seu rosto sério de sempre, foi até a janela e a fechou.
Nesse momento, Csónakos se debruçou no final do banco e sussurrou a um garoto loirinho:
— Atenção, Nemecsek.
Nemecsek deu uma olhada de esguelha para trás, depois para o chão. Uma bolinha de papel veio rolando até ele. Pegou-a e desamassou. De um lado, dizia: Passe para o Boka.
Nemecsek sabia que isso era apenas o destinatário e que a mensagem em si, o que ela dizia, estava do outro lado. Mas Nemecsek definitivamente era um rapaz de caráter e não leria uma carta que estava destinada a outra pessoa. Portanto, também fez uma bolinha, esperou por um momento oportuno, se debruçou entre os dois bancos e sussurrou:
— Atenção, Boka!
E então era Boka quem olhava para o chão, caminho frequente de troca de mensagens. Ele viu a bolinha rolando e a pegou. O outro lado da mensagem, que o loirinho Nemecsek não leu por questão de honra, ficou visível e dizia: "Reunião geral às três da tarde. Escolha de presidente no grund. Espalhar a notícia."
Boka escondeu o pequeno papel no bolso e deu mais uma amassada na bolinha contra os seus livros. Era uma hora. O sinal começou a bater e agora o professor também teve de admitir que a aula havia acabado. Ele desligou o bico de Bunsen, ditou a lição de casa e foi até o acervo das coleções da escola, onde cada vez que a porta era aberta avistavam-se animais empalhados, pássaros amontoados com seus olhos de vidro em expressões vazias, e onde num canto, em silêncio, ficava o segredo dos segredos, o horror dos horrores, um esqueleto humano amarelado pelos anos.
Em um piscar de olhos, a turma toda estava fora da sala. Na escadaria com várias colunas, os alunos corriam com tudo e a velocidade só diminuía quando surgia em meio à algazarra a silhueta de um professor. Então, os mais apressados freavam um pouco, o som se abrandava, mas mal o professor desaparecia após uma curva, recomeçava a correria.
No portão, uma enxurrada de crianças saía da escola. Metade virava à direita, metade, à esquerda. Os professores passavam por eles e eles logo tiravam os bonés. Todos cansados, esfomeados, seguiam conversando pela rua ensolarada com um leve torpor na cabeça que começava a se dissolver lentamente em meio ao espetáculo e às alegrias do cenário da rua. Como prisioneiros que acabaram de ser soltos, cambaleavam na súbita grande porção de ar e raios de sol, zanzavam em meio a essa cidade barulhenta, fresca e frenética, que