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Nigeria Jones
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E-book411 páginas6 horas

Nigeria Jones

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Sobre este e-book

Princesa guerreira.
É assim que o pai de Nigeria Jones a chama. Ela foi criada como parte do Movimento — o grupo separatista e antissistema de seu pai — para se conectar com seus ancestrais e ajudar outros jovens a alcançar a libertação.
Mas quando sua mãe, a matriarca perfeita do Movimento, vai embora, o mundo de Nigeria desaba. De repente, ela se vê cuidando de seu irmãozinho e assumindo um papel que nunca quis para si mesma.
Antes de partir, porém, a mãe deixou um último desejo secreto: que Nigeria, que sempre foi educada em casa, entrasse para uma escola de elite e descobrisse mais do mundo fora do Movimento. Mesmo diante da desaprovação do pai, Nigeria vê isso como uma oportunidade de trazer a mãe de volta para sua vida, mas a jovem não está preparada para as verdades chocantes que isso irá revelar.
O novo livro de Ibi Zoboi entrega uma singular e ousada história que explora raça, feminismo, dinâmicas familiares complexas e a importância de descobrir quem somos e de lutar por nós mesmos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento15 de jul. de 2024
ISBN9786555115536
Nigeria Jones
Autor

Ibi Zoboi

Ibi Zoboi is the New York Times bestselling author of American Street, a National Book Award finalist; Nigeria Jones, a Coretta Scott King Award winner; Pride; My Life as an Ice Cream Sandwich; Okoye to the People: A Black Panther Novel for Marvel; and the Walter Award and LA Times Book Prize–winning Punching the Air, cowritten with Exonerated Five member Yusef Salaam. She is also a two-time Coretta Scott King Honor Award winner for her picture book The People Remember and her middle grade biography of Octavia Butler, Star Child. She is the editor of the anthology Black Enough. Born in Haiti and raised in New York City, she now lives in New Jersey with her family. You can find her online at ibizoboi.net.

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    Pré-visualização do livro

    Nigeria Jones - Ibi Zoboi

    PREÂMBULO

    Eu, Nigeria Jones, para me tornar uma menina Negra mais perfeita, estabelecer a justiça, garantir a tranquilidade interior, viabilizar minha defesa, promover o meu bem-estar geral e assegurar as Bênçãos da Liberdade a mim mesma e à minha posteridade, ordeno e estabeleço esta Constituição para os estados íntegros, completos e unidos de Nigeria Jones.

    ARTIGO I

    DIA DA INDEPENDÊNCIA

    O que, para o escravizado americano [essa menina Negra], é o seu Quatro de Julho? Eu respondo: um dia que [me] revela, mais do que todos os outros dias do ano, a injustiça e a crueldade grosseiras de cuja mentira [eu não sou] a vítima constante.

    — Uma citação remixada daquele maloqueiro nato Frederick Douglass

    Julho de 1852

    Seção 1

    O nome do meu irmão caçula é Freedom, e hoje é seu aniversário de 1 ano. Eu o seguro bem forte em meus braços e cheiro sua cabecinha. Ele tem o mesmo cheiro de nossa mama: uma mistura de óleos de lavanda e patchuli que predomina sobre cheiros de lugares que desconheço, rostos que não sei nomear e segredos que não lembro. Temos quinze anos de diferença, e ele nem começou a andar ainda, mas tenho a sensação de que também pode nos deixar.

    Alugamos o centro comunitário na Spruce Street para a festa de aniversário, mas não a chamamos de festa de aniversário. No Movimento, nada é tão superficial. É uma celebração de gratidão marcando o primeiro aniversário em que Freedom Sankofa Jones nos escolheu como família. Meu pai diz que algumas almas africanas retornam repetidamente para corrigir as coisas, curar feridas geracionais e lutar por nossa libertação. Escolhemos nossos pais, nossa família e a vida que queremos antes mesmo de nascermos.

    Então, sou uma ancestral retornada e escolhi ser filha de Kofi Sankofa — nacionalista Negro, revolucionário que luta pela liberdade e fundador do Movimento, cuja missão é desfazer sistemas opressivos e criar uma utopia totalmente Negra. Meu irmãozinho também escolheu, e os integrantes vão se reunir hoje para agradecer ao reizinho por nos escolher.

    O ar aqui está denso e quente, mesmo com o ar-condicionado ligado no máximo. As tias defumaram todos os cantos com sálvia, e o cheiro permanece, junto ao incenso Nag Champa e a todos os óleos naturais que os integrantes usam. A maioria de nós veste roupas coloridas de estampa africana e turbantes. Quando os integrantes começam a chegar, um mar de tranças, dreads, black powers, miçangas de madeira e búzios toma conta do centro comunitário. Meu pai diz que somos como uma pequena vila africana em West Philly, no grande estado branco da Pensilvânia. E é bem essa a sensação, mesmo que algumas pessoas pensem que somos uma espécie de seita ou culto. Mama sempre diz que a palavra culto vem de cultura. Estamos apenas celebrando nossa cultura com orgulho, é só isso.

    — Bota esse bebê no chão! — grita meu pai de longe. — Você tá mimando ele.

    Sua voz grave é como um trovão, sua presença é como nuvens se abrindo, e todas as palavras que saírem de sua boca hoje serão como o sol brilhando sobre todos os integrantes. Ele se move como um furacão, colocando o Grupo Jovem para trabalhar. Eu sou a única que não precisa fazer nada porque estou segurando meu irmãozinho.

    Freedom se mexe inquieto, balbucia e tenta alcançar o chão, então eu o embalo nos braços, o acalmo com um shh e dou um beijo em sua bochecha, me recusando a deixá-lo ir. Mesmo que este centro comunitário esteja cheio de pessoas que amo e que também me amam, meus olhos estão colados na porta, esperando pela pessoa que mais quero ver neste momento.

    — Nigeria, vem aqui ajudar a pendurar esses cartazes! — diz Jasmine, lá na frente do salão.

    Ela está desenrolando a foto em preto e branco de Malcolm X segurando um rifle enquanto olha pela janela. As palavras Por Todos os Meios Necessários estão no topo, e aquela famosa imagem é a essência do meu pai — com rifle e tudo.

    — Tô cuidando do bebê — digo a ela, mesmo que Freedom chore para eu colocá-lo no chão. Além disso, tem um monte de crianças por perto para ajudá-la. Jasmine só não gosta que eu dê as ordens.

    Aproximadamente uns vinte integrantes do Grupo Jovem estão montando cadeiras e mesas dobráveis, jogando tecido de estampa africana sobre tudo e fixando cartazes de heróis Negros sobre os antigos anúncios nos quadros de aviso. O reizinho precisa saber que, ao nascer no Movimento, estará apoiado em poderosos e imponentes ombros revolucionários — Frederick Douglass, Toussaint Louverture, Harriet Tubman e Marcus Garvey. De cada lado de uma longa mesa na frente do salão, onde o bolo de aniversário e os presentes ficarão, há duas esculturas de madeira: uma tem a forma de um pássaro com a cabeça virada para trás, em direção à sua cauda, e a outra tem o formato de coração, onde as linhas curvadas se enrolam em direções opostas no centro e se torcem na parte inferior como arabescos.

    Meus pais me diziam desde pequena que aquelas formas são o que o povo akan de Gana chama de Sankofa. Significa voltar e buscar, ou que o caminho adiante é moldado retornando ao passado.

    Sankofa também é o sobrenome que meu pai escolheu para nossa família, porque Jones é o nome de um escravocrata, ele disse. Mas mama não dava muito ouvidos a isso. Ela não queria apagar a história que está em nosso sangue, pele e ossos de nossos nomes. Se os pais do meu pai, avós e bisavós tiveram que carregar o peso de todos os Jones que já viveram, incluindo os escravocratas, então eu também tinha que carregar um pouco desse fardo.

    Por isso, sou Nigeria Jones em minha certidão de nascimento, em vez de Nigeria Sankofa. Se fosse diferente, meu nome poderia significar que eu estava tentando voltar para a Nigéria por algum motivo ou de alguma forma. Não somos da Nigéria ou de Gana. Eu nunca estive em nenhum país da África. Mas, pela maneira como meus pais e o Movimento falam sobre a mãe-pátria, você pensaria o contrário.

    Uma grande faixa com a frase Somos Africanos Não Porque Nascemos na África, Mas Porque a África Nasceu em Nós está pendurada acima da mesa do bolo. Em questão de minutos, o centro comunitário parece uma volta aos escritórios do Partido Panteras Negras. Algumas modificações a mais o transformariam na embaixada de Wakanda; e eu arranjei algumas decorações do Pantera Negra da Marvel para o Freedom.

    — Me deixa segurar o bebê pra você pendurar os cartazes, já que você sabe exatamente onde eles devem ficar — diz Jasmine, claramente tentando escapar de suas responsabilidades.

    Eu a ignoro, seguro meu irmãozinho e falo:

    — Eu dei banho nele e escolhi a roupinha mais linda, com a camisa e a calça combinando. Não tá fofo? — Trago o rosto dele perto do meu e mordisco seu narizinho.

    Jasmine balança a cabeça e revira os olhos. Eu poderia dizer a ela que esse trabalho faz parte do serviço comunitário por ela morar de graça na Casa Vila, mas agora, neste momento, não sinto a mínima vontade de ser a presidente do Grupo Jovem. Só quero segurar meu irmãozinho e garantir a ele que sua mãe — nossa mãe — estará aqui para o primeiro aniversário dele.

    Olho ao redor para os integrantes. Alguns conheço desde sempre. A maioria acredita que estar aqui vai mudar a própria vida e o mundo. Mas alguns saem e nunca mais voltam.

    Makai entra pela porta dupla aberta com um carrinho de mão cheio de caixas empilhadas. Eu rapidamente corro até ele e digo:

    — São livros? Isso aqui é uma celebração, não um seminário.

    — Precisamos vender essas paradas para comprar nosso próprio prédio — diz Makai. Acabo me distraindo com o anel de suor ao redor da gola de sua camiseta e com os óculos de armação de metal, escorregando pelo nariz. — O capitalismo não dorme, irmã Nigeria. Principalmente quando estamos tentando desmantelá-lo.

    Ele começa a desembalar os livros do meu pai para empilhá-los em uma mesa perto da entrada. Os mais novos, Famílias negras importam: volume III e Derrube a mesa: o guia da maioria global para desmantelar o capitalismo, estão bem à vista, e Makai os empilha formando uma pirâmide. Cartões-postais com a data de publicação do próximo livro, A Constituição do Homem Negro, estão espalhados como cartas de baralho. Em cima de outra mesa há folhetos e panfletos sobre a missão do Movimento e seus programas. Uma das tias coloca na mesa dois grandes potes de vidro para doações. Um pedaço de papel com as palavras Viagem do Grupo Jovem para Gana está colado em um deles, e o no outro lê-se: Fundos para a Educação de Freedom. Eu estava ocupada demais, me preocupando com mama e Freedom, para perceber o que meu pai tinha planejado.

    — Ele tá falando sério? — digo em voz alta, e me seguro.

    Não posso deixar ninguém me ouvir criticar meu pai. Nem mesmo Makai, que mora com a gente há cinco anos.

    — Vamos, Geri — diz Makai, ofegante. — Me ajuda a montar isso.

    — Não posso. Tô segurando o bebê — respondo, virando as costas para ele. Estou mantendo toda a minha atenção em Freedom, para o caso da minha mãe aparecer.

    Meu pai está na frente do salão, chamando alguns dos meninos para montar o projetor e o púlpito. É neste momento que tenho certeza de que esta festa de aniversário/celebração de gratidão também será mais uma de suas palestras.

    Freedom deve sentir o calor subindo pelo meu corpo, porque começa a chorar. Mais integrantes estão entrando no centro comunitário agora, e não são apenas integrantes; são como família. Toda mulher que entra por aquelas portas é uma tia, todo homem é um tio, e toda criança da minha idade ou mais nova é um irmão ou uma irmã. Os mais velhos, que poderiam ser avós, são chamados de mama Fulana ou baba Fulano. A essas pessoas são reservados os melhores lugares na sala e os primeiros pratos de comida. Tudo isso é para lembrar que somos uma família, que talvez fôssemos parentes na África, que fomos separados durante a Travessia e que talvez, ao nos juntarmos ao Movimento, estejamos encontrando nosso caminho de volta. Algumas delas correm para me abraçar e me beijar, perguntam como estou, pedem para segurar Freedom e me enchem de tanto amor que mal consigo respirar.

    Meu pai diz que, enquanto houver mulheres por perto, eu e Freedom nunca ficaremos sem uma mãe. A questão é que sou a única irmã de Freedom e, depois da partida de nossa mãe, talvez eu seja como sua mãe também. Mas sei que ela nos ama demais para simplesmente nos deixar para sempre. Ela vai voltar. Só precisava de um descanso, é só isso.

    Eu me sento numa cadeira em um canto próximo e coloco Freedom no colo. Ele cansou de lutar para chegar ao chão, então está um pouco sonolento, graças a Deus. Pego meu celular do bolso de trás para mandar uma mensagem ao meu primo, Kamau. Não é mais um integrante de verdade, mas é da família, e deveria estar aqui. Se não por mim, por Freedom. Você vem? Eu digito. Juro que é só uma festa. Minto.

    De repente, sinto alguém se aproximar subitamente de nós. Um par velho de All-Star está na minha frente, e eu olho para cima para ver o blackzão do meu primo, que o faz parecer um microfone — bem adequado, porque ele está sempre compartilhando opiniões com o mundo (embora seu nome signifique guerreiro silencioso), como fomos criados para fazer. Ele está olhando para o telefone e balançando a cabeça.

    — Só uma festa, hein? — questiona ele. — Juro que, no momento em que ouvir uma palavra do seu pai, vou embora.

    — Não, não, não — digo quando Freedom estica os braços para o primo mais velho. — Por favor, fica. Preciso de você, caso algo de errado aconteça.

    Ele solta um suspiro profundo, fingindo estar chateado comigo, mas eu sei como ele é. Ele realmente quer estar aqui, mas vai fazer de tudo para evitar meu pai.

    — Do jeito que você está segurando esse bebê parece que quer carregar ele no colo pra vida toda — diz Kamau. — O nome dele não é Freedom?*

    — Fica quieto e vai fazer alguma coisa útil — retruco, dando um sorriso bem largo porque meu primo é como um raio de sol.

    Ele é meu salva-vidas e meu porto seguro. Kamau é a pessoa mais autêntica que tenho na vida. Passamos pelas mesmas coisas, sendo filhos do Movimento e tudo mais: veganos desde que nascemos, educados em casa (até o nono ano para ele) e ensinados a ver o mundo em preto e branco. Literalmente. Nem sempre concordamos, mas ele fala o que pensa e é sempre sincero. E, às vezes, a verdade dói. Ele sabe tudo sobre mim, as coisas boas e ruins. E, agora que está frequentando uma escola de verdade, agora que minha mãe foi embora e não sabemos quando vai voltar, agora que meu irmãozinho está completando 1 ano e vai começar a andar, falar e crescer por conta própria, agora que as coisas estão confusas no Movimento e supostamente é assim que deveria ser a libertação, eu preciso de alguém que seja como praias arenosas e árvores e montanhas e terras distantes. Porque aqui, no Movimento do meu pai, onde sou a filha da própria revolução, estou me afogando em um oceano de tudo o que amo e tudo o que também me ama, e nada disso faz sentido mais.


    * Freedom significa liberdade em inglês. (N.T.)

    Seção 2

    Conforme os integrantes enchem o salão pelas portas da frente, não preciso ficar de olho para saber se mama entrou no recinto. Ela é uma presença completa. Vai mudar a energia na sala assim que entrar, vestindo um de seus caftans tie-dye e um turbante combinando, muitos colares de contas e pulseiras de prata que fazem música enquanto ela se move, seus dreadlocks até a cintura balançando de um lado para o outro. E, assim que ela perceber o que está realmente acontecendo, com certeza vai rearranjar tudo para que Freedom seja o centro das atenções, e não meu pai.

    Kamau está mordendo o lábio inferior e olhando para todos os lados, como se essa coisa toda fosse nova para ele.

    — Olha pra todas essas pessoas. Eu disse pra minha mãe que só ia vir porque seria uma coisa de família — conta ele.

    — Isso é uma coisa de família — digo, me levantando da cadeira com Freedom nos braços.

    Eu sei o que ele quer dizer. Nossas celebrações costumavam ser apenas com a família de sangue. Quero distraí-lo do fato de que meu pai vai palestrar, então respiro fundo e pergunto, quase sussurrando:

    — Você acha que minha mãe vai aparecer hoje?

    É um pensamento que ainda não está completamente formado, como uma semente dura e pequena que não brotou. Eu a plantei em minha alma no momento em que minha mãe nos deixou. Ela vai voltar? Eu ainda não estava pronta para pronunciar essas palavras, esse sentimento, essa dúvida na existência.

    Kamau olha para mim como se eu fosse a coisa mais triste que ele já viu na vida. Então tira Freedom do meu colo e dá um beijo na bochecha dele enquanto o embala nos braços.

    — Eu não sei, Gigi — diz ele em um sussurro. — Mas talvez ela sempre tenha estado aqui. Você só não viu ainda.

    — Ela não está aqui — pronuncio as palavras muito bem, alisando o amarrotado do meu vestido de verão tie-dye.

    — Mas não fica bolada com isso — diz ele, olhando ao redor como se quisesse mudar de assunto. — E você sabia muito bem que isso não seria apenas uma celebração.

    Com a mão livre, Kamau tira o celular do bolso e entra em uma das páginas do meu pai, onde há uma postagem sobre o evento de hoje.

    — Eu não sou de ficar nas redes sociais assim, Kamau.

    — Ah sim, você é uma ludita de mão cheia. Se entrasse por, tipo, um minuto, ia ver que ele tá discutindo com metade do país.

    — Eu não quero saber disso — respondo, pegando o celular dele para dar uma olhada mais de perto na página do meu pai. — E eu não sou uma ludita. Só não gosto de ver todas as merdas que dizem sobre nós.

    Meu pai, sendo um ativista radical e tal, quando não está na rua libertando nosso povo, está na internet lutando pela causa. E, como de praxe, brigando com todo mundo e com a mãe de todo mundo, Negro ou branco. Eu tento evitar tudo isso.

    Mas, ainda assim, não há nada na postagem do meu pai sobre o aniversário de 1 ano do filho. O tópico de sua palestra: Para o escravizado americano povo Negro nos Estados Unidos, o que é o seu Quatro de Julho?. É uma versão remixada de um discurso de Frederick Douglass do meio do século XIX que fui forçada a memorizar quando tinha 12 anos. Eu recitei esse discurso no podcast do meu pai no Dia da Independência porque ele estava cansado de ver nosso povo ficar animado com fogos de artifício quando assassinatos sancionados pelo Estado, desemprego, crime, violência e injustiça no geral estavam acontecendo conosco em todo o país. Desde então, ele tem falado sobre fazer uma palestra ao vivo neste dia. Então, aqui estamos. Mas a pegadinha é que também é o aniversário de seu filho. Meu pai vai ofuscar o grande dia do meu irmãozinho com um discurso sobre escravidão e fogos de artifício. Quando minha mãe voltar, ficará furiosa.

    — Você tá pronta pra começar esta festa? — pergunta Kamau com um sorriso irônico. Sarcasmo é a segunda língua dele.

    — Não, e esta festa não tem nada a ver com a que você foi na semana passada — respondo, me referindo às fotos que ele me mandou. — E você faz parte do grupinho da Sage agora? Por que não me leva junto?

    — Porque você continua presa aqui em Wakanda — diz ele. — E eu não faço parte de nada da Sage. Só deixei ela sentar com a gente porque é sua amiga. Além disso, você vai se sentir deslocada dando rolê com a galera da minha escola. Eles vivem no mundo real.

    — Isso foi pesado, Kamau.

    Ele sempre tenta fazer eu me sentir mal por ainda ser educada em casa. Não precisa se esforçar muito. Eu vivo por tabela através do meu primo, enquanto ele frequenta uma escola particular chique e vai a festas em iates no rio Delaware.

    — E Sage não é mais minha amiga — completo. — Você sabe. É por isso que preciso de você aqui com a gente, primo. Você é família. Você ainda faz parte do Movimento.

    — Não, não faço. Eu só visito em feriado e fim de semana. — Nossos olhos se encontram, e ele vê que estou magoada, como sempre vê. — Gigi, desculpa. Eu não sei o que te dizer, prima. Porque, se eu fosse filho do seu pai, eu estaria na rua todos os dias e noites, só porque sim. E não seria para recrutar novos integrantes.

    Eu rio. Odeio como ele pode cutucar minha ferida em um segundo e me fazer cócegas no seguinte.

    — E ficaria na rua fazendo o quê?

    — Liderando minha própria revolução, caramba! Você pode se libertar quando fizer 18 anos, Gigi. Ouvi falar de um negócio chamado emancipação, quando menores de idade podem se divorciar de seus pais. Nesse caso, do seu pai.

    Eu aperto Freedom um pouco mais forte porque, mesmo que Kamau saiba como é a minha vida no Movimento, ele faz parecer muito pior do que realmente é.

    — Eu não tô tentando me divorciar do meu pai — digo isso enquanto Freedom esfrega os olhos. Ainda assim, adoro as histórias de Kamau sobre a escola, todo o drama e as diferentes personalidades. — Só quero saber como é ser você. Principalmente agora que tá fora.

    — Você não quer ser eu, Gigi. Você só quer estudar em uma escola normal que nem todo mundo. — Ele me olha atravessado, mas está sorrindo.

    — Eu te amo e te odeio — falo, rindo e dando um empurrãozinho em seu ombro. — E a Amigos da Filadélfia está longe de ser uma escola normal… falando de socialismo, fazendo festas em iates e cobrando quarenta mil dólares de matrícula.

    — Parece que alguém andou pesquisando — comenta ele.

    Kamau me lê feito a palma de sua mão, como sempre. E sabe que eu gostaria de poder trocar de lugar com ele — ter um pé no mundo real e um pé neste.

    Meu irmãozinho está quase dormindo, então eu pego o tecido que amarrei em volta da cintura, o trago para cima nas minhas costas e peço a Kamau para colocá-lo atrás de mim. Eu seguro meu irmãozinho nas costas, amarrando o tecido no peito e na cintura. Tenho certeza de que pareço com minha mãe quando ela me carregava assim. A maioria das tias carrega os bebês desse jeito porque é assim que se faz na terra natal.

    — Você tá pronto? — pergunto a Kamau porque ele costumava ser meu braço direito quando se tratava de organizar eventos para o Movimento e manter o Grupo Jovem sob controle.

    — Não muito — diz ele, e entendo o que quer dizer.

    O centro comunitário está quase lotado, e fico feliz que os integrantes prefiram estar aqui em vez de em algum churrasco assando carne ou se preparando para ver os fogos de artifício no festival Philadelphia Welcome America, no Ben Franklin Parkway. Acho que é isso que os torna integrantes. Eles se recusam a comemorar a independência dos Estados Unidos enquanto o povo Negro não for livre. Eles não querem fazer parte deste experimento colonialista chamado Estados Unidos, como meu pai diz.

    Eu respiro profundamente, como a minha mãe ensinou. A respiração de Freedom acompanha a minha; sua pequena barriga se expande e relaxa contra as minhas costas. Eu limpo minha garganta, respiro mais uma vez e começo a dar as primeiras ordens para Kamau.

    — Se certifique de que ao entrar todos deixem o e-mail e o número de telefone, mesmo que já sejam integrantes. Os presentes para o bebê podem ficar embaixo da mesa do bolo. Lembre-se, sem brinquedos de plástico, sem eletrônicos, só livros e presentes de negócios e empreendimentos Negros feitos à mão. Quando as crianças pequenas entrarem, peça às meninas do Grupo Jovem para levá-las para o porão com alguns lanches. Elas podem subir antes de cortarmos o bolo. Vou estar aqui se você precisar de mim.

    — Só porque eu te amo — resmunga Kamau. Então ele se inclina mais perto e sussurra: — E se seu pai disser uma palavra desrespeitosa para mim…

    — Ele não vai — retruco. — Eu prometo.

    Quero acrescentar que meu pai não falou sério quando disse todas aquelas coisas, mas Kamau não vai acreditar em mim. Eu mesma não tenho certeza se acredito nisso.

    Então ele sai para delegar tarefas a outra pessoa. Sinto falta de tê-lo por perto porque ele adorava ser chefe. Era bom no cargo de presidente do Grupo Jovem. Mas Kamau ainda é família, então outros integrantes vão ouvi-lo, mesmo depois de meu pai o destituir do cargo de liderança quando ele começou a frequentar aquela escola.

    Algumas das meninas do Grupo Jovem estão sentadas, hipnotizadas pela tela do celular e sendo improdutivas. Tentam parecer ocupadas quando me veem. Com Freedom dormindo nas minhas costas e alguns minutos antes de tudo começar, eu chamo a atenção dos integrantes do Grupo Jovem com uma única palavra:

    — Harambe! — Eu levanto a mão no ar e abaixo com um punho fechado. — Harambe!

    A maioria deles entra na fila e repete Harambe!, mal conseguindo acertar o gesto de unir com a mão.

    — Pensei que isso fosse uma festa — diz Jasmine, a recém-nomeada secretária do Grupo Jovem. — A gente tem que se organizar no aniversário do bebê também?

    Ela é nova, assim como algumas outras integrantes do Grupo — Danika e Nailah mais especificamente, que deixam na cara o quanto estão confusas e decepcionadas.

    — E ainda por cima é o Dia da Independência! — acrescenta Danika. Ela vem porque a mãe dela a obriga. Parece deslocada com sua lace ombré loira e cílios que quase tocam as sobrancelhas. — Podemos pegar alguns hambúrgueres veganos ou algo assim?

    — Cês não têm nem hambúrguer de salmão? — pergunta Nailah enquanto desliza os dedos por baixo da frente do hijab para enxugar o suor da testa.

    Ela está acostumada com algumas de nossas regras, sendo parte da Nação do Islã e tudo mais. Mas não consegue se adaptar ao estilo de vida vegano e aos jejuns mensais obrigatórios.

    Meu pai vira em nossa direção, e nosso olhar se encontra. Por favor, não venha até aqui. Então eu entro na fila também.

    — Tudo bem, pessoal — digo, fazendo gestos para que os integrantes do Grupo Jovem formem um pequeno círculo na frente do centro comunitário. — Pra não esquecermos mais: Harambe significa juntar em suaíli. Kombit é a mesma coisa em crioulo haitiano. Mbongi e Simba Simbi em quicongo. — Eu começo a dizer uma das minhas frases favoritas em voz alta na língua bantu apenas para motivá-los. — Ubuntu ngu buntu

    Então todos eles murmuram:

    Nga bantu!

    — Isso mesmo, irmãos e irmãs! — digo com o máximo de entusiasmo que consigo reunir. — E o que isso significa?

    — Uma pessoa é uma pessoa… — começa Jasmine.

    — Porque somos todos pessoas! — acrescenta outra garota.

    — Não existe eu em nós…? — sugere Danika.

    Eles dão respostas diferentes, e não consigo disfarçar o riso.

    — Vocês precisam se entender. Significa eu sou porque nós somos — corrijo e deixo passar. É cedo e está quente e todo mundo está faminto. Mas há trabalho a ser feito porque meu pai diz que liderança requer coragem. — Vocês só precisam cumprimentar os integrantes conforme eles entram. E alguns de vocês vão ter que cantar comigo na frente.

    — Pra cantar Parabéns? Por que tem que ser um show? — pergunta Danika.

    Ela deveria ter recebido um curso completo sobre como fazemos as coisas por aqui.

    — Não. Pra cantar o hino nacional Negro — explico.

    Lift Every Voice — sussurra Nailah para ela antes mesmo que Danika pergunte o que aquilo significa.

    Danika levanta rapidamente a mão, e Nailah também. Jasmine me lança um olhar como se dissesse: Boa sorte. Dani não sabe cantar, e Nailah não sabe todos os versos de Lift Every Voice and Sing, então um dos mais velhos vai me culpar outra vez.

    Do outro lado do salão, Makai começa a desenrolar a enorme bandeira da Libertação Negra para pendurá-la na frente, perto do púlpito do meu pai — o vermelho significa o sangue do nosso povo, o preto é a pele do nosso povo e o verde é a terra do nosso povo. É para que todos que entram por aquelas portas saibam do que se trata. Nenhuma pessoa branca é permitida em nenhum dos eventos do Movimento. Meu pai diz que precisamos de nossos próprios espaços sem eles bisbilhotando e tentando nos entender.

    Em pouquíssimo tempo, os assentos estão todos ocupados. Panfletos foram distribuídos, alguns dos tios e meninos instalaram seus tambores djembê, e uma fila se forma ao lado da mesa de comida onde estou. Este é o lugar da mamãe. Eu fiz algumas bandejas de vegetais com molho para chuchar do jeitinho que ela faria. Mama acredita que pode aumentar o impacto nos integrantes alimentando-os com frutas e vegetais frescos. Sua voz ecoa na minha mente: Comam para viver, irmãos e irmãs! Comam para viver! Eu sussurro as palavras para mim mesma, como se ela estivesse falando através de mim.

    Talvez já esteja aqui, querendo acordar Freedom enquanto ele dorme apoiado nas minhas costas. Talvez ela apareça bem quando estivermos prontos para cortar o bolo. Mas, mesmo que o centro comunitário esteja agitado com os integrantes, a ausência da minha mãe é um buraco profundo e oco no meio de nós.

    Uma das tias está se aproximando. Ela usa um caftan azul-celeste, e seus colares coloridos de contas nos indicam que é uma sacerdotisa que serve aos orixás. Os braços robustos se estendem o suficiente para abraçar tanto a mim quanto a Freedom. Então, eu me inclino para o abraço, e tudo nela me lembra a minha infância: sanduíches de tofu e smoothies verdes para o almoço, manteiga de karité crua em nossa pele e presentes caseiros embrulhados em papel pardo para o Kwanzaa, porque a conheço desde que nasci.

    — Paz, tia Fola — digo, e ela me aperta com força.

    — Se ele não estivesse dormindo, eu pegaria essa cocadinha preta de você — comenta ela, e sua voz é como o oceano, vasta e abrangente e cheia de sabedoria. Se o Movimento tem uma fofoqueira do vilarejo, com certeza é ela. E eu sei que está espalhando todo tipo de boatos sobre minha mãe ter ido embora.

    Tia Gloria, tia Ama e tia Yvette vêm todas juntas me beijar em cada bochecha e me dizem que estou mimando demais meu irmãozinho. Essas mulheres são como as verdadeiras irmãs da minha mãe. Todas estão seguindo em frente com a vida e caminham ao redor desse buraco que ela deixou. Sabem que o vazio está lá, veem e sentem, mas nenhuma delas está estendendo a mão para trazê-la de volta para nós. É como se gostassem disso; elas gostam do vazio porque minha mãe ocupava muito espaço. Ela era maior do que a vida, maior do que o Movimento. Ao mesmo tempo, ela era demais e insuficiente para este mundo. Mas, mesmo assim, estou deixando um pequeno espaço para ela voltar, porque não quero nunca ocupar o lugar dela.

    Seção 3

    Tomo o meu posto atrás da mesa repleta de comida. Tem bandejas de legumes, jarras de água, copos biodegradáveis

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