As mulheres do soneto
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Pré-visualização do livro
As mulheres do soneto - Dayse Lourenço
Copyright: Dayse Lourenço e Folhas de Relva Edições
Direção editorial: Alexandre Staut
Revisão: Beatriz Carrijo
Pintura da capa: Manuela Malheiros
Projeto gráfico: Osvaldo Piva
eBook: Loope | www.loope.com.br
Catalogação na publicação
Elaborada por Bibliotecária Janaina Ramos – CRB-8/9166
L892m
Lourenço, Dayse
As mulheres do soneto / Dayse Lourenço. – São Paulo: Folhas de Relva, 2024.
ISBN 978-65-80672-76-9
1. Romance. 1. Literatura brasileira. I. Lourenço, Dayse. II. Título.
CDD 869.93
Índice para catálogo sistemático
I. Romance: Literatura brasileira
Folhas de Relva Edições/ São Paulo Review Produções
Rua Marquês do Herval, 414, Centro, Espírito Santo do Pinhal, SP, CEP 13.990-000
www.editorafolhasderelva.com.br
www.saopauloreview.com.br
Esta é uma obra de ficção
Como é ficção a vida de todos nós
Sumário
Capítulo 1: Rua Monsenhor João Félix de Oliveira
Capítulo 2: O casal
Capítulo 3: O sobrado
Capítulo 4: O soneto
Capítulo 5: As mulheres da sala de costura
Capítulo 6: Silvia
Capítulo 7: Elaine
Capítulo 8: A caligrafia de Geni
Capítulo 9: Desaparecimento
Capítulo 10: A carreira
Capítulo 11: Despedidas
Capítulo 12: A pensão
Capítulo 13: Le Toreador
Capítulo 14: Carmencita ou Dolores Ortega y Gasset
Capítulo 15: Helena
Capítulo 16: Ferdinando
Capítulo 17: Conselhos inúteis
Capítulo 18: A floresta volta a crescer
Capítulo 19: Casamentos
Capítulo 20: A advocacia
Capítulo 21: Diálogos
Capítulo 22: Matrimônio
Capítulo 23: Clarice
Capítulo 24: O espólio
Capítulo 25: Conversa com Rita Hayworth
Agradecimentos
Sobre a autora
Capítulo 1
Rua Monsenhor João Félix de Oliveira
Ruas são testemunhas e personagens da história das pessoas. Há mais de uma década a rua Monsenhor João Felix de Oliveira era conhecida por outro nome: Maçaranduba. Começava na Araucária, era cortada pela Carandá e nesta encruzilhada havia uma casa térrea com varanda avançando no jardim. Os outros cantos eram terrenos baldios. A ruazinha terminava de viés na avenida 8 de maio, movimentada esgueirando-se em curvas por alguns quilômetros até o centro da cidade. Era aprazível como o bairro em torno dela, a acolher pessoas a quem as memórias importavam como fardo ou bússola.
Foi o prefeito quem trocou o nome da rua e talvez o padre João Felix não tivesse título de monsenhor, mas assim os fiéis o chamavam. Ele tinha abençoado seu casamento, batizado sua única filha e depois da homenagem, deveria celebrar o casamento da moça na igreja matriz, em breve... e com a graça de Deus.
Em um setembro, o senhor Lauro Martinez chegou de Espanha com bagagem e dinheiro suficiente para comprar a casa do número 104. Viúvo e com duas filhas pequenas, não falavam da falecida. Nunca se soube se foi doença, um touro bravo, ou mesmo um toureiro arrebatador, de corpo esguio e olhar de espada de abatedouro. Mistério.
Ele se instalou e logo construiu um armazém ao lado da casa, onde passou a funcionar o seu comércio de secos e molhados, a Casa Dom Fernando, talvez fosse o nome de seu pai. Era um pouco difícil de entender a língua falada pelo senhor Lauro, mas logo todos dependiam de suas mercadorias e de seu crediário anotado nas cadernetas, uma para cada família, tudo organizado. No armazém, um balcão de madeira escura estendia-se de uma parede a outra: do lado de dentro ficavam as mercadorias e o espaço para os fregueses era voltado para o lado de fora. No meio do balcão reinava uma balança vermelha com ponteiro capaz de marcar até dez quilos de arroz, feijão, fubá, farinha, açúcar, café, tudo que fosse necessário em uma casa. Num dos cantos apoiava-se uma cristaleira, onde todos os dias o espanhol expunha doces feitos pela vizinha, dona Firmina.
Dona Firmina era uma doceira de mão cheia, de braços e coxas cheios, e com outros predicados que agradavam o senhor Lauro. Era casada e seu marido vivia em uma cadeira de rodas, inválido depois da queda de um andaime, sempre calado e talvez fosse surdo. Não se sabe se por causa do andaime ou por alguma ineficiência de seus predicados, dona Firmina não tinha filhos, o que deixava livres suas mãos cheias, com tempo bastante para doces de leite, goiabadas e queijos alvíssimos a enfeitar a cristaleira da venda do senhor Lauro. Doces para encher olhos e lancheiras da criançada a caminho do colégio. Havia tempo de sobra para ajudar na venda e cuidar de Carmen e Leonor, as espanholitas idênticas, e não se podia afirmar ao certo a diferença de idade entre elas, se meses ou minutos. Dona Firmina ficava penalizada por serem órfãs e apartadas do restante da família deixada em seu país natal, embora elas não se recordassem de um só parente, primo ou brincadeira de criança. A vizinha ajudava o senhor Lauro, lavando, engomando e passando pilhas de vestidos cheios de fitas e babados, vindos de navio em dois grandes baús de lata. Trouxeram porcelanas e cristais, mas estes últimos resistiram mal à viagem.
No início, o senhor Lauro vendia sangria e cachaça, mas isso juntava homens na beirada do seu balcão, com olhos compridos para suas meninas e ele logo terminou com este comércio, guardando o álcool somente para si e algum eventual freguês transformado em amigo, fato raro em sua vida.
Quando senhor Lauro chegou, o número 65 da rua era um terreno vazio, com mato sempre aparado, cerca de arame e calçada cuidada. Um dia, o espanhol observou movimento de homens, pedras e montes de areia sendo derramados no terreno: anúncio da construção de uma nova casa. Ele acompanhou de perto a empreitada com olhos bisbilhoteiros, desde a fundação sólida orientada pelo engenheiro, até os materiais de acabamento, canos e fios elétricos, tudo de primeira qualidade. Parecia até ser ele quem construía a casa para si. Em menos de um ano surgiu um sobrado com fachada de pedras, antecedido por um jardim amplo, e ladeado por um corredor terminando em uma grande edícula ao fundo.
Com o negócio cada vez mais próspero, o senhor Lauro passou a cobiçar o sobrado de pedra. Para sondar suas chances, fez amizade com o engenheiro responsável pela obra, mas se decepcionou ao saber que a casa era construída para ele e sua futura esposa, a única filha do prefeito. Fora presente do pai por ocasião de seu casamento com o engenheiro formado na capital, sob as bênçãos do Monsenhor João Felix de Oliveira. Como a vida tem seu grau de revelia, resolveu esperar pelo dia quando finalmente o pudesse comprar.
O casal ilustre moraria nessa casa por poucos anos, tempo suficiente para terem dois meninos e uma menina. Em uma tarde fria de agosto, a família deixou o sobrado pois o engenheiro fora contratado por uma empreiteira em país desconhecido. O desolado ex-prefeito manteve a casa fechada por alguns anos, ainda na esperança de ver de volta seus netos estrangeiros. Para seu infortúnio, quando vinham nas férias os pequenos só falavam uma língua impossível de identificar.
Sempre ganha quem tem paciência com a vida
, pensava o espanhol. Foi a tristeza do ex-prefeito que acabou por realizar seu sonho de comprar o sobrado, quando, com as filhas já na idade de cuidarem de suas porcelanas e babados, mudaram-se para a casa 65 da rua Monsenhor João Félix de Oliveira, quase na frente da próspera Casa Dom Fernando. O sobrado de pedra era majestoso com seu grande jardim na frente, onde cresciam rosas, camélias, um jasmineiro perfumado, e várias outras plantas de ramagem, viçosas e bem cuidadas até então pelo fio de esperança do ex-prefeito. Bastou seguir com o cuidado para continuarem a vicejar ainda mais lindas, felizes por não estarem mais sós.
À entrada havia um pequeno portão de madeira, apoiado entre duas colunas de pedra na altura exata dos seios de Carmencita e Lolita. As duas moças costumavam ficar por horas observando o movimento da rua, uma em cada pilastra onde apoiavam suas exuberâncias à visitação pública. Não demorou para os pretendentes se achegarem ao lado externo das muretas, em conversas intermináveis ao entardecer, quando os olhos do senhor Lauro já sentiam o peso da sangria, substituída aos poucos pela cachaça pura, imaculada e fiel como nenhuma mulher o fora.
A casa era grande para pai e duas filhas já crescidas e o espírito comerciante do espanhol era de fato sua maior virtude, levando-o a considerar: Temos uma edícula enorme que, reformada, poderia muito bem ser alugada a uma família.
Um casal recente, sem grandes sonhos ou recursos, talvez casados tardiamente, já quase perdendo o último trem que passa na estação, embarcando nele apressadamente, com alívio por não terem sido deixados para trás.
Capítulo 2
O casal
A edícula do número 65 da rua Monsenhor João Félix de Oliveira foi o primeiro lar de Ferdinando Nunes e Angélica de Campos, recém-casados em cerimônia simples, Angélica pouco depois dos 23 anos, ele já com 31, ambos passados da idade de se casar. Nenhum deles era realmente cobiçável.
O rapaz trabalhava como advogado assistente no escritório do doutor Amadeu Sampaio, seu colega no Educandário Dom Bosco, alguns anos mais velho que frequentara a faculdade na capital tornando-se renomado em pouco tempo após seu retorno. Ferdinando estudou Direito em uma cidade vizinha e trabalhar como assistente já era conquista suficiente para ele. Sonhador, escrevia versos com rimas caras nem sempre raras. Dedicava-os a Angélica, que não os entendia muito bem e aos poucos foi parando de lhe mostrar seus escritos e de se servir dela como inspiração. Era galante durante o tempo de namoro e no início do casamento, mas suas delicadezas se perderam pouco a pouco no espírito de Angélica, no seu corpo rotundo, cada vez mais rotundo, no seu cuidado com a casa e no seu desprezo por flores e pensamentos.
Angélica não havia chegado longe nos estudos, completou tarde os primeiros anos, mas a escola era distante de casa e seu pai não gostava de vê-la sair tão longe. Ela mesma não queria mais estudar, era a menina mais alta da classe e sentia-se desconfortável. Fez um curso de corte e costura concorrido na cidade, depois outro de bordado e confeccionava roupas deslumbrantes. Costurou ela mesma todas as peças de seu enxoval de noiva, bordados iniciados aos seus 16 anos, bem antes de conhecer Ferdinando, o único convidado à sala de jantar depois de muita hesitação de seus pais e talvez até do próprio Ferdinando.
Foram morar então nos fundos do sobrado de pedra do espanhol. Na edícula pequena, mal couberam algumas peças do enxoval de Angélica, que ficou quase todo no baú de seu antigo quarto na casa dos pais. Afinal, não precisavam de tantos panos para a cozinha, ou para a cama no único quarto, nem para a mesinha da pequena varanda central, arrumada como sala de visitas quase nunca visitada.
As filhas exuberantes do senhor Lauro costumavam usar vestidos coloridos e rodados, com babados nos ombros e nas barras. Dançavam o flamenco com sapatos presos por uma correia bem em cima do peito do pé, de salto grosso barulhento, com pisadas duras como as de um touro. Angélica se exasperava com a visão das moças. Escandalizava-se cada vez que era obrigada a passar pelo portão no final da tarde, caso precisasse comprar alguma coisa a esta hora. Ouvia trechos das conversas cochichadas com os moços postados defronte aos seios apoiados nas pilastras. Um escândalo que talvez fosse aceitável lá na Espanha. Não era ciúmes de Ferdinando, que parecia não prestar atenção às espanholitas namoradeiras. Sentia como se fosse uma agressão a seu recato guardado em castidade por tantos anos, que acabou por esquecer que existiam essas coisas.
Carlos nasceu, e com sua chegada acabaram-se os dias de exasperação de Angélica. As fraldas, mamadeiras, choros e febres tomaram conta de todos os seus momentos dando a eles uma perspectiva grandiosa, sem igual, nunca vivida antes. Pela primeira vez, Angélica se sentiu feliz.
Carlos foi crescendo até poder percorrer de velocípede todo o corredor lateral, interminável para o menino que já se mostrava curioso. Ia da edícula até o jardim da frente junto ao portão, onde tinha a visão das costas de Lolita e Carmencita, os vestidos farfalhantes passando em seu rostinho. Iria se lembrar para sempre dos babados das saias movendo-se nos finais de tarde, e de quando elas o colocavam no colo exalando um cheiro um pouco azedo a se misturar aos perfumes que os seios morenos tinham pela manhã.
Quase todo final de tarde, Carlos se postava em um canto meio escondido do jardim, sentado em seu velocípede observando as espanholitas; principalmente depois que Lara nasceu e sua mãe não tinha mais tanto tempo para vigiar e limitar suas pedaladas. Lara era enrugada e chorosa no princípio, mas logo surgiu uma menina de pele branca e rosada pelo sol. Ela se transformava depressa e seus cachos loiros, tão diferentes dos cabelos negros das espanholas, iam tomando conta de sua cabeça e logo começaram a lhe cair pelas costas. Lara era enfeitada pela mãe, confeitada como se fosse um bolo de aniversário de gente importante, o que desconcertava Carlos. Ela era especial aos olhos dos pais e até dele mesmo, que suspeitava da falta de intenção ou culpa da garota em todo aquele mimo. Mais tarde, quando caminhavam sozinhos para o colégio com pasta e lancheira, ele se admirava de sua desenvoltura conversando com coleguinhas e professoras. Como era possível que alguém que não havia aprendido nem a fazer contas de vezes já fosse capaz de decidir o passeio de toda a família no final de semana? E até escolher a cor do bolo confeitado do seu próximo aniversário, coisa que nunca foi permitida a ele que já se preparava para, em breve, aprender a equação do segundo grau?
Até a hora do preparo do jantar, Lolita e Carmencita iam namorar no portão, uma em cada mureta, com seus pretendentes de fala pastosa. Carlos se mantinha à distância ouvindo sussurros, estalar de beijos, risinhos, gemidos. Embora não entendesse bem o que levava as pessoas a agirem assim, ele sabia que havia algo de especial nisso, coisa que ninguém da sua família fazia, nem no colégio nem pessoa alguma que ele conhecesse, só as espanholitas. E ficava parado apoiado no guidom do velocípede, acobertado pela profusão de folhas do jardim. Várias vezes Carlos foi arrebatado do estado de sonho por sua mãe surgida do fundo do corredor pisando duro, puxando menino e velocípede, arrastando tudo pelo corredor adentro em meio a pragas e xingamentos velados dirigidos às espanholitas e a seus rapazes. Sua mãe com a cara fechada, amarrada, sempre atada às suas panelas e pilhas de roupas para passar.
O senhor Lauro costumava voltar do armazém um pouco depois das seis, para o jantar preparado pelas moças. Por vezes Carlos espiava o movimento na cozinha da casa da frente, sempre no seu velocípede. Para dentro da cozinha, um barulho de facas cortando e de panelas se chocando que era abafado pelo farfalhar das saias de babados no seu rosto. O cheiro do alho e cebola refogados quase apagava o perfume doce dos seios morenos e meio azedo