Calcinhas e sutiãs. Acredite: até nas roupas íntimas tem interpretação simultânea.
Outro dia eu traduzi um desfile de moda “underwear”, dividindo a cabine com a Luiza Levy (que companheira de trabalho maravilhosa). A despeito de tantos anos de estrada, até eu me surpreendi com o inusitado da situação e do conteúdo traduzido.
Em inglês, Luiza e eu tivemos que dizer frases como “esse modelo com aro e bojo, alças ajustáveis, forro duplo e costas nadadora, todo trabalhado em renda, fica lindo com uma calcinha de corte fio dental, cós alto e padrão de arabescos no bumbum”. Pode parecer engraçado, e confesso que me diverti com esse tema aparentemente tão prosaico. Mas o negócio é sério.
Primeiro porque, conforme poderão atestar as mulheres que lerem este texto, roupa íntima é tema da maior importância no universo feminino.
Mas a seriedade está também no aspecto linguístico da tarefa. Para esse tipo de interpretação, é preciso estudar um bocado e ter conhecimentos, em dois idiomas, de uma variedade de campos semânticos: nomes de cores como grená, carmesim e ocre; tipos de tecido como renda, poliamida e meia malha; aviamentos como rebites, colchetes e ilhoses; modelos e desenhos como camisete, tomara que caia, corpete; máquinas, bobinas, métodos de produção, fios, etc. etc. etc.
E mais. É preciso achar o tom correto, que transmita a leveza de um desfile de moda e, ao mesmo tempo, a importância de um evento de negócios, num setor que faz girar um bom naco do PIB. E é preciso ter consciência de que, no público estrangeiro que ouve a interpretação, estão compradores capazes de determinar volumes de exportação, faturamento – e, por tabela, criação de empregos diretos e indiretos.
No mundo da interpretação, existe uma mítica em torno de áreas do conhecimento consideradas mais “nobres”: medicina, direito, engenharia, economia... Essa mítica provavelmente reflete o termômetro do mercado de trabalho em geral, que valoriza bastante essas profissões (a aura se justifica, pois medicina, direito, engenharia e economia são, de fato, nobres e complexas). Mas isso pode alimentar a falsa ideia de que outros campos seriam menos importantes.
Uma das coisas mais legais de trabalhar com interpretação simultânea é aprender, no exercício cotidiano do ofício, que todas as áreas de conhecimento e profissões têm valor, relevância e mérito. Nós, intérpretes, colocamos isso em prática ao nos preparar com igual dedicação e afinco para traduzir um congresso de neurologia ou um desfile de moda íntima. Afinal de contas, médicas, juízas, engenheiras e economistas estão usando essas peças ocultas na hora de realizar cirurgias, proferir sentenças, projetar pontes e determinar a política monetária. No escurinho da cabine, a gente se transforma num pedaço do fio que costura tudo isso.
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Professor Titular - UFSCar
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