"Atreva-se a traduzir Trump"

"Atreva-se a traduzir Trump"

Quando Donald Trump foi eleito presidente dos Estados Unidos em 2016, a tradutora francesa Bérengère Viennot (foto) fez o diagnóstico: “estamos adentrando um universo linguístico de dimensões desconhecidas”.

Viennot é autora de um livrinho tão curto quanto cirúrgico, chamado “A língua de Trump”, lançado no Brasil pela Editora Ayine e traduzido por Ana Martini. Com o resultado da Super Terça de ontem dando como certa uma nova candidatura do republicano, mais uma vez contra Joe Biden, o ensaio publicado pela autora em 2019 volta a ter relevância. Sobretudo para nós, tradutores e intérpretes, que temos pela frente a tarefa de transportar para português (ou espanhol, ou russo, ou japonês) o linguajar do empresário e político norte-americano.

Professora de tradução na Universidade Paris VII, Viennot atua há mais de vinte anos como tradutora de textos jornalísticos para a imprensa francesa. Nessa condição, teve uma convivência direta e cotidiana com a tal “língua de Trump”. Coube a ela, por exemplo, traduzir expressões como “Why are we having all these people from xxxxhole countries come here?”, em referência à entrada de imigrantes nos Estados Unidos; ou “you can grab them by the xxxxx, you can do anything”, falando sobre a forma como ele trata as mulheres; ou “I would bomb the xxxx out of them, I would just bomb those suckers”, num comentário sobre o Estado Islâmico.

Viennot explica que a pobreza – e a grosseria – do vocabulário de Trump poderiam sugerir um trabalho fácil para tradutores e intérpretes. O registro do ex-presidente é a tal ponto raso e rasteiro (semelhante ao de uma criança “de quinto ano do fundamental”, segundo ela), que a princípio pareceria simples verter suas falas para outros idiomas. Ledo engano.

Confrontada com uma sintaxe truncada e sem pé nem cabeça, com um cardápio muito limitado de palavras, com comentários vulgares (na melhor das hipóteses) ou racistas, machistas e xenófobos (na pior das hipóteses), a tradutora enfrenta um dilema raro na profissão. Se for fiel ao original, preservando o estilo de Trump, corre o risco de produzir uma tradução confusa, deselegante e incompreensível – pois é assim o discurso que ele produz em inglês. E o leitor em outra língua poderia concluir que “isso aqui está muito mal traduzido”, quando na verdade estaria diante de uma transcrição rigorosamente leal.

Por outro lado, se a tradutora opta por dar algum sentido ao que foi dito, por evitar a repetição de palavras (Viennot teve a pachorra de contar: numa entrevista ao New York Times, Trump usou o termo “great” 41 vezes), por organizar minimamente as frases para que fiquem compreensíveis, ela se afastaria tanto do original que não estaria mais traduzindo Donald Trump. Não à toa, um dos capítulos de seu livro recebeu o título de “Atreva-se a traduzir Trump”.

“A língua de Trump” é leitura certeira, bem escrita (e bem traduzida), indispensável para nós, tradutores e intérpretes que estaremos em contato com esse idioma peculiar ao longo dos próximos meses. Em alguns trechos, o livro seria quase engraçado – se não fosse trágico. Traduzir não é tarefa fácil, embora ainda tenha gente por aí achando que basta conhecer duas línguas para fazê-lo. Traduzir Donald Trump é uma empreitada ainda mais árdua (verdade seja dita, Joe Biden não é exatamente um orador exemplar e fácil de entender, e quem já teve a missão de fazer a tradução simultânea de seus discursos sabe disso). Vamos nos preparar para a batalha que nos aguarda nos próximos meses.

Rodrigo Amaral

Intérprete de Conferências (Inglês-Português) & CEO at Business Language Translations & Audiovisual

4 m

Ele realmente não é fácil

Ana Maria Barreiros, MAS

Professional Conference and RSI Interpreter,Translator, AIIC member, Psychologist, Lawyer, Meeting and Tour Planner.

4 m

Obrigada pelo texto certeiro e pela indicação do livro que procurarei imediatamente. O desafio de transpor para outros idiomas o linguajar peculiar do Trump, infelizmente não envolve apenas essa figura pública. O desafio atravessa fronteiras e pode ser usado no contexto brasileiro.

Vinicius Peccin

Traductor e Intérprete de conferencias Portugués y español

4 m

Adorei ler os textos de vocês, Denise Bobadilla e Beatriz Velloso! Obrigado por compartilhar!

Karina Wuo Pereira

Tradutora (EN/SP > PTbr) - especialista em Audiovisual

4 m

Muito interessante e importante esse texto e o livro indicado Beatriz Velloso . Obrigada pela dica. E temos que estar atentos a muitas variáveis para traduzir bem, e muitas delas não são ditas ou escritas, mas estão subentendidas.

Erik Zannon

International Relations and Affairs | Foreign Trade | Journalism | History | Translation | English and Italian Teaching

4 m

Um Biden incoerente e com sinais de senilidade contra Trump, que dispensa apresentações. Dois embates seguidos como esse demonstram a decadência americana. É impossível falar de Donald sem comentar os erros crassos dos Democratas desde 2016.

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