A Importância do "Direito à Realidade" como Parte Central dos Direitos Humanos
Cena do filme "Matrix", lançado em 1999 pelas irmãs Wachowski

A Importância do "Direito à Realidade" como Parte Central dos Direitos Humanos

Tenho discutido frequentemente o quanto o "Direito à Realidade" é um imperativo no design ético e sustentável das IAs Generativas para assegurar nossos valores, práticas e signos, além de garantir a transmissão de conhecimento entre gerações, moldando sujeitos e nossas relações sociais, culturais, emocionais e econômicas. Entre os cinco pontos centrais no desenvolvimento deste paradigma transformacional – segurança, inovação, inclusão, equidade e diversidade – o direito à realidade é transversal a todos.

 

Sob a ótica da neurociência, nosso cérebro constrói a realidade a partir de informações sensoriais que recebe e interpreta. Nossos sentidos (visão, audição, olfato, paladar e tato) captam estímulos do ambiente e os transmitem ao cérebro, que os processa e cria uma representação interna do mundo. Essa percepção advém também de nossas experiências passadas, expectativas e contextos culturais e históricos. Isso significa que a realidade que percebemos é, em grande parte, uma construção subjetiva. Embora nossos cérebros sejam capazes de criar uma imagem coesa do mundo, essa imagem pode ser facilmente distorcida por informações falsas ou manipuladas.

 

Recorro ao filósofo francês Jean Baudrillard e ao seu icônico livro dos anos 80, "Simulacros e Simulação". Nessa obra, Baudrillard explora como a sociedade contemporânea substitui o real pela simulação, ou simulacro. A primeira ordem seria uma cópia da realidade, enquanto a segunda é a cópia de algo que nunca existiu, criando assim a hiper-realidade.

 

Aliás, essa simulação e simulacro se soma a Hannah Arendt, em suas obras que discutem como a manipulação da realidade e a disseminação de mentiras podem fragilizar a democracia. Arendt argumenta que a estabilidade de uma democracia se apoia na confiança nas instituições e na solidez da realidade. Quando manipulada, isso pode levar à desorientação, facilitando o caminho para regimes antidemocráticos.

 

Platão, em sua obra "A República", apresenta o Mito da Caverna, onde prisioneiros acorrentados em uma caverna desde o nascimento só podem ver sombras projetadas na parede, que eles acreditam ser a realidade. Esse mito serve como uma metáfora poderosa para a nossa própria percepção da realidade. Se não garantirmos o direito à realidade, corremos o risco de permanecer "acorrentados" a falsas percepções, manipuladas por simulações e simulacros. A busca pela verdade e a proteção contra ilusões são essenciais para a nossa liberdade e compreensão do mundo.

 

A ficção científica e a literatura fantástica sempre foram uma das minhas paixões. O poder da arte para nos fazer imaginar múltiplas possibilidades de sentidos e vida é espetacular, pois, diferente da ciência, a arte pode oferecer hipóteses sem a necessidade de evidências e métricas, e muitas vezes, como um oráculo, antecipa a ciência.

 

Entre os filmes da minha lista dos dez mais está "Matrix", de 1999, dirigido pelas Wachowski, que explora profundamente a questão da realidade. O personagem principal, Neo, descobre que o mundo em que vive é uma simulação gerada por máquinas inteligentes que controlam a humanidade. Neo é confrontado com a escolha de continuar vivendo na ilusão ou enfrentar a realidade.

Matrix nos força a questionar: o que é real? Se não tivermos garantias, ferramentas e interações éticas para distinguir a realidade das simulações e simulacros (não à toa, o livro aparece de forma subliminar no filme), poderemos ser perpetuamente manipulados, vivendo em uma "caverna" contemporânea, acorrentados por nossa ignorância e complacência. O "Direito à Realidade" precisa ser um tema para debate e mobilização de todos – governos, instituições multilaterais, academia, empresas e sociedade civil – sendo abordado como um novo campo dos direitos humanos, para garantir que não sejamos condenados a viver em uma caverna de ilusões e falsidades, como no mito de Platão. A manipulação maciça da informação, a erosão da confiança nas instituições, a supressão da liberdade de expressão, a desinformação e a polarização são apenas alguns dos efeitos que podem comprometer a saúde das democracias.

 

As IAs são poderosas, e estamos vivenciando os primeiros dias desse renascimento após um longo período de inverno. Elas têm o potencial de ser um florescer de possibilidades no avanço da humanidade, combatendo desigualdades e apoiando soluções para a crise climática. No entanto, isso depende dos caminhos que a humanidade escolher.

 

Incorporar a IA, atuando sob a perspectiva do bem comum, está nas mãos da capacidade da humanidade de compreender e se mobilizar para que todos – sim, todos – possam usufruir e participar de seus benefícios.

Ana Paula Martinez

Partner at Levy & Salomão Advogados

1 m

Muito bom Saron!

Rosenildo Ferreira

Editor-chefe no site de notícias 1 Papo Reto

1 m

Muito profunda a sua reflexão. De fato, precisamos ter em mente o tipo de sociedade que desejamos construir e quais valores vamos intensificar. O problema é que a IA nasce na lógica de muitas plataformas de TIC: a apropriação do trabalho alheio para a concentração extrema do lucro. Não à-toa (aliás, nada é à-toa!), a lista de multibilionários está recheada desses empreendedores. A questão de fundo, na minha humilde opinião, é que nos deixamos enredar pela apropriação e o roubo do produto do trabalho alheio, a partir de uma visão errada de que a internet seria uma terra-de-ninguém. O resultado é que os produtores de conteúdo vão parar de produzir conteúdo (na essência da palavra) e ficaremos apenas com pastiches e remendos do que foi produzido no passado. E este é o passo avançado para o completo emburrecimento sociocultural que desagua no totalitarismo das sociedades distópicas enfocadas em Blade Runner, Gattaca e outras obras do tipo. Poderia dizer que o futuro se sombrio se acreditasse que teremos "futuro". E olha que sou otimista, hein!

Andrea Moreira

Gerente de RH | Gerente de Atração e Seleção | Consultor de RH | Experiência do Colaborador I Coordenador de RH

1 m

Não sei se faz sentido, mas minha maior preocupação é a “mentalidade” do ser humano em tirar vantagens individuais sempre que possível, e com a evolução da IA vislumbram muitas oportunidades. Aonde há a necessidade de democratização e o bem coletivo, priorizar a regulamentação e transparência sobre IA é tema urgente. Eduardo Saron ao publicar esses conteúdos, você provoca não só a reflexão, mas também que cada um de nós façamos a autoavaliação de como utilizar e nos posicionar nesse novo momento.

Gabriel Avelar

Intellectual Property & Entertainment | Corporate Counsel

1 m

Só vai acontecer se tiver dinheiro nisso, se você quiser a realidade, vai ter que pagar um premium. A imprensa distorceu o que é real, a internet agravou e as redes sociais corroeram o pouco que sobrava. Quando comentários de redes sociais são segregados para diferentes públicos, pode ter certeza, não estamos vivendo em uma realidade compartilhada.

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