JESUS, Rodrigo Ednilson. Ações Afirmativas, Educação e Relações Raciais - Conservação, Atualização Ou Reinvenção Do Brasil
JESUS, Rodrigo Ednilson. Ações Afirmativas, Educação e Relações Raciais - Conservação, Atualização Ou Reinvenção Do Brasil
JESUS, Rodrigo Ednilson. Ações Afirmativas, Educação e Relações Raciais - Conservação, Atualização Ou Reinvenção Do Brasil
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
BELO HORIZONTE
2011
Jesus, Rodrigo Ednilson de.
J58a Ações afirmativas, educação e relações raciais :
T conservação, atualização ou reinvenção do Brasil? / Rodrigo
Ednilson de Jesus. - UFMG/FaE, 2011.
277 f., enc,
CDD- 370.19342
BELO HORIZONTE
2011
DEDICATÓRIA
Esta tese não poderia ser dedicada a alguém que não fosse minha mãe.
Clemência Maria de Jesus (in memorian), mulher negra nascida no
interior de Minas Gerais, começou a trabalhar na infância e somente
na fase adulta pôde concluir o ensino primário. Mesmo assim, sem
compreender bem os significados dos rituais escolares e acadêmicos,
ela depositava uma grande confiança no poder da escolarização
formal. Também por isso posso dizer que, mesmo sem imaginar que
um dia teria um filho “doto”, minha mãe foi a principal responsável
por criar as possibilidades para este momento se concretizasse.
AGRADECIMENTO
Apesar de curta, esta sessão de agradecimento foi uma das partes que mais me
consumiu tempo e memória. Na medida em que me lembrava daqueles(as) que me auxiliaram,
de maneira direta e indireta, na elaboração desta tese, lembrava-me também daqueles que
mesmo sem saber bem o tema de minha tese (ou mesmo o que era uma tese) estiveram
comigo em momentos que me ajudaram a chegar até aqui. Orientado pela preocupação de
lembrar-me de todos os grandes amigos vou organizar estes agradecimentos em quatro
núcleos, em torno dos quais minha vida está organizada. Antes, porém, gostaria de agradecer
nominalmente à duas mulheres.
Primeiramente, gostaria de agradecer à Professora Nilma Lino Gomes que, além de
excelente orientadora, têm se mostrado, ao longo dos dez anos em que nos conhecemos, uma
excelente amiga e conselheira. Sua excepcional competência acadêmica, aliada às
características de generosidade e humildade intelectual, virtudes presentes em poucos(as)
acadêmicos(as), me serviu como referência para a construção de uma sociedade e uma
universidade democrática, afirmativa e anti-racista. Quero agradecer também à minha esposa
Lorena Fernandes dos Santos que, com seus comentários e conselhos, me ajudou a superar os
incontáveis momentos em que a “síndrome da página em branco” ameaçou paralisar a escrita.
Devo acrescentar ainda que seu sorriso franco e aberto, que me recepcionou no retorno das
inúmeras viagens, foi para mim uma inesgotável fonte de inspiração.
O primeiro núcleo ao qual gostaria de me referir é o núcleo Ibirité. Quero agradecer à
minha “pequena grande família”: meu querido irmão, minha querida irmã, meus sobrinhos e
cunhados. Agradeço também a amizade da turma da CDB, que há 17 anos compartilha
comigo os melhores e os piores momentos da vida.
O segundo núcleo ao qual quero me referir é o núcleo Tupi, e as pessoas que apesar de
terem me recebido com certa desconfiança (afinal os “filósofos” não são muito normais ou
confiáveis), me acolheram como verdadeiro membro da família, aceitando e respeitando meus
hábitos e minhas manias “diferentes”.
O terceiro núcleo ao qual preciso me referir é o UFMG, no qual me formei acadêmica,
cultural, política e festivamente. Gostaria de agradecer à instituição UFMG por ter me
favorecido conhecer tantas pessoas importantes e que mudaram profundamente minha vida.
Aos inúmeros amigos feitos durante participação no Projeto Conexões de Saberes, no
Observatório da Juventude e no Programa Ações Afirmativas. Gostaria de agradecer, de modo
especial, a cumplicidade contra-hegemônica dos amigos da Coorte 2000 e do Balú Mágico.
Gostaria de dedicar um agradecimento especial à Daniel Martins, à Rivana Alves, à Fernanda
Vasconcelos que, de modo atencioso, leram partes da tese e deram valiosas sugestões, e à
Tiago Jorge, Carol Trindade, Karina Cursino e Tiago Monteiro que me auxiliaram em
momentos decisivos do trabalho.
Por fim, mas não menos importante, gostaria de me referir ao núcleo dos Vales do
Jequitinhonha e Mucuri. Agradeço aos meus alunos das diversas disciplinas da graduação da
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, que, de modo indireto, me
fizeram refletir sobre a necessidade de haver coerência entre o que eu falo enquanto
pesquisador e ativista social e o que eu faço enquanto professor. Agradeço enfim, à parceria e
a paciência de meus colegas de trabalho, especialmente aqueles lotados no Departamento
Interdisciplinar de Ciências Básicas que me provocaram a pensar sobre o significado concreto
da interdisciplinaridade e da troca de saberes.
RESUMO
This research, which has a bibliographical and qualitative characteristic, has two
distinct but related aims, what explains the thesis division in two parts. The main aim in the
first part is to discuss the central role that basic and higher education has played in the
constructive process of Brazilian society up to the present time, sometimes keeping social
inequalities and sometimes making social inclusion possible and promoting social, economic
and cultural emancipation of the poorest. The second part of this work aims to discuss how
current proposals of Affirmative Actions, which have helped to take up again discussions on
racial relations in Brazil, have provoked the State, universities and civil society to re-evaluate
the ground of the modern Brazilian State, principally after the Proclamation of the Republic in
1889.
The thesis I will support is that public policies presenting racial features that have been
carried out in Brazil, especially Affirmative Actions policies, often reduced to Quota policies,
broke down the historical image of Brazil, always legitimated by Brazilian society, which
reflects the Brazilian people and their sui generis racial relations. Theoretical and political
commitments regarding Quota policies and Affirmative Actions, especially the positioning of
16 expositors who participated in the Hearing on Affirmative Actions policies to reserve
places in Higher Education carried out by the Federal Supreme Court in March of 2010, were
used in order to understand divergent social representations on race and racism, equality and
inequality, justice and injustice, national identity and the formal education role.
The analysis of the speeches on the constitutionality or the unconstitutionality of race
Quota in universities and colleges, the theme of the Hearing, evidenced that we are not coping
with metaphors, but also with material and symbolic disputes to impose conceptions about
Brazil and to appropriate a different proportion of the available resources - material and
symbolic. It has also evidenced that the divergent representations of Brazil and of Brazilian
race relations can vary from those that denounce the race discrimination in many social
contexts to those that sustain the unity of race relations. These two points of view are closely
associated with how the social actors think about the political alternatives as more adequate
and coherent in relation to the nation projects they are inserted. To whom that denounce the
policy on race as unconstitutional the policy on Quota and Affirmative Actions might not be
the most appropriate alternative policies to provide the preservation of “Rainbow Nation”, in
reference to Brazilian racial plurality. On the other hand, to whom the race policies are
constitutional, just with the explanation about the modern ground on which Brazilian
inequalities are founded it would be possible to conceive of other possible policies more
adequate to reinvent the country. It would enable the emergence of a new social reality able to
combine the racial equality as an ideal and the respect for differences.
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................ 13
PRIMEIRA PARTE
SEGUNDA PARTE
4.1 – Repercussões “da revolução” no campo das políticas educacionais ........................................... 140
4.2 – Repercussões “da revolução” no campo científico...................................................................... 150
.................................................................................................................................................................. 278
INTRODUÇÃO
1
Programa de Ensino, Pesquisa e Extensão Ações Afirmativas, na UFMG, que integrou o conjunto dos 27
projetos aprovados no Concurso Nacional Cor no Ensino Superior, promovido pelo Programa Políticas da Cor,
do Laboratório de Políticas Públicas da UERJ, com apoio da Fundação Ford, no ano de 2001. Trata-se de uma
proposta que apresenta estratégias de intervenção com vistas a reduzir os efeitos antidemocráticos dos processos
de seleção e exclusão social impostos aos afro-brasileiros, visando promover a permanência (bem sucedida) de
estudantes negros, sobretudo, de baixa-renda, regularmente matriculados nos cursos de graduação da UFMG. O
programa objetiva, também, entrada destes nos cursos de pós-graduação, se fundamentando em duas linhas de
ação. A primeira envolve atividades para apoiar os estudantes beneficiários do programa, tanto do ponto de vista
acadêmico quanto material. A segunda se volta para o desenvolvimento da identidade étnico-racial, por meio de
debates, no interior da universidade, acerca da questão racial na sociedade brasileira e do envolvimento dos
alunos em atividades de ensino, pesquisa e extensão. Disponível em <http://www.fae.ufmg.br/acoesafirmativas/>
Acessado em 08 de Outubro de 2011.
13
artigos e capítulos de livros, lecionar em escolas regulares e universidades, orientar trabalhos
acadêmicos, ser coparticipante de bancas de conclusão de cursos e outros. Assim, aos “trancos
e barrancos”, fui me formando (e informando). E, foi me envolvendo com inúmeras
atividades acadêmicas e sociais do gênero que “me tornei negro” (SANTOS, 1983), não na
“cor da pele”, mas, no sentido lato da palavra.
14
Hoje, nos parece óbvio que, o diagnóstico de nossas leituras introdutórias sobre as
relações raciais no Brasil evidencie que, naquela época, boa parte de nossas intervenções
resultassem de experiências pessoais (na universidade ou espaços sociais nos quais
circulávamos). Experiências essas que estimularam nossas reflexões sobre o significado de
“ser negro” neste país. E, embora, academicamente, seja questionável, particularmente, creio
que esse posicionamento “achista” de outrora fosse compreensível, uma vez que, as nossas
vivências, naturalmente, legitimavam a necessidade das políticas de ações afirmativas para a
população negra, embasando os nossos discursos em diferentes situações discriminatórias
e/ou racistas que havíamos vivenciado durante nossa vida estudantil. Quiçá, por isso, nos
parecia urgente à necessidade de evidenciar a existência do racismo no Brasil, lançando luz
sobre as questões do nosso cotidiano que, de modo geral, passam despercebidas; tais como: a
naturalidade com que são vistas as brincadeiras racistas entre colegas do ensino fundamental e
médio; o reduzido número de professores negros em cursos de ensino médio e, em especial no
ensino superior; o baixíssimo número de negros em cursos de graduação e pós-graduação, etc.
2
UFSCAR – Universidade Federal de São Carlos.
16
reparações, de redistribuição e de reconhecimento, não entendidas como políticas excludentes
entre si. Para Silvério (2002), mais importante do que se posicionar contra ou a favor, às
políticas de ações afirmativas em vigor, é preciso compreender os contextos históricos, sociais
e políticos que permitiram e/ou favoreceram a emergência dessas reivindicações; levando em
conta, os impactos dessas políticas no campo científico, das políticas públicas e da
nacionalidade brasileira.
Um ano depois, o professor Valter Silvério retomaria estas questões em outra
palestra3, proferida na Faculdade de Educação, da UFMG, em 2003, quando abordou o tema
das Ações Afirmativas sob o crivo sociológico. Naquela época, apesar de marcante, o
discurso não exerceu impacto imediato sobre minhas pesquisas, embora tenha permanecido
latente em minha memória por aproximadamente oito anos. Deste modo, segui meu caminho
realizando pesquisas no âmbito da “educação e relações raciais” (JESUS, 2006), bem como
participando de eventos que tratavam do assunto, relutando, até o ano de 2008, em converter
essa temática em meu objeto de pesquisa. E, assim, paulatinamente, meu posicionamento
favorável às políticas de Ações Afirmativas se expandiu e não se limitava mais ao meu
pertencimento étnico-racial ou em minha participação no Programa de Ações Afirmativas, da
UFMG; agora, estava alicerçado sobre argumentos (históricos, sociológicos, econômicos,
filosóficos e pedagógicos) que foram se acumulando em minha trajetória acadêmica.
Lembro-me nitidamente que, apenas, em 2008, quando aprovado no processo seletivo
para o curso de Doutorado em Educação da UFMG, cujo projeto intitulado Políticas de Ações
Afirmativas e Imaginário Racial em Universidades Brasileiras e Sul-Africanas, comecei a me
dedicar, efetivamente, à pesquisa do assunto. O amadurecimento teórico da temática ocorreu
durante o curso de Doutorado, tendo sido possibilitando pela participação nas disciplinas e
nas atividades promovidas pelo Programa de Pós-Graduação, aliado às dificuldades de
conciliar meus compromissos docentes na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e
Mucuri (UFVJM) com o estágio no exterior – na University of de Cape Town; o que provocou
mudança de foco da pesquisa 4.
3
1º Ciclo de Debates do Programa Ações Afirmativas na UFMG: “Polêmica da raça: o olhar da sociologia e da
biologia”. Palestrantes: - Prof. Dr. Sérgio Danilo Pena (ICB/UFMG) - Doutor em Genética Humana e Médica e
professor titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia da UFMG e Prof. Dr. Valter Roberto Silvério
(UFSCAR) - doutor em Sociologia/UNICAMP e professor adjunto do departamento de Ciências Sociais da
UFSCAR. 04 de Junho de 2003, Belo Horizonte, Faculdade de Educação da UFMG - Campus Pampulha.
4
Após dois semestres dialogando com alguns professores da University of Cape Town, localizada na cidade do
Cabo, na África do Sul, recebi, no final do ano de 2009, uma carta de aceite para realizar um ano de “estágio
sandwich” no Departamento de Sociologia daquela universidade. No entanto, no mês de Janeiro de 2010, fui
17
Após muitas conversas e reflexões com minha orientadora, decidimos não remar
contra a maré, mas aproveitar a força da correnteza. Assim sendo, paramos de lutar contra o
que o desenvolvimento natural da pesquisa e efetivamos o inevitável: a realização de uma
investigação centrada nas representações sociais sobre o processo de implementação de Ações
Afirmativas no Brasil e suas implicações para o campo educacional, político e científico.
No ano de 2010 participei da “Audiência Pública sobre a Constitucionalidade de
Políticas de Ação Afirmativa de Acesso ao Ensino Superior”, realizada pelo Supremo
Tribunal Federal no mês de Março de 2010 na cidade de Brasília, que se converteria em
minha experiência de campo. Nela, tive a oportunidade de ouvir os posicionamentos teóricos
e políticos de várias referências nacionais no campo das relações étnico-raciais sobre as
políticas de cotas e de Ações Afirmativas, o que me permitiu organizar uma boa base de
dados qualitativos que viriam a ser analisados ao longo do no segundo semestre de 2010 e do
primeiro semestre de 2011. No ano de 2011 dediquei-me à escrita e a finalização da tese. De
maneira geral, as atividades realizadas ao longo dos quatro anos de doutoramento, como
discente na UFMG, como docente na UFVJM e como pesquisador no NERA/UFMG - Núcleo
de Estudos sobre Relações Raciais e Ações Afirmativas5, possibilitaram-me compreender que
o debate contemporâneo sobre políticas de cotas, políticas de ações afirmativas e demais
políticas com recorte racial no Brasil, escondem, mais do que revelam. Por trás dos
posicionamentos rápidos e objetivos, contra ou a favor, se escondem elementos muito
complexos e profundos que não se revelam nos posicionamentos dicotômicos.
De acordo com Duarte; Bertúlio; Silva (2008), organizadores do livro “Cotas raciais no
ensino superior: entre o jurídico e o político”, as resistências, abertas ou veladas, que alguns
estudantes negros passariam a enfrentar no interior das universidades a partir da
implementação das políticas de Ações, resultado do “abolicionismo acadêmico lento e
gradual”, seriam resultado de “uma das inúmeras formas de manifestação da tradição nacional
de nossas relações raciais”. Por outro lado, para Fry; Maggie; et. All, (2007, p. 9), organizadores
do livro “Divisões Perigosas: políticas raciais no Brasil contemporâneo”, o caminho
descortinado pela implementação das políticas de cotas raciais no ensino superior brasileiro, e
aprovado em concurso para professor assistente para a área de Sociologia na Universidade Federal dos Vales do
Jequitinhonha e Mucuri, campus localizado na cidade de Teófilo Otoni.
5
No ano de 2009, participei da Pesquisa “Práticas Pedagógicas de Trabalho com relações étnico-raciais na
escola na perspectiva da Lei 10.639/03”. Realizada em parceria com o MEC e a Representação da Unesco no
Brasil a pesquisa tinha como objetivo mapear e analisar as práticas pedagógicas desenvolvidas pelas escolas
públicas e pelas redes de ensino de acordo com a Lei 10.639/03, a fim de subsidiar e induzir políticas e práticas
de implementação desta Lei em nível nacional em consonância com o Plano Nacional de Implementação da Lei
10.639/03 .
18
do Estatuto da Igualdade Racial seria “terá efeitos colaterais sumamente indesejáveis no que
toca à sociabilidade e à concepção política da nação brasileira”.
Neste contexto, de conflitos e confrontos, a tese que procurarei desenvolver neste
trabalho se refere às políticas públicas com recorte racial, recentemente, implementadas no
Brasil, em especial as políticas de Ações Afirmativas (geralmente, reduzidas às políticas de
cotas), têm desestabilizado as imagens, historicamente, construídas e, socialmente,
legitimadas que dizem respeito: ao país, ao povo brasileiro e, sobretudo, ao modelo sui
generis de relações raciais vigente, que têm provocado tanta polêmica.
A presente pesquisa foi realizada por meio de análise bibliográfica e documental. A
análise bibliográfica consistiu na análise de livros, artigos, periódicos de circulação nacional e
sites da internet especializados na temática étnico-racial. Já a análise documental consistiu na
análise de Manifestos contrários e favoráveis às políticas de ações afirmativas e de cotas
raciais, e nas Notas Taquigráficas que registraram os discursos proferidos por diferentes
expositores que se pronunciaram na “Audiência Pública sobre a Constitucionalidade de
Políticas de Ação Afirmativa de Acesso ao Ensino Superior.” No intuito de identificar os
fundamentos teóricos, políticos e ideológicos que sustentam as perspectivas individuais dos
expositores sobre as políticas de ações afirmativas, sobre as políticas de cotas raciais e sobre
temas correlatos, os discursos dos expositores na Audiência serão submetidos à análise de
conteúdo e à analise do discurso.
A presente pesquisa apresenta dois objetivos distintos e correlacionados - o que
explica a divisão da tese em duas partes.
O objetivo principal da Primeira Parte do trabalho é discutir, por meio do pensamento
social e da historiografia, algumas das intensas disputas em torno da construção social da
nação brasileira e do papel central que a educação (básica e superior) desempenhou neste
processo, tendo sido utilizada, ora, como meio de manter e acirrar as distâncias sociais entre
elites e camadas subalternas da população, ora, como meio de possibilitar a inclusão social e a
emancipação socioeconômica e cultural destes grupos subalternizados. Apesar de não se tratar
de uma tese no campo da História da Educação, o reconhecimento da historicidade do tema
abordado nos exigiu uma incursão, ainda que breve, neste campo de conhecimento.
A Segunda Parte objetiva discutir como as atuais propostas de políticas de Ações
Afirmativas, que têm favorecido a retomada dos debates sobre relações raciais no Brasil, vêm
tencionando o Estado, as universidades e a sociedade civil a repensar as bases sobre as quais
se edificou o moderno Estado Brasileiro, em especial, a nação resultante da Proclamação da
República, em 1889. Para isso, levaremos em conta os posicionamentos teóricos e políticos de
19
diferentes atores sociais que (envolvidos nos debates sobre as políticas de cotas e Ações
Afirmativas) nos ajudam a compreender as divergentes representações sociais sobre os
conceitos de raça e racismo, igualdade e desigualdade, justiça e injustiça, o papel da educação
formal e a identidade nacional.
Estrutura da tese:
Esta tese está organizada em sete capítulos, distribuídos em duas partes, além desta
introdução. A Primeira Parte congrega os dois primeiros capítulos, ambos orientados pela
preocupação em oferecer ao leitor uma compreensão panorâmica dos contextos históricos,
sociais, políticos e educacionais que permitiram e/ou favoreceram a emergência das demandas
contemporâneas de políticas de ações afirmativas no Brasil.
No primeiro capítulo, discutiremos o papel do pensamento social e da historiografia,
ao longo dos séculos XIX e XX, no processo de construção da nação brasileira, bem como
sobre as estreitas relações entre pensamento social, historiografia e as políticas educacionais
dirigidas ao povo brasileiro e, especialmente à população negra, ao longo do período imperial
e republicano no Brasil.
No segundo capítulo discorreremos sobre o fenômeno chamado por Medeiros (2004)
de “revolução dos micróbios”, que teria emergido no Brasil, a partir da década de 1970, e se
constituiu como uma contundente contestação à imagem de nação que se consolidou ao longo
do século XX, além de uma visceral crítica ao contexto de desigualdade social e racial vigente
no país. Além disso, discutiremos alguns dos motivos que transformaram a educação em uma
das principais bandeiras de luta das entidades negras e do Movimento Negro Unificado, a
partir da década de 1970.
A Segunda Parte deste trabalho congrega do terceiro ao sétimo capítulo, todos eles
orientados pela preocupação em oferecer ao leitor uma compreensão das divergentes
representações sociais que se confrontam no processo de implementação de Ações
Afirmativas no Brasil, bem como de algumas implicações, materiais e simbólicas, da
discussão e implementação de políticas de ações afirmativas para o campo educacional,
político e científico e para a nacionalidade brasileira.
No terceiro capítulo, refletiremos as mais recorrentes controvérsias em volta das
políticas de ações afirmativas que, aos poucos, se converteram na principal bandeira de luta
do movimento antirracista brasileiro. Através dele, procurarei discutir, também, como as
20
diferentes mobilizações políticas (em defesa ou em oposição às políticas com recorte racial)
têm se baseado em representações sociais distintas e, por vezes, irreconciliáveis, acerca de
temas como raça e racismo, igualdade e desigualdade, justiça e injustiça, identidade nacional,
papel da educação formal, etc.
No quarto capítulo, discutiremos sobre algumas das principais repercussões políticas e
científicas geradas pela emergência das demandas em torno das políticas de ações afirmativas,
que ajudaram a recolocar na agenda pública de discussões (acadêmicas e políticas) o tema das
relações raciais no Brasil. Esse fato contribuiu para a emergência, no campo político, de
questionamentos sobre a hegemonia e a exclusividade das políticas universais e, no campo
cientifico, sobre a vitalidade hegemônica do princípio de neutralidade axiológica, que embora
agonizante, segue hegemônico.
O quinto capítulo se dedica aos processos metodológicos adotados para realização
desta pesquisa. Nele, apresentaremos as discussões iniciais da Audiência Pública sobre
Políticas de Ação Afirmativa de Reserva de Vagas no Ensino Superior, realizada em Março
de 2010, em Brasília, como subsídio para o julgamento do Supremo Tribunal Federal de uma
Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental impetrada pelo Partido Democrata. Além
disto, serão apresentados nesse o capítulo uma síntese dos argumentos utilizados por cada
expositor durante a audiência. Adicionalmente, explicitaremos as escolhas metodológicas
adotadas para a análise dos dados.
No sexto capítulo, no intuito de compreender os fundamentos sociais que sustentam os
posicionamentos em torno da constitucionalidade ou da inconstitucionalidade das políticas de
cotas raciais e de Ações Afirmativas no Brasil, realizaremos a análise dos discursos proferidos
na Audiência Pública; refletindo, ainda, sobre as disputas materiais e simbólicas em torno das
imagens, dos diferentes projetos defendidos pelos expositores e das divergentes alternativas
políticas defendidas para o Brasil, que, de modo indireto, contribuem para conservar, atualizar
ou reinventar esta nação.
No sétimo (e último) capítulo, apresentaremos as considerações finais e, por
conseguinte, as referências bibliográficas utilizadas para realização deste estudo.
21
- PRIMEIRA PARTE -
22
CAPÍTULO 1
“O que faz do ‘brasil’, Brasil?” Quais são os aspectos que distinguem a nação
brasileira dos demais Estados nações? Quais elementos são constitutivos da nossa nação?
Essas indagações foram imortalizadas pelo livro clássico do antropólogo Roberto da Matta
(1986), intitulado O que faz o Brasil, Brasil?, e não se trata de inquietações recentes, nascidas
na segunda metade do século XX, como o livro; mas de questionamentos históricos que
ecoam na História Geral do Brasil.
Nesse sentido, ao longo dos séculos XIX e XX, diversos pensadores, nacionais e
estrangeiros, que já se tornaram clássicos do pensamento social brasileiro, buscaram oferecer
respostas a essas reflexões. Dentre eles, podemos citar alguns pensadores brasileiros:
Visconde do Uruguai (1807-1866), Joaquim Nabuco (1849-1910), Silvio Romero (1851-
1914), Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), Euclides da Cunha (1866-1909), Francisco
José de Oliveira Viana (1883-1951), Gilberto Freire (1900-1987), Sérgio Buarque de Holanda
(1902-1982), Abdias do Nascimento (1914-2011), Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982),
Clóvis Moura (1925-2003) e Florestan Fernandes (1920-1995). Não obstante, em meio aos
nomes estrangeiros, podemos destacar alguns proeminentes intelectuais, como Donald
Pierson (1990-1995), Charles Wagley (1913-1991) e Roger Bastide (1898-1974).
23
(“pensar o Brasil”), também, seduziu os historiadores diversos (nacionais e estrangeiros) que
interessados em registrar a “história oficial do Brasil”, contribuíram para projetar a imagem:
às vezes, utópica, às vezes, caricatural deste país. Isso significava que a idéia de ter uma
sociedade nova em terras do Brasil, “não foram [idéias] simplesmente criadas por intelectuais
e reinterpretadas pelo povo. Ideias essas que resultam de um constante processo de troca entre
o povo brasileiro e sua elite” (idem, p.19). Processo esse que fez com que, ao longo do
desenvolvimento histórico da nação, a nacionalidade brasileira fosse inventada e reinventada,
repetidas vezes, provocando movimentos de conservação, atualização e reinvenção de
princípios, objetivos e utopias relacionados ao futuro.
No que tange à sociedade em que viviam esses pensadores, quando emitiam juízos de
valores sobre seu tempo e o passado, merece destaque que os mesmos propunham formas para
manter os pontos positivos e superar os negativos de suas épocas, visando construir um futuro
ideal para a nação. Deste modo, registra-se que, nos anos que precederam à proclamação da
República brasileira (importante marco para a constituição do Brasil enquanto nação
“moderna”), vigorou a perspectiva pessimista, representada pelo pensamento racialista de
Nina Rodrigues e Silvio Romero, que sustentava a inevitável degeneração do povo brasileiro,
mantendo-se hegemônica entre os pensadores e criadores de nossa nacionalidade. Entretanto,
na década de 1930, houve uma guinada no modo de se pensar o Brasil, rompendo com as
teses catastróficas das correntes racialistas do final do século XIX.
Segundo Cardoso (1993), tomemos como exemplo: Casa Grande e Senzala, de
Gilberto Freire, cuja obra ressignificou o modo de pensar a nação, ajudando a “(re)inventar o
24
Brasil.” Por meio desta narrativa, o autor teria criado uma identidade nacional sedutora, cuja
imagem não refletia com fidelidade as peculiaridades do povo brasileiro, mas retratava os
nossos desejos em constituir a nacionalidade. Tratava-se, assim, de “um espelho narcisista do
Brasil, como o próprio autor, aliás, sempre o foi. Quem o mirar, achará que nossa cara é bela e
gostosa de ser vista” (idem, 1993, p.25).
Consoante, Zarur (2003) aponta que a utopia brasileira se fortaleceu com a expansão
da perspectiva culturalista do “mestre de Apipucos”, uma vez que, consistia exatamente “na
crença da chegada inevitável de uma civilização nova, mestiça e original, cuja ideia de
‘branqueamento’, antes de significar a limpeza e/ou a diluição do sangue negro, deveria
significar ‘amarronzamento, mestiçagem’”. Notadamente, uma série de levantamentos
recentes tem destacado que, de fato, esta imagem sobre a nação, que salienta a fluidez das
relações sociais e raciais, se tornou, por meio de um longo processo de imposição
imperceptível, haja vista que há um imaginário hegemônico 6. Todavia, como alerta o próprio
autor, “a crise de hoje é a crise desta ideia (deste modelo de identidade nacional), que sempre
funcionou como o motor do projeto nacional e das esperanças do país” (idem, p.17).
Segundo d’Adesky (2001), a crise a qual se refere Zarur (2003) diz respeito, ao menos
em parte, às lutas por reconhecimento travadas atualmente pelos movimentos sociais negros
no Brasil e pelos pensadores sociais contemporâneos que têm questionado a legitimidade e
hegemonia desta idéia e que, de modo direto e indireto, provocam deslocamentos nas imagens
construídas que se legitimaram como representação da nação brasileira. Deste modo, os
movimentos contemporâneos de luta pela redefinição simbólica da nação, como definiram
Moyá e Silvério (2009), não são os primeiros ou únicos com este caráter. Caminhando pela
história, encontramos diversas organizações populares, insurreições, batalhas e revoltas
realizadas em prol de direitos (ora relatadas pela historiografia nacional, ora oculta e tratadas
como inexistentes) atestando a natureza inacabada e volátil da invenção e reinvenção desta
nação. Entretanto, consideram os autores, “foi, somente, na segunda metade do século XX
que se tornou emergencial o surgimento de novos interpretes da história e da identidade
brasileira”.
6 TURRA, Cleusa; VENTURI, Gustavo. Folha de São Paulo (jornal); Datafolha. Racismo cordial: a mais
completa analise sobre o preconceito de cor no Brasil. São Paulo: Ática, 1995.
25
primeira geração) protagonizaram amplo movimento de questionamento das interpretações
clássicas sobre a nação brasileira que apresentavam como traço comum: a invisibilização, por
meio de discursos sociológicos ou historiográficos, de uma grande parcela da população
brasileira (MOURA, 1991).
Nessa perspectiva, a construção deste primeiro capítulo, que será dividido em dois
tópicos, está orientada pela premissa de Anderson (2008): “o debate em torno da
autenticidade das nações é uma falsa questão, posto que toda nacionalidade seja produto de
uma invenção política”.
7 Para ver mais sobre estes temas, ler: MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil:
identidade nacional versus identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
26
2009). Cabe destacar ainda que o conjunto de pensadores sociais, clássicos e contemporâneos,
selecionados para terem suas idéias discutidas neste trabalho é, certamente, arbitrário, e foi
definido levando em consideração a presença ou a ausência, no interior de seus pensamentos,
de reflexões sobre a nação brasileira e de elaborações teóricas sobre as relações étnico-raciais
no Brasil.
Um problema sobre o qual você não tem informação não existe. Você
não pode combater o que não existe. Se não está documentada, a
desigualdade não existe.
Edna Roland, Depoimento Histórias do Movimento Negro no
Brasil, 2007.
O padrão discursivo básico do século XIX que conforma essa concepção estrutura-
se em torno do conceito de civilização, atribuindo portanto à monarquia brasileira
uma missão civilizadora. Construir o país é levar a civilização aos sertões, ocupar o
solo e subtrair os lugares da barbárie, o que cabe a uma elite que se autodefine como
‘representantes das idéias da ilustração’(MORAES, 2005, p.95).
Adolpho de Varnhagen, filho de pai alemão e mãe portuguesa, foi quem levou adiante
o propósito de Von Martius, tendo sido considerado, por isso, o primeiro historiador brasileiro
e o pioneiro na consolidação da utopia de constituir a história gloriosa da nação. Por meio de
relatos do passado nacional, identificado à prioristicamente como glorioso, Varnhagen
pretendia abrir caminho para a consolidação de um futuro promissor; dada à potencialidade
civilizatória proporcionada pela colonização portuguesa, negligenciando os males causados,
sobretudo, a utilização da escravidão negra no país. Convencido da superioridade racial do
colonizador português e da importância do empreendimento colonial português no Brasil, o
autor demonstrava a confiança no desaparecimento progressivo do sangue negro da população
brasileira, conforme o excerto abaixo da obra História Geral do Brasil, publicada em 1847:
Como a colonisação africana, distincta principalmente pela sua cor, veiu para o
diante a ter tão grande entrada no Brazil que se póde considerar hoje como um
dos três elementos de sua população, julgamos do nosso dever consagrar algumas
linhas neste logar a tratar da origem desta gente, a cujo vigoroso braço deve o Brazil
principalmente os trabalhos do fabrico do assucar, e moderadamente os da cultura
do caffé, mas fazemos votos para que chegue um dia em que as cores de tal
modo se combinem que venham a desaparecer totalmente no nosso povo os
8
MARTIUS, C. F. Von - Como se deve escrever a História do Brasil, publicado com O Estado de Direito entre
os autóctones do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1982.
29
característicos da origem africana, e, por conseguinte, a accusação da
procedência de uma geração, cujos troncos no Brazil vieram conduzidos em
ferros do continente fronteiro, e soffreram os grilhões da escravidão, embora
talvez com mais suavidade do que em nenhum outro paiz da América,
começando pelos Estadous Unidos do Norte, onde o anathema acompanha não só
a condição e a cor, como a todas as suas gradações; sendo neste ponto, como em
outros muitos, a nossa monarchia mais tolerante e livre que essa arrogante republica,
que tanto blasona de suas instituições libérrimas, e cujo aristocrático cidadão não
admitte a seu lado nas reuniões políticas, nem nas civis e sociaes, o pardo mais
claro, por maiores que sejam seus talentos e virtudes (VARHANGEN, 1847 apud
REIS, 2007, p.182-183 - Grifos nossos).
Mesmo se inferirmos que tal pensamento é fruto de uma determinada época, na qual as
relações sociais entre portugueses e seus descendentes, bem como africanos escravizados e
seus descendentes, eram outras, é interessante ponderar como o eixo estruturante desse
raciocínio prima pela inferioridade do negro. Esse caráter mágico e amenizador das tensões
daquela época (sobre a mistura racial e a idéia do Brasil como país da suavidade das relações
entre negros e brancos) ficaram arraigados à cultura brasileira que, infelizmente, perdura em
pleno século XXI.
30
escravocrata, centrado no trabalho braçal da população africana e por seus descendentes
escravizados.
Conforme afirma Ortiz (2006, p.19), no pensamento social e literário produzido no
país durante a primeira metade do século XIX, “nada se tem a respeito das populações
africanas; o período escravocrata é um longo silêncio sobre as etnias negras que povoam o
Brasil. Em função disso, em sua bricolage de uma identidade nacional, o romantismo pode
ignorar completamente a presença do negro” na construção da sociedade. Com isso, tomados
numa perspectiva puramente econômica, os africanos e seus descendentes no Brasil foram
compreendidos como mero objeto de trabalho, indignos de qualquer reconhecimento; ou,
quando isso ocorria, reconhecidos, tão somente, pelo contributo laboral no desenvolvimento
do sistema produtivo, sendo, portanto, desconsiderados como elementos humanos capazes de
contribuir para a construção da moderna e civilizada nação brasileira.
De acordo com Moura (1991), para compreender a historiografia produzida durante o
período imperial, é preciso tomá-la como suporte ideológico do sistema escravista que,
simultaneamente, racionalizava as contradições e dilaceramentos, possibilitando a
continuidade dos interesses da intelligentsia subordinada ideológica ou economicamente ao
sistema. Radicalizando o diagnóstico das interpenetrações entre as “vocações políticas” e as
“vocações científicas”, o referido autor apresenta crítica ferrenha aos historiadores que se
propuseram a escrever a história brasileira do período imperial e dos anos iniciais da
República. Depreende-se dele que para a historiografia brasileira produzida neste contexto, o
negro (bem como os demais grupos subalternizados) foi “o grande elemento desconhecido”,
tanto em relação às suas variadas características culturais, religiosas, linguísticas, etc., quanto
ao que se refere a sua contribuição para o Brasil.
Consoante, Moura (1991, p. 31) advoga: “os intelectuais comprometidos e/ou
subordinados ao sistema escravista desempenharam importante papel de naturalização do
sistema, ao mesmo tempo em que contribuíram para a impossibilidade da emergência”, ou
mera existência, de um sistema fundado em bases distintas. E, segue o autor: “esse
procedimento foi muito utilizado pelos intelectuais orgânicos do sistema escravista na
elaboração das Histórias do Brasil, posto que existisse certa manipulação maniqueísta da
presença das classes subalternas ao longo da história, provocando, de modo geral, a
caricaturização ou invizibilização destes” (idem, p.32). De fato, a historiografia oficial do
Brasil é escassa de fontes ou referências às populações subalternizadas e suas ações de
questionamento do sistema vigente. No caso do contributo da população negra, a
invisibilidade é ainda mais impressionante.
31
Os historiadores que se debruçaram sobre a nossa realidade jamais, ou muito
raramente, viram o negro como força dinâmica na nossa formação política, social,
cultural ou psicológica. Todos os antigos preconceitos bíblicos, cientificistas ou
racistas foram unidos, compactados e aplicados na análise do comportamento da
população negra (MOURA, 1990, p.12).
Apesar das diversas posições em que esses historiadores se situam, uma coisa lhes é
comum: a visão de que os negros, índios e mestiços em geral são elementos
bárbaros, pagãos, gentios sem capacidade civilizadora e os brancos, detentores de
estruturas de poder, aqueles elementos que impulsionaram a nossa sociedade em
direção à civilização. (...) Todos os historiadores cujo pensamento analisamos são
acordes num particular: os negros não tinham condições de dirigir a sociedade, eram
por determinação divina ou de outra ordem condenados a serem massa dominada
pelos brancos, detentores do poder e do privilégio divino ou racial de dominar o
mundo (idem, p.213).
A escravidão não há de ser suprimida no Brasil por uma guerra servil, muito menos
por insurreições ou atentados locais. Não deve sê-lo, tampouco, por uma guerra
civil, como o foi nos Estados Unidos. Ela poderia desaparecer, talvez, depois de uma
revolução, como aconteceu na França, sendo essa revolução obra exclusiva da
população livre; mas tal possibilidade não entra nos cálculos de nenhum
abolicionista. (...) A emancipação há de ser feita, entre nós, por uma lei que tenha os
requisitos, externos e internos, de todas as outras. É assim, no Parlamento e não em
fazendas ou quilombos do interior, nem nas ruas e praças das cidades, que se há de
ganhar, ou perder, a causa da liberdade. Em semelhante luta, a violência, o crime, o
desencadeamento de ódios acalentados, só pode ser prejudicial ao lado que tem por
si o direito, a justiça, a procuração dos oprimidos e os votos da humanidade toda.
(NABUCO, 1977, p.39-40)
33
Um exemplo instigante das contradições marcantes da sociedade da época, que se
equilibrava em um inusitado liberalismo conservador no interior de um sistema monárquico,
refere-se ao pouco reconhecimento atribuído a André Rebouças, que participou, juntamente
com Joaquim Nabuco, tanto da campanha abolicionista, quanto da criação da Sociedade
Brasileira contra a Escravidão.
Segundo Carvalho (2009), Rebouças integrava um segmento social restrito, porém
influente, de negros e mulatos urbanos instruídos que tinham adquirido acesso às elites
políticas e econômicas da corte brasileira9. Na perspectiva de Rebouças, o sistema
monárquico vigente no Brasil, que para muitos representava uma das causas do atraso
brasileiro, havia sido o elemento que provocou o florescimento das lutas contra a nobreza
territorial local, responsável pelo conservadorismo e pela manutenção do sistema escravista.
Nessa concepção, o fim da escravidão no Brasil deveria ser acompanhado por imediata
democratização da propriedade rural, o que só poderia ser viabilizado pelas mãos do
imperador.
O posicionamento político de Rebouças expressa, de forma enigmática, as
contradições do pensamento social e político da época, na medida em que se alinha às causas
abolicionistas e monarquistas, posto que defendia uma noção de liberdade consideravelmente
distinta daquela tornada hegemônica pelo liberalismo no ocidente. Sua concepção de
liberdade não concebia os indivíduos como perseguidores de seus interesses “egoístas”, mas
compreendia a liberdade como autogoverno de cidadãos livres. A crítica apresentada por ele
ao liberalismo clássico referia-se a recusa dos liberais em enfrentarem o problema da
escravidão, mantendo assim a nítida contradição entre defesa da liberdade e utilização de
trabalho escravo. As ideias de Rebouças, expostas no seu livro publicado em 1883,
Agricultura nacional, estudos econômicos: propaganda abolicionista e democrática,
defendiam a necessidade de implementar no país, o movimento denominado por ele de
“Democracia Rural Brasileira”.
Assim, se por um lado, Rebouças defende a liberação de terras como golpe
fundamental contra o sistema escravagista, Joaquim Nabuco considerava a escravidão e a
questão agrária problemas distintos, sendo que o segundo só poderia ser resolvido após a
resolução do primeiro. No que concerne à extinção do sistema escravista, ambos os autores
9
A relativa ascensão de mulatos e negros instruídos, segundo Carvalho (2009), pode ser associada à figura de D.
Pedro II e sua política de organização dos intelectuais e da cultura nos moldes das monarquias ilustradas da
Europa. Com a queda do Império em 1888, e a deportação de D. Pedro II, o contingente de intelectuais negros
sob a égide da República diminuiu consideravelmente.
34
(Rebouças e Nabuco) apregoavam ser um passo necessário, porém insuficiente, para culminar
na transição de um Brasil arcaico para um Brasil moderno e desenvolvido. Embora
consoantes, Nabuco via no influxo de uma “raça livre” (que representasse uma nova
mentalidade e contribuísse para a formação de uma nova sociedade nos trópicos), o esforço
complementar em prol do crescimento nacional.
Não só o status de homem livre era o que animava os entusiastas das políticas de
imigração como meio de favorecer o desenvolvimento. Não era coincidência, portanto, o
consenso tácito entre as elites dominantes do período, e mesmo entre alguns abolicionistas
como o próprio Nabuco, de que o tipo ideal de imigrantes que a nação necessita eram os
loiros de ascendência ariana. A crença no poder da Eugenia, entendida como a ciência
responsável pelo aprimoramento da raça humana através da seleção dos genitores, por meio
do estudo da hereditariedade, passa, na transição do século XIX para o XX, a representar o
meio cientificamente mais eficiente para guiar o Brasil à modernidade.
Nessa perspectiva, a influência eugênica no Brasil buscou aumentar o contingente das
raças tidas como superiores, ao passo que coibia o aumento das raças inferiores, como forma
de atenuar os riscos de degeneração da sociedade brasileira profetizados pelo racismo
científico.
35
No final do século XIX e inicio do século XX, as teorias racialistas de Conde de
Gobineau e as teses evolucionistas de Charles Darwin10 exerceram grande influência nas
obras de importantes representantes do pensamento social brasileiro como: Silvio Romero,
Raimundo Nina Rodrigues e Euclides da Cunha. Estes, por consequência, exerceram grande
influência também nas políticas públicas, sobretudo as educacionais, colocadas em prática ao
longo de toda a Primeira República Brasileira.
Segundo Moura (1991), as grandes narrativas sobre o Brasil escritas até meados do
século XIX tendiam a associar a condição social dos grupos subalternizados (índios, negros e
mulatos) às suas (imaginadas) características ontológicas – procedendo, assim, a uma
naturalização de sua condição, que se explicavam pela inferioridade intelectual, indolência e
inaptidão para o trabalho. Como resultado indireto destas associações, as versões das
Histórias do Brasil, produzidas no período de emergência e fortalecimento das Ciências
Humanas (segunda metade do século XIX), passaram a utilizar um extenso leque de
categorias evolucionistas que atestavam, agora de forma científica, as crenças hierarquizantes,
até então assentadas em julgamentos religiosos e morais.
36
De acordo com Ortiz (2006), a influência que as teorias racialistas, produzidas na
Europa, tiveram no pensamento social e na historiografia brasileira não pode ser vista como
simples cópia de modelos explicativos. Segundo o autor, justamente no momento em que tais
teorias entram em declínio na Europa, elas emergem como explicações hegemônicas no
Brasil, o que evidencia, não um descompasso ou uma desatualização teórica, mas o fato de
que, mesmo tendo acesso às antíteses apresentadas a tais construções racialistas, os
pensadores brasileiros adotaram certas perspectivas teóricas que, utilizadas de modo parcial,
serviram como meio para explicar teórica e politicamente o que era considerado como um
problema concreto da nacionalidade.
11
RODRIGUES, N R.. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. Salvador, Progresso, 1957.
(1894)
12
CUNHA, Euclides da. Os sertões. 27. ed. Brasília: Campanha de Canudos, 1963.
38
A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. Ante as
conclusões do evolucionismo, ainda quando reaja sobre o produto o influxo de uma
raça superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem extremada
é um retrocesso. O indo-europeu, o negro e o brasílio-guarani ou o tapuia, exprimem
estados evolutivos que se fronteiam, e o cruzamento, sobre obliterar as qualidades
preeminentes do primeiro, é um estimulante à reviviscência dos atributos primitivos
dos últimos. De sorte que o mestiço - traço de união entre as raças, breve existência
individual em que se comprimem esforços seculares - é, quase sempre, um
desequilibrado (CUNHA, E., 2001 apud RAMOS, 1943, p.416).
o que lhe valeu, já em 1906, a reação irada de seu conterrâneo Silvio Romero, então
convencido da necessidade de submeter à sociedade brasileira a um tipo de
terapêutica étnica que assegurasse o gradual predomínio dos caracteres brancos
39
sobre os caracteres indígenas e, sobretudo negros na nossa população miscigenada, a
chamada teoria do ‘branqueamento’ (BOTELHO, 2009, p. 120-121).
13
VIANA, Francisco José Oliveira. Raça e assimilação. 3. ed. São Paulo: Comp. Ed. Nacional, 1938 (Brasiliana.
Ser. 5; v.4).
40
Divergindo, um pouco, dos demais autores já citados, Viana (1938) inverte as ordens
de hierarquia, ao colocar o grupo indígena em posição superior ao grupo negro, afirmando
que a característica do primeiro (a altivez) é superior à característica do segundo (a
servilidade). Ao concordar com a superioridade do sertanejo, descendente dos indígenas, em
relação aos litorâneos, descendentes dos negros escravizados. O autor aproxima-se,
teoricamente, de Euclides da Cunha, entendendo que a característica de servilidade, observada
entre escravos africanos e seus descendentes, aliada a crescente migração européia para o
Brasil, resultaria, por fim, numa extinção gradual dos inferiores e numa progressiva
arianização neste país.
Apesar do estabelecimento de certo continuum hierárquico, Oliveira Viana acreditava,
de fato, que, de um modo geral, nenhum mestiço “prestava” (fosse ele cruzado com indígenas
ou com negros), justificando que a imobilidade social destes grupos seria uma comprovação
empírica de sua tese. Apesar disto, Viana (1938) não era tão pessimista sobre o destino do
Brasil quanto Euclides da Cunha, quando se refere às reflexões sobre a identidade nacional.
Conforme advogava, a eliminação dos mestiços, pela degenerescência ou pela morte, pela
miséria física ou moral, representava uma saída possível; posto que outra parte destes
mestiços (minoria absoluta) em virtude de seleções favoráveis seria apurada, a partir da quarta
ou da quinta geração, de seu sangue bárbaro. Deste modo, a única solução adequada para o
Brasil e para os próprios mestiços seria a imitação, física e moral, das características dos
brancos, a partir da assimilação da "moral e da mentalidade ariana". Chama-nos a atenção,
como bem destaca Ramos (1943; p.408) que "(...) isso foi escrito em 1938, época do apogeu
do nazi-fascismo no plano internacional e do estado-novíssimo no plano nacional”.
Notadamente, houve coerência nas afirmações do autor, uma vez que “suas idéias não tinham
significado científico, todavia político".
De fato, notamos que os diferentes modos de pensar o Brasil, expressos nas obras
produzidas ao longo do século XIX e XX e citadas anteriormente, se traduziam em formas de
atuar no plano político, transformando-se em formas de constituir a “comunidade imaginada”
chamada Brasil. Paradoxalmente, os diferentes pensadores da identidade brasileira, ao mesmo
tempo em que legitimavam as hierarquias entre raças (vistas como biologicamente distintas),
procuravam enfatizar à sui generis vocação da população em relação às diferenças raciais. De
modo que, as ambigüidades observadas, nos modos de ver a nação brasileira, não ficassem
restritas ao âmbito do pensamento social. Portanto, “as diferentes interpretações do Brasil
também se tornaram, ao longo do tempo, como que matrizes de diferentes modos de sentir e
pensar o país e de nele atuar” (SCHWARCZ e BOTELHO, 2009, p.13).
41
Justamente porque não operam apenas em termos cognitivos, mas constituem
também forças sociais que direta ou indiretamente contribuem para delimitar
posições e conferir-lhes inteligibilidade em diferentes disputas de poder travadas na
sociedade, as interpretações existem e são religadas no presente. E o reconhecimento
de que essas interpretações, como outras formas de conhecimento social, não são
meras descrições externas da sociedade, mas também operam reflexivamente, desde
dentro delas, e tem permitido reverter à imagem, algo difundida no passado recente,
da pesquisa do pensamento social como um tipo de conhecimento antiquário, sem
maior significação para a sociedade e para as ciências sociais contemporâneas
(idem, p. 14).
Ao longo do século XIX, e até meados da década de 1920, é possível notar que o
processo de constituição da identidade de uma nação, por meio da elaboração da História
oficial e/ou do pensamento social de um povo, evidencia a melancólica trajetória de uma
busca incessante pelo reflexo de Narciso. No caso brasileiro, sobretudo nas primeiras décadas
do século XX, esta busca identitária ratificava a incompatibilidade entre as imagens
projetadas sobre a nação e seu corpus constituinte (sua população).
As tentativas de construir uma nação civilizada nos trópicos se fizeram por meio da
enfática negação de suas marcas constitutivas (incluindo as marcas culturais, religiosas, e
valorativas das diversas etnias indígenas) dos diferentes grupos africanos arrancados de seus
territórios, e mesmo do colono português que acompanhou a nobreza colonizadora. Já em
Varhangem, o primeiro de nossos intérpretes a fazer o elogio da colonização portuguesa, as
características populares (rudes e anticivilizadas dos portugueses comuns) eram vistas como
degradantes para o desenvolvimento da nação. O que se almejava, neste período, como
espelho da nacionalidade brasileira era, exatamente, o inexistente. As raças vistas como
inferiores, e menosprezadas até o advento da Abolição, foram recorrentemente compreendidas
como as antípodas perfeitas do que se imaginava para o país. Havia, assim, um racismo
baseado na afirmação da “implausibilidade” de certos grupos (em especial os descendentes de
africanos, vistos como primitivos e animistas) de pertencerem à civilização, e mesmo à
humanidade. Racismo este diferencialista, que absolutizava as diferenças raciais entre os
grupos sociais, implicando em uma espécie de fagocitose; numa absorção física e simbólica
dos tipos raciais inferiores, percebidos como indesejáveis para a formação da nacionalidade.
Nessa perspectiva, a grande contribuição que o pensamento social da década de 1930
oferece ao Brasil é exatamente a possibilidade de "salvar a nação". Aderindo ao método - que
se convencionou chamar de “sociologia do cotidiano”, Gilberto Freyre, importante
antropólogo pernambucano nascido em 1900, inovou o modo de pensar o Brasil e se colocou
42
em rota de colisão com os pensadores deterministas que apregoavam a decadência do Brasil
devido a sua composição miscigenada. Tendo sido introduzido na perspectiva culturalista por
Franz Boas14, durante uma estadia na Universidade de Columbia, no principio da década de
1920, Gilberto Freyre se opôs frontalmente às teorias racialistas de Nina Rodrigues, Euclides
da Cunha e Oliveira Vianna.
Franz Boas, em sua famosa conferência intitulada Raça e Progresso, proferida no
encontro da American Association for the Advancement of Science, do ano de 1931, criticou
fortemente, por meio de pesquisas empíricas, as idéias de caráter racista que vogavam no
meio acadêmico norte-americano e que haviam se disseminado pelo mundo. Segundo o autor,
toda distinção de comportamento de um grupo deve ser explicado pelas características
aprendidas (culturais) e não através das características inatas.
Tendo “importado” esse modelo explicativo culturalista, Freyre construiu suas
principais obras, Casa Grande e Senzala (1933) e Sobrados e Mucambos (1936), procurando
negar os diagnósticos e previsões anteriores sobre a degeneração do povo brasileiro, e
buscando deslocar as diferenças entre negros, brancos e indígenas para o âmbito cultural,
mostrando ainda que fora a presença dos mestiços no país que possibilitou a formação de uma
nacionalidade sui generis.
De acordo com Cardoso (1993), ao lado de Sérgio Buarque de Holanda, Celso Furtado
e Caio Prado Júnior, “Gilberto Freyre se destaca como um dos autores que mais ajudaram a
inventar o Brasil”, tendo se convertido em autor revolucionário, tanto pela coragem de opor-
se a tradição racialista do pensamento brasileiro, quanto por sua capacidade de construir um
painel, ainda que deformado por sua posição de classe, sobre a sua própria realidade.
14
Antropólogo norte-americano de origem alemã, nascido em 1858, Franz Boas contribuiu para firmar as bases
da antropologia como ciência. Diferente dos evolucionistas que dominavam a Antropologia em seu princípio,
Boas argumentava que em contraste com o senso comum, raças distintas da caucasiana, "raças como os índios do
Peru e da América Central haviam desenvolvido civilizações similares àquelas nas quais as civilizações
européias tinham sua origem". Embora seus escritos ainda reflitam um certo racismo inerente ao seu tempo,
Boas foi pioneiro nas idéias de igualdade racial que resultaram nos estudos de Antropologia Cultural da
atualidade. Como orientador de antropólogos notáveis como Margaret Mead, Melville Herkovits, Ruth
Benedict e do brasileiro Gilberto Freyre, Boas ficou conhecido posteriormente como pai da Antropologia
contemporânea.
43
de um espelho horroroso, para mostrar uma cara que nós não gostaríamos de ter.
será um espelho narcisista, como o próprio autor, aliás, sempre foi. Quem o mirar
achará que nossa cara é bela e gostosa de ser vista (CARDOSO, 1993, p.25).
Colônia fundada quase sem vontade, com um sobejo apenas de homens, estilhaços
do bloco de gente nobre que só faltou ir inteira do reino para as Índias, o Brasil foi
por algum tempo a Nazaré das colônias portuguesas. Sem ouro nem prata. Somente
pau de tinta e almas para Jesus Cristo. Para a escravidão, saliente-se mais uma vez
que não necessitava o português de nenhum estímulo. Nenhum europeu mais
predisposto ao regime de trabalho escravo do que ele. No caso brasileiro, porém, nos
parece injusto acusar o português de ter manchado, com instituição que hoje nos
repugna, sua obra grandiosa de colonização tropical. O meio e as circunstancias
exigiram o escravo. A princípio o índio. Quando este, por incapaz e molengo,
mostrou não corresponder às necessidades da agricultura colonial – o negro. Sentiu
o português com o seu grande senso colonizador, que para completar-lhe o esforço
de fundar agricultura nos trópicos – só o negro. O operário africano. Mas o operário
africano disciplinado na sua energia intermitente pelos rigores da escravidão (idem,
p.322).
44
Não se trata de um racismo genocida que leva ‘a execução de um programa de
eliminação física baseado em uma ideologia racista. Ao contrário, trata-se de um
racismo universalista totalitário, que a todos impõe um modelo normativo de síntese
do humano. É nesse sentido que é excluído aquele que não corresponde ao tipo
humano idealizado. O racismo assim determinado apresenta-se, então, como um
sistema homogeneizador através da mestiçagem inter-racial (D’ADESKY, 2001,
p.82).
Deste modo, além de ter contribuído para a criação das bases simbólicas que
subsidiariam a construção da imagem de um Brasil moderno, baseada no que se passou a
chamar de “Mito da Democracia Racial”, e que aos poucos se consolidou interna e
externamente, o pensamento freyriano teria se transformado na garantia de legitimidade da
revolução burguesa de 1930, reforçando o espírito conciliador da articulação “pelo alto”.
A despeito das críticas e denúncias recorrentemente feitas por entidades negras acerca
da situação de subalternidade na qual se encontrava a população negra no Brasil ao longo das
primeiras décadas do século XX, a imagem acerca da prevalência do caráter harmonioso das
relações raciais no Brasil permanece hegemônica. Na visão de Hasenbalg (2005, p.253), como
construção ideológica, a “democracia racial” não é um sistema desconexo de representações,
pois está profundamente entrosada numa matriz mais ampla de conservadorismo ideológico,
em que a preservação da unidade nacional e a paz social são as preocupações principais.
Pouco conhecido no âmbito da Ciência Social brasileira, o sociológico Guerreiro
Ramos, baiano nascido em 1915, destaca-se como uma das vozes dissonantes em relação aos
pressupostos estruturadores da noção de democracia racial brasileira. Oliveira (2009) chama
atenção para a seguinte questão: o pouco respeito aos cânones acadêmicos e às tradições
sociológicas hegemônicas, em sua época, explica, ao menos em parte, o relativo ostracismo
enfrentado pelo pensamento de Guerreiro Ramos; que adepto de uma “Sociologia em mangas
de camisa”, como ele próprio definia, criticou veementemente toda corrente de pensadores
sociais brasileiros, incluindo Florestan Fernandes e Luís Aguiar Costa Pinto.
(...) à nova fase dos estudos sobre relações de raça no Brasil, fase que se caracteriza
pelo enfoque de tais relações, desde um ato de liberdade do negro. É minha
convicção que desta mudança de orientação resulte, não um conflito insolúvel entre
brancos e escuros, mas uma liquidação de equívocos de parte a parte e,
conseqüentemente, uma contribuição para que a sociedade brasileira se encaminhe
para o rumo de sua verdadeira destinação histórica ¾ a de tornar-se, do ponto de
vista étnico, uma conjunctio oppositorium (GUERREIRO RAMOS, 1957, p.159).
46
Colocando em prática sua plataforma política e teórica sobre relações raciais no Brasil,
o TEN realizou no Rio de Janeiro, em 1950, o Primeiro Congresso do Negro Brasileiro, que
tinha como objetivo central aproximar cientistas sociais, intelectuais (de modo mais
abrangente) e ativistas do movimento negro, para gerar uma ampla aliança entre trabalho
acadêmico e intervenção política, em prol da diminuição das desigualdades vigentes entre
negros e brancos.
Entre os participantes do evento estava Roger Bastide, francês nascido em 1898,
importante referência nos estudos sobre cultura afro-brasileira e professor de Antropologia da
Universidade de São Paulo desde 1938. Logo após a realização do Congresso, Bastide
recebeu um convite do chefe do setor de relações raciais do Departamento de Ciências Sociais
da UNESCO, o francês Alfred Métraux, para coordenar uma série de investigações no Brasil
sobre as relações inter-étnicas, que passou a ser conhecido como Projeto UNESCO.
O Projeto UNESCO, que se notabilizou como uma das mais importantes investigações
coletivas sobre relações raciais no Brasil, guardava algumas afinidades com as proposições
vocalizadas por Guerreiro Ramos durante a realização do congresso do Negro Brasileiro. De
acordo com Maio (1999),
Não existe democracia racial efetiva (no Brasil), onde o intercâmbio entre
indivíduos pertencentes a “raças” distintas começa e termina no plano da tolerância
convencionalizada. Esta pode satisfazer às exigências de “bom tom”, de um
discutível espírito cristão e da necessidade prática de “manter cada um em seu
lugar”. Contudo, ela não aproxima realmente os homens senão na base da mera
coexistência no mesmo espaço social e, onde isso chega a acontecer, da convivência
restritiva, regulada por um código que consagra a desigualdade, disfarçando-a acima
dos princípios da ordem social democráticas (FERNANDES IN CARDOSO,
IANNI, 1960, p. xi)
48
A realização do “Projeto Unesco”, ao mesmo tempo em que contribuiu para a
(re)emergência da temática racial no campo acadêmico nacional e internacional,
estabelecendo nítidas distinções conceituais em relação ao racismo científico vigente nas
primeiras décadas do século XX, contribuiu para a profissionalização e, para a relativa
autonomização, das ciências sociais no Brasil, que até aquele momento estavam amalgamados
aos setores técnico-burocráticos da gestão governamental e/ou da docência (CORRÊA, 1988).
Florestan Fernandes, paulista nascido em 1920, no período de realização do Projeto
Unesco, já se destacava como um nome proeminente da emergente sociologia brasileira. Foi
um dos primeiros estudantes do curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da USP e um dos orientandos mais destacados de Roger Bastide, com
quem escreveu o livro: Brancos e Negros em São Paulo, em 1959. Nesta obra, Bastide e
Florestan ratificavam a persistência da discriminação racial no Brasil, arraigada aos fatores
históricos, tais como: a escravidão tardia, a herança colonial e a dependência em relação ao
capital externo. De acordo com os autores, a passagem do sistema de trabalho servil para um
modelo de trabalho livre e assalariado não havia proporcionado à população negra recém-
liberta o usufruto real das vantagens do sistema capitalista, pois estes passaram dos postos
mais subordinados da hierarquia servil, aos postos mais precários da hierarquia capitalista.
A perpetuação das posições sociais, bem como dos estereótipos negativos em relação a
negros e mestiços, contribuíram para a manutenção dos padrões discriminatórios em pleno
século XX, fazendo com que a pressão dos fatos modificasse as representações sociais e as
atitudes discriminatórias. Para os autores, somente a pressão dos fatos poderiam modificar as
representações sociais e as atitudes discriminatórias, pois sem a transformação radical das
posições ocupadas por negros e mulatos, as mudanças profundas em atitudes tão fortemente
arraigadas, seriam pouco prováveis. Com isso, criava-se um círculo vicioso: se por um lado,
as alterações das representações sociais a respeito dos negros e mestiços dependiam da
alteração real dos papéis sociais ocupados por eles; a alteração do status dos negros e
mestiços também dependia, ao menos em parte, da alteração da representação a seu respeito,
que tornava-se mais difícil de ser alterada, na medida em que muitos negros e mestiços
internalizavam as representações negativas sobre eles e seus pares.
49
rompiam esse padrão dominante de ajustamento inter-racial, sofriam decepções e em
geral “falhavam”, pois dificilmente veriam correspondidas suas expectativas
(BASTIDE; FERNANDES, 1959, p.139).
O que se evidencia é que se está constituindo uma nova constelação das relações
raciais, na qual a integração social não sofrerá, provavelmente, uma influência tão
intensa de determinações socioculturais ligadas com as diferenças raciais e com as
gradações da cor da pele, como ocorreu no passado. (...) Assim, nota-se que a esfera
mais afetada pelas transformações recentes é antes da discriminação econômica e
social, com base na cor, que a do preconceito de cor propriamente dito (BASTIDE;
FERNANDES, 1959, p.144).
50
Os posicionamentos de Florestan Fernandes, em relação ao papel que o ensino de
Sociologia deveria desempenhar na consolidação e desenvolvimento do Brasil, por exemplo,
eram esclarecedores quanto à forma como concebia os principais problemas nacionais e as
alternativas políticas mais viáveis para superá-los. Para Fernandes (1977), a inclusão da
sociologia no ensino secundário poderia desempenhar importante papel na superação das
heranças do passado, tanto ao possibilitar aos estudantes um conhecimento seguro do sistema
social brasileiro, quanto ao transformar a mera transmissão de conhecimentos escolares (de
caráter conservador), em uma experiência transformadora e desenvolvedora da criatividade.
Contrariando as heranças positivistas da sociologia francesa, que primava pela separação
entre ciência e política, Fernandes (Idem1977) se notabilizou por sua incansável militância em
prol da democratização do ensino, e em particular pela defesa da escola pública, lócus
privilegiado para a gestação da experiência revolucionária. Visando oportunizar condições de
libertação da opressão social, o autor defendia a superação da conservadora forma escolar,
que baseada na mera transmissão de conhecimentos, não possibilitava a educação se tornar,
para os estudantes, uma experiência transformadora da realidade e desenvolvedora da
criatividade.
53
Marcadas por uma lógica colonialista, as elites (políticas e econômicas) brasileira
faziam questão de ostentar uma tradição de pensamento social tomada por empréstimo dos
países europeus. Defendiam uma noção de civilização que desconsiderava, de modo
estratégico, todos os conhecimentos dos povos nativos e dos que foram trazidos das diferentes
regiões da África. Nesta equação desigual, mesmo os conhecimentos trazidos e transmitidos
pelos escravos africanos, tais como: as diversas técnicas de metalurgia, o cultivo de plantas
tropicais e a pecuária extensiva, sofreram uma espécie de antropofagia, sendo incorporados
pelos colonizadores portugueses, que buscaram assimilá-lo, para, posteriormente, negar sua
origem.
Em discurso proferido no ano de 1843, o senador da República Bernardo Pereira de
Vasconcelos causou rebuliço no Senado ao afirmar que: a “África civilizou o Brasil”.
Baseado nesta premissa, ele defendeu a continuidade do tráfico negreiro para o Brasil,
considerando que o fim do influxo de africanos neste lado do Atlântico poderia significar o
início de tendências barbarizadoras por aqui. Vale notar que a postura ambígua do senador,
quanto à capacidade civilizatória do continente africano, destoava do relativo consenso
existente entre as elites política e econômica, e entre pensadores como Nina Rodrigues, Sílvio
Romero e Oliveira Viana, para os quais as populações autóctones e os povos africanos
trazidos para o Brasil eram seres subdesenvolvidos (tecnológica, cultural e intelectualmente),
condição que podia ser atestada por suas crenças animistas, fetichistas e seus hábitos bárbaros
e rudes.
Em consonância com as teorias evolucionistas em voga na segunda metade do século
XIX, que identificavam a Europa como baluarte da civilização ocidental e os demais povos
como símbolos das etapas inferiores do processo evolutivo, a introdução da educação pública
no Brasil se desenvolveu de forma centralizada e com um forte viés moralizador. Por isso, a
educação, circunscrita a de primeiras letras, passou a figurar como uma das poucas propostas
dirigidas às camadas populares, vistas como inferiores e insolentes.
De acordo com Fonseca (2007), o debate sobre a escolarização do contingente negro
em situação de escravidão no Brasil era pauta recorrente nas assembléias legislativas de
importantes províncias brasileiras do século XIX. Em 1835, na província de Minas Gerais,
por exemplo, foi estabelecida a obrigatoriedade da escolarização formal para os meninos
livres de 8 a 14 anos. Mesmo que esta lei não tenha beneficiado a população escrava
diretamente, posto que seu acesso às escolas formais fosse cerceado em função de seu status
jurídico, a mesma acabou por alcançar um número considerável de meninos negros e pardos
libertos.
54
As evidências empíricas da presença negra nas escolas formais do século XIX
apontam para a compreensão que também os negros tinham sobre a importância da
escolarização formal. A busca por essa escolarização, ainda no período de escravidão, estava
associada a representações que podem ser vistas como os dois lados de uma mesma moeda.
Apesar de vinculado ao objetivo de favorecer a continuidade de um “pensamento colonial”
(SANTOS, 2007), a escolarização formal era encarada, por um lado, como uma forma de
inserção no “mundo civilizado” dos brancos, e por outro, como um instrumento de
moralização das classes subalternas.
De acordo com Barros (2005), No que diz respeito às ações brancas em prol da
escolarização da população negra, no final do século XIX, sabe-se que: elas eram vistas como
altamente desejáveis, pois seriam capazes de proporcionar aos futuros ex-escravos uma
educação para o trabalho, para a liberdade e para a construção da nação. “Lendo mais
profundamente o debate, percebemos que certa preocupação dos homens do período era:
como manter o controle sobre essa massa que não teria mais o chicote como forma de
coerção?” (Idem, p.81). Neste contexto, o imaginário acerca da inferioridade racial congênita
da população negra no Brasil, se misturava com o imaginário iluminista sobre as capacidades
civilizatórias da escolarização.
Por outro lado, as ações negras, que se fortalecerem a partir do inicio do século XX,
ao mesmo tempo em que buscavam reabilitar a dignidade do ex-cativo e seus descendentes
(por meio da realização de concursos de belezas, bailes e outros eventos destinados a resgatar
a auto-estima da população negra), havia incentivo à inserção da população negra no sistema
oficial de ensino, através de campanhas em jornais, associações, etc. Mais adiante,
discutiremos algumas dessas iniciativas negras no contexto republicano.
Nos anos que precederam a Abolição, foram as ações brancas em prol da
escolarização da população negra que se destacaram. De acordo com Fonseca (2002),
contextualizar o cenário de debates em torno da promulgação e efetivação da Lei do Ventre
Livre em 1871 seria um procedimento fundamental para a compreensão das disputas em torno
da escolarização dos negros e da Abolição da Escravidão. Ainda segundo ele, os dois
primeiros artigos da lei Rio Branco, aprovada e promulgada sob o número 2.040, versavam
sobre os termos que tornariam livres, as crianças nascidas de ventre escravo.
No trecho apresentado acima, Nabuco explicita sua confiança na capacidade que uma
educação viril e séria teria de promover ordem e o progresso - alicerces fundamentais de uma
nação republicana e civilizada. Essa confiança estava consoante com os imaginários
dominantes no período, que concebiam como necessária à instalação da República como uma
necessária mudança na sociedade brasileira, que preparando as bases para a entrada em uma
nova era de progresso e desenvolvimento, possibilitaria a conservação da ordem instituída.
56
Sobre o valor simbólico atribuído à educação e à escolarização formal dirigida às
populações subalternas, os projetos educacionais civilizatórias acabaram sendo derrotados
pelos projetos imigracionistas, no limiar do século XX. Ainda que, boa parte dos principais
pensadores e políticos empenhados nos debates públicos pré-abolicionistas não
antagonizassem a escolarização dos ex-cativos (entendida como meio de dar-lhes civilidade) e
a imigração de mão-de-obra européia (entendida como meio de melhorar a qualidade da
população brasileira), os dois projetos, em seu âmago, expressavam concepções distintas e
quase antagônicas. Nesse caso, é possível afirmar que a vitória dos projetos imigracionistas
em relação aos projetos de escolarização dos ex-cativos significou também a vitória do
Projeto Republicano sobre o Projeto Imperial. Logo, uma vitória das Luzes Republicanas (do
Iluminismo, da racionalidade, da Ciência, do Capitalismo e do Positivismo) sobre as trevas do
passado Imperial.
No campo educacional, a vitória de uma doutrina baseada na racionalidade e que se
opunha ao tradicionalismo imperial deixaria marcas definitivas, conforme definiam os
15
republicanos. Esta nova doutrina era fortemente influenciada pelo positivismo Comteano ,
tendo como pressupostos a ordem e a estabilidade, que permitiram o estabelecimento de leis
gerais que auxiliaram na compreensão do mundo natural e social. Submetido à ordem, numa
ambivalência existencial, o progresso representava, portanto, a capacidade de compreender o
real, dominando-o e transformando-o.
Nessa perspectiva, a criação de grupos escolares em São Paulo, a partir do ano de
1893, pode ser compreendida como sintoma, quase imediato, da hegemonização das luzes
republicanas sob as trevas imperiais. As escolas isoladas (símbolo da escolarização imperial)
foram, gradativamente, substituídas por grupos escolares que buscavam consolidar nas
províncias brasileiras os mesmos princípios educacionais vigentes nos Estados Unidos e em
países europeus.
15
Positivismo Comteano foi uma doutrina social que exerceu influência direta em muitos dos pensadores
brasileiros, em especial nos republicanos. Ele defendia a compreensão científica do mundo, bem como a
necessidade racional de (re)organizar a sociedade, evidenciando uma perspectiva extremamente pedagógica em
relação à sociedade e ao povo.
57
várias salas de aula e vários professores. O modelo colocava em correspondência a
distribuição do espaço com os elementos da racionalização pedagógica – em cada sala
de aula uma classe referente a uma série; para cada classe, um professor (SOUZA,
2004, p. 114).
De acordo com Faria Filho (2000), com base em pesquisa histórica realizada sobre a
educação primária na cidade de Belo Horizonte no principio do século XX, ao mesmo tempo
em que a nova forma escolar refletia o imaginário social e o momento concreto de
racionalização e urbanização, ela se destacava como uma importante produtora e
conformadora do novo tipo de racionalidade mental, econômica e urbanística que se desejava.
Quiçá por isso, esse novo modelo escolar fosse visto como uma poderosa arma que combatia:
os resquícios deixados pelo período imperial, assim como “a apatia do povo frente à vida
pública (e à república de uma maneira geral), a aversão ao trabalho manual, dentre outras”
(Idem, p.27). Adicionalmente, é preciso reconhecer que o consenso compartilhado entre
educadores e políticos acerca da criação dos grupos escolares e de sua capacidade de instaurar
uma racionalidade progressista, estava intrinsecamente relacionado com os novos imperativos
colocados pela dinâmica capitalista no país e seus requisitos básicos. A ênfase na disciplina,
na organização, no controle dos corpos e na aquisição de competências técnicas, perceptíveis
em vários relatórios educacionais encontrados pelo autor, evidencia a aproximação entre
escola e o mundo do trabalho, sobretudo o fabril.
16
Anísio Spínola Teixeira nasceu na cidade de Caetité, em 12 de julho de 1900. Foi jurista, educador e escritor.
Personagem central na história da educação no Brasil, nas décadas de 1920 e 1930, difundiu os pressupostos do
movimento da Escola Nova, que tinha como princípio a ênfase no desenvolvimento do intelecto e na capacidade
de julgamento, em preferência à memorização. Foi um dos mais destacados signatários do Manifesto dos
Pioneiros da Educação Nova em defesa do ensino público, gratuito, laico e obrigatório, divulgado em 1932.
60
(aspecto técnico) dos métodos científicos aos problemas de educação" (idem, 1932). Não
obstante, o modelo de ensino rigidamente organizado em matérias, lições e exercícios
mecânicos, impedia o pleno desenvolvimento do indivíduo, bem como do florescimento de
suas aptidões e capacidades, atributos fundamentais do desenvolvimento da sociedade.
A educação nova, alargando a sua finalidade para além dos limites das classes,
assume, com uma feição mais humana, a sua verdadeira função social, preparando-
se para formar "a hierarquia democrática" pela "hierarquia das capacidades",
recrutadas em todos os grupos sociais, a que se abrem as mesmas oportunidades de
educação (MANIFESTO PIONEIROS DA EDUCAÇÃO NOVA,
1932).
17
OLINTO, Plínio. Do valor do exame psico-fisiológico na pesquisa das aptidões. Escola Nova, São Paulo, v. 3,
n. 12, p. 109-18, maio/jun. 1931.
61
18
seguidores do movimento: Antônio Sampaio Dória - que versava sobre os objetivos da
educação moral e as conseqüências de seu desenvolvimento.
(...) não basta à supremacia das emoções de amor e sacrifício. O de que mais se
precisa, é habituar os educandos a praticar, e resistir às mil seduções de que o mal se
reveste. O hábito de resolver-se por si mesmo, de se preverem as conseqüências do
que se resolve, e de não fugir, mas arrostar serenamente as conseqüências do que se
faz, é o principal, é quase tudo na educação moral (DÓRIA, 1928, p. 84-85).
E continua...
vigorando ela, o mal que se pratique, refletirá em reações sobre o seu próprio autor,
inexoravelmente. As doenças, as degenerações orgânicas, as censuras, as reclusões
nas penitenciárias e nos manicômios, e até as defesas pessoais vão eliminando, por
seleção natural, os maus, os golpeadores da natureza humana, individual ou social.
Não importa que o autor ignore a maldade do seu ato. A reação inexorável da
natureza, e a reação justa da sociedade eliminarão pouco a pouco, como a
educação e a eugenia, os infratores das leis da vida. Ao cabo de milênios de
responsabilidade e seleção, os melhores hão de sobreviver. Estará, então, ultimada a
vontade de Deus: o bem pelo bem será, então, praticamente, a suprema ambição dos
homens (DÓRIA, 1928, p.86-87 - Grifo do autor).
63
Uma destas organizações, a Frente Negra Brasileira (FNB), fundada em 16 de
Setembro de 1931, na cidade de São Paulo, resultou da obstinação de Francisco Lucrécio,
Raul Joviano do Amaral, José Correia Leite e outros. Tendo atuado por seis anos, foi extinta
em 1937 pelo Estado Novo, deflagrado por Getúlio Vargas. Apesar da curta existência,
registra-se que a FNB teve ascensão meteórica, alcançando projeção nacional e internacional.
De acordo com Nascimento (1976), membro dessa organização e um dos militantes mais
importantes do movimento negro brasileiro, “a Frente fazia protestos contra a discriminação
racial e de cor em lugares públicos, sob a perspectiva de integrar os negros na sociedade
nacional, (...) o que lembrava muito o movimento pelos direitos civis dos negros norte-
americanos” 19.
Atualmente, a FNB é vista, por alguns pesquisadores, como uma organização
conservadora e de direita, que se alinhou às políticas estadonovistas de Getúlio Vargas, além
de ter em suas bases simpatizantes do Integralismo e do Fascismo.
(...) há, nos meios acadêmicos, a visão cristalizada de que a Frente Negra teria sido
uma organização de direita. O próprio Florestan Fernandes a considera uma entidade
desprovida de força transformadora, já que a Frente jamais teria tomado uma posição
dogmática e utópica diante do preconceito de cor. Segundo Florestan, a entidade se
limitara a afirmar que o preconceito existia e emparedava o negro na sociedade, e a
propagar mecanismos societários de reação ativa contra ele, sem se propor, entretanto,
a extirpá-lo para sempre (...) e como não queriam modificar a ordem social, também
não viam por que se interessar pela transformação do branco além dos limites
envolvidos pela aceitação igualitária (BARBOSA, M., 1998 apud ARAÚJO, 2008)20.
No entanto, vale a ressalva, enquanto frente política, tal organização era composta por
tendências diversas, algumas, inclusive, consideradas de direita. Contudo, essas primícias não
eram hegemônicas entre membros da Frente; o que teria motivado divergências ideológicas
no interior da associação. De acordo com o modelo criado pelo filósofo francês Pierre-André
21
Taguieff , o tipo de antirracismo adotado pela Frente Negra pode ser classificado como
“Antirracismo universalista de tipo espiritualista”, que parte do princípio de que os grupos
identificados como inferiores não estão fadados a permanecerem na parte mais baixa da escala
civilizacional. Beneficiando-se de uma convivência em meios favoráveis ao desenvolvimento
19
Trecho de depoimento de Abdias do Nascimento publicado no livro Memórias do Exílio. Disponível em
http://www.abdias.com.br/movimento_negro/frente.htm Acessado em 24 de Fevereiro de 2011.
20
BARBOSA, Márcio. Frente Negra Brasileira: depoimentos. São Paulo: Quilomboje, 1998.
21
TAGUIEFF, Pierre-André. Les fins de l’antiracisme. Paris: Éditions Michalon, 1995.
64
e ao progresso, e experimentando a educação racionalizadora dos costumes, destruidora de
preconceitos e eliminadora dos particularismos culturais “bárbaros” ou “arcaicos”, todos
teriam acesso à civilização. Este seria um antirracismo de cunho igualitário e hiper-
racionalizante (TAGUIEFF, 1995 apud D’ADESKY, 2001).
Apesar das divergências políticas e ideológicas na FNB, havia relativo consenso na
necessidade de combater a discriminação racial, o que possibilitou a realização conjunta de
diversos projetos (sociais, educacionais e políticos) destinados à população negra. O jornal A
voz da Raça, veículo oficial de comunicação da Frente Negra, publicava mensagens,
reportagens e artigos, assim como eventos “domingueiros” e os cursos de formação social,
cumprindo importante papel no projeto de integrar os negros à sociedade brasileira da época.
Consoante com as representações vigentes, a escolarização formal era vista como veículo
privilegiado para promover a desejada integração dos negros e transformação da sociedade.
Tomamos um texto, escrito por autor desconhecido, publicado no jornal “A voz da
Raça” em 17 de Junho de 1933, e reproduzido por Araújo (2008), para elucidar as
expectativas nutridas em relação à escolarização formal:
66
tinham, acerca da crescente legitimidade que as análises acadêmicas aos poucos vinham
obtendo.
No caso específico de Gilberto Freyre, que gostava de ser chamado de escritor e, por
vezes, abandonava o rigor cientifico, chama-nos a atenção como sua interpretação sobre o
Brasil se tornou hegemônica nos círculos políticos e acadêmicos (dentro e fora do país).
Todavia, é interessante observar que a relação estabelecida entre os ativistas negros das
décadas de 1930 e 1940 e as teses do autor oscilava entre “a apropriação e a oposição”. Na
medida em que os movimentos incorporavam parte das teses apresentadas por Freyre e Ramos
(como forma de reabilitar ontológica e historicamente a população negra), os membros dessas
associações denunciavam a perpetuação do “problema negro” no Brasil, contradizendo, ao
menos em parte, a imagem harmônica derivada do “equilíbrio de antagonismos” freyreano.
Nesse sentido, alguns membros da FNB acreditavam que a nova Democracia Racial só
poderia ser alcançada por meio de uma Segunda Abolição da Escravidão, uma vez que o
“problema negro” seria superado quando fosse garantido os direitos civis plenos para essa
parcela da população. Segundo eles, os remédios mais adequados para a resolução do
“problema” passavam, tanto pela mobilização da população negra, quanto do
desenvolvimento de uma moderna cultura negra, popular e erudita, visceralmente vinculadas à
educação. Isso explica o fato de “O Teatro Experimental do Negro, a Orquestra Afro-
Brasileira, de Abigail Moura, e o Centro de Cultura Afro-Brasileiro, de Solano Trindade,
terem sido as melhores expressões dessa vontade, assim como o eram os jornais negros de
São Paulo” (idem, p.172).
O Teatro Experimental do Negro, por exemplo, foi idealizado, fundado e dirigido por
Abdias do Nascimento, de 1944 a 1966. Tinha como objetivo central a criação de uma nova
dramaturgia que, entre outras coisas, possibilitasse a valorização do negro no teatro. Assim,
visando o florescimento de uma nova atitude (sobre si mesmos e os espaços sociais que
ocupavam ou almejavam ocupar), o TEN proporcionava aos seus membros (operários,
67
empregados domésticos, favelados sem profissão definida, modestos funcionários públicos)
cursos de alfabetização, cultura geral e dramaturgia.
68
negros ativistas e líderes estudantis que se reuniam na sede da União Nacional dos
Estudantes.
O comitê passou um tempo inicial lutando pela anistia dos presos políticos (na sua
maioria brancos). Entretanto, quando chegou à hora de tratar das preocupações
específicas à comunidade negra, o projeto foi vitima da patrulha ideológica de
supostos aliados que acabou desarticulando o comitê. Invocaram o velho chavão de
que o negro, lutando contra o racismo, viria a dividir a classe operária
(NASCIMENTO, 2004, p.222).
69
feita por Costa e Pinto, e que orientavam suas conclusões sobre relações raciais no Brasil, era
reflexo de teorias transplantadas irrefleditamente para o contexto brasileiro, uma espécie de
“sociologia importada”, “consular”, “enlatada” que, desconsiderando as particularidades
nacionais, evidenciavam toda a falta de compromisso com o desenvolvimento e autonomia da
sociedade brasileira.
De acordo com Costa Pinto (1953), a eliminação do racismo da sociedade brasileira
dependeria de amplas modificações estruturais, que seriam conduzidas, não pelas elites negras
educadas, como defendia Guerreiro Ramos, mas pela verdadeira classe revolucionária da
história: o proletariado. O fato de ser majoritariamente composta por negros e mulatos,
possibilitaria a classe operária lutar pela supressão, tanto das contradições de classe, quanto as
de fundo racial.
O que há de correto no “aproach” adotado pelo livro nada mais é do que repetição,
extensão ou glosa de tese e trabalhos do TEN. O autor, entretanto, oculta dolosamente
o que deve ao TEN e se apresenta como um “desvirginador” de campos de estudo. Por
exemplo, C.P, vangloria-se de ser o primeiro a focalizar o negro como brasileiro, de
um ponto de vista não-exótico ou não espetacular, quando isto constitui um laitmotivo
dos documentos do TEN. (Vide “A UNESCO e o negro carioca”in Diário de Notícias
de 20-12-53). Aliás, em 1953, Costa Pinto diz em Lutas de Famílias no Brasil que vai
70
formular as bases metodológicas para o estudo da questão quando a referida obra não
passa de um plágio de Jacques Lambert e de um pastiche de Frederic Engels.
A despeito disto, neste caso, mais uma vez, o pesquisador teve de viver as
experiências que singularizam a ciência das relações humanas entre todas as ciências:
referimo-nos ao fato, às vezes sacrificante mas sempre fascinante, de lhe ser permitido
ver como o seu material, ou uma parte dele, reage às conclusões de um estudo sobre
ele mesmo. Duvido que haja biologista que depois de estudar, digamos, um micróbio,
tenha visto esse micróbio tomar da pena e vir a público escrever sandices a respeito do
estudo do qual ele participou como material de laboratório”. Nascimento apud
Medeiros, 2004, p.168.
72
CAPÍTULO 2
22
Para que alguns tivessem honra neste sentido, era essencial que nem todos tivessem.
75
“Tal como colocado por Heródoto23, o grego não aceitaria ser subjugado, enquanto
o bárbaro não conheceria um modo de vida que não implicasse subjugação. Assim,
Heródoto aponta serem os egípcios “incapazes de viver sem rei”, e que, apesar de
serem “possuidores de grande sabedoria”, eles não se põem menos do lado dos
“bárbaros” (HARTOG24 apud MOORE, 2007, p.67).
23 Nascido na cidade grega Halicarnasso no século V a.C. , Heródoto foi um importante geógrafo e historiador. Escreveu a história da invasão persa da Grécia nos princípios
do século V a.C. Sua obra ficou posteriormente conhecida como As histórias de Heródoto.
24
HARTOG, François. Memórias de Ulisses: narrativas sobre a fronteira na Grécia antiga. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 2004.
25
ISAAC, Benjamin. The invention of racism in classical antiquity. New Jersey: Princeton University Press,
2004.
26
As representações cartográficas produzidas no período que frequentemente retratavam a África (ou Etiópia,
como era chamada), como um espaço geográfico extremamente quente e com ventos descontrolados estavam
vinculados aos imaginários deterministas sobre o poder do clima na configuração das aptidões morais dos
indivíduos. De acordo com Moore (nota de rodapé, p.106), por mais de um milênio, gregos e romanos utilizaram
dois termos para designar tanto a cor negra quanto os povos dessa cor (melanos aethiops ou ethiops); sendo o
último (na sua acepção literal de “caras pretas” ou “caras queimadas”) o mais utilizado para designar os povos
negros, da África ou da Ásia (dravidianos), com os quais os gregos e os romanos travaram contato. Logo,
etimologicamente, aethiops corresponde a uma substância negra, proveniente do óxido de ferro, antigamente
aplicada a várias preparações com o fim de obter uma cor preta ou muito escura.
76
exploração da mão-de-obra, o trabalho escravo aos poucos se tornou preponderante. Tal
atitude fundamentou o protorracismo romano (herança da tradição grega) que apregoava a
escravização de indivíduos etnicamente diferenciados. Analisando aos primeiros séculos da
Era Cristã em Roma, verifica-se que apesar da relativa simpatia que os valores cristãos
inspiravam nos romanos com relação aos escravos, a instituição escravocrata não chegou a ser
seriamente questionada, tendo sido, inclusive, referenciada em textos bíblicos, nos quais não
se pode observar nenhum tipo de interdição moral à escravidão. “O bom tratamento dos
senhores em relação aos escravos foi amplamente defendido, muito mais para assegurar sua
honra do que para minimizar o sofrimento dos subjugados” (MOORE, 1993, p.81 - Grifo do
autor).
A queda do Império Romano permitiu a gradual expansão do processo de Islamização
do norte da África (iniciado no século VII d.c) tendo se tornado fator decisivo para a
consolidação de um modelo de escravidão protorracial. Naquele momento, homens negros
escravizados no norte da África passaram a ser maciçamente utilizados nas diferentes
atividades produtivas do Império Árabe. Assim, embora a religião islâmica tenha
reinterpretado ao seu modo a escravidão, no mundo Árabe, os escravizados africanos
continuaram desempenhando as mesmas tarefas historicamente atribuídas aos escravizados de
27
outros Estados-Nação . Em capítulo intitulado Maldição de Ham: origem da escravidão
racial?, Moore (idem) apresenta e discute um dos mais conhecidos mitos racialistas da
história da humanidade.
78
mesmo modo, às características positivas estavam vinculadas ao indivíduo branco (o senhor).
A imutabilidade das representações sociais em relação aos negros libertos, no decorrer do
período republicano, evidencia a constatação de que, apesar de não pertencerem mais à
condição social de escravos, estes não conseguiam se libertar das representações negativas
relacionadas à cor de sua pele.
Deste modo, mesmo após a Proclamação da República em 1889, que aboliu
juridicamente a rígida estrutura hierárquica do sistema escravista e a dicotomia existente entre
os possuidores e os não possuidores de honra, a população negra continuou sendo alvo de
ações preconceituosas que colocavam em questionamento a dignidade humana de negros,
pardos e mestiços, e os reduzia a condição de micróbios.
Referindo-se a dinâmica das relações étnico-raciais no Brasil, Ianni (2004) afirma
que...
A ideologia racial dos que discriminam, dos que mandam, os quais podem
ser "brancos" ou outros, sintetiza e dinamiza a intolerância, a xenofobia, o
etnocentrismo, o preconceito ou o racismo. É a ideologia racial que articula
e desenvolve a gama de manifestações, signos, símbolos ou emblemas com
os quais indivíduos e coletividades "explicam", "justificam",
"racionalizam", "naturalizam" ou "ideologizam" desigualdades, tensões e
conflitos raciais. O racista fundamenta em argumentos que parecem
consistentes e convincentes a sua "taxionomia" e "hierarquização",
distinguindo, delimitando, segregando ou estranhando o "outro": negro,
árabe, judeu, índio chinês, oriental e assim por diante. São estereótipos,
signos, símbolos mobilizados ao acaso das situações elaboradas no curso de
anos, décadas, séculos, com os quais o "branco", "dolicocéfalo", "europeu",
"ariano", "norte-americano", "ocidental" explica, legitima, racionaliza ou
naturaliza a sua posição e perspectiva privilegiadas, de controle de
instrumentos de poder. Nesse sentido é que essa ideologia é uma técnica de
estigmatização recorrente, reiterada em diferentes formulas e verbalizações,
desenvolvendo a metamorfose da marca em estigma (Ianni, 2004, p. 24).
79
personalidade do negro, levando em conta que "para o psiquismo do negro em ascensão, que
vive o impasse consciente do racismo, o importante não é saber viver e pensar o que poderia
vir a dar-lhe prazer, mas o que é desejável pelo branco" (idem, p.7). Nesse caso, para àqueles
que se empenham no processo de ascensão social, o sofrimento e os conflitos identitários
seriam inevitáveis, sobretudo, em uma sociedade em que a única possibilidade de se
humanizar: é se aproximar, o máximo possível, de um modelo branco de identificação.
Em estudo realizado em duas escolas da cidade de Belo Horizonte/MG, Fazzi (2004)
procurou investigar a presença do preconceito racial na infância e as formas pelas quais ele se
perpetuava e se cristalizava ao longo da vida dos sujeitos. Segundo a pesquisadora, a decisão
de observar crianças na escola deriva da discussão “de como a escola contribui ou não na
formação e manutenção de preconceitos raciais. A escolha foi orientada pelo fato de a escola
ser um lócus privilegiado de concentração de crianças, onde as relações entre elas são mais
constantes e densas” (op. cit., p.22). Nesse sentido, as observações foram realizadas em
escolas de níveis socioeconômicos distintos: uma localizada em uma favela de Belo Horizonte
e a outra localizada em um bairro de classe média. Ao longo das conversas e brincadeiras
realizadas com as crianças, nas quais elas classificavam racialmente os colegas e a si mesmas,
Fazzi captou as representações sociais das crianças sobre os diferentes grupos raciais.
Em 2006, pesquisa realizada com jovens do Ensino Médio, JESUS (2006), procurou
medir os possíveis impactos da internalização de estigmas raciais no processo de construção
das aspirações profissionais e educacionais, ao comparar respostas de jovens estudantes,
negros e brancos, da cidade de Belo Horizonte/MG que contestaram à pergunta: “Qual o tipo
80
de emprego que você deseja ter aos 30 anos de idade?”. Neste estudo, 908 estudantes com
idade entre 15 a 28 anos, autodeclarados negros ou brancos e matriculados em alguma escola
estadual, municipal ou particular do município de Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais,
tiveram suas respostas analisadas pelo autor que buscou identificar:
81
Su primera tarea deberá consistir em liberarse de esta identidad impuesta y destructiva (idem,
p.72)”28. Com isso, podemos inferir que o falso reconhecimento não só explicita uma falta de
respeito aos outros, mas pode infligir feridas dolorosas nos sujeitos, levando-os a desenvolver
um ódio mutilador contra seu eu. Por isso, segundo Taylor (idem), as demandas por
reconhecimento, apresentadas por grupos minoritários ou subalternizados, se devem aos
supostos nexos existentes entre reconhecimento e identidade, “donde este último término
designa algo equivalente a la interpretación que hace una persona de quién es y de sus
características definitorias fundamentales como ser humano (idem, p. 77)”.
Para Martucelli (1996), durante muito tempo, os modelos democráticos vigentes nos
países ocidentais modernos, se alicerçaram, na invisibilidade das identidades particulares em
favor de identidades coletivas e universais. As propostas identitárias subjacentes a tais
modelos de democracia, não propunham a negação radical da diversidade cultural e social,
mas se organizavam em função das tentativas de construção de “uma linguagem institucional”
que traduzisse a diversidade em termos universais. Por isso, as políticas formuladas e
implantadas pelo Estado, neste contexto, orientavam-se pela noção abstrata de um sujeito
universal moderno que, necessariamente, deveria atender às exigências fundadas pelo projeto
iluminista: “ser racional, centrado e unitário”. Nisto, ao exigirem do Estado o
desenvolvimento de políticas multiculturais, os movimentos que lutavam por reconhecimento
acabavam explicitando, também, a existência de identidades até então negligenciadas pela
imagem de um sujeito universalista. Note, portanto, que:
Segundo Taylor (1993, p.67), “la sociedad supuestamente justa y ciega a las
diferencias no sólo es inhumana (en la medida en que suprime las identidades) sino también,
28
Segundo esta idéia, sua própria autodepreciação se transforma em um dos instrumentos mais poderosos de sua
própria opressão. Sua primeira tarefa deverá consistir em libertar-se desta identidade imposta e destrutiva
(Tradução nossa).
82
29
en una forma sutil e inconsciente, resulta sumamente discriminatoria” . No caso do
movimento negro no Brasil, as críticas multiculturais têm sido direcionadas, não apenas às
desigualdades e seus mecanismos invisíveis que provocam as assimetrias no acesso a recursos
socialmente valorizados, como também na alquimia invisível que transforma todo brasileiro
(de diferentes raças, etnias e origem social) em mestiços; encobrindo assim, as especificidades
culturais e as identidades étnico-raciais, bem como as diferentes experiências de vida
derivadas destes distintos pertencimentos. De maneira ampla, se trata de um movimento de
repolitização da cultura e das próprias identidades culturais.
Nesse sentido, Gonçalves e Silva (2006) chamam a atenção para a mudança
paradigmática provocada pelo multiculturalismo (a partir da década de 1970) que embasou e
preparou os movimentos de protestos contra os modelos de dominação cultural.
Foi a partir daí que negros índios e minorias étnicas em geral começam a detonar os
critérios que os classificam como naturalmente inferiores aos grupos étnicos
dominantes. Os achados culturalistas vão inspirar os movimentos de mulheres, em
várias partes do mundo, contra a suposta supremacia natural dos homens. O mesmo
vai ocorrer com os homossexuais, que passam a produzir novas imagens de si
mesmos e a combater, por vias judiciais, preconceitos em relação a seu
comportamento sexual. Enfim, motivados por uma leitura mais questionadora da
diversidade humana, os grupos culturalmente dominados buscam conquistar,
paulatinamente, sua emancipação, abandonando os valores culturais que os
oprimem (idem, p.24).
29
A sociedade supostamente justa e cega às diferenças, não é somente desumana (na medida em que suprime as
identidades), mas, também, de um modo sutil e inconsciente, torna-se sumamente discriminatória (Tradução
nossa).
83
foram produzidos e hegemonizados no Brasil. Mais do que militantes políticos, estes homens
e mulheres negros(as) são pensadores sociais contemporâneos, já que no decurso de suas
intervenções políticas eles acumulam e produzem conhecimentos teórico-práticos acerca da
cultura brasileira, das estruturas sociais e das relações interpessoais numa sociedade
fortemente racializada como a nossa. Adicionalmente, reorientam suas ações futuras com base
nos conhecimentos que acumularam e produziram sobre a realidade das relações raciais no
Brasil.
Procurando evidenciar um outro aspecto do movimento que Medeiros (2004) chamou
de Revolução dos Micróbios, o segundo tópico deste capítulo apresentará, por meio de
relatos e depoimentos de homens e mulheres que participaram ativamente de entidades e
grupos negros nas últimas décadas do século XX, uma “versão” silenciada de nossa história
recente.
Eu sempre digo que o movimento negro tem sido muito generoso com
a sociedade brasileira. Tu já imaginaste o que é trazer para a
sociedade diversas comunidades, no país inteiro que estavam
invisíveis para ela durante séculos? Isso vai ser de uma importância
muito grande para a própria sociedade brasileira começar a
rediscutir sua identidade.
Zélia Amador, Depoimento Histórias do Movimento Negro no
Brasil, 2007.
84
construção de coisas como ausências) acabamos internalizando a noção de que determinados
fatos ou coisas, realmente, não existiram.
Sob o crivo de esse novo olhar, crítico e diferenciado, iniciaremos este tópico,
lançando luz em nossa história recente, confrontando-a com a espécie de “ditadura de uma
história única”. Dessa nova perspectiva, esperamos depreender melhor leitura, não somente,
do nosso passado, mas, sobretudo, do nosso presente e de nosso futuro.
Como já discuti anteriormente, os anos de ditadura militar (que se estendeu de 1964 a
1985), foram marcados pelo surgimento, e ressurgimento, de diversos grupos sociais
organizados. Foi o período de fortalecimento dos movimentos estudantis e sindicais, bem
como da explosão de diferentes movimentos grevistas pelo país. A referida década também
ficou conhecida como período de insurreição sindical, no qual se destacaram as greves no
ABC paulista, lideradas por Luís Inácio Lula da Silva, que cerca de 30 anos depois se
transformaria no primeiro trabalhador a assumir o cargo de presidente do Brasil.
30
O que se convencionou chamar de “Movimento Negro” , formado por pessoas de
vários estados brasileiros e vinculados a diversas entidades, também surgiu neste contexto de
efervescência política, e refletia, tal como a maioria dos demais movimentos, as contradições
e expectativas do período. De acordo com Pinho (2007), um dos aspectos que motivaram as
lutas empreendidas pelas entidades negras surgidas entre o final da década de 1960 e o início
da década de 1970, foi à preocupação com a ressignificação simbólica de eventos históricos e
aspectos das relações raciais no Brasil, incluindo o 13 de Maio, o Quilombo dos Palmares e o
próprio Zumbi.
Tal conversão foi possível porque, durante todo o regime militar, diversos grupos se
organizaram no país. No Rio Grande do Sul, o já citado Grupo Palmares. No
segregado interior de São Paulo, assistiu-se a uma intensa movimentação com o
grupo Evolução de Campinas, fundado por Thereza Santos e Eduardo Oliveira, em
1971, e o Festival Comunitário Negro Zumbi (Feconezu), criado em 1978 e que
existe até o dia de hoje. (...) No Rio de Janeiro, o Instituto de Pesquisas e Estudo de
Cultura Negra no Brasil (IPCN) e a Sociedade de Estudo de Cultura Negra no Brasil
(Secneb), a Sociedade de Intercâmbio Brasil África (Sinba), o Grupo de Estudos
André Rebouças, etc. (PINHO, 2007, p.89).
30
Segundo d’Adesky (2001), durante o I Encontro Nacional de Entidades Negras, realizado em 1991 na cidade
de São Paulo, se convencionou que o termo “Movimento Negro” definiria “o conjunto de entidades e grupos, de
maioria negra, que têm o objetivo específico de combater o racismo e/ou expressar valores culturais de matrizes
africanas”.
85
personagens do movimento negro que atuam desde as décadas de 1970 e 1980 em todas as
regiões do país”31. Nesta obra, os depoentes refletem sobre temas variados, como: a tomada
da consciência da negritude, o processo de organização do Movimento Negro Unificado, as
relações político-partidárias, as formas de atuação política das entidades e do MNU, etc. De
modo geral, os depoimentos são particularizados, entretanto, possibilitam visualizar, não
apenas, histórias omitidas sobre a construção do Brasil, mas também histórias sobre a vida
dos sujeitos que se apresentam nas páginas do livro. São as “micro-histórias construindo a
macro-história”; ou, dito de outro modo, são as histórias das entidades negras que se
confundem com as histórias de seus integrantes.
O reconhecimento da discriminação racial no Brasil, e a obstinada decisão de
combatê-la e superá-la, não define a identidade apenas das entidades negras emergentes a
partir da década de 1970, mas define também a identidade de seus membros. Tornar-se
membro de uma entidade negra, naquele período, era compreendido como uma das formas de,
tendo-se tornado negro, lutar pela erradicação do que, em geral, lhes dava a consciência de ser
negro: a discriminação racial. Por isso, vemos nos relatos de muitos depoentes que a
experiência de sentir a discriminação racial era um dos principais móbiles do reconhecimento
de sua identidade (ser negro). Diante disso, a experiência de tornar-se negro não se resumia,
portanto (e continua a não se resumir), a uma experiência racional, posto que implica também
na experiência subjetiva de sentir-se discriminado pelo fato se ser negro.
Nesse contexto, muitos depoentes descrevem que, a descoberta de que eram negros se
deu justamente nas primeiras séries do ensino fundamental, ou em contextos de preparação
para o ingresso em instituições escolares. Isso significa que tanto a escola, quanto a família,
foram determinantes para forjar a identidade negra destes sujeitos. Segundo Nilma Bentes
(2007) 32,
“É na escola que a gente aprende pela primeira vez que existe discriminação, que
existe a questão do negro. Porque você não sabe explicar, mas é discriminado na
escola. É uma dor que vem desde cedo e faz com que a maioria de nós, negros, ou
fique dócil demais ou se rebele, ou tente se mimetizar, se esconder” (BENTES, N.,
2007 apud. ALBERTI; PEREIRA, 2007, p.40).
31
O livro reúne 38 (trinta e oito) depoimentos, sendo 23 (vinte e três) homens e 15 (quinze) mulheres. Apesar de
haver no livro, depoimentos de militantes nascidos em vários Estados da Federação, há uma maior representação
de militantes do Sudeste do Brasil.
32
Nilma Bentes nasceu na cidade de Belém do Pará no ano de 1948. Formada em Agronomia pela Universidade
Federal Rural da Amazônia, fez parte do quadro técnico do Banco da Amazônia por 26 anos. Em 1980,
participou da fundação do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa).
86
33
Flávio Jorge Rodrigues da Silva (2007) destaca o papel de sua avó paterna no seu
processo de reconhecimento identitário.
Ainda que muitos depoentes do livro tenham feito referências incisivas ao espaço
escolar como lócus privilegiado de manifestação de discriminações raciais, e reconhecimento
da negritude, esta não é uma situação que pode ser universalizada para todos os indivíduos
negros. No Brasil, por exemplo, a experiência da discriminação racial (que por vezes não é
reconhecida como tal, sendo atenuada como uma espécie de “descortesia urbana”), nem
sempre leva os indivíduos discriminados a refletirem sobre seu pertencimento étnico-racial.
Entre os depoimentos apresentados no livro, muitos relatam que apenas no período de
faculdade, ou de atuação em outras entidades políticas, se deram conta da real situação dos
negros; tendo, inclusive, passado, em alguns casos, por diversas entidades e movimentos
sociais sem pensar sobre esta questão.
Segundo Diva Moreira (2007) 34, a questão racial ficou latente durante muitos anos de
sua vida, conforme descrito abaixo:
33
Flávio Jorge Rodrigues da Silva, nascido na cidade de Paraguaçu Paulista em são Paulo no ano de 1953, é
formado em Ciências Contábeis pela PUC de São Paulo em 1981. Participou do Movimento Estudantil durante a
segunda metade da década de 1970, e no ano de 1979 foi um dos fundadores do Grupo Negro da PUC. Em 1991
participou da fundação da Organização Negra Soweto, e no período de 1995 e 1999 ocupou o cargo de primeiro
secretário da Secretaria Nacional de Combate ao Racismo do Partido dos Trabalhadores (PT).
34
Diva Moreira nasceu na cidade mineira de Bocaiúva no ano de 1946. Formada em Comunicação Social, foi
integrante do Partido Comunista entre 1968 e 1987 e técnica de pesquisa e planejamento da Fundação João
Pinheiro, em Belo Horizonte, entre 1975 e 1988. No ano de 1987, fundou a Casa Dandara na cidade de Belo
Horizonte, e entre os anos de 1998 e 2000, foi titular da Secretaria Municipal para Assuntos da Comunidade
negra de Belo Horizonte.
87
inserção no movimento jovem da Igreja Católica, e era uma pessoa extremamente
ativista. (...) Mesmo com tudo isso, a questão racial não emergia. Não emergia em
mim. Em todos esses movimentos sociais, em todos esses contextos sociais dos
quais eu fiz parte, em toda a minha rede de relações, nunca a questão racial emergiu!
Era uma coisa que não existia. No Partido Comunista, nada; na Igreja Católica,
nada: éramos todos filhos de Deus; no movimento estudantil, nos movimentos de
esquerda, essa questão não emergiu. Ela sequer poderia ter sido chamada na época
de epifenômeno, de uma questão de superestrutura, porque não existia. Era a
invisibilidade total e absoluta da questão racial naquela época (MOREIRA, D., 2007
apud. ALBERTI; PEREIRA, 2007, p. 52).
O processo de invisibilização da questão racial, relatado por Diva Moreira, não pode
ser tomado como marca regional, referente apenas às entidades situadas na cidade de Belo
Horizonte, pois se trata de uma característica comum a boa parte dos movimentos
progressistas em atividade no Brasil que se opunham a ditadura militar. Assim sendo, atuando
como militantes de diferentes organizações vinculadas à esquerda (sindicatos, movimentos
estudantis, setores progressistas da Igreja Católica, etc.), muitos dos entrevistados se
ressentiam da ausência de espaços para o debate da questão racial e das condições de vida do
povo negro no interior de suas entidades.
35
De acordo com Carlos Alberto Medeiros (2007) , as primeiras evidências de um
movimento coletivo urbano no Rio de Janeiro, que passou a ser chamado de “Black Rio”, foi
o suficiente para gerar reações conservadoras, tanto da esquerda, quanto da direita brasileira.
As atividades desenvolvidas por algumas equipes de soul do subúrbio carioca, inspiradas no
estilo musical negro norte-americano, tinham como objetivo transmitir à população negra
mensagens positivas, tais como: “estude e cresça”. Isso criou um movimento de não aceitação
ideológica das correntes filosóficas que vigoravam: enquanto a direita acreditar que se tratava
de sinais de “conspiração comunista”, os comunistas acreditavam se tratar de uma “invasão
imperialista”. Segundo Medeiros (2004), o próprio Gilberto Freyre, antropólogo culturalista já
apresentado neste trabalho, publicou um artigo virulento contra a invasão norte-americana
representada pelo soul no Brasil.
Será quês estou enxergando mal? Ou terei realmente lido que os Estados Unidos vão
chegar ao Brasil (...) norte-americanos de cor (...) para convencer os brasileiros
35
Carlos Alberto Medeiros nasceu na cidade do Rio de Janeiro no ano de 1947. Formado em Comunicação
Social, ajudou a fundar a Sociedade de Intercâmbio Brasil-África (Sinba) no ano de 1974, e no ano de 1975,
participou da fundação do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN). Foi membro do Grupo
Interministerial para a Valorização da População Negra entre 1995 e 1996 e subsecretário adjunto de Integração
Racial na Secretaria de Estado de Direitos Humanos e da cidadania no governo Anthony Garotinho em 1999 no
Rio de Janeiro.
88
também de cor de que seus bailes e suas canções afro-brasileiras teriam de ser de
“melancolia” e de “revolta”? E não, como acontece hoje (...), os sambas, que são
quase todos alegres e fraternos. Se o que li é verdade, trata-se mais uma vez, de uma
tentativa de introduzir, num Brasil que cresce plena e fraternalmente moreno – que
parece provocar ciúme nas nações que também são birraciais ou trirraciais – o mito
da negritude, não do tipo do Senghor, da justa valorização dos valores negros ou
africanos, mas do tipo que às vezes traz a “luta de classes” como instrumento de
guerra civil, não do Marx sociólogo, ma do outro, do inspirador de um marxismo
militante que é provocador de ódios (...). O que se deve destacar, nestes tempos
difíceis que o mundo está vivendo com uma crise terrível de liderança (...) (é que) o
Brasil precisa estar preparado para o trabalho que é feito contra ele, não apenas pelo
imperialismo soviético (...) mas também pelo dos estados Unidos (FREYRE, 1977
apud MEDEIROS, 2004, p.70).
Para muitos dos militantes, que participaram da história do movimento negro durante
as décadas de 1970 e 1980, a vinculação à entidades de esquerda que lutavam contra a
ditadura militar, lhes colocava em uma posição ambígua em relação as influências norte-
americanas. Ao mesmo tempo em que repudiavam a postura imperialista com que os EUA
orientavam suas relações internacionais, muitos se inspiravam nas lutas pelos direitos civis
levadas a diante por figuras como Ângela Davis, Martin Luther King, Malcom X e os
Panteras Negras. Para além do movimento norte-americano pelos direitos civis, Hédio Silva
36
Júnior (2007) , identifica mais dois grandes movimentos que influenciaram diretamente o
discurso da geração que se engajou no movimento negro deste período: 1) o movimento de
lutas por independência dos países africanos (sobretudo dos países lusófonos como Angola,
Moçambique, São Tomé e Príncipe e Guiné Bissau) e 2) o movimento da negritude que,
impulsionado por intelectuais da África e das Antilhas, tinha como objetivo principal
revalorizar, cultural, política e artisticamente, o povo negro na África e na diáspora.
É salutar observar que, naquele período, as principais influências para a
conscientização e organização das primeiras entidades negras brasileiras, fundadas no
princípio da década de 1970, eram internacionais, dando a falsa impressão de que, no âmbito
brasileiro, as lutas negras estavam sendo iniciadas do “marco zero”. De fato, existiam poucas
referências às lutas negras anteriormente travadas no Brasil, evidenciando que, de forma
eficiente, as experiências de contestações da ordem racista vigente no país, foram sendo
36
Hédio silva Júnior nasceu na cidade de Três Corações em Minas Gerais no ano de 1961. Advogado e doutor
em direito constitucional, integrou o Conselho de Participação e desenvolvimento da Comunidade Negra do
estado de São Paulo em 1986 e presidiu a Convenção Nacional do Negro no mesmo ano. Em 1992, fundou em
São Paulo o Centro de Estudos das Relações de trabalho e Desigualdade (CEERT).
89
gradualmente construídas como não existentes, transmitindo a falsa impressão de nunca terem
existido.
Para Amauri Mendes Pereira (2007) 37,
37
Amauri Mendes Pereira nasceu na cidade do Rio de Janeiro no ano de 1951. Formado em Educação Física, foi
fundador da Sociedade de Intercambio Brasil-África (Sinba) em 1974 e dirigente do jornal Sinba, publicado pela
entidade entre 1977 e 1980. Participou da fundação do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN) em
1975 e do Movimento Negro Unificado em 1978.
90
na cidade do Rio de Janeiro. Referindo-se as divergências existentes entre os componentes da
Sinba e do IPCN (grupo criado a partir de uma cisão na Sinba), Amauri Mendes Pereira
(2007) destaca que...
... havia certa articulação entre nós, mas a gente dizia assim: “Eles (do IPCN) são os
negros burgueses. A pequena burguesia negra. Nós estamos fora. Somos
revolucionários negros, nossa visão é revolucionária. Nosso referencial não são os
Estados Unidos. Os Estados Unidos criaram uma elite negra. Nossa visão são as
lutas de libertação africanas, luta armada”. Esse era o nosso referencial: Samora
Machel, Eduardo Mondlane, Agostinho Neto, Amilcar Cabral... A gente fazia essas
cisões, que depois vimos que eram completamente inconsistentes (PEREIRA, A.,
2007 apud ALBERTI; PEREIRA, 2007, p.141).
foi interessante também, porque foi à primeira manifestação, o primeiro ato público
no centro de uma grande cidade no Brasil que foi feito e não foi reprimido, naquele
período. Havia greves em São Bernardo, houve manifestações lá no largo dos
Pinheiros, dos estudantes, mas nós fizemos a primeira no centro da cidade de São
Paulo. Em 1978, eles reprimiram, jogaram bomba em tudo quanto é canto. Aquela
nossa, não, foi feita e foi vitoriosa. Eles tiveram que engolir. Se reprimissem ia ficar
claro que era racistas mesmo, porque o mundo inteiro estava antenado: saiu na
Folha, no Estadão, saiu em tudo quanto é lugar, nas rádios, televisão (BARBOSA,
M., 2007 apud ALBERTI; PEREIRA, 2007, p.152).
38
Milton Barbosa, mais conhecido como Miltão, nasceu na cidade de Ribeirão Preto em São Paulo no ano de
1948. Cursou Economia na USP, mas não concluiu, tendo sido diretor do Centro Acadêmico de Economia e
Administração desta universidade. Foi um dos fundadores do Movimento Negro Unificado em 1978, tendo
presidido o ato público de lançamento do movimento.
91
mudança significativa na concepção do movimento, que passou a ser chamado de Movimento
Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR). Depois, o movimento foi
chamado apenas de MNU, haja vista que os integrantes chegaram à definição, após muitas
divergências, de que a luta contra a discriminação racial era uma bandeira, uma palavra de
ordem do movimento, e não devia ser incluída ao nome.
O caráter plural das entidades negras emergentes, da década de 1970, com diferentes
concepções políticas, ideológicas e teóricas, fizeram com que, apesar de unificadas, essas
entidades optassem por diferentes estratégias de atuação: panfletagem, palestras e exposições
individuais, textos e manifestos publicados em jornais, produção de jornais independentes,
atividades político-partidárias, organização de blocos afros, etc.
A despeito das divergências de concepções e estratégias, o dia 20 de Novembro de
1978 ficou conhecido como: Dia Nacional da Consciência Negra, em homenagem ao dia de
morte de Zumbi dos Palmares, o que possibilitou uma nova unidade entre as entidades negras
que, anteriormente, se articularam em torno do combate a discriminação racial. Sem dúvida,
há fatores políticos por trás da definição desta data, dentre eles evidencia-se a recusa das
imagens passivas atribuídas à população negra com a comemoração do dia 13 de Maio, e
também, da imagem benevolente atribuída à Princesa Isabel, que tendo “libertado” os
escravos, pôs fim a qualquer necessidade de ações reivindicatórias por parte dos ex-cativos.
Notadamente, além de reivindicar protagonismo histórico, um dos objetivos (ou
conseqüência) da associação do dia 20 de Novembro ao Dia da Consciência Negra foi a
necessidade crescente de retirar da invisibilidade a história dos descendentes de africanos no
Brasil e, adicionalmente, a história do próprio continente africano.
Segundo Frei Davi 39,
sempre que eu tocava na questão do negro com uma pessoa negra, a primeira coisa
que ela fazia era recusar a idéia. Então eu procurava formas indiretas, procurava
trabalhar outros dramas (...) Para puxar o assunto do negro nós projetávamos slides
sobre a história do negro no Brasil, dando eles consciência histórica, porque
entendíamos que a consciência histórica é o primeiro passo para o despertar da
consciência (DAVI, 2007 apud ALBERTI; PEREIRA, 2007, p.191).
39
Frei Davi nasceu na cidade de Nanuque em Minas Gerais. Em 1952, entrou para a Ordem Fransciscana, em
São Paulo e se formou em Teologia, em 1983. Participou da formação dos Agentes Pastorais Negros e ajudou a
fundar a o Pré-vestibular para Negros e Carentes (PVNC) no início da década de 1990 e a Educação e Cidadania
de Afro-descendentes e Carentes (Educafro), no final da década de 1990.
92
40
Não obstante, Maria Raimunda Araújo (2007) , ou simplesmente, “Mundinha
Araújo", argumenta:
40
Maria Raimunda Araújo, mais conhecida como Mundinha Araújo, nasceu na cidade de São Luís do Maranhão
no ano de 1943. Formada em Comunicação Social foi fundadora do Centro de Cultura Negra do Maranhão
(CCN) em 1979. Foi diretora do Arquivo Público do Maranhão entre 1991 e 2003.
41
A abertura política, que se iniciou em 1974 e terminou em 1985, é o nome que se dá ao processo de
liberalização da ditadura militar que governou o Brasil. Realizada de forma lenta, gradual e segura, a abertura se
contrapõe ao fechamento do regime, durante os governos de Artur da Costa e Silva e Emilio Garrastazu Médici.
93
gradativa) à questão racial, os militantes negros se tornaram porta-vozes, propositores e
executores de suas próprias demandas (da comunidade negra). Contudo, ao contrário da
compreensão não-conflitiva que o termo “de forma gradativa” pode indicar, a incorporação da
temática e das demandas da população negra nos espaços políticos não se deu de forma
harmônica. Refletindo sobre tais questões Ivanir dos Santos(2007) 42 revela:
Cabe enfatizar que, a abertura gradativa de espaços políticos nas três instâncias de
governo (municipal, estadual e federal) ao movimento negro, não se deveu apenas a
repercussão causada pelas atividades culturais, formativas e informativas promovidas pelas
diferentes entidades negras no Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Maranhão,
Alagoas, Pará, etc. Além das atividades realizadas e voltadas “para dentro”, as entidades e o
MNU continuaram a realizar, ao longo da década de 1980, uma série de atividades (passeatas,
congressos e protestos), no intuito de denunciar e sensibilizar a sociedade civil e os órgãos
governamentais sobre a persistência da discriminação racial no país, naturalizada pelo Mito da
Democracia Racial e pela Teoria do Embranquecimento. Se durante o período áureo de
Ditadura Militar, a face “sócio-recreativa” e cultural do movimento negro era a que mais se
42
Ivanir dos Santos nasceu na cidade do Rio de Janeiro no ano de 1952. Foi criado no Sistema de Atendimento
ao Menor (SAM) e na Fundação Nacional para o Bem-estar do Menor (Funabem). Em 1980 fundou a
Associação dos Ex-alunos da Funabem (Asseaf) e em 1984 formou-se em Pedagogia. No ano de 1989 fundou o
Centro de Articulação das Populações Marginalizadas (CEAP) e em 1995 participou da Coordenação Executiva
da Marcha Zumbi dos Palmares Contra o racismo pela Cidadania e pela Vida em 1995.
94
destacava; o período de Abertura possibilitou o ressurgimento da face “político-
reivindicativa”, adormecida, mas nunca totalmente negligenciada.
A realização da “Marcha contra o Racismo”, no ano de 1983, da Candelária à
Cinelândia no Rio de Janeiro, foi seguida pela realização da Convenção Nacional do Negro,
em Brasília, no ano de 1986; quando diversas entidades negras do país, independente de
serem filiadas ao MNU, discutiram um conjunto de propostas a ser apresentada a Assembléia
Nacional Constituinte de 1987-1988. Esta Convenção foi precedida de um conjunto de
encontros regionais (como por exemplo, III Encontro de Negros do Norte e Nordeste,
ocorrido em 1983, em São Luís; o I Encontro Estadual de Negros do Rio de Janeiro, ocorrido
no mesmo ano, na cidade do Rio de Janeiro, além de outros), todos organizados em torno do
tema central: O negro e a constituinte.
Segundo Hédio Silva Junior (2007), que apesar de nunca ter sido militante orgânico do
MNU, participou de uma série de atividades do movimento e ocupou a condição de presidente
do Congresso Nacional do Negro em 1986, apesar das sérias divergências entre os
participantes do evento, alguns consensos existiam.
95
O ano1988, marcado como ano de Comemoração do Centenário da Abolição da
Escravidão no Brasil e promulgação da Nova Constituição Brasileira, representou um
importante marco na história do Movimento Negro Contemporâneo. Apesar do caráter festivo
que alguns setores da sociedade brasileira procuraram dar ao centenário da Abolição da
43
Escravidão , a compreensão unânime entre as entidades negras do período era a de que:
1988 deveria ser o momento de dar visibilidade a questão racial no Brasil, por meio da
realização de protestos e denúncias acerca das heranças maléficas da escravidão sobre a
população negra. Nesse sentido, o período representou a transição de posturas políticas, uma
vez que, marcou, a passagem de uma postura eminentemente denunciativa, para as posturas
mais propositivas; além do fortalecimento e da convergência das denúncias e protestos contra
as “farsas” da Abolição e da Democracia Racial.
Vale ressaltar que essa postura ativa e crítica adotada pelo MNU e pelas demais
entidades negras, sobretudo, durante as duas décadas que precederam à promulgação da nova
Constituição Nacional e das comemorações do centenário da Abolição da Escravatura, foi
fortemente influenciada pela divulgação de trabalhos acadêmicos baseados nos dados
quantitativos gerados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), no ano de
1976 (HASENBALG, 1979; PASTORE, 1979; SILVA, 1981)45.
43
Amauri Mendes Pereira, em seu depoimento, refere-se a uma vinheta de 50 segundos, criada e exibida pela
Rede Globo no final do ano de 1987. Tratava-se de uma campanha intitulada “Axé da Globo” com a participação
de vários artistas negros e representantes negros da sociedade civil. Disponível em
<http://www.youtube.com/watch?v=4_DGxzo53Js>. Acessado em 08 de Outubro de 2011.
44
A deputada Benedita Sousa da Silva Sampaio do PT/RJ, o deputado Carlos Alberto Caó do PDT/RJ, e o
deputado Paulo Paim do PT/RS foram os três deputados negros eleitos para a composição da Assembléia
Constituinte.
45
A intensificação do uso de analises quantitativas aplicadas ao estudo das desigualdades sociais e raciais,
provocou uma alteração significativa na tradição de trabalhos acadêmicos sobre relações raciais no Brasil: ao
mesmo tempo em que passou a ser reincorporada ao rol de interesses de pesquisadores acadêmicos não
96
Dessa forma, ao evidenciar a perpetuação dos padrões de desigualdades raciais no
Brasil, bem como as tímidas modificações nas posições sociais e no status das populações
negras e brancas, existentes desde o período escravista, que determinavam o caráter
subalterno da inclusão da população negra no mundo capitalista nacional, os trabalhos
divulgados contribuíram para fortalecer a percepção, já compartilhada pelas entidades negras,
de que a Constituição de 1988 poderia figurar como um momento de (re)fundação do Brasil,
enfatizando a defesa de uma sociedade multirracial, multicultural e livre de qualquer tipo de
preconceitos (conforme Artigo 3°, inciso IV), de terrorismo e de racismo (Artigo 4°, inciso
VIII).
Para Gomes, J. (1999, p.308), “a aprovação pelo Congresso Nacional da Lei
n.7.347/85, em 1985, complementada pela promulgação da nova Constituição de 1988,
anunciou uma mudança vital nesse campo (do direito)”. Estes dois atos normativos serviram
como verdadeiros divisores de águas para o campo jurídico brasileiro, passando a reconhecer,
no que tange a tradição essencialmente individualista do establishment jurídico nacional, os
interesses e os direitos coletivos. A participação ativa de diferentes movimentos sociais na
elaboração da Carta Magna de 1988, possibilitou a mobilização e publicação de demandas
coletivas de diferentes grupos sociais organizados, distinguiu-se radicalmente das demais
experiências brasileiras ao longo do século XX, marcadas pelo autoritarismo, centralização e
ausência de participação popular.
vinculados a militância em entidades negras, algumas abordagens de aspectos do nosso tipo sui generis, de
desigualdades raciais, por vezes, se fizeram dissociadas de reflexões mais aprofundadas sobre o nosso modelo,
também sui generis, de relações raciais, de discriminação racial e de produção de racismo (Fernandes, 2005;
Henriques, 2001).
97
âmbito do Ministério da Cultura (Minc), de uma Assessoria para Assuntos Afro-brasileiros e,
posteriormente, em 1988, da Fundação Cultural Palmares” (JACCOUD; BEGHIN, 2002). As
repercussões políticas provocadas por estes dois eventos, além das mobilizações populares
organizadas em torno destes, acabaram por repercutir também, nas esferas governamentais
estaduais e municipais durante toda a década de 1990. No ano de 1995, por exemplo, durante
a realização do X Encontro Nacional do Partido dos Trabalhadores, em Guarapari (ES), foi
criada a Secretaria Nacional de Combate ao Racismo, do PT. De acordo com Flávio Jorge
Rodrigues da Silva, militante tanto do partido como do MNU e eleito primeiro secretário da
recém-criada secretaria, os principais defensores da proposta de criação de um órgão interno
ao partido, empenhado em discutir e combater o racismo, foram Benedita da Silva e Luís
Inácio Lula da Silva.
No mesmo ano de 1995, foi realizada, em Brasília, a Marcha Zumbi dos Palmares
pela Cidadania e pela Vida, em comemoração ao tricentenário da morte de Zumbi dos
46
Palmares , organizada por entidades vinculadas ao movimento negro em diversos estados
brasileiros e que reuniu mais de 30 mil pessoas, marcando uma nova fase de lutas raciais no
país.
Um dos aspectos distintivos desta nova fase foi, justamente, a postura reivindicatória
em relação às instâncias governamentais, e em especial ao governo federal, para que fossem
incorporadas e executadas as demandas especificas apresentadas pela população negra. De
acordo com Édson Cardoso (2007), durante a Marcha, em ocasião de entrega ao presidente da
República de um documento sobre a situação do negro no país e de um programa de ações
para superação do racismo e das desigualdades raciais, ele teria dito a Fernando Henrique
Cardoso que “no governo dele, como nos outros, tinha IPEA, tinha IBGE, tinha dados, mas
não tinha políticas públicas e o que a gente estava querendo eram políticas que levassem à
superação das desigualdades” (CARDOSO, É., 2007 apud ALBERTI; PEREIRA, 2007,
p.345).
É importante destacar que, da parte do chefe do Executivo Federal, havia uma
significativa abertura em relação ao tema e as demandas apresentadas pela população negra.
Em seu discurso de posse, por exemplo, proferido no Senado Nacional, no dia 01 de Janeiro
46
A Marcha Zumbi dos Palmares – contra o racismo, pela cidadania e a vida foi organizada com êxito pelo
Movimento Negro, em 1995, para ser um marco em homenagem aos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares,
o líder do maior, mais duradouro e mais famoso símbolo da luta dos negros no Brasil contra o regime
escravocrata: a República/Quilombo dos Palmares, que resistiu por um século, na Serra da Barriga, no estado de
Alagoas.
98
de 1995, o, então, presidente Fernando Henrique Cardoso reconheceu a existência e a
relevância do problema racial no Brasil. FHC reconheceu também a necessidade de
estabelecer interlocuções políticas com o MNU e fez, ao menos, duas referências diretas à
questão racial no país, às desigualdades marcantes entre negros e brancos e seu propósito
pessoal e político de combater tais desigualdades.
Vamos assegurar uma vida decente às nossas crianças, tirando-as do abandono das
ruas e, sobretudo, pondo um paradeiro nos vergonhosos massacres de crianças e
jovens. Vamos assegurar com energia, direitos iguais aos iguais. Às mulheres,
que são a maioria do nosso povo e às quais o País deve respeito oportunidades de
educação e de trabalho. Às minorias raciais e a algumas quase maiorias - aos
negros, principalmente - que esperam que igualdade seja, mais do que uma
palavra, o retrato de uma realidade. Aos grupos indígenas, alguns deles
testemunhas vivas da arqueologia humana e testemunhas da nossa diversidade.
Vamos fazer da solidariedade o fermento da nossa cidadania em busca da igualdade
(Discurso de Posse) 47 (Grifos nossos).
47
Disponível em http://www.planalto.gov.br/publi_04/colecao/discurs.htm . Acessado em 23 de Agosto de 2010
99
elaboração de estudos atualizados; e v) estimular iniciativas públicas e privadas que
valorizassem a inserção qualificada dos negros nos meios de comunicação.
Avaliando os três primeiros anos do grupo, Hélio Santos afirmou:
Neste campo foram tomadas até agora ações que combatem o preconceito e o ao
racismo. As de cunho compensatório ainda estão no plano do debate. Uma parte
fundamental da política educacional, que precede a formulação de políticas
compensatórias, consiste em combater, nas escolas, o preconceito e o racismo contra
os negros. A ação positiva consiste na valorização da comunidade afro-brasileira e
apreciação do papel que desempenhou e desempenha na construção econômica e
cultural do país. Este caminho favorece a elevação da auto-estima do alunado negro.
(SANTOS, 1998 apud JACCOUD; BEGHIN, 2002, p.42) 48.
48
Hélio Santos. Políticas Públicas para a população negra no Brasil. Observatório da Cidadania, n° 2. Rio de
Janeiro, Ibase, 1998.
49
De acordo com Gomes (2001), Ações Afirmativas são políticas criadas no intuito de promover grupos
socialmente discriminados, devem ir além de reservas de vagas em espaços determinados, notadamente aqueles
em que membros destes grupos não estão representados. Políticas de Ações Afirmativas neste sentido, ao invés
de fundarem-se apenas em aspectos compensatórios, restitutivos ou jurídicos punitivos, devem estar ancorados
também em aspectos de promoção, que possibilitem a reversão de um quadro simbólico sobre as populações
discriminadas às quais tais políticas se destinam.
100
recente do movimento negro no período de redemocratização no Brasil, havia sido
fundamental para o questionamento da tese da Democracia Racial, que enfatizava a fluidez
das relações raciais no país, e a conseqüente ausência de preconceitos e/ou barreiras raciais.
A publicação do livro Mobilidade Social no Brasil, escrito por José Pastore e Nelson
do Valle Silva, no ano 2000, também contribuiu significativamente no embasamento da
comitiva brasileira na Conferência de Durban, e na instrumentalização teórica de diversos
pesquisadores das relações raciais no Brasil. Prefaciado pelo então presidente Fernando
Henrique Cardoso, o livro de Pastore e Silva (2000) buscou captar, por meio de análises de
dados de diferentes PNADs brasileiras, a dinâmica e a evolução da estrutura da sociedade
brasileira ao longo das décadas.
Vale lembrar que, o livro não se tratava apenas de um estudo sobre as trajetórias
sociais entre gerações e dentro da mesma geração, mas principalmente sobre a estrutura social
e a composição de estratos sociais ao longo de décadas.
101
No campo científico, a divulgação destes estudos, fortemente alicerçados em análises
estatísticas, foi determinante na progressiva mudança observada no plano político, a partir de
meados da década de 1980. No plano epistemológico, os novos dados quantitativos
produzidos no período contribuíram na legitimação de parte dos argumentos já utilizados por
amplos setores do movimento social negro, que também passaram a utilizar os dados recém-
divulgados como forma de embasar as denúncias sobre discriminação no mercado de trabalho,
na educação, na saúde, no acesso a terra e a moradia, etc.
103
desestabilizam não apenas os modos legitimamente consagrados de distribuição das riquezas
materiais da nação, mas, sobretudo, os modos de apresentar e representar a nação brasileira,
baseada, desde a década de 1930, em um universalismo excludente.
De fato, nada mais contrário à identidade nacional brasileira, tal como foi formada
historicamente - como identidade autocolonial, culturalmente híbrida e racialmente
mestiça -, que o reconhecimento étnico-racial dos negros. Assim, os que por ventura
tinham sólidos interesses na manutenção das desigualdades encontraram aliados
cujos motivos eram puramente ideológicos, pessoas que viam nas políticas dirigidas
preferencialmente aos negros a penetração no Brasil do 'multiculturalismo' e do
'multirracionalismo' de extração anglo-saxônica (GUIMARÃES, 2003, p.253-254).
50
Chamados de racialistas por aqueles que se intitulam antirracialistas , o movimento
negro, a partir de então, apesar das inúmeras resistências que passou a enfrentar, fortaleceu
suas demandas de implementação de políticas com recorte racial. Deste modo, desestabilizou,
de modo radical, os modos consagrados de pensar e construir, tanto as políticas públicas
quanto a própria nação. Com isso, a ampla rede de indivíduos e entidades alinhadas a uma
agenda antirracista, não reivindicam apenas justiça social, baseada no principio de igualdade
formal, mas incorporam em suas bandeiras de reivindicação demandas por reparações,
reconhecimento e ações afirmativas para a população negra.
O progressivo estabelecimento de políticas com recorte racial em prol da população
negra (lei 10.639/03, políticas de reservas de vagas no ensino superior, políticas de reservas
de vagas nos veículos de comunicação, bolsas de estudos para candidatos a carreira
diplomática 51, etc.), tem radicalizado a noção liberal de justiça social, ao pressionar o Estado
50
O Blog Non-race é hoje o principal espaço aberto de discussões em torno não-racialização do Brasil. De
acordo com o moderador do Blog: “Este é um blog destinado à defesa de duas idéias inseparáveis”. A
primeira: o racismo é uma chaga intolerável, que diminui e desumaniza os seres humanos. A segunda: a doutrina
racialista, expressa no projeto de criação de leis raciais, degrada a democracia, oficializa o mito da raça e,
voluntariamente ou não, estimula o racismo. Nossas idéias estão expostas em dois documentos que inspiraram à
criação deste blog: a Carta Pública ao Congresso Nacional de 30 de maio de 2006 (veja aqui) e a carta ao STF
intitulada Cento e Treze Cidadãos Anti-racistas Contra as Leis Raciais, de 21 de abril de 2008(aqui). Esta carta
teve a adesão de mais de 4 mil pessoas, cuja lista nominal está disponível aqui.
51
Lançado em 2002, o Programa de Ação Afirmativa do Instituto Rio Branco – Bolsa Prêmio de Vocação para a
Diplomacia foi instituído com a finalidade de proporcionar maior igualdade de oportunidades de acesso à
carreira de diplomata e de acentuar a diversidade étnica nos quadros do Itamaraty. Trata-se de iniciativa pioneira
e original, que procura investir na capacitação de candidatos afro-descendentes à carreira de diplomata, por meio
de concessão de bolsas de estudos, com duração de dez meses, destinadas a custear cursos e aulas preparatórios
ao Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata, além da aquisição de livros e material didático. É
desenvolvido em parceria com o CNPq(Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e com
a participação da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial e da Fundação Cultural Palmares.
104
brasileiro a reconhecer as características multi-étnicas e pluriculturais de seu povo. Em função
disso, o movimento tem, às vezes, tomado à rota de colisão com o ideário homogeneizante
que tem marcado os esforços de construção da nação desde a década de 1930.
Dentre as políticas com recorte racial citadas acima, orientadas pela busca da
igualdade racial e da construção de um país verdadeiramente multicultural e multirracial, as
políticas de Ações Afirmativas dirigidas ao ensino superior brasileiro (e, geralmente,
reduzidas às políticas de cotas para estudantes negros em instituições de ensino superior) são
as que têm deslocado radicalmente as concepções historicamente vigentes nos campos: das
políticas públicas e das ciências sociais, bem como nos modos de compreender e construir o
Brasil. Dessa forma, levando em conta a centralidade que tais políticas têm adquirido no
campo das políticas públicas dirigidas à população negra, o terceiro capítulo (da segunda
parte desta tese), tem como objetivo discutir, de modo mais detalhado, o contexto de
emergência destas políticas no Brasil e as principais polêmicas suscitadas por elas.
105
SEGUNDA PARTE
106
CAPÍTULO 3
52
Lyndon Baines Johnson, nascido em 27 de agosto de 1908 foi o trigésimo sexto presidente dos Estados
Unidos, de 1963 a1969. Lyndon Johnson era vice-presidente de John Kennedy, e assumiu o cargo
de presidente com o assassinato do mesmo. Foi em seu governo que os EUA entraram totalmente na Guerra do
Vietnã. Ele completou o mandato de Kennedy e foi eleito presidente em uma vitória na eleição presidencial de
1964. Johnson era um importante líder do Partido Democrata dos Estados Unidos e como presidente foi
responsável pela criação da lei da "Grande Sociedade", programa que incluía os direitos civis, sistema de saúde
pública, conhecido nos EUA por Medicare, assistência à educação e a "Guerra contra a Pobreza".
Simultaneamente, ele envolveu o país na Guerra do Vietnã, começando com 16 mil soldados norte-americanos
em 1963 e passando a 500 mil no começo de 1968. Faleceu no ano de1973.
107
Como destaca Weisskopf (2008), na Índia, tais políticas foram dirigidas a um grupo social
específico, os Dálits, no intuito de promover melhores condições de vida em relação aos
membros da casta dominante, os Brahmin. Ainda de acordo com o autor, nos Estados Unidos
e na Índia, as políticas de Ações Afirmativas foram colocadas em prática, sobretudo, no
mercado de trabalho e no sistema educacional, justamente nas esferas em que encontraram
maior contestação.
Segundo Moehlecke (2002), apesar das semelhanças entre as políticas de ações
afirmativas aplicadas nos Estados Unidos e na Índia, nos diferentes países onde já foram
aplicadas as Ações Afirmativas assumiram variadas formas (ações voluntárias, de caráter
obrigatório, estratégias mistas, programas governamentais, orientações jurídicas, etc) e foram
destinadas a diferentes públicos (minorias étnicas, raciais e mulheres).
No Brasil, os movimentos pela implementação de políticas de ações afirmativas,
fortemente inspirados no Civil Right Moviments e majoritariamente indiferentes à experiência
indiana, ao mesmo tempo em que defendiam as ações afirmativas como modo de combater as
desigualdades de acesso e permanência das populações negras e brancas no ensino superior
brasileiro, as defendiam também, como modelo de outro formato de políticas públicas,
orientadas por uma lógica multicultural que possibilitasse o reconhecimento das diferenças,
tanto no âmbito da educação escolar quanto em outras esferas da vida social.
Para Gomes, J. (1999), políticas criadas com o intuito de promover grupos socialmente
discriminados deveriam ir além de reservas de vagas em espaços determinados, notadamente
aqueles em que membros destes grupos não estão representados. Políticas de Ações
Afirmativas, ao invés de fundarem-se apenas em aspectos compensatórios, restitutivos ou
jurídicos punitivos, deveriam estar ancorados também em aspectos de promoção de
identidades positivas, que possibilitassem a reversão de um quadro simbólico depreciativo
sobre as populações discriminadas.
108
trata-se de políticas e mecanismos de inclusão concebidas por entidades públicas,
privadas e por órgãos dotados de competência jurisdicional, com vistas à
concretização de um objetivo constitucional universalmente reconhecido – o da
efetiva igualdade de oportunidades a que todos os seres humanos têm direito
(GOMES, J., 2001, p. 39-41).
Com o propósito de dar visibilidade aos diferentes pontos de vista que se apresentam
no debate, procurarei, ao longo do terceiro capítulo, discutir as mais recorrentes controvérsias
em torno das políticas de ações afirmativas que, aos poucos, se converteram na principal
bandeira de luta do movimento antirracista brasileiro e no principal alvo daqueles que se auto-
nomeiam “anti-racialistas”. Procurarei discutir ainda, como as mobilizações políticas no
sentido de contestar ou apoiar tais políticas se baseiam em representações sociais distintas, e
por vezes irreconciliáveis, acerca de temas como raça, racismo, identidade nacional, políticas
públicas, etc.
53
Para realizar uma consulta detalhada ao mapa das Ações Afirmativas no Brasil, visite o site:
http://www.acoes.ufscar.br/. Acessado em 25 de Outubro de 2009.
54
Dos episódios recentes, a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288, de 20 de Julho de 2010)
talvez seja o caso mais expressivo. Comemorado por alguns e criticado por outros, a redação final do Estatuto da
110
Nessa perspectiva, o atendimento incompleto das demandas apresentadas pelos
Movimentos Negros, se deve, ao menos em parte, ao fato de que, nos processos decisórios
que se desenrolam nas instituições de ensino superior, no mercado de trabalho e nos diferentes
âmbitos governamentais, conjuntos de imaginários, interesses e prioridades distintas, e por
vezes contraditórias, disputam centralidade. Além disso, a pouca presença (e em alguns
espaços ausência total) de políticos, juristas, jornalistas e intelectuais negros e brancos com
postura antirracista ou pelo menos como uma visão aberta às políticas afirmativas como forma
de correção de desigualdades nos espaços de poder e de decisão midiática, política e
acadêmica (emissoras de TV, câmara dos deputados, senado federal, ministérios, Supremo
Tribunal Federal, Ministério Público, reitorias, conselhos universitários, entre outros) pode
contribuir para que, nos momentos de embate e de decisão sobre as políticas com recorte
étnico-racial, e em especial em relação às Ações Afirmativas, a interpretação e as posturas
contrárias e, por vezes, distorcidas sobre tais políticas prevaleçam e tenham hegemonia. Não
se pode dizer, portanto, que haja uma representação democrática da diversidade étnico-racial
brasileira nos espaços de poder e tampouco que haja um debate igualitário de diferentes
posições e interpretações sobre o tema. A unilateralidade da discussão nos espaços decisórios
é ainda uma predominância na tão decantada democracia brasileira. Por outro lado, os negros
e aliados da luta antirracista encontram nos movimentos sociais, nas Ongs e, mais
recentemente, nas redes sociais o espaço para discussão, reivindicação e circulação das suas
idéias 55.
Dentre as ações de resistência e oposição às políticas de Ações Afirmativas e de cotas,
o manifesto “Todos têm direitos iguais na República democrática”, escrito em 2006, se
destaca. Assinado por um grupo superior a uma centena de intelectuais contrários ao Estatuto
da Igualdade Racial e as cotas raciais, além de artistas e ativistas do movimento negro56, o
manifesto entregue aos presidentes do Senado e da Câmara Federal provocou importantes
impactos políticos. Esse primeiro manifesto foi confrontado, cinco dias depois, com o
documento intitulado “Manifesto em favor da lei de cotas e do Estatuto da Igualdade
Igualdade transformou em lei algumas reivindicações originais do movimento negro, mas deixou de fora outras
reivindicações importantes.
55
Um dos blogs sobre Ações Afirmativas mais ativos até o ano de 2010 era o
http://emdefesadasacoesafirmativas.blogspot.com/
56
Dos 113 (cento e treze) signatários do Manifesto, 3 (três) se declararam ativistas de algum movimento negro:
Almir da Silva Lima - Jornalista, MOMACUNE (Movimento Macaense Culturas Negras, Macaé-RJ; José Carlos
Miranda - Diretório Estadual do PT SP, Coordenação do Comitê por um Movimento Negro Socialista (MNS);
José Roberto Ferreira Militão - Advogado, AFROSOL-LUX - Promotora de Soluções em Economia Solidária.
111
Racial57”, favorável às cotas raciais e ao Estatuto da Igualdade Racial e entregue, também, no
Senado e na Câmara Federal. No ano de 2008, o Estatuto da Igualdade Racial, bem como
todas as suas proposições, voltou a ser objeto de controvérsia. Na ocasião, mais dois
Manifestos foram elaborados e entregues ao Supremo Tribunal Federal e ao Senado
Brasileiro: o primeiro intitulado “113 cidadãos antirracistas contra as leis raciais” e contrário
às cotas e ao Estatuto da Igualdade Racial, e o segundo intitulado "Manifesto em Defesa da
Justiça e Constitucionalidade das Cotas", favorável às cotas e ao Estatuto.
Tanto em 2006 quanto em 2008, os manifestos em defesa do Estatuto e das Políticas
de Cotas foram elaborados em resposta aos manifestos contrários. Apesar da importância que
as reservas de vagas para estudantes negros no ensino superior brasileiro tinham para o
movimento negro e para os outros atores envolvidos com a luta antirracista no Brasil, outras
demandas contidas na proposta original do Estatuto da Igualdade Racial, como a
implementação efetiva da lei 10639/03 na educação básica, o combate à discriminação e às
desigualdades raciais e a defesa do acesso a terra para remanescentes quilombolas, tinham
importância igual ou maior que as próprias cotas. Entretanto, nos debates que se seguiram a
partir da proposição do Estatuto, estes outros pontos não geraram tamanho desacordo quanto
às políticas aplicadas ao Ensino Superior.
Nesse sentido, identificar os principais argumentos utilizados nos manifestos,
contrários e favoráveis, pode nos auxiliar na compreensão dos motivos pelos quais as
propostas de reservas de vagas para estudantes negros em instituições públicas de ensino
superior geraram, e continuam gerando, tamanha polêmica e oposição. No primeiro Manifesto
contrário às cotas e ao Estatuto da Igualdade Racial, por exemplo, sem desconsiderar todo o
conjunto de argumentos complementares, podemos identificar a premissa de inexistência de
distinções raciais no Brasil como o ponto central da argumentação.
57
O Estatuto da Igualdade Racial, projeto de lei 3198/00, foi apresentado no dia 07 de Junho de 2000 à Câmara
dos Deputados pelo então Deputado Federal Paulo Paim, do partido dos trabalhadores (PT) do Rio Grande do
Sul. De acordo com a emenda original, o Projeto de Lei visava “instituir o Estatuto da Igualdade Racial, em
defesa dos que sofrem preconceito ou discriminação em função de sua etnia, raça e/ou cor, e dá outras
providências”. O projeto de lei visava estabelecer, legalmente, os direitos das populações negras no acesso à
Saúde, Educação, Cultura, esporte e lazer, além de ratificar o direito de culto e de consciência religiosa, bem
como os direitos ao acesso a terra e a moradia adequada. O Estatuto ratifica ainda, a obrigatoriedade do ensino
de história da África e da Cultura afro-brasileira nas escolas públicas e privadas, temática já abordada pela lei
10.639 do ano de 2003, que alterou a Lei 9394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação. A subseção I do
Estatuto, referente ao sistema de cotas nas Universidades Federais Brasileiras, reafirmava o compromisso
estabelecido pelo poder público em assegurar vagas à população negra nos diferentes cursos oferecidos pelas
Instituições Federais de Ensino.
112
O princípio da igualdade política e jurídica dos cidadãos é um fundamento essencial
da República e um dos alicerces sobre o qual repousa a Constituição brasileira. Este
princípio encontra-se ameaçado de extinção por diversos dispositivos dos projetos
de lei de Cotas (PL 73/1999) e do Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000) que
logo serão submetidos a uma decisão final no Congresso Nacional. O PL de Cotas
torna compulsória a reserva de vagas para negros e indígenas nas instituições
federais de ensino superior. O chamado Estatuto da Igualdade Racial implanta uma
classificação racial oficial dos cidadãos brasileiros, estabelece cotas raciais no
serviço público e cria privilégios nas relações comerciais com o poder público para
empresas privadas que utilizem cotas raciais na contratação de funcionários. Se
forem aprovados, a nação brasileira passará a definir os direitos das pessoas com
base na tonalidade da sua pele, pela "raça". A história já condenou dolorosamente
estas tentativas (MANIFESTO TODOS TÊM DIREITOS IGUAIS NA
REPÚBLICA DEMOCRÁTICA, 2006)58.
58
Disponível no site: http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u18773.shtml. Acessado no dia 15 de
Novembro de 2009.
113
A desigualdade racial vigente hoje no Brasil tem fortes raízes históricas e esta
realidade não será alterada significativamente sem a aplicação de políticas públicas
dirigidas a este objetivo. A Constituição de 1891 facilitou a reprodução do racismo
ao decretar uma igualdade puramente formal entre todos os cidadãos. A população
negra acabava de ser colocada em uma situação de completa exclusão em termos de
acesso à terra, à renda, ao conjunto de direitos sociais definidos como “direitos de
todos”, e à instrução para competir com os brancos diante de uma nova realidade de
mercado de trabalho que se instalava no país. Enquanto se dizia que todos eram
iguais na letra da lei, várias políticas de incentivo e apoio diferenciado, que hoje
podem ser lidas como ações afirmativas, foram aplicadas para estimular a imigração
de europeus para o Brasil. Esse mesmo racismo estatal foi reproduzido e
intensificado na sociedade brasileira ao longo de todo o século vinte. Uma série de
dados oficiais sistematizados pelo IPEA no ano 2001 resume o padrão brasileiro de
desigualdade racial: por quatro gerações ininterruptas, pretos e pardos têm contado
com menos escolaridade, menos salário, menos acesso à saúde, menor índice de
emprego, piores condições de moradia, quando contrastados com os brancos e
asiáticos. (MANIFESTO EM FAVOR DA LEI DE COTAS E DO ESTATUTO DA
IGUALDADE RACIAL, 2006)59.
59
Disponível no do site: http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u18773.shtml. Acessado no dia 15
de Novembro de 2009.
114
primeiro manifesto pró-cotas explicitou a existência de divergentes projetos de nação que
disputavam legitimidade.
No ano de 2007, outro livro crítico às políticas de cotas e ao Estatuto Racial foi
lançado, e também recebeu ampla divulgação nos principais veículos jornalísticos do país.
Organizado por um conjunto de intelectuais vinculados à Antropologia, à Sociologia e à
Psicologia (Peter Fry, Yvonne Maggie, Marcos Chor Maio, Simone Monteiro e Ricardo
Ventura Santos), o livro “Divisões Perigosas” se tornou um dos grandes marcos na cruzada
60
Durante o período de elaboração, publicação e divulgação do livro “Não somos racistas”, Ali Kamel exerceu o
cargo de diretor da Central Globo de jornalismo; cargo em que permanece até o presente momento.
115
61
“contra a racialização do Brasil” . O livro, que reúne diversos artigos escritos entre 2002 e
2006, apresenta, segundo seus organizadores, uma vigorosa contestação à lei que estabelece
as cotas raciais nas instituições federais de ensino superior e ao chamado Estatuto da
Igualdade Racial. De acordo com os organizadores do livro-coletânea:
61
No Blog Contra a racialização do Brasil (http://noracebr.blogspot.com/ ) o livro “Divisões Perigosas” é citado
como o primeiro entre os 10 livros como referência para a leitura.
62
Para acompanhar algumas das divergências em torno desta temática, ver: MANIFESTO “Todos têm direitos
iguais na República Democrática”. Brasília,29/06/2006(a); MANIFESTO “Em favor da Lei de Cotas e do
Estatuto da Igualdade Racial”.Brasília, 04/07/2006(b); MANIFESTO “Centro e treze cidadãos anti-raciais contra
as leis raciais”. Brasília, 30/04/2008(a); MANIFESTO “120 anos de luta pela igualdade racial no Brasil:
Manifesto em defesa da justiça e da constitucionalidade das cotas”. Brasília, 13/05/2008(b); NASCIMENTO,
Alexandre do. Os novos Manifestos sobre as cotas. Revista Lugar Comum: Estudos de Mídia, Cultura e
Democracia, n. 25/26, Rio de Janeiro, 2008.
63
Cabe destacar aqui que o fato de os oposicionistas às políticas de ações afirmativas terem se antecipado e
apresentado um Manifesto contra as Cotas, exerceu grande influência na antítese apresentada pelos defensores
das Cotas, que ficaram preocupados em contestar os argumentos mobilizados pelos primeiros. Isto não significa,
em absoluto, que os contrários às cotas foram os primeiros a pautarem a temática de Ações Afirmativas na
sociedade brasileira. Pelo contrário, só o fizeram como resposta as demandas apresentadas pelo movimento
negro, fora e dentro das instituições superiores de ensino.
116
1) Abordagem Culturalista (que tem abordado a existência ou a inexistência de raças), 2)
Abordagem Classista (que tem abordado o caráter das desigualdades sociais no Brasil; se de
classe, se raciais ou se articulam classe e raça) e a 3) Abordagem Liberal (que trata de temas
como a igualdade formal, nos termos do texto constitucional e o debate sobre o princípio do
mérito). Apesar da separação operacional entre as três abordagens, nos posicionamentos
acerca das Ações Afirmativas, argumentos vinculados às três abordagens, por vezes, foram
utilizados de forma articulada, unificando Direita e Esquerda no que Paixão (2008) chamou
de “Santa Aliança”. Tais abordagens, originalmente produzidas em contextos intelectuais e
políticos distintos, têm sido articulados e rearticulados com o objetivo (nem sempre explícito)
de sustentar posicionamentos teóricos e demarcar lugares políticos. Os três sub-tópicos
subsequentes tem como objetivo apresentar os principais argumentos mobilizados em cada
uma das abordagens.
64
De acordo com Consorte (1997), o culturalismo é a vertente do pensamento antropológico que confere à
cultura o primado da explicação ou da responsabilidade pela diversidade humana, recusando todo e qualquer tipo
de explicação evolucionista. Criado pelo antropólogo Franz Boas, o culturalismo foi responsável por duas
rupturas fundamentais: uma com o determinismo geográfico e outra com o determinismo biológico.
65
Das dez obras sugeridas pelo Blog Contra a racialização do Brasil (Norace) a seus leitores, oito tem como
argumento principal a inexistência de raças do ponto de vista biológico.
117
palavras, toda a discussão racial gravita em torno de 0,0005% do genoma humano!
(PENA; BORTOLINI, 2004, p. 46).
Alan e Alex são gêmeos univitelinos, ou seja, foram gerados no mesmo óvulo e,
fisicamente, são idênticos. Eles se inscreveram no sistema de cotas por acreditar que
se enquadram nas regras, já que seu pai é NEGRO e a mãe, BRANCA. Seria de
esperar que ambos recebessem igual tratamento (ZAKABI; CAMARGO, 2007)
(Grifos do autor).
Mesmo não tendo o conceito de raças pertinência biológica alguma, ele continua a ser
utilizado, qua construção social e cultural, como um instrumento de exclusão e
opressão. Independente dos clamores da genética moderna de que a cor do indivíduo é
estabelecida por apenas um punhado de genes totalmente desprovidos de influência
sobre a inteligência, talento artístico ou habilidades sociais, a pigmentação da pele
ainda parece ser um elemento predominante da avaliação social de um indivíduo e
talvez a principal fonte de preconceito. (PENA; BORTOLINI, 2004, p. 46).
Uma radical mudança na maneira dos brasileiros se verem dá-se com a publicação
de Casa grande e senzala de Gilberto Freyre, em 1933, que logo se transformaria em
clássico maior da nossa literatura social. A Freyre deve-se a substituição do conceito
de “raça” pelo de “cultura”, na imagem que os brasileiros fazem de si mesmos. A
linha mestra do pensamento social brasileiro até então, a da especificidade de uma
nova civilização tropical, não só é mantida como enfatizada. Com o abandono de
“raça”, fica muito mais fácil “construir a nação dos mestiços”. (ZARUR, 2003, p.
30).
66
Entre os antropólogos envolvidos no debate sobre Ações Afirmativas, destacam-se Peter Fry, Yvonne Maggie,
Eunice Durham, George de Cerqueira Zarur, Lilia Schwartz, Mariza Peirano, Miriam Goldenberg, etc.
67
No Brasil, o herdeiro intelectual de Boas e da perspectiva culturalista foi o antropólogo pernambucano
Gilberto Freire que, não por acaso, se tornou o autor mais citado pelos estudiosos das relações étnico-raciais,
tanto entre aqueles que, politicamente, defendem as políticas de ações afirmativas e de cotas quanto e, sobretudo,
entre aqueles que se opõe a elas.
120
Ao prometerem fidelidade à tradição fundante da Antropologia Cultural, alguns
antropólogos, tais como Peter Fry, Yvonne Maggie e George Zarur, incorrem, a meu ver, em
um duplo equívoco: a) desconsiderarem o papel que a crença na existência de raças
(independente de sua existência biológica) desempenha na estruturação da cultura nacional
contemporânea; e b) negarem a existência de raças, e, ao mesmo tempo, defenderem a
existência da miscigenação.
Ora, a própria idéia de miscigenação - como produto do intercurso sexual entre
indivíduos de grupos distintos - já sinaliza o vigor da “raça social”, tanto no imaginário
quanto nas práticas sociais dos brasileiros. Afinal, como seria possível miscigenar, se somos
todos iguais? Observa-se que a idéia de miscigenação já carrega em si mesma o pressuposto
da diferenciação, que por vezes não se resume apenas ao campo cultural, abarcando também
diferenças racializadas.
Ao realizarem a crítica enfática à idéia de raça, mobilizando argumentos genéticos
para sustentar seus posicionamentos científicos, os antropólogos supracitados, transferem para
a genética a capacidade de fazer prescrições sociais e de definir o mundo cultural. Dito de
outro modo, a perspectiva culturalista defendida por estes autores, de modo implícito, acaba
por reforçar uma postura eminentemente positivista, onde só o que existe enquanto realidade
empiricamente observável é o que existe cientificamente.
Sob uma perspectiva política, ao basearem seus principais argumentos na inexistência
de raças e, em consequência, na inexistência de desigualdades raciais, os signatários do
Manifesto contrário às cotas, as autoras da reportagem anteriormente apresentada e os autores
dos livros já citados, acabam por influenciar profundamente a antítese de seus opositores.
Diante da negação da existência da raça, os defensores das políticas com recorte racial se
vêem obrigados a apresentar argumentos que comprovem a existência de diferenciações
raciais e que, como consequência, permitam conceber a implementação de políticas com tal
recorte.
De modo consciente ou inconsciente, aqueles que se opõem às políticas com recorte
racial acabam por obrigar seus oponentes a defenderem suas singularidades e, em última
análise, a própria existência. Paradoxalmente, no caso da população negra brasileira, o
exercício de afirmação de suas singularidades precisa passar, necessariamente, pela
ressignificação positiva das marcas que, historicamente, têm sido utilizadas para negar a
humanidade daqueles supostamente identificados como pertencentes a uma raça inferior.
121
Nesse sentido, a afirmação da especificidade de ser negro no Brasil passa, geralmente, ainda
que não de modo obrigatório, pela experiência sensitiva (subjetiva) de vivenciar a
discriminação racial. Não é coincidência, portanto, que, tanto no primeiro quanto no segundo
manifesto em defesa das cotas e do Estatuto da Igualdade Racial, a apresentação de dados
estatísticos sobre o tema no Brasil tenha sido acompanhada de denúncias sobre a persistência
do racismo e da discriminação racial no país.
Todavia, entre os adeptos de uma “imaginária” neutralidade científica, tanto a crença
em raças, quanto os comportamentos racistas derivados desta crença, e, ainda, quanto à
sensação de ter sido discriminado não passam de fenômenos subjetivos, que só podem ser
identificadas em indivíduos isolados e, portanto, não se configuram como realidades
empiricamente verificáveis. Nesse sentido, raça e racismo não seriam considerados como
elementos estruturantes das relações sociais brasileiras, pois seriam apenas manifestações
subjetivas, reflexos da ignorância de determinados indivíduos.
No entanto, apesar do imaginário e das ações racistas se expressarem por meio de
indivíduos, e não da sociedade brasileira (lógica que reificaria a sociedade); seria inadequado
afirmar que é o indivíduo X ou Y que cria e mantêm as práticas e pensamentos racistas. Ao
surgir como expressão de um ponto de vista de determinado grupo, o racismo pode ser
expresso por indivíduos, mas é o compartilhamento e a reprodução de significados sociais, de
práticas e pensamentos racistas que cria e recria o racismo, transformando-o no que Bourdieu
(1999) chamou de Estruturas Estruturadas Estruturantes, ou seja, representações
compartilhadas coletivamente, criadas socialmente e que possibilitam a reprodução destas
representações.
Por fim, afirmar que o racismo no Brasil se expressa por meio de um racismo
institucional, não significa dizer que o processo discriminatório tenha sido adotado de forma
legal ou oficial pelo Estado Brasileiro, como nos Estados Unidos na era do Sistema Jim
Crow68 ou na África do Sul na era do Aphartheid69. Afirmar que existe racismo institucional
68
Jim Crow faz referência ao sistema de segregação racial que prevaleceu no sul dos Estados Unidos entre 1876
e 1965. A origem da expressão "Jim Crow" tem sido atribuída ao termo "Jump Jim Crow", umacanção e dança
caricatural de afro-americanos realizada pelo ator branco Thomas D. Rice (1808-1960) usando o rosto pintado de
preto (blackface) que surgiu pela primeira vez em 1832 e era usada para satirizar as políticas populistas do
presidente Andrew Jackson (1767-1845). Como resultado da fama de Rice, "Jim Crow" se tornou uma expressão
pejorativa que designava um africano americano por volta de 1838. Posteriormente, as leis de segregação racial,
que estabeleciam separação entre negros e brancos, ficariam conhecidas como leis Jim Crow. Disponível em
http://newyorkibe.blogspot.com/2011/03/o-novo-jim-crow-controle-e-morte-social.html Acessado em 11 de
Outubro de 2011.
69
O termo apartheid se refere a uma política racial implantada na África do Sul. De acordo com esse regime, a
minoria branca, os únicos com direito a voto, detinha todo poder político e econômico no país, enquanto à
122
no Brasil, significa dizer que as práticas de hierarquização a partir da crença na existência de
raças superiores e inferiores (intelectual, cultural e socialmente), foram instituídas enquanto
prática social, e são cotidianamente (re)instituídas enquanto instituição social, tendo plena
efetividade em nossas representações e práticas sociais.
Por que o governo não propõe um plano para equiparar a qualidade de todas as
escolas públicas de ensino médio e fundamental às escolas privadas? Por que não
elaborar um projeto para tornar obrigatório o ensino médio, como foi feito com o
ensino fundamental. Por que não federalizar as universidades privadas, que só
sobrevivem por meio do recebimento de verbas públicas, ampliando radicalmente as
vagas no ensino público? São medidas que vão no sentido de mais igualdade, de
ampliação dos serviços públicos de qualidade para todos (MIRANDA, 2007 apud
FRY; MAGGIE, 2007, p. 322).
124
mobilidade descendente de membros de outros setores. Em suma, as elites apostariam na
possibilidade de melhoria para os pobres, sem custos diretos para os não-pobres.
Reis, E. (idem) chama a atenção, ainda, para o consenso entre as elites acerca da
inconveniência de políticas de discriminação positiva em favor de determinadas minorias.
Assim, apesar de reconhecerem a existência de preconceito racial no Brasil, expressam uma
rejeição, quase unânime, às políticas diferencialistas. “No discurso aberto das elites, a
preferência por iniciativas universalistas se soma à condenação explícita de medidas de ação
afirmativa” (REIS, J, 2000, p. 147).
Apesar da convergência de opiniões, de “gregos e troianos”, acerca das políticas de
ações afirmativas, o posicionamento assumido por militantes e intelectuais vinculados a um
pensamento de direita (ou centro) no que tange a esta matéria, explicita bem as diferenças no
que se refere às representações sobre as origens da desigualdade, e sobre as formas mais
adequadas de combatê-las. De acordo com Bobbio (2001), a direita é inigualitária não devido
às más intenções intrínsecas, mas por acreditar que as desigualdades são, não apenas
inelimináveis, mas também úteis, na medida em que promovem a incessante luta pelo
melhoramento da sociedade.
Os argumentos utilizados por Kamel (2006), para definir os principais males que
afetariam a sociedade brasileira, revelam-se uma síntese dos argumentos anteriormente
referidos. De acordo com o autor, ao contrário do racismo propagandeado por todos aqueles
que têm a intenção de transformar o país numa “nação bicolor”, o que prevaleceria no Brasil
seria o “classismo: preconceito contra os pobres”.
70
A seguir apresento algumas das principais obras produzidas por Karl Marx, algumas em parceria com
Friedirich Engels: MARX, K. & ENGELS, F. A Ideologia Alemã. Trad. Castro e Costa, L. C. São Paulo:
125
parecem se constituir como as principais referências teóricas. Por meio de uma (re)leitura
teórica da perspectiva materialista, com especial destaque para as obras de Karl Marx e de
Florestan Fernandes no Brasil, o contexto de desigualdades sociais é visto como reflexo direto
da contradição capital x trabalho, que produz e reproduz opressores e oprimidos. Sob este
ponto de vista, todas as situações de desigualdades que marcam as condições de vida de
negros, mulheres, imigrantes, etc., podem ser compreendidas como reflexos – diretos e
indiretos - da contradição basilar produzida pelo sistema capitalista. Nesse sentido, as
mobilizações coletivas vinculadas às lutas antisexistas, antirracistas e anti-homofóbicas, seria
apenas uma estratégia ideológica das forças conservadoras (leia-se capitalistas) para
enfraquecer as lutas proletárias 71.
Aplicado aos debates acerca das Ações afirmativas no Brasil, um alinhamento
ortodoxo à perspectiva marxista, poderia significar a recusa intransigente de qualquer forma
de medida corretiva, que não significasse a universalização do acesso de “todos” ao ensino
superior, através da supressão do sistema capitalista e de sua desigualdade característica.
Significaria, portanto, a crítica intransigente a qualquer modelo de exame de seleção, bem
como aos argumentos centrados no mérito; em uma defesa coerente da universalidade de
direitos. Todavia, o posicionamento adotado no “Manifesto Todos têm direito igual na
República Democrática”, assinado por um pequeno grupo de ativistas de esquerda e um
grande número de intelectuais e militantes não-proletários, é o de que:
Martins Fontes, 2002; MARX, K. Manuscritos Económico-Filosóficos. Trad. Campos, J. Cidade do México:
Fondo de Cultura Económica, 1962; MARX, K. Contribuição para uma Crítica da Economia Política. Trad.
Malagodi, E. São Paulo: Abril Cultural, 1982; MARX, K. O Capital – Livro I. Trad. Barbosa, R. e Kothe, F. São
Paulo: Abril Cultural, 1983.
71
Esta aliás, tem sido uma das principais críticas apresentadas em relação a atuação de agências internacionais
ocupadas em incentivar e fortalecer o campo de estudo das relações raciais no Brasil. Um dos alvos preferências
dos críticos é a Ford Fundations, que tem atuado no Brasil na distribuição de bolsas de pesquisa de pós-
graduação e no fomento à atividades de pesquisa. (Magnoli, 2009; Bourdieu, Wacquant, 1998).
126
importação e atualização, a igualdade formal, enquanto valor, amalgamou-se ao pensamento
social e às estruturas políticas brasileiras a partir da última década do século XIX. Entretanto,
a defesa do princípio de igualdade formal, que no período das Revoluções Burguesas operou,
juntamente com os princípios de liberdade e fraternidade, como ideais revolucionários contra
os privilégios nobiliárquicos, acabou se tornando no Brasil, um eficiente meio de conservação
da ordem e do status quo. Aqui, o conceito liberal de igualdade, assentado na igual
capacidade dos indivíduos de tornarem-se diferenciados por meio do mérito individual,
convive, de modo paradoxal, com evidências empíricas que mostram as desiguais
oportunidades que diferenciam homens e mulheres, trabalhadores urbanos e trabalhadores
rurais, negros e brancos, etc. Voltaremos a este ponto na próxima seção, quando discutiremos,
de forma mais aprofundada, as implicações de uma abordagem liberal no debate sobre ações
afirmativas e cotas.
Se até meados da década de 2000, as respostas apresentadas às demandas por Ações
Afirmativas eram, geralmente, reduzidas a demandas por cotas raciais e, consideradas
irrelevantes ou inadequadas, a progressiva adoção de políticas de Ações Afirmativas, nas suas
diferentes modalidades, por instituições superiores de ensino de todo o Brasil, acabaram por
influenciar uma virada no debate acadêmico e político. A oposição intransigente às políticas
de cotas raciais, e a defesa também intransigente da universalização do direito à educação, a
ser alcançado pela melhoria da qualidade da educação fundamental brasileira, passou a
conviver com uma defesa intransigente de políticas de cotas, exclusivamente, para estudantes
oriundos de escolas públicas.
Interessante observar que, a incorporação ao debate do segundo tipo de argumento,
não implicou na substituição de um argumento pelo outro. Assim, o reconhecimento da
existência de um viés de seletividade nos processos seletivos para o ensino superior, que
poderia representar um golpe definitivo na crença na igualdade formal e nas oportunidades
abertas a todos (meritocracia), foi absorvido como prova cabal de que a desigualdade
educacional no Brasil atingiria “democraticamente” todos aqueles estudantes pobres; fossem
eles negros, brancos, indígenas, orientais, etc.
De acordo com alguns representantes de instituições de ensino superior brasileiro, a
opção pelas cotas sociais em instituições superiores de ensino surgiu como uma forma
alternativa de superar as desigualdades educacionais sem, no entanto, enfrentar o incômodo
debate racial. O acréscimo de pontos nas notas obtidas pelos candidatos nos exames
vestibulares, que passaria a ser conhecido como Políticas de Bônus e pontuação adicional
despontou, a partir de então, como uma alternativa estratégica de ampliação do acesso ao
127
ensino superior. Ao se referir a política de bônus implementada na UFMG no ano de 2008,
inspirada no sistema de pontuação adicional adotado pela UNICAMP, o então Reitor Ronaldo
Tadeu Pena afirmou:
O bônus segue linha diferente da política de cotas, porque não se baseia em simples
reserva de vagas. Ele depende diretamente do aproveitamento do aluno, o que
valoriza o mérito do estudante que teve mais dificuldades para estudar e, ainda
assim, se aproxima da aprovação (BOLETIM UFMG, 2008, p. 4)72.
A inflexão pela qual passou o debate a partir da segunda metade da década de 2000,
além de possibilitar a emergência de novas propostas de democratização do ensino superior,
também favoreceu algumas alterações nas proposições iniciais de reserva de vagas para
estudantes negros. Ao articular o critério socioeconômico com o critério racial, passando a
contemplar, tanto estudantes negros oriundos de escolas públicas, quanto estudantes oriundos
de escolas públicas (independentemente de sua auto-classificação racial), os novos modelos
de “inclusão” acabaram por contradizer um dos mais recorrentes argumentos utilizados por
aqueles que se opunham às cotas raciais.
De modo não intencional, o desenrolar do debate em torno das chamadas “cotas
raciais”, parece ter favorecido a emergência do debate em torno das chamadas “cotas sociais”,
que não estavam colocadas na agenda pública sobre o ensino superior antes das reivindicações
apresentadas por militantes e entidades negras. Desse modo, as demandas por ações
afirmativas para a população negra no ensino superior, acusadas de “favorecer a classe média
dos negros, que não seria a mais necessitada dos beneficiários” (KAUFFMAN, 2007),
acabaram por favorecer, de modo indireto, o ingresso de muitos estudantes brancos pobres em
Instituições de Ensino Superior por todo o Brasil.
73
O inciso constitucional que se refere ao papel do Estado na garantia do acesso ao ensino superior é, no
mínimo, ambíguo. Ao definir que o acesso “aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação
artística, (se dará) segundo a capacidade de cada um”; o inciso V do artigo 208 evidencia sua inspiração liberal,
mas deixa em aberto o significado da expressão “capacidade de cada um”.
132
e estudantes de instituições privadas de ensino superior versus estudantes de escolas privadas
de ensino fundamental e médio e estudantes de instituições públicas de ensino superior.
Cerca de dez anos após a implementação das primeiras políticas de reservas de vagas
para estudantes negros em instituições superiores de ensino (UERJ e UENF no Rio de
Janeiro), boa parte dos debates atuais ainda tratam o assunto no nível especulativo,
desconsiderando as dezenas de experiências acumuladas ao longo da década. A grande
maioria dos argumentos mobilizados no debate público, sobretudo os contrários às ações
afirmativas e as políticas de cotas, se assentavam, e continuam a se assentar, em projeções
acerca do futuro das relações raciais no Brasil, da qualidade da educação superior e da
unidade nacional; todos estes vistos por uma perspectiva enfaticamente pessimista. A
implementação de políticas com recorte racial, a um só tempo, teria o poder de causar o
surgimento de conflitos raciais (desconhecidos pela história brasileira), o fracasso
generalizado da qualidade e do mérito acadêmico no ensino superior e, ainda, a emergência de
cisões raciais; além do surgimento de particularismos separatistas.
Um dos impactos significativos deste “relativo consenso pessimista” foi a formação de
uma parcela da opinião pública fortemente indisposta a tais políticas, ainda que, boa parte,
desconhecedora destas mesmas políticas. Em trabalho anterior (JESUS, 2009), procurei
mostrar como, nos recentes debates sobre tais políticas, o senso científico se articula e/ou se
apropria de argumentos compartilhados pelo senso comum. Referindo-me a um artigo escrito
por Fry e Maggie (2004), no qual os autores justificam sua oposição às ações afirmativas e às
cotas a partir dos argumentos apresentados por seus leitores do Jornal O Globo, “que na
tradição antropológica seriam as vozes “dos ‘nativos’, e por isso deveriam ser levados a
sério”, concluo que:
133
ao mesmo tempo em que alguns argumentos expressos pelo senso comum
reproduzem os argumentos científicos, notamos que o discurso cientifico por vezes
se baseia em representações compartilhadas com o senso comum, mas que ao
transmutarem-se em discursos científicos acabam por adquirir status de verdade
(JESUS, 2009, p. 107).
74
O programa de cotas da UFBA foi implementado no ano de 2005. Portanto, nos anos de 2003 e 2004 o
programa ainda não estava em funcionamento.
134
Além de darem destaque para o aumento gradativo da participação de pretos e pardos
entre os estudantes aprovados nos vestibulares da UFBA, sobretudo após a implementação do
sistema de cotas no ano de 2005, os autores chamam a atenção para o aumento, também
progressivo, das notas de corte dos exames vestibulares nos três anos; o que, de certo modo,
contrariou as perspectivas catastróficas sobre a queda na qualidade do estudante ingressante.
De acordo com Santos e Queiroz (2007), as notas de corte na primeira fase do vestibular
variaram entre 5.018,7 no ano de 2003, 5.099,8 em 2004 e 5.117,4 no ano de 2005. Já as notas
referentes à segunda fase, variaram entre 5.009,3 no ano de 2003, 5.056,4 em 2004 e 5.089,5
no ano de 2005.
Em estudo publicado no ano de 2007, refletindo sobre o desempenho acadêmico de
estudantes cotistas e não-cotistas da UFBA após a criação do sistema de reserva de vagas no
ano de 2005, Santos e Queiroz afirmaram que dos 57 cursos de graduação da universidade,
em 32 os estudantes cotistas obtiveram notas iguais ou superiores aos estudantes não-cotistas.
Dos 18 cursos mais concorridos da universidade, em 11 os estudantes cotistas obtiveram notas
iguais ou superiores às notas obtidas pelos estudantes não-cotistas. Adicionalmente, afirmam
que, mesmo em cursos de acentuada concorrência e alto prestígio social, como Engenharia
Civil, Química, Geofísica, Ciências da Computação e Arquitetura, o percentual de estudantes
cotistas com coeficiente de rendimento na faixa de 7,6 a 10,00 pontos mostrou-se igual ou
superior ao coeficiente de rendimento obtido pelos não-cotistas. Por fim, concluiram:
75
A coleção “Educação para Todos”, organizada pelo Ministério da Educação (MEC) e pela UNESCO -
Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura, reuniu, a partir do ano de 2009, um
conjunto significativo de estudos sobre a história da educação dos negros no Brasil, sobre a lei 10.639/03 e a
educação antirracista, sobre as Ações afirmativas e o combate ao racismo nas Américas, sobre o acesso e
permanência da população negra no ensino superior brasileiro.
136
revela alguns dos variados significados construídos e reconstruídos sobre o desempenho
acadêmico.
137
CAPÍTULO 4
138
76
estereotipadas (sobre a população negra no Brasil e a democracia racial ) presentes nos
artigos, comentários e reflexões em torno das políticas de cotas raciais.
Considerando que boa parte das proposições apresentadas historicamente pelas
entidades negras brasileiras (incluindo as políticas de ações afirmativas) tem sido convertida
em políticas de cotas, o campo de debate sobre relações raciais tem se tornado um espaço
privilegiado para reforçar as representações e ações negativas (estereotipadas, depreciativas,
essencializadas, etc.) que giram em torno da população negra brasileira.
77
De acordo com Edna Roland , desde que o governo tornou público o relatório da
Conferência de Durban, no ano de 2001, tudo o que se pautava na mídia sobre a temática
étnico-racial estava correlacionado às cotas para negros nas universidades:
E aí, antes de ir para Durban (...) o pessoal da imprensa vinha falar comigo e só
queria falar sobre cotas. Aí eu falei: ‘Nós somos 45% da população brasileira;
enquanto não formos 45% de todos os espaços que tem nessa sociedade, estão nos
devendo’ (ALBERTI; PEREIRA, 2007, p.391).
Após o Relatório e o Plano de Ação de Durban, o debate que se seguiu, por vezes,
tendia a reduzir todas as demandas apresentadas pelo movimento negro às políticas de cotas;
chegando a desconsiderar o caráter histórico das demandas por educação apresentadas pelos
grupos e entidades negras antes da emergência do Movimento Negro Unificado nos anos
finais da década de 1970. É preciso considerar que tal reducionismo tem causado ampla
frustração em muitos militantes que esperavam uma postura mais enfática, tanto dos governos
quanto das universidades. Segundo Medeiros (2007), a redução do debate é um sintoma da
influência da direita norte-americana que, aos poucos, tem sido incorporada pelos setores
nacionais.
76
Dentre os vários exemplos disponíveis na internet e nas redes sociais, selecionamos o link a seguir:
<http://www.orkut.com/CommMsgs?start=1&tid=5622271598815600789&cmm=883420&hl=pt-BR> Acessado
em 20 de Outubro de 2011.
77
Ver depoimento em Alberti; Pereira (2007).
139
Como estratégia política, reduzir as ações afirmativas às demandas por reparação ou
redistribuição de vagas em instituições de ensino superior ou no mercado de trabalho,
descaracteriza as bandeiras históricas do Movimento Negro. Conforme discutido no segundo
capítulo deste trabalho, desde o inicio do século XX, as demandas apresentadas pelas
organizações e entidades negras (em prol da igualdade de participação nos espaços sociais no
ensino superior, no mercado de trabalho, na mídia, etc.) sempre dialogaram com propostas de
combate à discriminação racial e o pleno reconhecimento humanitário desta parcela da
população que, outrora, foi brutalmente negado pelo sistema escravista e pelas políticas
republicanas se lançando em um terrível “processo coisificante”. Com isso, buscava-se a
confrontação direta do imaginário que vinculava tal população aos micróbios, como discutido
no capítulo anterior 78. Neste sentido, as atuais propostas de políticas de ações afirmativas e,
sobretudo, as políticas educacionais com recorte racial, não se justificariam apenas como
modo de redistribuição financeira na sociedade brasileira, mas, se orientariam,
fundamentalmente, pelo combate a depreciação da condição humana de indivíduos vinculados
a um determinado grupo racial ou vistos como pertencentes a uma determinada raça.
Neste capítulo discutiremos, portanto, alguns dos principais desdobramentos da
“revolução dos micróbios” no campo das políticas educacionais e no campo científico, que
recolocam na agenda de discussões (acadêmicas e políticas) o tema das relações raciais no
Brasil, contribuindo, assim, para atender as emergências do assunto correlacionando-as aos
questionamentos sobre a hegemonia e a exclusividade das políticas universais, bem como a
vitalidade hegemônica do principio de neutralidade axiológica; agonizante há décadas, mas
ainda ativo.
78
De acordo com o Dicionário Caldas Aulete (2007), micróbio SM. Biol. é qualquer organismo unicelular
minúsculo ou um organismo minúsculo causador de doença infecciosa.
140
de constatação e conhecimento, basicamente. Aí quando surgiu o
MNU, quando li a carta de princípios do MNU, eu disse: “Mas é isso
que tem que ser feito no Brasil!”
Helena Machado. Depoimento Histórias do Movimento Negro no
Brasil: Depoimento ao CPDOC, 2007, p. 166-167.
Entre as estratégias de luta, propunha-se uma mudança radical nos currículos, visando
à eliminação de preconceitos e estereótipos em relação aos negros e à cultura afro-
brasileira na formação de professores com o intuito de comprometê-los no combate ao
racismo na sala de aula. Enfatiza-se a necessidade de aumentar o acesso dos negros
em todos os níveis educacionais e de criar, sob a forma de bolsas, condições de
permanência das crianças e dos jovens negros no sistema de ensino (GONÇALVES;
SILVA, 2000, p.151).
79
Luiz Silva, mais conhecido como Cuti, nasceu na cidade de Ourinhos em São Paulo no ano de 1951. Formado
em letras, português-francês, é poeta, ensaísta e escritor. Participou da Jornegro, publicado a partir de 1978,
além de ter contribuído para a fundação dos Cadernos Negros, publicação de contos e poesias, em 1978 e do
Quilombhoje, grupo paulistano de escritores, na década de 1980.
141
escola vai deixando de ser vista como uma dádiva da política clientelística e sendo exigida
como um direito” (Arroyo, 2003).
Nesta perspectiva, a expansão da escola de educação básica, que se observou neste
período e que mereceu um capítulo importante na nova Constituição nacional, não pode ser
compreendida como mero reflexo da exigência do mercado por qualificação, ou como
resultado das preocupações humanitárias das elites nacionais; mas como resultado, mesmo
que indireto, da intensificação das pressões populares e, sobretudo, das pressões dos
movimentos sociais organizados. Deste modo, as décadas de 1980 e 1990 se destacaram como
momento da guinada educacional no país, possibilitando a alteração das representações
hegemônicas acerca do acesso à escolarização formal, rompendo com um imaginário que
concebia a educação como privilégio de poucos, rumo a uma compreensão da educação como
um direito individual e coletivo.
Refletindo sobre as novas proposições apresentadas pelo movimento negro ao governo
brasileiro, no campo educacional e no trato das questões étnico-raciais, a partir da década de
1970, Consentino (2005) afirma que...
QUADRO 1
Proposta inicial de inserção na Constituição da
“História das Populações Negras do Brasil” e alterações subseqüentes
Anteprojeto da Subcomissão dos negros, populações indígenas, pessoas deficientes e minorias.
Art. 4º A educação dará ênfase à igualdade dos sexos, à luta contra o racismo e todas as formas de
discriminação, afirmando as características multiculturais e pluriétnicas do povo brasileiro.
Art. 5º O ensino de “História das Populações Negras do Brasil” será obrigatório em todos os níveis da
educação brasileira, na forma que a lei dispuser.
Anteprojeto da Comissão Temática da Ordem Social
Art. 85 º O poder público reformulará, em todos os níveis, o ensino de história do Brasil, com o objetivo de
contemplar com igualdade a contribuição das diferentes etnias para a formação multicultural e pluriétnica do
povo brasileiro.
Comissão de Sistematização – Constituição Federal de 1988
Art. 242 º O ensino de história do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e étnicas
para a formação do povo brasileiro.
QUADRO 2
Artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação brasileira de 1996
Art. 26º. Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum, a ser
complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida
pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela.
§ 1º. Os currículos a que se refere o caput devem abranger, obrigatoriamente, o estudo da língua
portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e
política, especialmente do Brasil.
§ 2º. O ensino da arte constituirá componente curricular obrigatório, nos diversos níveis da educação
básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos.
§ 3º. A educação física, integrada à proposta pedagógica da escola, é componente curricular da
Educação Básica, ajustando-se às faixas etárias e às condições da população escolar, sendo
facultativa nos cursos noturnos.
§ 4º. O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias
para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e européia.
§ 5º. Na parte diversificada do currículo será incluído, obrigatoriamente, a partir da quinta série, o
ensino de pelo menos uma língua estrangeira moderna, cuja escolha ficará a cargo da comunidade
escolar, dentro das possibilidades da instituição.
Fonte: Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, 1996.
144
Ao manter, praticamente, a mesma redação do inciso 1º do art. 242 da Constituição
Federal, o inciso 4º do artigo 26 da LDB expressou a vitalidade das representações sociais em
torno do Mito Fundacional da Nação, baseado no “equilíbrio de antagonismos” das diferentes
culturas e etnias que formaram o povo brasileiro. Nem mesmo a pequena modificação que a
LDB apresentou em relação à redação presente no artigo 242 da Constituição, enfatizando as
contribuições das matrizes indígena, africana e européia, fez-na destoar da concepção
hegemônica sobre as relações raciais no Brasil. Ainda assim, Consentino (2006) considera
que a pequena alteração na redação do artigo 26 da LDB, fruto das pressões do movimento
social negro, deve ser vista como uma conquista (ainda que tímida) do movimento negro, na
medida em que representou o reconhecimento da contribuição da matriz africana para a
formação do povo brasileiro.
Como procurei mostrar nos capítulos anteriores, as preocupações com o
reconhecimento das contribuições da população negra para a formação do povo e do Estado
brasileiro não são recentes, sendo possível identificá-las entre as reivindicações da Frente
Negra Brasileira e de vários representantes negros no legislativo brasileiro, tais como:
Joaquim Beato, Abdias do Nascimento, Paulo Paim, Benedita da Silva e Ben-Hur Ferreira.
Entretanto, seria preciso aguardar o dia 9 de Janeiro do ano de 2003, quando o recém
empossado Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva, sancionaria a Lei 10.639, que
alteraria a LDB-9.394/03 determinando a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura
africana e afro-brasileira para que a ação civilizacional que o continente africano, e seus
descendentes na diáspora, exerceram sobre o Brasil passasse a ser reconhecida pelo Estado
brasileiro.
O depoimento concedido por Edison Cardoso no livro Histórias do Movimento Negro
no Brasil: depoimentos ao CPDOC é bastante esclarecedor sobre os bastidores da elaboração
e propositura do projeto que se transformaria na lei 10.639/03. Segundo o depoente, apesar de
ter ficado conhecido como propositura da deputada Esther Grossi, filiada ao PT/RS, e do
deputado Ben-Hur Ferreira, filiado ao PT/MT, o projeto teria sido entregue pelo Movimento
Negro de Pernambuco ao então deputado federal Humberto Sérgio Costa Lima, durante seu
mandato entre os anos de 1995 a 1999. Como o deputado Humberto Costa não se reelegeu, o
projeto foi arquivado. Atuando como chefe de gabinete do deputado federal Ben-Hur Ferreira,
Edison Cardoso teria aconselhado o político a retomar o referido projeto e reapresentá-lo a
Câmara. Após deliberarem sobre o assunto, Édison Cardoso teria procurado a deputada Esther
Grossi que havia apresentado uma emenda ao projeto na Comissão de Educação.
145
A emenda era o seguinte: o projeto chegou originalmente como “disciplina”, só que,
com a Lei de Diretrizes e Bases, a LDB, o Congresso não pode mais aprovar
disciplinas para introduzir currículos, aprovam-se “conteúdos”. Ela fez, então, a
modificação para “conteúdos”. (...) Então fui procurá-la – isso é trabalho do chefe do
gabinete. Ela estava andando e continuou andando. Eu falando para ela que íamos
apresentar o projeto e, como ela tinha apresentado a emenda, a gente ia apresentar
junto, Ben-Hur e Esther Grossi. Ela disse: “Tudo bem”. Foi andando e não deu a
mínima para o assunto. Assim fizemos: reapresentamos o projeto e é esse projeto, com
assinaturas, que vai tramitar e que vai virar a Lei 10.639, em 2003, que acabou vindo
como um projeto de lei dos deputados Esther Grossi e Ben-Hur Ferreira (CARDODO,
É. Apud ALBERTI; PEREIRA, 2007, p.431).
QUADRO 3
Artigos 26-A, 79-A e 79-B incluídos na LDB
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o
ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1° O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da
África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da
sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política
pertinentes à História do Brasil.
§ 2° Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo
o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.
§ 3° (VETADO)80
Art. 79-A. (VETADO)81
Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra.
Fonte: Lei de Diretrizes e Base da Educação (Brasil, 1996).
Apesar de seu caráter sucinto (com apenas três artigos), a Lei 10639/03 repercutiu de
modo significativo no campo das relações étnico-raciais no Brasil e, sobretudo, para o
contexto das práticas pedagógicas escolares. No entanto, aqui, importa não perder de vista o
fato de que, ao alterar a LDB, a lei 10639/03 passa a fazer parte das Diretrizes Brasileiras para
a educação fundamental, não se restringindo a uma lei específica como argumentavam os
80
A redação original que foi submetida a veto era “§ 3o As disciplinas "História do Brasil" e "Educação
Artística", no ensino médio, deverão dedicar, pelo menos, dez por cento de seu conteúdo programático anual ou
semestral à temática referida nesta Lei.”. Para ler a justificativa do veto, acessar:
http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/LEIS/Mensagem_Veto/2003/Mv07-03.htm
81
A redação original que foi submetida a veto era “Art. 79-A. Os cursos de capacitação para professores deverão
contar com a participação de entidades do movimento afro-brasileiro, das universidades e de outras instituições
de pesquisa pertinentes à matéria”. Para ler à justificativa do veto, acessar:
http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/LEIS/Mensagem_Veto/2003/Mv07-03.htm
146
legisladores no momento da Assembléia Constituinte de 1988 ou de preparação da LDB em
1996. De acordo com Hédio Silva, a inclusão da História da África nos currículos escolares
se conecta, enfim, a missão que a educação formal deveria perseguir.
Conforme salientou Gomes, N. (2010), por se tratar de uma política inscrita na LDB,
dirigida a todos os estudantes brasileiros, impactando diretamente em seus conhecimentos e
suas representações sociais sobre a África e sobre os afrodescendentes no Brasil, “a lei
10.639/03 deve ser compreendida como uma política universalista”. Entretanto, face ao seu
propósito pedagógico em afirmar positivamente uma determinada identidade coletiva
(historicamente depreciada), a lei pode ser compreendida como uma política afirmativa,
conforme se identifica no texto das Diretrizes: “pedagogias de combate ao racismo e a
discriminações elaboradas com o objetivo de educação das relações étnico/raciais positivas
têm como objetivo fortalecer entre os negros e despertar entre os brancos a consciência negra”
(Brasil, 2005, p. 16), ao oferecer para os estudantes negros, conhecimentos e segurança para
orgulharem-se da sua origem africana; e para os estudantes brancos, possibilidades de
identificar às influências, as contribuições, a participação e a importância da história e da
cultura dos negros no seu jeito de ser, viver, de se relacionar com as outras pessoas, sobretudo
as negras.
Trata-se, portanto, não de uma política dirigida exclusivamente à população
afrodescendente no Brasil; mas, de uma política que, reconhecendo as diferenças étnico-
culturais que constituem o povo e a nação brasileira, possibilite a superação do processo de
invisibilização destas diferenças, bem como do processo de reprodução das desigualdades
sociais e raciais entre os diferentes grupos étnico-raciais brasileiros. Em outras palavras, a
novidade política e epistemológica que a lei 10.639/03 e as políticas de reservas de vagas para
estudantes negros em instituições de ensino superior trazem para o debate e para a luta
política anti-racista no Brasil é, justamente, a articulação entre demandas por reparações,
reconhecimento e ações afirmativas em favor da população negra.
Como visto no primeiro capítulo deste trabalho, a guinada epistemológica
possibilitada por Gilberto Freyre, na década de 1930, impactou, visceralmente, as políticas
educacionais colocadas em prática, desde então. Naquela época, uma das características mais
marcantes das políticas educacionais (orientadas por uma preocupação comum de construir
e/ou fortalecer a unidade nacional) foi à negação da tradição intelectual e política precedente,
que utilizava o critério racial (de fundo biológico) como modo de explicar a sociedade
148
brasileira. Com a reorganização do movimento negro, no final da década de 1970, e a adoção
de um caráter mais propositivo no campo das políticas públicas, o discurso racial ressurge
confrontando-se com a resoluta negação do estatuto cientifico de raça.
82
Chamados de racialistas por aqueles que se intitulam antirracialistas , o movimento
negro, a partir de então, passou a demandar do Estado a implementação de políticas com
recorte racial, desestabilizando radicalmente os modos consagrados de pensar e construir,
tanto as políticas públicas quanto a própria nação. Com isso, a ampla rede de indivíduos e
entidades alinhadas a uma agenda antirracista, não reivindicam apenas justiça social, baseada
no principio de igualdade formal, mas incorporam em suas bandeiras de reivindicação
demandas por reparações, reconhecimento e ações afirmativas para a população negra.
Ao se opor visceralmente às demonstrações de racismo na sociedade brasileira e,
particularmente, nos sistemas educacionais, o movimento negro contemporâneo radicaliza sua
luta pelo reconhecimento da dignidade humana da população negra, que, de modo direto, se
vincula às lutas pelo reconhecimento da diversidade humana. Logo, reconhecer que a espécie
humana é diversa, não apenas em suas características fenotípicas, mas também nos modos
culturais, religiosos, econômicos, sexuais, etc. de ser e viver, implica em questionar o modelo
de humanidade universal que, estabelecido como a norma, designa – subrepticiamente – os
diversos como a-normais e/ou não-humanos.
Neste contexto, o progressivo estabelecimento de políticas com recorte racial em prol
da população negra (lei 10.639/03, políticas de reservas de vagas no ensino superior, políticas
de reservas de vagas nos veículos de comunicação, bolsas de estudos para candidatos a
carreira diplomática 83, etc.), tem radicalizado a noção liberal de justiça social, ao pressionar o
Estado brasileiro a reconhecer as características multi-étnicas e pluriculturais de seu povo.
82
O Blog Non-race é hoje o principal espaço aberto de discussões em torno não-racialização do Brasil. De
acordo com o moderador do Blog: “Este é um blog destinado à defesa de duas idéias inseparáveis”. A
primeira: o racismo é uma chaga intolerável, que diminui e desumaniza os seres humanos. A segunda: a doutrina
racialista, expressa no projeto de criação de leis raciais, degrada a democracia, oficializa o mito da raça e,
voluntariamente ou não, estimula o racismo. Nossas idéias estão expostas em dois documentos que inspiraram à
criação deste blog: a Carta Pública ao Congresso Nacional de 30 de maio de 2006 (veja aqui) e a carta ao STF
intitulada Cento e Treze Cidadãos Anti-racistas Contra as Leis Raciais, de 21 de abril de 2008(aqui). Esta carta
teve a adesão de mais de 4 mil pessoas, cuja lista nominal está disponível aqui.
83
Lançado em 2002, o Programa de Ação Afirmativa do Instituto Rio Branco – Bolsa Prêmio de Vocação para a
Diplomacia foi instituído com a finalidade de proporcionar maior igualdade de oportunidades de acesso à
carreira de diplomata e de acentuar a diversidade étnica nos quadros do Itamaraty. Trata-se de iniciativa pioneira
e original, que procura investir na capacitação de candidatos afro-descendentes à carreira de diplomata, por meio
de concessão de bolsas de estudos, com duração de dez meses, destinadas a custear cursos e aulas preparatórios
ao Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata, além da aquisição de livros e material didático. É
desenvolvido em parceria com o CNPq(Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e com
149
Neste sentido, as demandas contemporâneas apresentadas pelos movimentos sociais
por educação não podem ser reduzidas a demandas de acesso a uma escolarização
mercantilizada, tomada como investimento ou capital humano capaz de facilitar o ingresso ao
mercado de trabalho cada vez mais competitivo Arroyo (2003). Para ele, as demandas por
educação precisam ser vistas como reivindicações pelo acesso a uma pluralidade de direitos: a
saúde, a moradia, a terra, o teto, a segurança, a proteção da infância, a cidade. Creio que
devem ser vistas também como demandas por reconhecimento de sua existência e de sua
participação na história da humanidade. Não por acaso, o texto das Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana (2005), que orienta a regulamentação da alteração trazida
à Lei 9394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, pela Lei 10639/2003 que
estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana,
evidencia a importância e coloca as políticas de reparações (redistribuição socioeconômica) e
as políticas de reconhecimento no mesmo patamar de importância no propósito de alterar a
realidade das relações raciais no Brasil.
O parecer procura oferecer uma resposta, entre outras, na área da educação,
à demanda da população afrodescendente, no sentido de políticas de ações
afirmativas, isto é, de políticas de reparações, e de reconhecimento e
valorização de sua história, cultura, identidade. Trata, ele, de política
curricular, fundada em dimensões históricas, sociais, antropológicas
oriundas da realidade brasileira, e busca combater o racismo e as
discriminações que atingem particularmente os negros. Nesta perspectiva,
propõe à divulgação e produção de conhecimentos, a formação de atitudes,
posturas e valores que eduquem cidadãos orgulhosos de seu pertencimento
étnico-racial - descendentes de africanos, povos indígenas, descendentes de
europeus, de asiáticos – para interagirem na construção de uma nação
democrática, em que todos, igualmente, tenham seus direitos garantidos e
sua identidade valorizada (MEC, 2005, P. 10).
a participação da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial e da Fundação Cultural Palmares.
150
O pouco recurso que tem, nós trabalhamos para poder arrancar.
Nunca vi nenhum intelectual de esquerda, exceto Florestan
Fernandes, dizer: “Eu sou contra o racismo e minha vida vai ser
dedicada à luta contra o racismo”.
Lúcia Xavier. Depoimento Histórias do Movimento Negro no
Brasil: Depoimento ao CPDOC, 2007, p. 419.
152
produção da felicidade (ou do desenvolvimento das virtudes humanas) estaria na raiz das
84
crises enfrentadas pelas universidades, e em particular, da Crise de Legitimidade ; pois, ao
mesmo tempo em que observamos um notável avanço do conhecimento científico em várias
esferas da vida, também observamos uma notável concentração, tanto do conhecimento
quanto do usufruto destes conhecimentos nas mãos de poucos. Em função disso, cerca de
duzentos e cinqüenta anos depois de Jean Jacques Rosseau ter formulado questões essências
acerca das relações existentes entre ciência e felicidade, somos levados, pela pressão dos
fatos, a reatualizar suas idéias 85.
Para Santos (op. cit.), o paradigma dominante da ciência ocidental moderna tem se
constituído como um espaço privilegiado de desperdício de experiências de muitos sujeitos
sociais e, principalmente, dos grupos sociais aos quais eles se vinculam. Segundo ele, todas
aquelas experiências, vivenciadas por indivíduos e grupos sociais, que não podem ser, ou
simplesmente não são, expressas através de caracteres matemáticos, se tornam indignas de
subsidiar a produção de conhecimentos. Em contraposição, a capacidade de quantificar torna-
se uma exigência da produção do conhecimento de excelência, já que tal conhecimento
possibilitaria, não apenas a compreensão, mas também a dominação e a transformação do
84
Segundo Santos, apesar do impacto das três crises (de hegemonia, de legitimidade e institucional) na
configuração atual das instituições de ensino superior, será a Crise de Legitimidade que nos ajudará a
compreender um pouco melhor a emergência dos debates sobre democratização do ensino superior em vários
países do mundo e, em particular, os debates sobre Ações Afirmativas no Brasil. “A segunda crise (vivida pela
universidade) era a de Legitimidade provocada pelo fato da universidade ter deixado de ser uma instituição
consensual, em face da contradição entre a hierarquização dos saberes especializados através das restrições de
acesso e da credenciação das competências, por um lado, e as exigências sociais e políticas da democratização da
universidade e da reivindicação da igualdade de oportunidades para os filhos das classes populares, por outro”
(SANTOS, 2004, p.5-6).
85
Em seu Discurso sobre as Ciências e as Artes, escrito em 1749 e que conquistou em 1750 o prêmio da
Academia de Dijon, Jean Jacques Rosseau se pergunta se o progresso das ciências e das artes contribuirá para
purificar ou para corromper os nossos costumes? A grande questão colocada é: o homem, ao deixar seu estado de
natureza, com toda a sua probidade, honradez, força e energia para se dedicar às ciências e às artes não teria se
corrompido no que possuía de mai puro?
153
real. O estabelecimento da ordem (aplicada ao pensamento e as sociedades) torna-se, ao
mesmo tempo, um pré-requisito e uma conseqüência do desenvolvimento deste modelo
hegemônico de ciência moderna que, de modo obsessivo, busca o estabelecimento de leis
gerais de funcionamento do mundo natural e social.
De acordo com Santos (2007), o fortalecimento progressivo de outros modos de
explicar o mundo, que por muito tempo foram tratados como inexistentes, por aqueles
vinculados à perspectiva cientifica descrita anteriormente, teria favorecido a emergência de
questionamentos da hegemonia do conhecimento científico moderno, por parte daqueles que
(impregnados de um tipo de conhecimento gestado no interior de processos sociais
cotidianos) se inserem lentamente no campo científico e se apropriam de teorias e métodos
científicos hegemônicos, contra-hegemônicos e não-hegemônicos. Paradoxalmente, a inserção
progressiva destes sujeitos no campo científico tende a confrontá-los com uma aparente
contradição; pois ao mesmo tempo em que questionam e criticam os discursos científicos
“desperdiçadores de experiências sociais” - as “Monoculturas do Saber”, o fazem (ou se
propõem a fazer) a partir de teorias e métodos científicos. Todavia, ante a esta contradição, os
sujeitos oriundos dos diferentes movimentos sociais questionadores da proeminência do atual
modelo científico de compreender e organizar o mundo, ao invés de se resignarem, têm se
dedicado a pressionar as estruturas e os produtores do conhecimento científico a
reconhecerem a existência e a legitimidade de outros saberes sobre o mundo.
154
não-verbal e explicitados no decorrer das práticas de pesquisa pouco ortodoxas) têm sido
rotulados, de modo recorrente, como não-científicos (derivados de interesses políticos).
De acordo com Amilcar Baiardi (professor da Universidade Federal do Recôncavo
Baiano), Boaventura de Souza Santos seria um dos representantes do movimento que tem
acusado à Ciência e a Tecnologia de serem obscurantistas, intolerantes em termos religiosos e
políticos, e de não apresentar soluções para determinados problemas contemporâneos. Além
disto, Boaventura de Souza Santos, juntamente com outros intelectuais e membros de grupos
sociais, é acusado de utilizar a ciência como uma espécie de “bode expiatório” para “as crises
de fim e de início de século, potencializadas pela angústia e o sentimento de tédio nas
sociedades mais abastadas”.
De acordo com Blood (2009), uma das formas possíveis de fugir de armadilhas
maniqueístas, que tendem a opor conhecimentos verdadeiros (científicos) aos conhecimentos
falsos (senso-comum), como se depreende do argumento de Baiardi, “seria a dessacralização
da própria ciência, evidenciando seu caráter cultural, sujeito, portanto, a determinações sociais
de um determinado tempo histórico e de um determinado espaço geográfico”. Todavia, o
autor adverte que:
86
Baiardi, Amílcar. Crítica a Ecologia dos Saberes. Disponível em
<http://www.ufrb.edu.br/pdi/index2.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=37&Itemid=90> Acessado
em 10 de Agosto de 2011.
155
outras assertivas sobre o mundo em que vivemos, estão constantemente submetidas
ao julgamento de validade de seus pares. O fato de serem, constantemente,
submetidos às criticas de seus pares dá ao conhecimento cientifico uma
dinamicidade sui generis se comparado aos demais tipos de conhecimento. Apesar
de toda esta dinamicidade, podemos observar que historicamente os confrontos
travados em torno de concepções teóricas e metodológicas tem sido travados no
interior do cânone cientifico, e por meio de instrumentos teóricos legitimados pela
própria ciência (BLOOR, 2009, p. 57).
156
em torno do acesso ao ensino superior brasileiro, assim como a democratização desse acesso,
a permanência neste nível de ensino e o acesso desigual à informação e ao conhecimento no
Brasil, ao mesmo tempo em que gera demandas por compreensão, também gera demandas por
modificação ou perpetuação destas realidades.
Apesar de reconhecer os consideráveis impactos no interior das instituições
universitárias provocados pela ascensão gradual de intelectuais negros, a partir da década de
1980, Santos, S. (2007) destaca que tal crescimento ainda não foi capaz de superar as
múltiplas dificuldades e barreiras que “a visualização ou divulgação da produção do
conhecimento dos negros intelectuais sob o ponto de vista dos próprios negros ainda enfrenta
no meio acadêmico” (idem, p.233). Neste sentido, a fundação da Associação Brasileira de
Pesquisadores Negros (ABPN), no ano de 2002, foi uma das formas encontradas por este
grupo para enfrentar algumas destas dificuldades, sobretudo aquelas relacionadas à produção
e divulgação de conhecimentos. Por um lado, a ABPN pode ser compreendida como um
esforço de possibilitar a um número, cada vez maior, de pesquisadores, sobretudo os negros,
contatos aprofundados com temáticas relacionadas à população negra na África e na diáspora.
De outra parte, tem se constituído como um esforço de pressionar o campo acadêmico, em
especial os pesquisadores não-negros, a reelaborar o discurso científico produzido sobre os
costumes, os saberes, e outros aspectos culturais, econômicos e sociais relacionados à referida
população.
Constituída durante a realização do II Congresso Nacional de Pesquisadores Negros
(COPENE), ocorrido na cidade de São Carlos, entre os dias 25 e 29 de Agosto, a ABPN, ao
mesmo tempo em que ecoava reflexões e reivindicações dos militantes e intelectuais negros
que se destacaram na transição dos séculos XIX e XX, procurava evidenciar a força, a
vitalidade e a originalidade da produção acadêmica da nova geração de intelectuais negros. A
potencialidade desta nova leva de intelectuais militantes foi evidenciada quando da realização
do I Congresso Nacional de Pesquisadores Negros, ocorrido entre os dias 22 a 25 de
Novembro de 2000, na cidade de Recife. De acordo com o site da ABPN,
87
Disponível em: <www.abpn.org.br> . Acessado em 10 de agosto de 2011.
88
Ao reproduzir notícia sobre a transferência provisória da sede da ABPN para a Universidade de Brasília no
ano de 2010, o editor do blog Noracer – Contra a racialização do Brasil escreveu: “UNB: Universidade mais
racializada do Brasil. Caros: como se não bastasse a implementação de um Tribunal Racial no Campus da UnB,
agora teremos também de conviver, em pleno regime Republicano, com uma Universidade que segrega os
pesquisadores por conta da cor... É demais!” Os comentários à notícia também merecem destaque. Disponível
em <http://noracebr.blogspot.com/2010/02/unb-universidade-mais-racializada-do.html>. Acessado em 10 de
Outubro de 2011.
158
contraditórios interesses e concepções em jogo nos processos de construção das agendas
públicas.
À exemplo das discussões que marcaram as últimas décadas do século XIX, as
vésperas da Abolição da Escravatura e da Proclamação da República, e que passou em revista
a herança cultural, política, econômica e “genética” da população brasileira visando constituir
uma nova nação, os debates em torno das Ações Afirmativas têm pressionado a ciência, os
elaboradores e executores de políticas públicas, e os brasileiros de modo geral, a repensarem o
Brasil e as relações étnico-raciais “à brasileira”. Por outro lado, na medida em que as Ações
afirmativas se institucionalizam, elas provocam uma série de deslocamentos epistemológicos
e políticos que resultam no reaparecimento (com força inversamente proporcional) de
variadas reações, verbalizadas, em geral, por aqueles que se autointitulam “cidadãos
antirracistas”. As duas Ações de descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF’s)
impetradas no ano de 2009 junto ao Supremo Tribunal Federal contra as políticas de cotas na
Universidade Federal de Brasília e Universidade Federal do Rio Grande do Sul são exemplos
concretos das reações geradas.
No dia 10 de Fevereiro do ano de 2009, o estudante Giovane Pasqualito Fialho
interpôs um Recurso Extraordinário (597.285/RS) no STF contra acórdão que julgou
constitucional o sistema de reserva de vagas (Sistema de "Cotas") como meio de ingresso aos
cursos de ensino superior da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). No dia 20
de julho do ano de 2009, o partido Democratas (DEM) também ingressou, junto ao STF, com
uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental impugnando a constitucionalidade
de atos do Poder Público que resultaram na instituição de cotas raciais na Universidade de
Brasília (UnB), a partir do ano de 2003. A tese central de Inconstitucionalidade defendida
pelo Partido Democratas, e que apenas de maneira tangencial se observa na ação movida pelo
estudante Giovane Pasqualito contra o sistema implementado na UFRGS, está baseada na
interpretação de que as políticas de ações afirmativas implementadas na UnB, “produzidas por
um descabido mimetismo do modelo adotado nos Estados Unidos para enfrentamento da
injustiça racial”, feririam vários preceitos fundamentais da Constituição Brasileira. De acordo
com a vice-procuradora da República, Deborah Macedo Duprat de Brito Pereira, os artigos
citados na peça inicial apresentada pelo Partido Democratas foram os seguintes:
(i) art. 1º, caput (princípio republicano) e inciso III (dignidade da pessoa humana);
(ii) art. 3º, inciso IV (veda o preconceito de cor e a discriminação); (iii) art. 4º,
inciso III (repúdio ao racismo); (iv) art. 5º, incisos I (igualdade), II (legalidade),
XXXIII (direito à informação dos órgãos públicos), XLII (combate ao racismo) e
159
LIV (devido processo legal – princípio da proporcionalidade); (v) art. 37, caput
(princípios da legalidade, da impessoalidade, da razoabilidade, da publicidade e da
moralidade, corolários do princípio republicano); (vi) art. 205 (direito universal á
educação); (vii) art. 206, caput e inciso I (igualdade nas condições de acesso ao
ensino); (viii) art. 207, caput (autonomia universitária; e (ix) art. 208, inciso V
(princípio meritocrático – acesso ao ensino segundo a capacidade de cada um) 89.
89
Ministério Público Federal, Petição 93215/2009. Disponível em
http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobj
etoincidente=2691269 Acessado em 07 de Julho de 2011.
90
Supremo Tribunal Federal. Decisão 31/07/2009, liminar indeferida. Disponível em
http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobj
etoincidente=2691269 Acessado em 10 de Julho de 2011.
91
Supremo Tribunal Federal, Despacho 15/09/2009, convocação para Audiência Pública. Disponível em
http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobj
etoincidente=2691269 Acessado em 07 de Julho de 2011.
160
ou não, o uso de critérios raciais nos programas de admissão das universidades
brasileiras. Além disso, evidencia-se a repercussão social, porquanto a solução da
controvérsia em análise poderá ensejar relevante impacto sobre políticas públicas
que objetivam, por meio de ações afirmativas, a redução de desigualdades para o
acesso ao ensino superior. Ficam, assim, designados os dias de três a cinco de
março de 2010, das 9h às 12h, para a realização da audiência pública, nas
dependências do Supremo Tribunal Federal. (...) Os interessados deverão requerer
sua participação na audiência pública no período de 1º/10/2009 a 30/10/2009, pelo
endereço eletrônico [email protected]. Para tanto, deverão consignar os
pontos que pretendem defender e indicar o nome de seu representante 92.
92
Supremo Tribunal Federal, Edital - convocação para Audiência Pública. Disponível em
http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobj
etoincidente=2691269 Acessado em 07 de Julho de 2011.
93
Manifesto centro e treze cidadãos anti-racistas contra as Cotas Raciais. Brasília, 30 de Abril de 2008.
161
negros e brancos, nacionais e internacionais e que dar-se dentro do contexto de diferentes
concepções de ciência e de direito, bem como de quem é considerado legítimo ou não para
produzir conhecimento sobre o tema ou reivindicá-lo como direito ou não e a concretização
de uma sociedade igualitária e, ao mesmo tempo, diversa.
Assim, tomando a Audiência Pública como o nosso “campo de pesquisa”, os capítulos
5 e 6 desta teses se dedicarão à análise do assunto. Neste processo, através da análise do
evento, dialogaremos com as discussões e autores apresentados nos capítulos anteriores. Neste
sentido, o Quinto Capítulo visa contextualizar os leitores do clima da Audiência Pública e no
teor dos discursos proferidos pelos expositores habilitados e, deste modo, prepará-los para o
capítulo dedicado à análise dos discursos dos 16 expositores selecionados, apresentando um
panorama do clima anterior à realização da Audiência, além de um breve sumário, com os
argumentos mobilizados pelos expositores presentes na Audiência Pública. Nele, ainda, serão
apresentadas as escolhas metodológicas realizadas, para a compreensão da audiência como
campo de pesquisa e assim proceder à análise dos discursos.
As análises aprofundadas do conteúdo explicito e dos significados implícitos de alguns
discursos proferidos durante a Audiência Pública, que alternam e contrapõe visões sobre o
papel, não apenas das Ações Afirmativas e das políticas de cotas, como também das relações
raciais, das políticas públicas, da educação e da ciência em nossa sociedade será realizada
posteriormente, no Sexto Capítulo desta tese.
162
CAPÍTULO 5
O presente capítulo está dividido e organizado em duas partes, sendo que na primeira,
busco (de forma sucinta) apresentar o clima preparatório e os argumentos dos expositores
favoráveis e/ou contrários às Políticas Afirmativas e de cotas raciais, durante Audiência
Pública, bem como algumas considerações sobre o clima durante a realização da mesma, bem
como de algumas repercussões que geraram tais discursos. Na segunda parte, explanaremos
sobre as escolhas metodológicas feitas neste trabalho e que servirão como orientação para a
análise os discursos no Sexto Capítulo.
Desse modo, na próxima seção deste Quinto Capítulo, além da descrição da
Audiência Pública, serão apresentados de forma sintética os principais pontos citados pelos
expositores que tiveram voz dada durante o evento. Notadamente, 16 expositores, que
participaram da referida audiência, terão seus discursos analisados, de forma mais detalhada,
no Capítulo 6 e, por isso, seus nomes encontram-se grifados, em negrito.
94
Oriundo do direito norte-americano, o "Amicus Curiae" (amigo da corte) identifica terceiros que solicitam a
entrada em um processo do qual não é parte, mas cujo resultado pode influir em sua vida ou nos rumos da
sociedade em geral. Nos julgamentos de grande repercussão no Supremo Tribunal Federal, é cada dia mais
comum a permissão do uso desse instrumento como forma de dar voz à sociedade nas decisões do mais alto
tribunal do país.
95
Disponível em http://www.portaldaigualdade.gov.br/noticias/ultimas_noticias/2010/02/
videoconferencia_cotasnaUnBstf/?searchterm=audiência pública cotas Acessado em 18 de Agosto de 2011.
164
Pela realização deste evento preparatório, e pela convocação da população para a
defesa das políticas de cotas na Audiência Públicas, o então Ministro da Secretaria Especial
de Políticas de Promoção da Igualdade Racial foi duramente criticado. De acordo com os
críticos, o ministro estaria utilizando recursos públicos para convocar pessoas e entidades
favoráveis às políticas de cotas.
A conduta do Ministro Ricardo Lewandowiski, relator da ADPF no STF, também foi
colocada em suspeita nas semanas que antecederam a audiência pública. Por meio de uma
contestação formal apresentada pelo Partido Democratas ao STF, a isonomia do conjunto de
expositores habilitados para se pronunciarem durante a Audiência Pública foi contestada, já
que, segundo os críticos, do conjunto de 40 expositores habilitados para a Audiência Pública,
28 eram favoráveis às políticas de ações afirmativas. A acusação de parcialidade na
convocação dos expositores para a Audiência foi tema, nas semanas que sucederam a entrega
do documento do Partido Democratas ao STF, de diversas matérias jornalísticas, na mídia
96
impressa e televisiva . Em resposta às acusações de ameaça à isonomia, o Ministro
Lewandowski emitiu, no dia 02 de Março de 2010, um despacho respondendo as acusações.
96
http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/o-debate-nas-cotas-do-supremo-e-a-estranha-matematica/,
97
Supremo Tribunal Federal. Despacho 02/03/2010. Disponível em
http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobj
etoincidente=2691269 Acessado em 20 de Junho de 2011.
165
população negra na audiência era notável. Devido ao grande número de presentes, o que
extrapolou a capacidade do auditório principal do STF, um segundo auditório foi
disponibilizado para a participação popular, de onde as exposições puderam ser
acompanhadas por meio de um telão 98.
Os pronunciamentos foram divididos em três dias, conforme apresentados a seguir. Na
manhã do primeiro dia, representantes de instituições brasileiras, governamentais e não-
governamentais, além dos arguentes da ADPF 186 e do Recurso Extraordinário 597.285, bem
como os respectivos argüidos, se pronunciaram. Ainda na manhã de quarta-feira, o presidente
da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal, senador Demóstenes Torres,
pronunciou-se. A manhã do segundo dia teve início com o pronunciamento do senador Paulo
Paim, autor do estatuto da Igualdade Racial, que apesar de não ter seu nome previamente
habilitado, foi autorizado a fazer uso da palavra. Ainda durante a manhã do segundo dia,
diferentes intelectuais, membros de diferentes instituições de ensino superior no Brasil, se
pronunciaram em defesa ou contrariamente às políticas de Ações Afirmativas. O terceiro e
último dia de Audiências foi iniciado com a exposição dos representantes de diversas
organizações não-governamentais. O período da tarde do terceiro dia foi reservado aos
reitores e pró - reitores de Instituições de Ensino Superior no Brasil, e aos relatos de
experiências de aplicação das políticas de Ações Afirmativas. Ao final da tarde do terceiro
dia, alguns estudantes que vivenciaram as políticas de cotas, em diferentes universidades,
foram convidados a se pronunciar.
1º DIA DA AUDIÊNCIA
Às oito horas e trinta e quatro minutos do dia três de Março de 2010, o Ministro do
STF, Ricardo Lewandowski deu início aos trabalhos na Audiência Pública referente às
Políticas de Ações Afirmativas e de cotas raciais, compondo a mesa de abertura juntamente
98
Apesar do protocolo oficial do STF não permitir manifestações dos presentes, expressas por palmas, gritos ou
similares; a participação da platéia na segunda plenária não sofreu este tipo de constrangimento. Neste sentido,
minha presença enquanto expectador no segundo auditório possibilitou-me, não só acompanhar os discursos dos
expositores, mas acompanhar também os efeitos e reações que as exposições provocavam na platéia, composta,
majoritariamente, por ativistas de movimentos sociais, professores universitários, estudantes e correspondentes
de jornais e revistas. Além de gravar em áudio todos os pronunciamentos, ao longo dos três dias, tive a
oportunidade de registrar em meu caderno de campo alguns das considerações e análises feitas pelos
participantes do segundo plenário durante as exposições.
166
como os ministros Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa Gomes e a Vice-procuradora da
República Deborah Duprat, fazendo breves considerações sobre a importância das Audiências
Públicas no contexto democrático. Segundo o ministro Lewandowiski, a Constituição de
1988, ao criar instrumentos para efetivar a democracia participativa, superou a noção de
democracia representativa vigente até então. Neste contexto, a convocação das audiências
públicas, entendidas como meios de exercício da democracia participativa se justificariam no
caso de questões que mobilizam a sociedade e requerem a participação da mesma para
auxiliar nas decisões do STF.
Após as considerações iniciais do ministro Ricardo Lewandowski, o ministro Gilmar
Mendes fez uso da palavra e ressaltou a importância e excepcionalidade das Audiências
Públicas para a efetivação da participação plural dos diversos setores da sociedade civil.
A exposição do Ministro Joaquim Barbosa Gomes também foi breve e limitou-se á
ressaltar a importância da realização da audiência e da oportunidade que a sociedade brasileira
teria de discutir “sobre um tema sobre o qual ela nem sempre quis discutir com a devida
abertura”.
Após desfazer a mesa de abertura, a vice-procuradora da República, Deborah Duprat
tomou a palavra, afirmando, inicialmente, que sua manifestação naquele momento deveria ser
tomada como uma abordagem complementar ao posicionamento já expresso pelo Ministério
Público em decisão expressa em Abril de 2009. 99 Segundo a vice- procuradora, o objetivo de
sua fala era inserir as “cotas” dentro da constituição, e salientar que toda constituição
representa uma ruptura com uma ordem pré-estabelecida, além da estruturação de um plano
futuro. A ruptura que a Constituição brasileira de 1988 havia estabelecido, segundo ela, foi
com o sujeito kantiano, desprovido de características identitárias, baseado na revolução
francesa e fundador da idéia de nação. O fato de que, a partir da década de 1970, os
movimentos sociais começaram a denunciar a farsa da igualdade formal, afirmando que o
campo do direito nunca ficou alheio as diferenças, pressionaram a Assembléia Constituinte
pré - 1998 a reconhecer uma sociedade diferente em vários de seus artigos, explicitando o fato
de que o sujeito de direitos deve ser reconhecido como possuidor de idade, sexo, cor,
condição financeira. Nesse sentido, as políticas de cotas citadas no texto constitucional, como
no caso de reservas de vagas para mulheres no parlamento, não contrariam o princípio da
igualdade, mas contribuem para a realização do ideal de igualdade material, além de ser um
99
Ministério Público Federal, Petição 93215/2009. Disponível em
http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobj
etoincidente=2691269 Acessado em 07 de Julho de 2011.
167
princípio pluralizador das instituições que a adotam. Para a vice-procuradora, a grande
questão que estas políticas inauguram e exigem respostas teóricas e concretas é: como passar
de uma sociedade hegemônica para uma sociedade plural?
O Presidente Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Ophir Cavalcante, ao fazer
uso da palavra, enalteceu a realização de Audiências Públicas como meio de viabilizar a
participação popular na definição dos rumos do país. Segundo ele, o Conselho Federal da
OAB-Brasil ainda não havia se posicionado em relação ao mérito da ADPF impetrada no
Supremo Tribunal Federal, no entanto, não questionava a importância histórica das Ações
Afirmativas em curso no Brasil desde o ano de 2002. No intuito de exemplificar o
posicionamento da Ordem dos Advogados em relação à matéria em debate, Cavalcante citou a
criação do curso de direito para moradores de assentamentos rurais na Universidade Federal
de Goiás. Além de ter julgado importante e relevante, afirmou, ainda, que a Seccional da
OAB em Goiás também julgou constitucional a criação daquele curso. Para finalizar, o
presidente da OAB afirmou que para realizar um julgamento adequado da presente matéria
seria preciso abolir a lógica maniqueísta que dicotomizaria “os do lado do bem e os do lado
do mal”. Sem posicionar-se sobre a constitucionalidade das políticas de cotas em questão,
Ophir Cavalcante encerrou seu pronunciamento reiterando a confiança na decisão do STF
sobre a matéria.
O advogado Geral da União, Luís Inácio Lucena Adams, iniciou seu pronunciamento
ressaltando que a discussão sobre Ações Afirmativas se constitui como um dos mais delicados
temas públicos brasileiros. Para Luís Adams, a constituição de 1988 teria definido a igualdade
formal, a fraternidade, o pluralismo e a justiça como princípios fundamentais, além de
evidenciar a indignação com o contexto social de extrema desigualdade social que marcava o
período anterior. Ainda segundo Adams, para lograr a realização do propósito que se
imaginava no contexto da constituinte - a igualdade material - não bastava a adoção de
políticas repressivas, mas seria necessária também a aplicação de políticas afirmativas. Neste
sentido, a adoção de políticas de cotas pelas universidades brasileiras estaria em sintonia com
a vocação crítica e de autonomia política expressa na Constituinte e como à discriminação
racial no Brasil opera por vias diretas e indiretas, as políticas governamentais precisam ser
construídas com o intuito de combater, exatamente, a discriminação indireta. Encerrou seu
pronunciamento afirmando que, ao invés de se proporem a ratificar a existência de raças, as
políticas de Ações Afirmativas foram concebidas com o intuito de contribuir para a
erradicação das discriminações raciais.
168
O Ministro Edson Santos de Souza, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção
de Igualdade Racial (SEPPIR), se pronunciou em seguida, ressaltando a importância de
discutir uma temática central para, pelo menos, (50%) cinquenta por cento da população
brasileira que se autodeclara negra. Segundo o ministro, o debate sobre Ações Afirmativas no
Brasil recupera o momento do debate abolicionista, colocando agora a educação como
centralidade, ao passo que naquele momento a grande questão era a terra. A divulgação de
dados educacionais que explicitam as desigualdades entre negros e brancos no Brasil, só
reforçaria a necessidade de tratar de maneira desigual os desiguais, e de forma igual os iguais.
Entretanto, a despeito dos vários tratados de combate às desigualdades em que o Brasil é
signatário, a situação (de desigualdade) que aflige a população negra no Brasil ainda é
gritante. Por fim, o ministro afirmou que a breve história, de uma década, das políticas de
cotas na UnB e na UERJ não tem nos mostrado nenhum tipo de conflitos raciais e, portanto,
as Ciências Sociais devem estar apoiadas em fatos e não em previsões catastróficas para
analisar a realidade brasileira.
Em seguida, o representante da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Erasto
Fortes de Mendonça, se dirigiu à tribuna para iniciar seu pronunciamento. Primeiramente,
referiu-se aos valores de igualdade, fraternidade e liberdade, derivados da declaração
universal dos direitos humanos, e também fez referência à filósofa Hannah Arendt, para a
qual os homens não nascem iguais, mas conquistam a igualdade. Para Arendt, ao considerar a
igualdade como uma característica inata, caberia ao direito apenas declarar a igualdade, e ao
Estado caberia apenas zelar por tal igualdade. Para o referido representante, foi justamente o
reconhecimento de que a declaração de igualdade formal, inserida na Constituição de 1988,
não tem sido suficiente para erradicar as desigualdades entre os diferentes grupos étnico-
raciais brasileiros o que influenciou o posicionamento público do Estado Brasileiro durante a
Conferência em Durban, tornando-se signatário dos acordos para implementar políticas de
Ações Afirmativas. Ao inserir a população negra nas universidades, estas Ações Afirmativas
contribuiriam, não só para diversificar o sistema universitário, mas também para melhorar a
qualidade acadêmica.
O pronunciamento da Secretária Adjunta de Ensino Superior do Ministério da
Educação, Maria Paula Dallari Bucci, se iniciou com referências à histórica perpetuação das
distâncias entre negros e brancos no que se refere à escolaridade, que se mantêm apesar das
recentes melhorias na oferta de educação nos seus variados níveis. Segundo ela, os
indicadores educacionais de jovens negros e brancos com idade entre 15 e 17 anos, bem como
aqueles que fazem referência ao acesso e a permanência no ensino superior de jovens negros e
169
brancos com idade entre 18 e 24 anos, evidenciam a perpetuação da gritante desigualdade
racial existente no Brasil. Ao afirmar que a simples passagem do tempo, não foi suficiente
para erradicar as desigualdades entre negros e brancos, a secretária defendeu a urgência em
olhar para o futuro e não mais para o passado. Antes de finalizar, Bucci discutiu os resultados
de uma recente pesquisa sobre o desempenho de estudantes universitários ingressantes por
meio de Ações Afirmativas. De acordo com o resultado da pesquisa, no primeiro ano do
curso, o desempenho acadêmico dos estudantes foi menor entre os cotistas, mas após o
primeiro ano de curso, o desempenho destes estudantes superou o dos não-cotistas.
Notadamente, em oito dos dez cursos pesquisados, as oportunidades de entrada permitiram
aos estudantes superarem as deficiências iniciais e mudarem o desempenho final.
O representante da Fundação Nacional do Índio, Carlos Frederico de Souza Mares, se
pronunciou em seguida, reafirmando que a igualdade não é um dado da natureza, pois, sem a
existência das leis seria impossível existir igualdade. Para que haja igualdade é preciso que
haja leis que permitam aos desiguais serem vistos como iguais. No caso dos povos indígenas,
o ingresso em algumas universidades tem se dado através de cursos específicos permitidos
pela constituição nacional. De acordo com o representante da FUNAI, a especificidade dos
povos indígenas, além das possibilidades abertas pela própria constituição, abre uma
facilidade relativa para o ingresso diferenciado; o que não ocorre com a população negra, que
necessitaria, portanto, de políticas de cotas para o ingresso igualitário no ensino superior.
Mário Lisboa Theodoro, Diretor de Cooperação e Desenvolvimento do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada, iniciou sua exposição lamentando a escassez de dados
estatísticos sobre a questão racial no Brasil, mesmo sendo este um tema tão importante à
formação nacional. Destacou, ainda, que apesar da pluralidade teórica entre os mais de 300
pesquisadores do IPEA (Instituo de Pesquisas e Estatísticas), há um relativo consenso interno
em torno da questão racial e, sobretudo, em relação à pujança estatística das técnicas de
consulta e de resposta relativas à classificação racial. Theodoro ainda destacou a persistência
da discriminação racial no interior das escolas e das salas de aula. Destacaram também a
sobre-representação da mortalidade infantil de crianças negras e as altas taxas de mortalidade
da juventude negra. Na sua avaliação, a única forma de mudar a situação de desigualdade
racial, e de naturalização destas desigualdades, seria a utilização de políticas complementares
às políticas universais. Uma das mais importantes contribuições das políticas
complementares, portanto -que não excluiriam as políticas universais- seria a de romper o
marcante traço de naturalização das desigualdades brasileiras.
170
Em seguida, Roberta Fragoso Menezes Kaufman100; advogada do Partido
Democratas, arguente na ADPF 186, fez seu pronunciamento. Começou afirmando que a ação
impetrada pelo Partido Democratas não pretendia discutir as cotas para índios nas
universidades, e nem as políticas para mulheres, deficientes e outras minorias. Não se discutia
também, naquela ação, a existência de racismo na sociedade brasileira, fato amplamente
reconhecido pelo Partido. De acordo com Kaufman, o ponto central de discussão da ADPF
impetrada pelo Partido Democratas se relacionava ao fato de que o Estado não deveria impor
regras de identificação racial ou de definição de direitos com base na cor da pele. Concluiu
afirmando que, caso o Brasil importasse as políticas de segregação que foram colocadas em
prática nos EUA, desconsiderando todas as diferenças existentes entre os dois países,
cometeria o mesmo erro cometido pelos norte-americanos, ao criar indivíduos iguais, embora
separados.
O professor José Jorge de Carvalho, representante da Universidade de Brasília,
argüida na Ação de Descumprimento de Preceito Constitucional 186, expôs em seguida.
Relatou aos presentes que havia sido um incidente de reprovação de um estudante negro no
Programa de Pós-graduação na UnB que revelou o fato de que, durante todos os anos de
existência do programa aquele era o primeiro estudante negro matriculado. A partir desta
constatação, os professores organizaram uma pesquisa de perfil entre o corpo docente da
UNB, que verificou que entre 1500 professores da universidade, haviam apenas 15
professores negros. Ter encontrado pouquíssimos estudantes negros na moradia estudantil da
UnB também motivou a implementação de cotas. Hoje, depois das cotas, a UnB conta com
12% de estudantes negros e já diplomou 480 estudantes cotistas negros. Afirmou ainda que a
média de rendimentos negros cotistas é praticamente idêntica, e a tragédia acadêmica
inicialmente projetada não se cumpriu. Antes de concluir, Carvalho fez uma referência a
própria Audiência e ao fato de que das 43 pessoas convidadas a falar, 30 são professores e
apenas 2 deles negros. Essa desproporção chama a atenção para a urgência em implementar
Ações Afirmativas nas universidades, e em compreender as razões pelas quais as cotas,
numericamente restritas, causam tanta polêmica no espaço público brasileiro. Arriscando uma
conclusão, afirmou que apesar das cotas incidirem em apenas 3,5% dos ingressantes no ensino
superior, elas incidem diretamente nas estruturas hierárquicas de poder. Por isso despertam
tantas críticas.
100
Como já foi dito, os expositores grifados em negrito nesta seção terão seus discursos analisados no capítulo 6.
No total serão 16 expositores.
171
O advogado Caetano Curvo Lo Pumo, representante do estudante Giovane Pasqualito
Fialho, autor do Recurso Extraordinário 597.285/RS, também se pronunciou por quinze
minutos. Começou, afirmando que as políticas de cotas implementadas nas universidades
brasileiras e, sobretudo, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul não foi precedida por
debates públicos, o que explicaria alguns dos problemas do sistema. Afirmou, em seguida,
que considerava fundamental programar as políticas de Ações Afirmativas em um Estado de
Direito, mas naquele momento o que estava sendo discutido era o modelo de políticas de
cotas raciais adotado na UFRGS. Discutia, primordialmente, o critério de hipossuficiência
adotado pela universidade e baseado na presunção, pois, ao definir que os beneficiários
deveriam ser estudantes de escolas públicas, o sistema presume que todos estes estudantes
seriam pobres; o que não é fato. O sistema de cotas da UFRGS ao incluir estudantes do
Colégio Militar de Porto Alegre, um colégio de elite, mostra que é cego e equivocado:
“Sessenta e um alunos, que receberam o melhor ensino do Estado do Rio Grande do Sul de
forma gratuita; ingressaram, não obstante tenham sido mais mal classificados pelo critério de
mérito.”.
A Professora Denise Fagundes Jardim, representante da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS), recorrida no Recurso Extraordinário 597.285/RS, se pronunciou em
seguida e em resposta ao advogado Caetano Curvo Lo Pumo, iniciou fazendo referências aos
debates e interlocuções calorosas e cheias de controvérsias que antecederam a instituição da
política de cotas raciais na UFRGS. Neste sentido, afirmou que a implementação de políticas
de Ações Afirmativas na UFRGS foi um encaminhamento coerente das discussões que
tomaram lugar na universidade. Apesar destas fazerem parte da UFRGS desde o ano de 2004,
considerou curto o prazo para que avaliações definitivas ou previsões catastróficas fossem
feitas a respeito de tais políticas. Destacou, por fim, a importância das universidades
brasileiras no movimento de superação das desigualdades e a importância dos grupos
excluídos no processo de democratização do Ensino Superior e da construção de novas
universidades.
Apesar de não estar inscrito para participar como expositor na Audiência Pública, o
Senador da República pelo Partido Democratas, Demóstenes Torres, o único representante
do Senado Federal presente à Audiência naquele dia, foi autorizado pelo ministro Ricardo
Lewandowski a se pronunciar e a encerrar o primeiro dia de Audiência no Supremo Tribunal
Federal. O senador iniciou seu pronunciamento identificando-se como ex-membro do
movimento social pela anistia e afirmou que, já naquele período, havia resolvido ficar no lado
certo. Referiu-se ao tema da Audiência como algo apaixonante e que leva os envolvidos a
172
criar certa animosidade entre as partes. Se posicionou contra tal animosidade, já que quando
tal tema é discutido, o que está em discussão é o futuro do Brasil, e por isso seria preciso
julgar a questão de forma racional. Ao longo de sua exposição, fez referência ao reitor da
UFPE, segundo o qual, se um percentual superior a 20% fosse reservados para estudantes
cotistas a autonomia universitária e o mérito acadêmico seriam mortos. Neste sentido, o
chamado da audiência pública pelo Democratas seria uma tentativa de dividir a
responsabilidade da escolha por cotas com toda a sociedade, pois no Brasil todas as leis
criadas a partir de 1800 tinham a intencionalidade de minimizar os efeitos da escravidão.
“Além do mais, todos os brasileiros, inclusive eu, tem sangue negro correndo nas veias.
Todos têm sangue branco e sangue indígena.” Antes de concluir, o senador Demóstenes
Torres fez uma referência “controversa” à Gilberto Freyre, ao afirmar que o autor
pernambucano dizia que o processo de miscigenação que se deu no Brasil não havia sido
produto de estupro, mas de relações consensuais. Algumas das inúmeras controvérsias que tal
declaração gerou serão discutidas, de modo mais detalhado, no sexto capítulo.
2º DIA DA AUDIÊNCIA
101
Mohandas Karamchand Gandhi, nascido em 1869 e mais conhecido como Mahatma Ghandi foi um líder
pacifista indiano. Principal personalidade da independência da Índia, se formou em Direito em Londres e, em
1891, voltou à Índia para praticar advocacia. Dois anos depois, foi para a África do Sul, também colônia
britânica, onde iniciou um movimento pacifista, lutando pelos direitos dos hindus. Negando a colaboração
britânica e pregando a não-violência como forma de luta, organizou uma greve contra o aumento de impostos, na
qual uma multidão queima um posto policial. Detido, declara-se culpado e é condenado a seis anos, mas sai da
prisão em 1924. Têm atuação decisiva na proclamação da independência da Índia em 1947. No ano seguinte foi
assassinado.
102
Martin Luther King nasceu em Atlanta Georgia, em 15 de janeiro de 1929 em uma família de negros
americanos de classe média. Seu pai era pastor batista e sua mãe era professora. Aos 19 anos King foi ordenado
pastor batista. Mais tarde, formou-se no Seminário Teológico de Crozer e então cursou seus estudos de pós-
graduação na Universidade de Boston.Seus estudos o levaram a explorar as idéias do nacionalista hindu
Mohandas K. Gandhi, que se tornaram o centro de sua filosofia de protesto não violento. Em 1963 liderou um
movimento massivo pelos direitos civis no Alabama, organizando campanhas por eleitores negros, contra a
segregação, melhores condições de moradia e educação por todo o sul. A não-violência tornou-se sua maneira de
demonstrar resistência. Foi novamente preso diversas vezes. Neste mesmo ano liderou a histórica passeata em
Washington onde proferiu seu famoso discurso "I have a dream"("Eu tenho um sonho"). Em 1964 foi premiado
com o Nobel da Paz. Em 4 de abril de 1968 King foi baleado e morto em Memphis, Tenessee, por um branco
que foi preso e condenado a 99 anos de prisão.
178
pais foram capazes de fazer durante a vida escolar de seus filhos e por isso, as Ações
Afirmativas não têm relação necessária com raças, mas com formas de regularizar processos
desiguais. Conclui, afirmando que Ações Afirmativas seriam levemente aceitáveis pela
Constituição brasileira como forma de aliviar a inconstitucionalidade de processos seletivos
altamente excludentes.
Em exposição intitulada “Compatibilidade entre excelência acadêmica e ação
afirmativa”, Leonardo Avritzer, professor de Ciência Política da Universidade Federal de
Minas Gerais, destacou a importância da diversidade no processo de produção de
conhecimentos científicos. Segundo ele, as Ações Afirmativas poderiam ser vistas como um
importante meio de concretizar um princípio de produção acadêmica diversificada pois, ao
longo de sua existência histórica, as universidades têm se adaptado às diferentes mudanças
sem perder sua marca: os processos autônomos de produção do conhecimento. No entanto, as
universidades só seriam capazes de gerar conhecimento se conseguissem expressar
diversidade de saberes, não só nas áreas das ciências humanas, mas também nas áreas exatas e
econômicas. Como o conceito de comunidade acadêmica abrange as relações humanas, não
somente a educação, as instituições universitárias precisam mesclar diferentes talentos e
competência com outros critérios para produzir qualidade acadêmica. Segundo Avritzer, não
se trata, em absoluto, de racialização, mas de diversificação da universidade e em
consequência do mercado de trabalho.
O representante da Sociedade Afro-Brasileira de Desenvolvimento Sócio-cultural
(AFROBRAS) e Reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, José Vicente, foi o último
expositor da manhã de quinta-feira. Expôs durante quinze minutos sobre o “Papel das Ações
Afirmativas” e iniciou sua apresentação fazendo um breve histórico da Afrobras e dos
cursinhos pré-vestibulares para viabilizar a entrada de estudantes negros no Ensino Superior
brasileiro, nos setores públicos e privados. Segundo José Vicente, a iniciativa dos cursinhos
pré-vestibulares foi o embrião da posteriormente inaugurada, Universidade Zumbi dos
Palmares, que desde sua fundação desenvolve ações de inserção no mercado em parceria com
bancos que recebem os estudantes da universidade. Durante sua exposição, José Vicente
aludiu ainda à gênese das desigualdades histórias que afetaram os negros no Brasil, com
complacência do Estado, e que ao final do período escravocrata não foram alvos de nenhuma
reparação, em comparação, com as reparações colocadas em prática nos Estados Unidos. Para
José Vicente, o papel fundamental das cotas nas universidades brasileiras seria o de
“refundar” a República e “reescrever os cânones da nossa particular democracia, promovendo
e garantindo, de forma efetiva e objetiva, a coesão, a justiça, a igualdade e a diversidade como
179
valores intrínsecos à nação”. Ao final, José Vicente, solicitou ao ministro Ricardo
Lewandowski permissão para exibição de um vídeo sobre a Faculdade Zumbi dos Palmares, o
que foi prontamente autorizado. A exibição do vídeo gerou algumas controvérsias no plenário
e rendeu um comentário do Ministro Ricardo Lewandowski.
3º DIA DA AUDIÊNCIA
A plenária da manhã de sexta-feira, último dia da Audiência Pública, teve início com a
exposição de Fábio Konder Comparato, professor titular da Universidade de São Paulo e
representante da EDUCAFRO - Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes.
Iniciou sua exposição afirmando que a Constituição de 1988 (sobretudo o artigo 3°, inciso 3 e
4) é de natureza teleológica, pois procura induzir um rumo ao país e trata-se de um objetivo
não-facultativo. Segundo ele, o objeto do artigo 4° da Constituição - “promover o bem de
todos” (principio republicano por natureza) - tem sido mal compreendido, pois a
discriminação pode ser de duas espécies: ativa e omissiva. A segunda é anti-republicana, pois
implica na omissão do Estado em fazer cessar as desigualdades sociais. Afirmar que a
constituição é sexista por advogar que é preciso proteger as mulheres das desigualdades do
mercado de trabalho é um equivoco. Mas isto tem sido feito em relação aos negros. Se há
reserva de vagas, os candidatos não são dispensados do concurso e, portanto, não se ameaça o
principio do mérito. O professor Fábio Comparato concluiu sua exposição afirmando que até
hoje a constituição tem sido descumprida por omissão em relação às desigualdades, pois
depois de um século da Abolição ainda estamos discutindo uma política de relativa igualdade
para os negros em relação aos demais brasileiros.
A segunda expositora da sexta-feira foi a representante da Fundação Cultural
Palmares, Flávia Piovesan, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da
Pontifícia Universidade Católica do Paraná. A professora iniciou sua exposição intitulada “A
Compatibilidade das cotas com o sistema constitucional brasileiro” com uma pergunta: como
180
compreender as cotas e as Ações Afirmativas na ótica dos Direitos Humanos? De acordo com
a expositora, o respeito ao direito das diferenças é fundamental, sobretudo se levarmos em
conta que, por muito tempo, a diversidade foi considerada como característica para
aniquilação das diferenças, ainda que o temor à diferença continue com vitalidade, e tem
marcado a maioria das defesas da igualdade formal. Todavia, à medida que os diferentes
requisitam o direito à diferença, somos incitados a romper com a indiferença à diferença.
Após tais afirmações, Piovesan faz outra pergunta: as cotas raciais são compatíveis com a
Constituição de 1988? Segundo a expositora, a decisão tomada em Dezembro de 2008 pelo
Supremo Tribunal Federal, ratificou a legalidade das cotas no plano nacional. Já no plano
internacional, as cotas refletem o alinhamento do Estado brasileiro com vários documentos de
combate ao racismo, rompendo assim, mesmo que em parte, com o silêncio e a negligência do
Estado Brasileiro.
Denise Carreira, representante da organização não-governamental Ação Educativa e
relatora nacional para o direito humano à educação apresentou o texto intitulado “Resultados
parciais da missão sobre Racismo na Educação brasileira, em desenvolvimento pela Relatora
Nacional, da qual resultará relatório a ser encaminhado às instâncias da ONU em 2010”. De
acordo com Carreira, no Brasil, a idéia de raça vem sendo usada como uma construção social
que possibilita a estruturação de desigualdades e discriminações com base na fenotípica dos
indivíduos. Neste sentido, as políticas universais que desconsideram a efetividade das
distinções raciais nas relações sociais brasileiras, tornam-se ineficientes no combate às
desigualdades raciais, sobretudo naquelas relacionadas ao acesso e permanência de crianças e
jovens negros na educação brasileira. Nas escolas infantis, o racismo, apesar de ser inviável
por meio do discurso da Democracia racial, faz-se presente às crianças e jovens negros que
continuam sendo as principais vítimas do bullying racial nas escolas. A adoção e o
aprofundamento de políticas específicas para o combate do racismo, como a lei 10639/03,
possibilitaria conjugar políticas pontuais e políticas estruturais de modo a não ferir, por
omissão, mais três gerações. Por fim, salientou que afirmar que as Ações Afirmativas são
meras adaptações de outras experiências, é negar a capacidade inventiva e mesmo
“reinventiva” para solucionar problemas das instituições e dos indivíduos.
O coordenador nacional de entidades negras (CONEN), Marcos Antonio Cardoso, se
dirigiu à plenária logo em seguida e apresentou o texto intitulado “Defesa das Políticas de
Ação Afirmativa”. Iniciou afirmando que o racismo no Brasil é uma instituição histórica, pois
retroalimenta-se no cotidiano e forja as desigualdades raciais que foram, e continuam sendo, o
que possibilitou a formação de elites econômicas, intelectuais e culturais no Brasil. Deste
181
modo, denunciar o racismo é revelar os diferentes quadros de violência a que a população
negra tem sido submetidas. Afirmou ainda que as alegações contrárias às cotas tem sido
sempre repetitivas, baseadas em alegações freyrianos de seus seguidores, inconformados com
a emancipação dos sujeitos antes subalternizados. De acordo com Marcos Cardoso, no Brasil
não é preciso instrumentos legais para discriminar racialmente, pois o racismo aqui é sui
generis: negros e negras são cotidianamente colocados à prova, tendo que demonstrar
genialidade em coisas que bastaria realizar ações simples. Por fim, afirmou que, no Brasil,
somente a nomeacão das diferenças é o que possibilita a superação da manutenção da ditadura
da igualdade.
Sueli Carneiro, coordenadora do Geledés - Instituto da mulher negra de São Paulo -
apresentou em seguida o texto “Políticas de cotas como um dos instrumentos de construção da
igualdade mediante o reconhecimento da desigualdade historicamente acumulada pelos
afrodescendentes em função das práticas discricionárias de base racial vigentes em nossa
sociedade”. De acordo com Sueli Carneiro, a pluralidade de vozes a favor das Ações
Afirmativas na audiência, não estão representadas no debate público apresentado pela mídia
brasileira. Durante sua exposição, citou uma série de declarações de Joaquim Nabuco e do
vice-presidente Marco Maciel (DEM), para mostrar como a Abolição não foi capaz de romper
as amarras da escravidão. Segundo ela, seria preciso superar a concepção abstrata de
igualdade formal em prol de uma noção de igualdade substantiva. Concluiu dizendo que o que
estava em jogo no debate sobre políticas de cotas no Brasil eram perspectivas distintas de
país, que agregavam negros e brancos em uma e em outra perspectiva.
O tema da exposição do Juiz Federal da 2ª Vara Federal de Florianópolis, Carlos
Alberto da Costa Dias, foi a “Proporcionalidade e razoabilidade do fator de ‘discrimen’.
Impossibilidade de identificação do negro”. Segundo Dias, e este foi o ponto central de sua
fala, o grande problema das políticas de cotas se assentaria na impossibilidade de definir raça
como fator de discriminem. Apesar da existência de discriminações positivas na Constituição
Brasileira, raça não poderia ser usada como fator de discriminação, pois não possui relação
causal com as desigualdades. O fato das desigualdades serem baseadas na trajetória escolar e,
ainda, o fato do estudante egresso da escola pública ter tido acesso a uma escolarização de
baixa qualidade seria o que explicaria as dificuldades de acesso ao ensino superior.
José Roberto Ferreira Militão, Conselheiro do Conselho Estadual de Desenvolvimento
da Comunidade Negra do Governo do Estado de São Paulo, fez a exposição intitulada “A
‘raça estatal’ e o racismo”. Sua apresentação serviu como delimitação de seu posicionamento
teórico e político dentro da Audiência. Começou dizendo que era um ativista histórico contra
182
o racismo, em prol de ações afirmativas e a favor do investimento público em cotas sociais.
Também afirmou ser favorável a criação nas universidades de critérios de seleção, reservando
pelo menos 50% das vagas para acesso pelo critério de rendas, mas que era radicalmente
contra o racismo estatal. Segundo Militão, o Estado não poderia, sob pena de violar a
dignidade humana, outorgar aos indivíduos uma identidade racial. Entretanto, seria isto o que
estaria ocorrendo; e a chancela do STF poderia abrir um perigoso precedente para a criação de
um Estado legalmente racializado.
Serge Goulart, Coordenador da Esquerda Marxista – Corrente do PT, não compareceu
à Audiência Pública e nem enviou um texto para ser lido na plenária. Sua ausência, motivada
pelo cancelamento de um vôo, foi justificada por José Carlos Miranda.
José Carlos Miranda, do Movimento Negro Socialista, intitulou sua exposição de “A
racialização das relações sociais no âmbito das periferias das grandes cidades”. Expôs durante
quinze minutos e iniciou seu discurso apresentando uma foto de duas crianças quilombolas,
uma negra e uma branca, como forma de mostrar a integração racial no Brasil. De acordo com
ele, a verdadeira versão sobre os culpados pela escravidão não tem nada haver com
cores/raças, pois a história seria movimentada pela luta de classes. Toda a escravidão, de
negros e indígenas, teve o objetivo de acumulação primitiva de capitais e, portanto, o racismo
e o capitalismo são faces da mesma moeda. Neste sentido, qualquer defesa acerca de uma
divida histórica para com o povo negro, só seria possível a partir de uma dissimulação da
verdade da exploração capitalista.
A representante do Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro (MPMB) e da Associação
dos Caboclos e Ribeirinhos da Amazônia (ACRA), a senhora Helderli Fideliz Castro de Sá
Leão Alves apresentou o texto “Políticas públicas de eliminação da identidade mestiça e
sistemas classificatórios de cor, raça e etnia”. Helderli iniciou sua exposição afirmando que as
políticas de cotas raciais implementadas na UNB não podem ser consideradas Ações
Afirmativas, pois não visam reparar desigualdades, mas sim criar uma identidade negra que
suprimiria a identidade mestiça e mulata. Segundo ela, tal política, orientada pelo que chamou
de Ideologia da Mestiçofobia é, exatamente, o inverso do que propôs Darcy Ribeiro, o
fundador da UNB. De acordo com a expositora, um dos graves problemas da política
implementada na UNB é o fato de excluir dos potenciais usufruidores das cotas aqueles pretos
e pardos que não se auto-declarem negros. Esta tentativa de enquadrar todos os pretos, pardos
e mulatos na categoria negro seria derivada da visão negativa que se construiu sobre o mestiço
e a mestiçagem que, no Brasil, havia se dado de modo muito mais harmônico do que em
outras partes do mundo.
183
A tarde do último dia de Audiência foi reservada à exposição de experiências de
implementação de Ações Afirmativas em instituições de ensino superior brasileiras. O
professor Alan Kardec Martins Barbiero, representante da Associação Nacional dos
Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES) foi o primeiro a expor.
Relatou a realização de um levantamento recente entre as instituições de ensino superior, onde
foram diagnosticadas várias experiências de Ações Afirmativas. Nestas instituições, entre os
aspectos positivos do processo de implementação das Ações Afirmativas e das cotas raciais,
estaria o aumento das populações historicamente discriminadas, ampliação de debates no
interior das universidades sobre relações raciais e a criação de comissões específicas nas
universidades responsáveis por organizar debates públicos e subsidiar as decisões dos
conselhos universitários. Entre os aspectos negativos, Alan Kardec destacou as dificuldades,
enfrentadas pelas comissões internas de instituições que adotaram as Ações Afirmativas, de
definição de critérios de seleção dos estudantes cotistas, além das dificuldades percebidas
entre alguns estudantes e professores de reconhecerem a legitimidade da problemática racial.
Parte desta dificuldade, segundo Alan Kardec, derivaria da permanência de um imaginário
dominante, não apenas entre estudantes e professores universitários, que enfatizaria a
convivência social harmônica entre negros, brancos, indígenas, pobres, ricos. No
encerramento de sua exposição, Kardec ressaltou que a ANDIFES defende:
103
Apesar de estar presente na Audiência Pública, o estudante negro Cledisson Geraldo dos Santos Junior –
Diretor da União Nacional dos Estudantes, previamente habilitado para se pronunciar, foi substituído, momentos
antes da exposição, pelo presidente da entidade.
184
estudantes brancos nos cursos desta universidade, principalmente nos mais concorridos.
Analisando as características do sistema universitário brasileiro atual, a despeito dos recentes
aumentos nos números de vagas, a UNE têm percebido a perpetuação de um cenário
universitário branco e de elite. Os dados sobre matrículas e aprovação de estudantes brancos e
de alta renda no curso de Medicina da FUVEST são ainda mais reveladores da segregação
social e racial do vestibular. Nesta perspectiva, o vestibular não pode ser tomado como
sinônimo de mérito, pois segundo Chagas, a UNE entende que a implementação de políticas
de Ações Afirmativas em instituições de ensino superior não implica em risco de queda da
qualidade acadêmica e tampouco implica no surgimento de uma cisão racial no Brasil. Ao
contrário, poderia favorecer, por meio da inclusão de grupos historicamente excluídos, a
verdadeira união nacional.
Representando o Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), o
professor João Feres fez uma exposição de quinze minutos de duração, centrada na discussão
dos argumentos que, segundo ele, apesar de cruciais, nem sempre aparecem claramente no
debate público sobre Ações Afirmativas. Para o professor, o primeiro tópico do debate atual
seria: 1) Justificação das políticas de Ações Afirmativas. Segundo Feres, a cada tipo de
justificação (reparação, justiça social e diversidade), se associa um tipo de beneficiários. No
caso da reparação em relação ao passado escravagista, por exemplo, os beneficiários seriam
os descendentes de escravos, por exemplo. Ainda segundo ele, as três justificações não seriam
mutuamente excludentes, mas “uma política de ação afirmativa para a inclusão de negros e
pardos na universidade cumpriria o objetivo de reparar (em parte) as consequências nefastas
da escravidão e de promover a justiça social e a diversidade”. O segundo tópico seria: 2)
Estado, cidadania e ação afirmativa. Feres, afirma que tais políticas de Ações Afirmativas, em
geral, são acusadas de ameaçar a igualdade formal do Estado Republicano, mas segundo ele
todas as políticas promovidas por um Estado de bem-estar social precisam ser
discriminatórias, na medida em que utilizam um recurso pertencente a todos de modo
desigual, no intuito de promover o bem geral da nação. O terceiro tópico seria: 3) A
racialização da nação promovida pela políticas de Ações Afirmativas. Segundo Feres, este
seria um pilar frágil, pois na medida em que tal argumento é descritivo e empírico, ele pode
ser comprovado ou falseado por meio das evidências empíricas; e o que se vê é que as
políticas de Ações Afirmativas já estão funcionando no Brasil há quase uma década sem ter
provocado nenhum tipo de conflito racial, nas universidades ou fora dela.
Logo após a exposição do Professor João Feres, o professor Renato Hyuda de Luna
Pedrosa, coordenador da Comissão de Vestibulares da Universidade Estadual de Campinas –
185
UNICAMP - foi convidado a fazer sua exposição. Começou afirmando que a autonomia
universitária, a defesa da excelência acadêmica e a preocupação com a inclusão de grupos
historicamente excluídos da universidade motivaram a implementação das Ações Afirmativas
na Unicamp. De acordo com Hyuda, a UNICAMP sempre levou os preceitos constitucionais
relativos ao ensino superior brasileiro em consideração: “o acesso à qualificação acadêmica
será dada a partir da capacidade de cada um”. Por isso, a universidade colocou em prática seu
compromisso de incluir grupos discriminados, mas sem colocar em risco a qualidade
acadêmica. A solução encontrada pela comissão de vestibulares da Unicamp para equacionar
estas duas necessidades foi à instituição da política de bônus, pela qual estudantes que
cursaram o ensino fundamental em escolas públicas receberiam 30 pontos de bônus na
pontuação do exame vestibular, e todos aqueles que se declarassem pretos, pardos oru
indígenas (e fossem oriundos de escolas públicas) receberiam mais 10 pontos. Segundo ele, as
análises do desempenho dos estudantes que ingressaram na universidade por meio da política
de bônus indicaram um desempenho de saída melhor do que o de entrada, o que indica que a
Unicamp conseguiu alcançar seu objetivos. Questionado pelo Ministro Ricardo Lewandowski
sobre os critérios de autodeclaração racial utilizados pela Unicamp, e sobre os motivos pelos
quais a universidade não instituiu nenhuma forma de averiguação destas declarações, o
professor Renato Hyuda respondeu que a comissão de vestibulares da universidade levou em
consideração especialistas da área de Antropologia da instituição, que argumentavam sobre as
dificuldades de estabelecer uma comissão que avaliasse isto.
O pró-reitor de graduação da Universidade Federal de Juiz de Fora, professor Eduardo
Magrone, se apresentou logo em seguida. De acordo com o reitor, a política de cotas da UFJF,
aprovada pelo conselho superior da universidade no ano de 2004, faz parte de um projeto de
inclusão global, que conta com cursinhos pré-vestibulares comunitários e de um Núcleo de
estudos Afro-Brasileiros (NEAB), para estudar as características da população negra da
região. Segundo o pró-reitor, na UFJF, 50% das vagas de todos os cursos de graduação estão
reservadas para estudantes cotistas, sendo 25% para egressos de escolas públicas e 25% para
aqueles que se declaram negros. Desse modo, três grupos de estudantes podem prestar
vestibular na universidade federal de Juiz de Fora, sendo a) os estudantes de escolas públicas
que se declaram negros, b) estudantes de escolas públicas que não se declaram negros e c)
estudantes que não optaram pelas cotas. As informações apresentadas por Magrone, em um
gráfico sobre as notas dos vestibulandos, sinalizavam que caso não houvesse esta política de
cotas na UFJF, o quadro de exclusão e sobre-representação de filhos de elite se perpetuaria,
principalmente nos cursos de maior prestígio. No entanto, por meio do gráfico também se
186
percebe que as vagas destinadas para os grupos cotistas, ainda não estão sendo preenchidas de
maneira adequada. Um dos fatores apontados pelo Pró-reitor seria a desinformação acerca do
processo seletivo da universidade, e mesmo da existência de reserva de vagas. Em análise
sobre o rendimento acadêmico dos estudantes da UFJF, apesar dos dados evidenciarem um
significativo índice de reprovação por notas dos estudantes dos três grupos (A, B, C), de
forma especial nos cursos das áreas de Ciências e Tecnologia, a situação de reprovação por
notas era maior no grupo de estudantes negros cotistas. Em face desta situação, o pró-reitor
defendeu a necessidade de um apoio pedagógico da instituição para manutenção do
desempenho de todos os estudantes, com ênfase especial nos estudantes ingressantes por
cotas. Ele destacou, por fim, as dificuldades relativas à utilização do critério “escola pública”
como meio de seleção, em razão da existência, na região da Zona da Mata mineira, de cerca
de dez colégios federais que acabam desequilibrando a disputa entre estudantes egressos de
instituições públicas de ensino.
Ao final da exposição de Eduardo Magrone, o Ministro Ricardo Lewandowski fez
uma pequena intervenção, que merece ser transcrita na integra:
189
Findo a exposição da representante da Associação dos Juízes Federais do Brasil, o
Ministro Ricardo Lewandowski concedeu a palavra a dois estudantes que participaram de
experiências de implementação de políticas de cotas em suas universidades. Por não estarem
previamente inscritos, o ministro justificou a quebra do protocolo anteriormente estabelecido:
Foram convocadas quarenta e três pessoas para este três dias de audiência. Como se
trata de discutir o ensino superior, é compreensível que o número de professores
seja majoritário na composição dos palestrantes. Das quarenta e três pessoas
convocadas a falar, trinta são professores - alguns evidentemente assumiram o
cargo de administração do Estado e outros espaços especializados. O problema é
que desses trinta professores, vinte e oito deles são brancos e apenas dois são
negros: o Professor Kabengele Munanga e Mário Theodoro. Ou seja, reproduzimos
aqui, de um modo absolutamente não intencional, essa profunda segregação racial
que é a marca do nosso sistema acadêmico. Temos aqui 93% de professores
brancos decidindo se devemos ou não consolidar ações afirmativas para negros nas
universidades (JOSÉ JORGE DE CARVALHO IN SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL, 2010, p. 93).
104
As informações contidas na coluna “Livro(s) publicado(s) /organizado(s) ou edições sobre relações étnico-
raciais” foram retiradas do tópico Livro publicado/organizado nos respectivos currículos Lattes. Disponível em
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/busca.do?metodo=apresentar. Para aqueles que não possuíam currículos
disponíveis na Plataforma Lattes foram consultados sites da internet e blogs pessoais.
192
Quadro 4 - Breve Caracterização dos expositores da Audiência Pública
Nome do Expositor Área de Área de Instituição ao qual Livro(s) publicado(s) /organizado(s) ou Posição Posição em
Formação Atuação pertence edições sobre relações étnico-raciais defendida na relação aos
Audiência Manifestos
Davi Cura Aminuzo Graduando em Estudante e Universidade Federal do Nenhuma obra sobre a temática Contrária as Não Subscreveu
Museologia funcionário Rio Grande do Sul - Cotas e as Ações nenhuma versão
público UFRGS Afirmativas dos Manifestos.
aposentado
Demóstenes Torres Graduação em Senador da Senado Federal Um dos propositores da ADPF 186 Contrária as Não Subscreveu
Direito Republica impetrada pelo Partido Democratas Cotas e as Ações nenhuma versão
Afirmativas dos Manifestos.
Hederli Fideliz Graduação em (Informação Movimento Pardo- Nenhuma obra sobre a temática Contrário as Subscreveu o
Serviço Social não Mestiço Brasileiro - Cotas e as Ações Manifesto
encontrada) MPMB e Associação Afirmativas contrário as
dos Caboclos e Cotas em 2008.
Ribeirinhos da
Amazônia - ACRA
José Carlos Miranda (Informação não Membro da Movimento Negro Nenhuma obra sobre a temática Contrário as Subscreveu o
encontrada) Executiva Socialista - MNS Cotas e as Ações Manifesto
Estadual do Afirmativas contrario as
Partido dos Cotas em 2006 e
trabalhadores o Manifesto
em São Paulo contrario as
Cotas em 2008.
Ibsen Noronha Graduação em Professor Instituto de Educação Nenhuma obra sobre a temática Contrário as Não Subscreveu
Direito; Mestrado Superior de Brasília – Cotas e as Ações nenhuma versão
em Direito. IESB Afirmativas dos Manifestos.
Roberta Fragoso Graduação em Professora Escola Superior do 1) Ações Afirmativas à Brasileira: Contrário as Subscreveu o
Menezes Kaufman Ciências Ministério Público do Necessidade ou Mito? Uma análise histórico- Cotas e as Ações Manifesto
Jurídicas; Distrito Federal e Escola jurídico-comparativa do negro nos Estados Afirmativas contrario as
Mestrado em da Magistratura do Unidos da América e no Brasil. Porto Cotas em 2008.
Direito. Distrito Federal Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
Sérgio Danilo Pena Graduação em Professor Universidade Federal de 1) Igualmente Diferentes. 1. ed. Belo Contrário as Subscreveu o
Medicina; Minas Gerais - UFMG Horizonte: Editora UFMG, 2009. v. 1. p.116; Cotas e as Ações Manifesto
Doutorado em 2) Humanidade sem raças? São Paulo: Afirmativas contrario as
193
Genética Publifolha, 2008. v. 1. 67 p.; 3) À Flor da Cotas em 2006 e
Humana. Pele. Rio de janeiro: Vieira & Lentz, 2007. v. o Manifesto
1. 130 p. contrario as
Cotas em 2008.
Yvonne Maggie Graduação em Professora Universidade Federal do 1) Divisões perigosas: Políticas raciais no Contrário as Subscreveu o
Ciências Sociais; Rio de Janeiro-UFRJ. Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Cotas e as Ações Manifesto
Doutorado em Civilização Brasileira, 2007. v. 1. 363 p.; 2) Afirmativas contrario as
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O negro na sociedade brasileira: resistência,
participação, contribuição. 1. ed. Brasília:
Fundação Cultural Palmares, 2004.; 6)
Rediscutindo a mestiçagem no Brasil.
Identidade Nacional versus Identidade
Negra. 2. ed. Belo Horizonte: Editora
Autêntica, 2004. 150 p.; 7) Cem anos e mais
de bibliografia sobre o negro no Brasil. 1. ed.
Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2003.
v. 1.; 8) Estratégias e Políticas de Combate à
Discriminação Racial. 1. ed. EDUSP/Estação
Ciência, 1996.; 9) A Revolta dos
Colonizados. O Processo de Descolonização
e As Independências da África e da Ásia.
SÃO PAULO: ATUAL, 1995. 83 p.; 10) Os
Basanga de Shaba, Um Grupo Étnico do
Zaire. SAO PAULO: FFLCH/USP, 1986.
334 p
195
Luiz Felipe Graduação em Professor Universidade de Paris- 1) O trato dos viventes. Formação do Brasil Favorável as Não Subscreveu
Alencastro Historia e Sorbonne no Cotas e as Ações nenhuma versão
Ciências Atlântico Sul. Séculos XVI e XVII, São Afirmativas dos Manifestos.
Políticas; Paulo, Companhia das Letras,
Doutorado em 2000, 525 pp.
Historia
Marcos Antonio Graduação em Coordenador Coordenação Nacional 1) Contando a história do samba:caderno de Favorável as Não Subscreveu
Cardoso Historia e das Entidades Negras – textos. 2.ed. Belo Horizonte: Mazza, 2003. Cotas e as Ações nenhuma versão
Mestrado em CONEN 60 p.; 2) Zumbi dos Palmares. Belo Afirmativas dos Manifestos.
História Horizonte: Mazza, 1995. 27 p.; 3) O
movimento negro em Belo Horizonte: 1978-
1998. Belo Horizonte: Maza Ed., 2002. 232
p.
Moacir Carlos da Graduando em Estudante Coletivo de Estudantes Nenhuma obra sobre a temática Favorável as Subscreveu o
Silva Negros e Negras – Cotas e as Ações Manifesto
DENEGRIR e Afirmativas favorável as
Universidade Estadual Cotas em 2006.
do Rio de Janeiro –
UERJ
Paulo Paim Ensino Técnico Senador Senado da República Autor do Estatuto da Igualdade Racial Favorável as Subscreveu o
Profissionalizante Cotas e as Ações Manifesto
- SENAI Afirmativas favorável as
Cotas em 2008.
Sueli Carneiro Graduação em Coordenadora Geledes – Instituto da 1) Carneiro Sueli (Org.) . A cor do Favorável as Subscreveu o
Ciências Sociais; Mulher Negra Preconceito. 1. ed. São Paulo: Ática, 2006. Cotas e as Ações Manifesto
Doutorado em 135 p.; 2) A mulher negra brasileira na Afirmativas favorável as
Filosofia década da mulher. São Paulo: Nobel, 1985. Cotas em 2006 e
55 p. o Manifesto
favorável as
Cotas em 2008.
Fonte: Elaborado pelo autor.
196
Dada a natureza qualitativa da presente pesquisa e considerando a heterogeneidade
daqueles que se pronunciaram durante a audiência, um conjunto de procedimentos foi
adotado, com o intuito de organizar os discursos e, assim, possibilitar a compreensão dos
modos pelos quais os expositores percebem e se posicionam acerca das políticas de cotas e de
temas que tangenciam esta temática central. Adicionalmente, os procedimentos
metodológicos adotados neste trabalho visam contribuir na compreensão das estratégias
discursivas utilizadas pelos expositores para tornarem coerentes seus discursos.
O primeiro procedimento adotado, neste trabalho, foi a leitura atenciosa das notas
taquigráficas da Audiência Pública (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2010).
Posteriormente, dedicamo-nos a construção de categorias descritivas que se reportassem
analiticamente às questões de pesquisa. As categorias analíticas, construídas por meio da
analise dos discursos dos expositores, foram organizadas em quatro dimensões temáticas,
interdependentes e correlacionadas entre si. Interdependentes porque guardam entre si,
grandes coerências internas, e correlacionadas porque os argumentos organizados em uma
dada categoria ajudam a explicar, apesar de não determinar, os argumentos que compõem as
outras categorias analíticas.
No QUADRO 5, as principais categorias analíticas utilizadas neste capítulo estão
organizadas a partir das dimensões temáticas em que foram inseridas.
197
QUADRO 5
Dimensões temáticas e Categorias analíticas
1ª Dimensão:
Cotas e Ações Afirmativas
Constitucionalidade/Inconstitucionalidade das Cotas
Este indicador refere-se à posição assumida pelos expositores, durante a Audiência Pública, sobre a
constitucionalidade ou inconstitucionalidade das políticas de cotas para estudantes negros em Instituições de
Ensino Superior. Para além de referir-se às posições jurídicas dos expositores, este indicador pode ser
compreendido como síntese dos posicionamentos dos expositores nas diferentes categorias e dimensões aqui
consideradas.
2ª Dimensão:
Representações sobre o Brasil
Estratificação social Raízes da desigualdade
Este indicador refere-se ás representações sociais Este indicador refere-se às percepções dos expositores
que os expositores mantêm acerca da acerca dos fatores que explicam os padrões de desigualdade
estratificação social brasileira, entendida como o da sociedade brasileira.
processo social através do qual vantagens e
recursos tais como riqueza, poder e prestígio são
distribuídos sistemática e desigualmente.
198
Conforme observou Sueli Carneiro, durante sua exposição na Audiência Pública, sob o
pretexto de debater a constitucionalidade/inconstitucionalidade das políticas de cotas para
estudantes negros em instituições de ensino superior no Brasil, duas representações distintas
sobre o país e dois projetos distintos de nação, cada qual vinculadas a distintas alternativas
políticas, se confrontaram no Auditório do Supremo Tribunal Federal. A cada uma das
perspectivas, se alinhavam negros e brancos de diferentes extrações sociais e de campos
políticos e ideológicos, semelhantes ou concorrentes.
O primeiro desses projetos está ancorado no passado. Sobre esse projeto passadista,
o psicanalista Contardo Calligaris empreende a seguinte reflexão: "De onde surge,
em tantos brasileiros brancos bem intencionados, a convicção de viver em uma
democracia racial? Qual é a origem desse mito?” A resposta não é difícil, diz ele, o
mito da democracia racial é fundado em uma sensação unilateral e branca de
conforto nas relações inter-raciais. Esse conforto não é uma invenção, ele existe de
fato, ele é efeito de uma posição dominante incontestada. (...) O segundo projeto de
nação dialoga com o futuro, como já foi dito. O que nele apostam, acreditam que o
País que foi capaz de construir a mais bela fábula de relações raciais é capaz de
transformar este mito numa realidade de conforto nas relações raciais para todos e
para todas (CARNEIRO, 2010 apud SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2010, p.
303).
Assim, a hipótese de trabalho que procurarei testar, por meio da análise dos discursos
dos expositores na Audiência, é que os divergentes posicionamentos em defesa da
constitucionalidade ou da inconstitucionalidade das Ações Afirmativas e das políticas de cotas
199
derivariam das distintas representações sobre a nação, de distintos projetos nacionais e das
distintas alternativas políticas. O ESQUEMA 1, apresentado a seguir, pretende ser um modelo
analítico desta hipótese de trabalho. Nele, procuro indicar que os posicionamentos pessoais
expressos pelos expositores sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade das ações
afirmativas e das políticas de cotas foram influenciados, tanto pelas representações que os
mesmos mantinham sobre o Brasil (referentes às representações sobre a estratificação social,
sobre as raízes das desigualdades, sobre o panorama da educação pública no Brasil, sobre os
conceitos de raça, etnia e miscigenação e sobre os aspectos das relações raciais prevalecentes
no Brasil), quanto pelos projetos que defendiam para a nação (referentes aos modelos
idealizados de nação); que seriam viabilizados por meio de diferentes alternativas políticas
(pelo papel das universidades e da ciência, pela atuação do Estado na garantia da Constituição
Federal e por diferentes modelos de políticas públicas). Ao mesmo tempo em que as
representações sobre o Brasil impactariam os posicionamentos políticos em relação às Ações
Afirmativas e às cotas raciais, influenciariam a formação, tanto dos diferentes projetos para a
nação quanto das diferentes alternativas políticas defendidas para a resolução dos problemas
identificados. Por sua vez, os diferentes projetos para a nação, ao mesmo tempo em que
influenciariam os diferentes posicionamentos políticos em relativos ao tema das Assembléias,
impactariam na escolha das mais adequadas alternativas políticas para a nação. As alternativas
políticas, por sua vez, ao mesmo tempo em que influenciariam os posicionamentos políticos
dos expositores, também seriam influenciadas por eles, na medida em que ao se posicionarem
favoravelmente ou contrariamente às políticas, os expositores estiveram impelidos a
apresentar soluções teóricas ou práticas para conservar, atualizar ou reinventar a nação
brasileira.
200
Esquema 1 – Modelo Analítico dos Discursos
PANORAMA DA
EDUCAÇÃO
ASPECTOS DAS BÁSICA ESTRATIFICAÇÃO
RELAÇÕES SOCIAL
ÉTNICO-RACIAIS
REPRESENTAÇÕES
SOBRE
CONCEITOS DE
RAÍZES DA O BRASIL RAÇA, ETNIA E
DESIGUALDADE MISCIGENAÇÃO
201
Para testar a hipótese de trabalho, explicitada no diagrama acima, procurarmos
analisar os dados oriundos dos discursos dos expositores por meio de dois procedimentos
metodológicos: a) a codificação dos dados via análise de conteúdo e b) a construção de
sumários etnográficos, baseados em pressupostos teóricos da análise do discurso. Ao passo
que, o primeiro enfatiza a descrição numérica de como determinadas categorias explicativas
aparecem ou estão ausentes das discussões, e em quais contextos isto ocorre, o segundo vai
repousar nas citações textuais dos participantes do grupo que vão assim ilustrar os achados
principais da análise. Apesar de distintos, estes dois meios de análises não são excludentes
entre si, sendo possível combiná-los em um só relatório de análise.
Se por um lado, a análise de conteúdo enfatiza a descrição numérica de como
determinadas categorias explicativas aparecem ou estão ausentes das discussões,
relacionando-se assim com construções teórico-abstratas, o que pode favorecer uma maior
padronização da leitura e a realização de comparações de idéias dentro de um mesmo texto e
entre textos; por outro lado, em razão da ênfase na descrição numérica dos dados qualitativos
de pesquisa, a Análise de Conteúdo tem sido o alvo preferencial, ao longo das últimas
décadas, de muitos críticos vinculados à perspectiva conhecida como Análise do Discurso.
De acordo com Rocha e Deusdara (2005), as fortes influências iluministas e
positivistas que pesavam sobre a Análise de Conteúdo faziam com que a utilização de meios
quantificadores dos discursos fosse tomada como meio de obter e garantir a objetividade das
análises realizadas. “Na verdade, a principal pretensão da Análise de Conteúdo é vislumbrada
na possibilidade de fornecer técnicas precisas e objetivas que sejam suficientes para garantir a
descoberta do verdadeiro significado” (Idem, p. 310).
Entretanto, neste trabalho, a quantificação numérica das categorias analíticas e a
explicitação dos percentuais que cada categoria representa no conjunto dos discursos dos
expositores favoráveis e contrários às políticas com recorte racial, não será utilizada como
meio de desvendar os significados verdadeiros contidos no texto. Tampouco, o objetivo desta
organização numérica será o de reduzir os significados dos discursos a uma mera comparação
quantitativa da freqüência com que foram mencionadas pelos expositores. Na perspectiva
adotada no presente trabalho, a análise de conteúdo não será tomada como O MÉTODO; mas
como um método complementar, utilizado na expectativa de gerar uma espécie de cartografia
das categorias discursivas mobilizadas nos diferentes discursos.
Por outro lado, os sumários etnográficos se baseiam em citações textuais dos
participantes do grupo, que vão assim ilustrar os achados principais da análise. As citações
não serão tomadas como simples enunciados, mas antes como discursos e serão submetidas à
202
análise dos mesmos. De acordo com Rocha e Deusdara (idem), o surgimento da Análise do
Discurso, no final dos anos de 1960, seria decorrência das insuficiências teóricas e
metodológicas observadas nas práticas de leitura que vinham sendo utilizadas até então,
fortemente baseadas em uma visão conteudista que não davam conta de apreender os
significados implícitos nas formulações discursivas.
Para o fundador da Análise do Discurso, Michel Pêcheux (1995), um ponto de vista
verdadeiramente científico sobre as práticas “linguageiras” só poderia emergir por meio da
transformação dos discursos em objeto de investigação, o que exigiria que o investigador
levasse em consideração as condições sociais em que foram produzidos os discursos, bem
como as diferentes forças que, ao se confrontarem na realidade social, influenciam a produção
de tais discursos. Nesta perspectiva, tomar os enunciados (conjuntos de palavras que forma
uma frase, ou um parágrafo) como objetos de investigação capazes de revelar os significados
subjacentes, seria uma incoerência, na medida em que tal orientação teórica não reconheceria
o fato, denunciado pelos teóricos da Análise do Discurso, de que tais enunciados só fazem
sentido se analisados em consonância com suas condições de produção e de enunciação. Isto
implica dizer que os sentidos não se encontram pré-fixados no enunciado, o que significa que
os enunciados só se tornam discursos por meio do ato de enunciação. Antes da enunciação, os
discursos são meros enunciados.
105
Denise Jodelet , afirma que na análise dos discursos é preciso considerar que o
sujeito que se expressa está assujeitado pelo próprio discurso, pois seu discurso sempre estará
submetido às relações concretas do cotidiano, ao inconsciente e à estrutura da própria língua.
Todavia, no momento em que se expressa, o sujeito tem a capacidade de deixar a sua marca.
Mesmo na condição de assujeitado, o sujeito que enuncia pode, portanto, assumir um papel
ativo. Ao partir do principio de que o sujeito, construtor de representações sociais sobre
diversas esferas da realidade, é um sujeito social, somos levados a reconhecer que nas análises
dos discursos o que se analisa não são indivíduos isolados, “mas sim as respostas individuais
enquanto manifestações das tendências do grupo de pertença ou de afiliação na quais os
indivíduos participam” (JODELET, 1984 apud SPINK, 2000, p. 120). Nesta perspectiva, os
sumários etnográficos, ao invés de serem abordados como meios de desvelar as “dimensões
ocultas” do real, serão apresentados como meios para evidenciar as relações de poder no
plano discursivo. Não se trata, portanto, de analisar guerras de palavras ou de enunciados;
105
JODELET, Denise. La representación social: fenómenos, concepto y teoria. In: MOSCOVICI, Serge.
(Org). Pensamiento y vida social. Barcelona/Buenos Aires/México: Paidós, Psicologia Social, 2, 1984.
203
trata-se, de analisar confrontos que, por meio de embates discursivos, procuram definir a
legitimidade ou ilegitimidade de determinada ordem social.
Da perspectiva adotada neste trabalho, tão importante como observar os
posicionamentos de cada um dos expositores acerca da constitucionalidade ou
inconstitucionalidade das cotas raciais e das demais políticas com recorte racial (vide
QUADRO 4), seria identificar as conexões existentes entre tais posicionamentos, os meios
sociais de produção destes discursos e os argumentos apresentados para sustentar
teoricamente tais posicionamentos. Em outras palavras, para reconhecer as estratégias
discursivas utilizadas pelos expositores, no intuito de legitimar suas posições políticas sobre a
constitucionalidade ou inconstitucionalidade das políticas de cotas raciais, seria preciso
identificar as representações sociais que tais expositores mantêm sobre a nação brasileira,
sobre as alternativas políticas adequadas para resolver os problemas identificados e sobre os
projetos formulados para a nação brasileira, que funcionam, em conjunto, como sustentadores
teóricos de seus posicionamentos políticos.
No âmbito deste trabalho, os trechos dos discursos dos expositores que serão
apresentados no capítulo 6, serão tomados como meios pelos quais os expositores procuram
conservar, atualizar ou reinventar a realidade social brasileira, mobilizando e articulando
argumentos em torno das relações raciais, da educação superior, da ciência, das políticas
públicas e do próprio Estado Nacional.
204
Capítulo 6
De acordo com Lassale (2001), na maioria dos Estados Modernos regidos por
“Constituições escritas em folhas de papel” a missão das Constituições Nacionais é
estabelecer documentalmente todas as instituições e princípios vigentes em uma determinada
época. Deste modo, uma Constituição não se resume a um conjunto de regras escritas em um
pedaço de papel, mas, se vincula aos elementos reais de poder, chamados pelo autor de “força
ativa e eficaz que informa as leis e as instituições jurídicas vigentes, determinando que não
possa ser, em substância, a não ser tal como elas são” (idem, p.11).
Nessa perspectiva, em um Estado Moderno, as instituições tornadas legítimas por uma
Constituição Nacional se referem aos hábitos sociais, às práticas culturais e as representações
coletivas vigentes em um determinado tempo e espaço; logo, não se resumem às instituições
físicas como igrejas, escolas ou tribunais. Conforme alerta o autor, as relações existentes entre
os elementos reais de poder e a Constituição jurídica nem sempre são evidentes e
autorreferentes. No caso da primeira Constituição Brasileira, promulgada dois anos após a
Declaração da Independência em 1822, por exemplo, alguns dos mais importantes elementos
reais de poder vigentes no país (os proprietários de escravos e os latifundiários), não tinham
poderes expressos pela constituinte, contudo, o exerciam de modo diplomático. Por outro
lado, ao consagrar o Estado unitário, a monarquia constitucional, o Poder Moderador, o
sufrágio censitário e o catolicismo como religião oficial do Império, a Constituição de 1824
fundou novas bases de legitimidade para a nação, ao mesmo tempo em que transformou os
elementos reais de poder vigentes em verdadeiras instituições jurídicas.
(Uma constituição escrita) [...] Somente pode ter origem, evidentemente, no fato de
que nos elementos reais do poder imperantes dentro do país se tenha operado uma
transformação. Se não se tivesse operado transformações nesse conjunto de fatores
da sociedade em questão, se esses fatores do poder continuassem sendo os mesmos,
não teria cabimento que essa mesma sociedade desejasse uma Constituição para si.
Acolheria tranqüilamente a antiga, ou, quando muito, juntaria os elementos
dispersos num único documento, numa única Carta constitucional (idem, p.28).
Tais autores salientam ainda que, embora essa Constituição tenha sido menos
avançada e progressista do que se pretendia (ou ao menos se indicava tal pretensão), ela foi o
resultado do avanço possível naquele contexto; isto é, se converteu em reflexo do embate de
forças concorrentes, ideologicamente, diversas e antagônicas. É provável que mesmo os
representantes das forças ideologicamente diversas e antagônicas que atuaram no processo
Constituinte, e que contribuíram para o refreamento do ímpeto progressista das propostas
106
MARSHALL, T.H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1967.
206
apresentadas durante o processo, não se intitulem, hoje, conservadores como modo de
justificar seus posicionamentos. Também aqueles que se opuseram à inclusão destes “ideais
progressistas”107 na Constituição de 1988 se apresentaram à nação, ou à uma parte
identificável desta nação, como defensores de ideais nobres e defensáveis (como a
nacionalidade, os bons costumes e a coesão social); colocando em prática o discurso
diplomático como artifício recorrente para garantir a manutenção do status quo.
Interessante observar que, também hoje, no embate que se desenrola em torno das
políticas de cotas e de ações afirmativas dirigidas à população negra no Brasil, a denúncia de
inconstitucionalidade impetrada pelo Partido Democratas contra o sistema de cotas
implementado na Universidade de Brasília está ancorada em posicionamentos e ideais
reconhecidamente nobres e defensáveis (tais como: dignidade humana, repúdio ao racismo,
igualdade de todos os cidadãos perante a lei e direito universal à educação). Nesse caso,
tomemos como exemplo os dispositivos constitucionais tidos por afrontados e citados na
petição inicial do Partido Democratas (QUADRO 6).
QUADRO 6
Dispositivos constitucionais tidos por afrontados pelo sistema de cotas raciais da UNB,
sob o crivo do Partido Democratas e intelectuais contrários às Ações Afirmativas.
Art. 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III - a dignidade da pessoa humana;
Art. 3º - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
de discriminação.
Art. 4º - A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes
princípios:
VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;
Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e
à propriedade, nos termos seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de
interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas
aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;
XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos
termos da lei;
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
Art. 37º - A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
Art. 205º - A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a
107
A utilização da expressão “ideais progressitas”, com nítido teor valorativo, é uma referência direta ao texto de
Castro, Ribeiro (2009, p. 8).
207
colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Art. 206º - O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I- igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
Art. 207º - As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira
e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
Art. 208º - O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:
V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de
cada um.
Fonte: Elaborado pelo autor.
Como bem observado pelo ministro em seu despacho, ainda que a tese central
sustentada na ADPF, apresentada pelo Partido Democratas, trate da inconstitucionalidade das
políticas com recorte racial (elaboradas e executadas pelo Estado – Universidade Pública
Federal), questões mais profundas e abrangentes do que a compatibilidade jurídica entre as
políticas e a Constituição escrita, estão sendo discutidas na petição de inconstitucionalidade.
108
Supremo Tribunal Federal. Decisão 31/07/2009, liminar indeferida. Disponível em
<http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqo
bjetoincidente=2691269>. Acessado em 10 de Julho de 2011.
208
Também por esta razão, a Audiência Pública, convocada pelo Ministro Ricardo
Lewandowiski, se transformou em um momento de reflexão coletiva sobre a nacionalidade
brasileira, tendo evidenciado a vitalidade incômoda de alguns questionamentos que muitos
acreditavam que já tivessem sido respondidos de modo definitivo: Somos ou não um país
racista? Qual a forma mais adequada de combatermos o preconceito e a discriminação no
Brasil? Até que ponto a exclusão social gera preconceito? O preconceito em razão da cor da
pele está ligado ou não ao preconceito em razão da renda? Etc.
Uma análise minuciosa dos discursos proferidos na Audiência, tanto daqueles
preocupados em sustentar a tese da constitucionalidade quanto daqueles preocupados em
denunciar a inconstitucionalidade das políticas de cotas raciais e de Ações Afirmativas,
poderá nos ajudar a identificar os fundamentos teóricos, políticos e ideológicos que sustentam
as perspectivas individuais dos expositores sobre estas e outras questões.
Dessa forma, compreender os fundamentos que sustentam esses discursos e as
políticas de cotas no Brasil, não implica em conhecer apenas as perspectivas isoladas de
determinados indivíduos. Entende-los, de fato, possibilitar-nos-ia, compreender mais e melhor
as disputas materiais e simbólicas que giram em torno das representações sobre o Brasil, os
diferentes projetos defendidos para a nação; bem como as alternativas políticas defendidas no
intuito de conservar, atualizar ou reinventar a nação.
209
ou estão ausentes das discussões. Deste modo, a descrição numérica das categorias analíticas,
visível no QUADRO 7, será utilizada como meio de observar a importância relativa de cada
um dos argumentos no interior dos discursos, levando em conta a importância destaque de
cada uma das categorias no interior dos discursos.
210
QUADRO 7
Descrições numéricas das categorias analíticas
EXPOSITORES (AS) E COTAS E REPRESENTAÇÕES SOBRE O BRASIL ALTERNATIVAS POLÍTICAS PROJET
DURAÇÃO DOS DISCURSOS A.A O DE
NAÇÃO
Nome do Expositor Número Posicionamento Estratificação Raízes da Panorama Aspectos das Conceitos de Papel do Papel da Modelo de
total de político sobre Social desigualdad da relações Raça, Etnia e Estado e na Ciência e Políticas Ideal de
linhas do Políticas de e brasileira educação étnico-raciais Miscigenação. garantia da das Públicas Nação
Discurso Cotas básica Constituiçã Universidad
o es
Davi Cura Aminuzo 130 0 4 0 16 0 0 0 0 35 0
Demóstenes Torres 409 27 85 6 19 97 57 25 11 0 17
Hederli Fideliz 241 62 0 0 0 36 78 24 17 0 5
Ibsen Noronha 240 27 0 46 0 32 0 17 55 6 6
José Carlos Miranda 209 43 26 38 0 20 14 26 0 6 18
Roberta Kaufman 263 44 0 14 0 47 67 20 0 0 25
Sérgio Danilo Pena 231 0 0 0 0 15 80 9 51 0 0
Yvonne Maggie 325 19 16 10 19 65 37 41 0 46 25
TOTAIS 2.048 222 131 114 54 312 333 243 134 94 96
CONTRÁRIOS 100% 10,8% 6,4% 5,6% 2,6% 15,2% 16,2% 11,9% 6,5% 4,6% 4,7%
Fábio K. Comparato 124 6 20 0 0 8 0 74 0 16 0
José Jorge Carvalho 269 70 64 18 17 13 0 0 36 8 16
Kabengele Munanga 423 63 35 9 4 21 15 39 25 70 97
Luiz Fel. Alencastro 218 15 0 27 10 17 9 89 0 0 6
Marcos Cardoso 193 36 3 21 0 60 21 12 5 22 12
Moacir Carlos Silva 122 34 13 12 0 0 0 0 15 0 0
Paulo Paim 194 18 6 9 0 28 0 9 9 0 35
Sueli Carneiro 219 9 0 12 11 17 34 25 16 10 73
TOTAIS 1.762 245 142 99 42 164 79 238 106 126 239
FAVORÁVEIS 100% 13,9% 8,5% 5,6% 2,4% 9,3% 4,5% 14,1% 6,0% 7,1% 13,6%
3.810 467 273 213 96 476 412 481 240 220 335
TOTAL GERAL 100% 12,3% 7,2% 5,6% 2,5% 12,5% 10,8% 12,6% 6,3% 5,8% 8,8%
211
Sem negligenciar os aspectos qualitativos dos discursos, que serão apresentados
na seção 6.2, as informações quantitativas contidas no QUADRO 7 evidenciam alguns
aspectos interessantes abordados durante a Audiência Pública. Além disso, o quadro
apresentado acima nos permite comparar as categorias discursivas mais utilizadas pelos
participantes, como por exemplo, o geneticista Sérgio Danilo Pena (que se vale de
“Conceitos de Raça, Etnia e Miscigenação” e “Papel da Ciência e da Universidade”) e o
jurista Fábio K. Comparato (que discursa sobre o “Papel do Estado na garantia da
Constituição”). Tais comparações nos permitem também depreender algumas
semelhanças e distinções entre os discursos do conjunto de expositores que se
posicionaram em favor da constitucionalidade das cotas para estudantes negros e
aqueles que se posicionarem pela inconstitucionalidade destas políticas.
Além das questões citadas acima, podemos observar ainda que, do conjunto de
exposições realizadas na Audiência, totalizando 3.810 linhas de discursos, as reflexões
em torno dos “Conceitos de Raça, Etnia e Miscigenação”, “Relações étnico-raciais no
Brasil” e o “Papel do Estado na garantia da Constituição Federal”, tiveram destaque na
construção dos argumentos. Nesta perspectiva, é interessante analisar que 12,5% do
número total de linhas de discurso, que representam 476 unidades de contexto, fizeram
referência à categoria “aspectos das relações étnico-raciais”; 10,8% das linhas de
discurso, que representam 412 unidades fizeram menção à categoria “conceitos de raça,
etnia e miscigenação” e 12,3% destas linhas de discurso, representando 467 unidades,
fizeram menção à categoria “Papel do Estado na garantia da Constituição”.
No que tange a 1ª Dimensão, intitulada Ações Afirmativas e Cotas, nos chama a
atenção, o fato de que, do conjunto de 16 expositores que terão seus discursos
analisados neste trabalho, apenas o estudante Davi Cura Aminuzo e o geneticista Sérgio
Danilo Pena não assumiram, de modo explícito, um “posicionamento político sobre
cotas e ações afirmativas”. No caso do professor Sérgio Danilo Pena, a opção foi
restringir seu discurso à apresentação de “informações científicas”, conforme notificado
por ele mesmo. Os demais expositores se posicionaram contrária ou favoravelmente às
ações afirmativas e às cotas raciais.
Outro ponto que chama atenção: o fato de que nos discursos daqueles que se
posicionaram pela inconstitucionalidade das políticas de cotas raciais, um terço (35%)
das unidades de registro referentes à 2ª Dimensão, chamada Representações sobre o
Brasil, fazia alusão à categoria “conceitos de raça, etnia e miscigenação”, evidenciando
o destaque dado a tal categoria na construção dos discursos daqueles que se opunham as
212
políticas com recorte racial. Entre aqueles que se posicionaram favoravelmente á
constitucionalidade das políticas de cotas para estudantes negros, apenas 15% das
unidades de registro referentes à 2ª dimensão se referiam à categoria “conceitos de
raça, etnia e miscigenação”; sendo que entre estes, as categorias “estratificação social” e
“raízes da desigualdade” foram comparativamente mais lembradas, representando 27%
e 18,8%, respectivamente dos discursos.
No que se refere à 3ª Dimensão, chamada de Alternativas Políticas, podemos
observar que as referências feitas à categoria “Papel da Ciência e das Universidades”
foram proporcionalmente mais utilizadas entre aqueles expositores que se posicionaram
contra a constitucionalidade das políticas de cotas raciais; 28,4% das unidades de
registro em comparação com 22,1% entre os favoráveis. Ainda sobre a 3ª dimensão, foi
possível verificar que as referências feitas à categoria “Papel do Estado na garantia da
Constituição Federal” pelos defensores e pelos contrários às políticas com recorte racial,
foram praticamente similares: 51,7% e 51,6%, respectivamente.
No que se refere a 4ª Dimensão, nomeada Projetos para a Nação, podemos
depreender que as referências feitas à categoria “Ideal de Nação,” foram
proporcionalmente mais utilizadas entre os expositores que se posicionaram em favor da
constitucionalidade das políticas de cotas raciais, 13,6% de unidades de registro em
comparação com 4,7% entre os contrários.
213
Embora os posicionamentos políticos adotados pelos expositores (sobre a
constitucionalidade ou inconstitucionalidade das políticas de cotas raciais) não sejam
entendidos, aqui, como meros produtos de seus posicionamentos nas demais dimensões,
é possível perceber que ao fazer alusão às políticas de cotas raciais, eles,
inevitavelmente, mobilizam argumentos referentes às categorias analíticas das outras
três dimensões (Representações sobre o Brasil, Alternativas políticas e Projetos para a
Nação) para sustentar suas posições (favoráveis ou contrárias) sobre o assunto.
No intuito de evidenciar que os posicionamentos defendidos durante a Audiência
não se reduziram a defesa da constitucionalidade ou inconstitucionalidade destas
políticas, apresentaremos e analisaremos, no item 6.2, quatro subitens, sendo cada qual
referente a uma das dimensões temáticas do trabalho.
109
No intuito de conhecer a opinião pública sobre a implementação de políticas de cotas raciais,
perguntas como estas foram, amplamente, difundidas por diversos veículos de comunicação (programas
de televisão, jornais impressos, blogs na internet) no período de 2002 a 2010. No ano de 2008, o site Uol
Educação propôs aos leitores a elaboração de redações dissertativas considerando o tema: cotas na
universidade: você é a favor ou contra? Disponível em
http://educacao.uol.com.br/bancoderedacoes/cotas-nas-universidades-voce-e-a-favor-ou-contra.jhtm
Acessado em 11 de Outubro de 2011.
214
Não são verdades que, em algum momento, foram questionadas as ações
afirmativas no Brasil em favor de quem quer que seja. Não é verdade, ao
contrário. O que o Senado, hoje, tenta descobrir, com a ajuda importante do
Supremo Tribunal Federal, é qual caminho nós devemos seguir no Brasil: se
nós devemos acudir os negros ou devemos acudir todos os pobres brasileiros,
inclusive os negros? (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2010, p.132 -
Grifo nosso).
Vamos iniciar nossa exposição acerca das cotas raciais, infelizmente, a partir
de uma série de negativas para que não haja qualquer dúvida acerca dos
verdadeiros propósitos desta ação. Inicialmente, não se discute nesta ação
sobre a constitucionalidade de ações afirmativas como gênero para
proteção de minorias. (...) Faço essa constatação e essa observação porque
nós não discutimos nesta ação as cotas para índios. É importante identificar
esse fato, porque no plano de metas da Universidade de Brasília há
previsão de cotas para índios, mas nós fizemos questão de não atacá-las,
porque a discussão que se trata neste tema é apenas relativa a cotas para
negros, cotas raciais (idem, p.76 - Grifo nosso).
215
desigualdades entre negros e brancos no Brasil; os opositores a tais políticas
identificavam no processo de implementação de políticas com recorte racial a
concordância do Estado com uma nova era de desigualdades: marcada pelas distinções
raciais, antes inexistentes no Brasil. De acordo com Helderli Fideliz,
110
Segundo Kabengele Munanga, os principais obstáculos colocados sob as chances de sucesso das
políticas de cotas foram: a) é impossível dizer quem é negro ou afrodescendente em função da grande
miscigenação ocorrida no país desde seu descobrimento; b) essa política de cotas é uma solução
importada, e não uma solução que reflete as particularidades nacionais; c) as políticas de cotas violariam
o principio do mérito segundo o qual na luta pela vida os melhores devem vencer; d) a política de cotas
prejudicaria a excelência acadêmica tão importante para nossas universidades e e) a inconstitucionalidade
da política de ação afirmativa para indígenas e afrodescendentes.
216
causados pelas discriminações e, sobretudo, pelo racismo institucional.
Creio que isso é também a lógica dessa política no Brasil que
defendemos (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2010, p.237).
A idéia de colocar as cotas raciais será que não vai reavivar o sentimento
racista? Será que aquele que perdeu a sua vaga na universidade não vai dizer
amanhã: perdi porque ele tem uma cor diferente da minha. E começar a tomar
ódio dessa cor. Será que é a melhor maneira que temos no Brasil de enfrentar
as desigualdades, Ministros? (idem, p.128 - Grifo nosso).
Mas, aqui, temos de ir um pouco mais adiante, porque as cotas raciais nas
universidades são: a ponta do iceberg de um profundo significado e mudança
da sociedade brasileira. Por quê? Porque a partir da educação, desde a
infância, é que estaremos ensinando às crianças - iguais a esses
quilombolas do Recife que vemos na foto - que elas terão direitos
diferentes, que elas terão adversários de cor diferente para conseguir ter
os mesmos direitos e a mesma oportunidade na vida (idem, p.324 - Grifo
nosso).
217
Achamos que os argumentos que têm sustentado, aqueles que são
contrários ao sistema de cotas, são anacrônicos, pois eles tratam de
coisas que poderiam acontecer. Nós aqui estamos como uma prova viva do
que está acontecendo dentro da UERJ. Todos que acompanham a mídia
sabem que, desde 2003, quando instituída a cota na UERJ, não teve nenhum
tipo de morte de alunos pretos ou brancos devido à questão por ter entrado
pelo sistema de cotas, porque isso é alegado na questão do acirramento racial.
(...) E outra importante questão é que se perde no discurso dos que são
contrários, é como se ainda fosse algo que fosse ser implementado: as
cotas vão ser implementadas, vai acontecer morte, vai baixar
rendimento! Não, nós somos prova. Teve uma estudante que teve que ir
embora, mas ela é já formada, advogada, passou há pouco tempo para, ela é
residente da Procuradoria do Rio de Janeiro, e única mulher negra lá, e a
gente sabe que, se não tivesse as cotas, ela não estaria disputando essa vaga
(SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2010, p.443 - Grifo nosso).
218
Notadamente, essas contradições dizem respeito à realidade da maioria dos
países da América Latina (se agravando quando se tratam dos países que constituem o
continente africano e alguns países da Ásia), não se tratando, portanto, de exclusividade
brasileira. No entanto, muitos autores, em especial Scalon (2004) e Merklen (2005) têm
chamado a atenção para a recente tendência de associar tais contradições a sinais de
pobreza e/ou riqueza, dissociando-as das gritantes desigualdades que marcam o Brasil e
outros países da América Latina. De modo geral, esta leitura distorcida da realidade
resulta da tentativa das camadas econômica e politicamente elitizadas em converter
trabalhadores em pobres e, em consequência disso, eleger as políticas de erradicação da
pobreza como as soluções mais eficientes para resolver tais problemas. No caso
brasileiro, onde a desigualdade social “está presente em qualquer área sobre a qual o
observador se detenha: renda, educação, emprego e até mesmo cidadania são
estratificados, o que denota sua natureza multifacetada” Scalon (2004, p.10), este
exercício apresentado acima transforma a desigualdade em um fenômeno ainda mais
difícil de ser combatido.
Do conjunto de expositores que se apresentaram na Audiência Pública no STF
(2010) e, sobretudo, entre aqueles que tiveram seus discursos selecionados para serem
analisados neste trabalho, é possível depreender que as referências às desigualdades
sociais e raciais, em alusão a nossa Estratificação Social, foram mais recorrentes entre
os defensores das políticas com recorte racial. Entre estes, as referências aos padrões de
desigualdade brasileira foram sempre acompanhadas de reflexões que denunciavam o
fato de que, no Brasil, as desigualdades sociais sempre estiveram articuladas com
elementos étnico-raciais, conforme salientam os discursos de Moacir Carlos, Fábio
Konder Comparato e José Jorge de Carvalho, respectivamente:
219
terços dos jovens assassinados entre quinze e dezoito anos são negros (idem,
p.268 - Grifo nosso).
Não conheço nenhum país praticamente que tenha dois grupos étnicos,
grupos raciais dominantes em que um dos grupos étnicos ou raciais tenha
confinado outro, apenas 1%, num grupo de professores universitários. Vocês
me digam se conhecem algum país parecido com esse (idem, p.94).
O Brasil, como todos nós sabemos, é um país desigual e injusto, onde os mais
desafortunados têm, desgraçadamente, muito menos oportunidades do que os
mais aquinhoados pela riqueza e pela herança educacional (idem, p.166).
220
Em consonância com o posicionamento que tende a identificar características
“democráticas” na pobreza brasileira, o historiador Ibsen Noronha, afirmou que seria
inadequado utilizar a instituição escravocrata para explicar os padrões de desigualdade
vigentes hoje no Brasil, em função do tipo sui generis de relações sociais estabelecidas
entre indivíduos (escravos e não-escravos) durante o período escravocrata no Brasil.
221
cadeia sob a suspeição de serem escravos de fuga de lugares longínquos
(idem, p.207-208 - Grifo nosso).
222
situação pior e numa situação de base da pirâmide social. No entanto, a
interpretação possível para isso ora pode ser o racismo, ora pode ser o
fato de que, infelizmente, no Brasil, os negros são a maiorias dos pobres.
Então, quando você diz, por exemplo, que 90% dos negros não têm acesso a
esgoto e que 90% dos brancos têm acesso a esgoto, será que por trás desse
dado estatístico não está uma condição de renda? (idem, p.85).
(...) antigamente, dizia-se para o movimento negro, vocês não têm dados,
vocês não conseguem provar e agora vêm os institutos de pesquisa, os
centros de pesquisa do Brasil, produzem uma série de dados para provar a
existência do racismo e vem às pessoas aqui dizer que esses dados estão
sendo manipulados. Como é que pode? Que loucura é essa? (idem, p.293).
223
De acordo com o INEP, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais, que fez o último Índice de Desenvolvimento da Educação
Básica, o IDEB, de uma escala de zero a dez, os alunos do primeiro ciclo
do ensino fundamental obtiveram a pontuação de 4,2; já os alunos do
segundo ciclo do ensino fundamental conseguiram em média 3,8; enquanto
os alunos do ensino médio conseguiram 3,5 pontos. Então os alunos
brasileiros, infelizmente, são analfabetos. Independentemente da cor que ele
tenha ao estudar, ao frequentar uma escola pública, ele não consegue
aprender. O ENEM 2008, numa escala de zero a cem, a média nacional foi
de 41,69 pontos. Os alunos da escola pública conseguiram alcançar a média
de 37,27 pontos e os estudantes da rede privada de ensino obtiveram a média
de 56,12 pontos; nota inferior: 11,3 pontos em relação a 2007. Então, ineficaz
e discriminatória é a nossa escola pública, Ministro (idem, p.122 - Grifo
nosso).
224
transformaram no ponto alto da Audiência Pública, possibilitando a visualização das
nítidas oposições entre os expositores.
Considerando essas questões, o geneticista Sérgio Pena retoma tais conceitos em
seu posicionamento:
225
No discurso de Helderli Fideliz, presidente da organização Nação Mestiça e
coordenadora da Associação dos Caboclos e Ribeirinhos da Amazônia, o processo
histórico de miscigenação brasileira, abordado por quase todos os expositores contrários
às cotas, foi analisado mediante uma perspectiva inovadora, evidenciando a
complexidade e ambiguidade dos conceitos estruturantes do campo e das próprias
relações raciais no Brasil.
Uma leitura precipitada do discurso de Helderli Fideliz nos levaria a crer que
seus argumentos não se distinguem em nada dos demais argumentos contrários às cotas
e as ações afirmativas apresentados na Audiência. Todavia, orientada por uma
perspectiva culturalista, a presidente da Nação Mestiça, ao mesmo tempo em ratifica o
imaginário de que o processo de miscigenação no Brasil ocorreu de maneira harmônica
no Brasil, parece discordar de uma visão sintetizadora das identidades étnico-raciais
oriundas da miscigenação. Ao mesmo tempo em que reconhece a legitimidade de
reivindicações em torno de identidades especificas, derivadas de uma cultura comum e
de um esforço político em forjar uma identidade coletiva, Helderli procura demarcar as
diferenças identitárias entre pardos e pretos, possuidores de referenciais identitários
distintos. Ao invés de defender a máxima Freyriana de que “todos somos iguais, porque
somos mestiços”, Helderli, em nome dos mestiços e caboclos, parece reivindicar o
reconhecimento de uma identidade autonomamente parda e mestiça.
226
Do ponto de vista conceitual, ao mesmo tempo em que problematiza a noção
binária que opõem negros a brancos, Helderli problematiza a síntese homogeneizadora
de uma identidade brasileira única. Contudo, do ponto de vista político, ela adota uma
posição contraditória, ao se filiar a “Santa Aliança” contra as cotas raciais, grupo que
por diversas vezes explicitou sua preocupação com a defesa de uma identidade nacional
única, virtualmente ameaça pela racialização da Nação e pela adoção de identidades
particulares 111.
As réplicas apresentadas pelos defensores das políticas com recorte racial, tanto
em relação às críticas feitas por Demostenes Torres, por Roberta kauffman e por
Helderli Fideliz, procuraram mostrar como as distinções raciais vigentes no Brasil,
independente de sua inoperância genética, são resultado de uma sofisticada construção
social e política, que tem possibilitado uma alquimia naturalizante de características
fenotípicas em comportamentos morais e cognitivos (como o imaginário popular que
sustenta a teoria de que todo negro é suspeito ou ladrão). Estabelecendo um estreito
diálogo com o discurso de Helderli Fideliz, Sueli Carneiro e Marcos Cardoso, em
particular, argumentaram que o imaginário complexo acerca da miscigenação no Brasil,
é um elemento fundamental do quadro sui generis das Relações raciais no Brasil.
111
Dada à complexidade desta problemática, o reconhecimento identitário de pardos e mestiços numa
sociedade que, ao mesmo tempo em que exalta a miscigenação, perpetua e atualiza o Mito do
Branqueamento Racial (Munanga, 2004), creio que pesquisas de caráter qualitativo poderiam possibilitar
uma compreensão mais aprofundada deste fenômeno.
227
Marcada pela hierarquização racial, a nossa sociedade moldou-se como
um modelo racista sui géneris. Aqui, não se precisa de um instrumento
legal para excluir, objetivamente, a população negra das possibilidades
efetivas de emancipação econômica, política, acadêmica e social. A partir
do discurso da sociedade harmônica e pacífica articularam-se fórmulas
objetivas e eficazes que geram barreiras para a ascensão social negra, de
forma que, cotidianamente, negras e negros são postos à prova tendo que
demonstrar genialidade para aquilo que, em verdade, bastaria algum esforço.
É o racismo institucionalizado pela imprensa, pelo judiciário, pelo senso
comum, pela escola e, sobretudo pela Academia. A legitimação simbólica e
política se da pela reprodução de que somos todos iguais, que vivemos
numa sociedade multicultural e de que o cruzamento racial se deu a
partir de bases integradoras. (idem, p.291 Grifo nosso).
Como dizia Darcy Ribeiro, temos uma história tão bonita de miscigenação...,
Darcy Ribeiro que hoje também é excomungado pelo movimento, porque
diz que aqui é um caldeirão maravilhoso de cores e raças, como é que nós
podemos tratar, portanto, dessa questão do africano escravizado. É tão
equivocada essa visão, que, por exemplo, Paul E. Lovejoy, que escreveu um
livro acerca especificamente do tema, mostra lamentavelmente que, até o
início do século XX, o escravo era o principal item de exportação da pauta
econômica africana. As negras foram estupradas no Brasil. A
miscigenação se deu pelo estupro. Foi algo absolutamente forçado.
Gilberto Freire, que hoje é completamente renegado, mostra que isso se
deu de uma forma muito mais consensual e que, felizmente, isso levou o
Brasil a ter hoje essa magnífica configuração racial (idem, p.129 - Grifo
nosso).
228
Ao referir-se ao processo de miscigenação no Brasil, baseando-se na obra de
Gilberto Freyre, o senador Demóstenes Torres voltou a provocar a indignação de muitos
expositores presentes e também da audiência que acompanhava o debate no segundo
andar do STF. Na oportunidade, o também senador da República Paulo Paim, que não
estivera presente no primeiro dia da Audiência quando do pronunciamento do senador
Demóstenes (e tão pouco estava inscrito para se pronunciar) provocou o colega de casa,
fazendo referências “indiretas” ao mesmo.
Eu confesso que, quando vim pra cá, eu sabia que Vossa Excelência ia me
dar a palavra. Eu pedi, pedi mesmo, do fundo do meu coração, que o espírito
de Zumbi, com a liderança de Mandela, que a história de Gandhi me
iluminasse nesse momento (...) Eu queria também dizer a vocês que nos
debates que já participei dessa questão do preconceito e do racismo, eu
ouvi de tudo já. Ouvi, por exemplo, (...) de pessoas dizerem para mim em
audiências públicas, não é bem assim essa história de que as mulheres
negras foram violentadas. Elas consentiam e até gostavam. E a pergunta
que eu fiz a esse cidadão e ele ficou sem resposta: você acha que se a tua
mãe, a tua irmã, se a tua filha fosse violentada, você gostaria? Ele ficou
mudo, não teve resposta. Então, este é um tema que eu não quero nem trazer
para o debate (idem, 148-149).
112
No dia 04 de Março de 2010, o jornalista Élio Gaspari publicou no Jornal Folha de São Paulo um
artigo intitulado “A teoria negreira do DEM saiu do armário”. Disponível em
<http://www.news.afrobras.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=284:elio-gaspari-a-
teoria-negreira-do-dem-saiu-do-armario&catid=35:artigos&Itemid=56> Acessado em 10 de Setembro de
2011.
Também no dia 04 de Março de 2010, os jornalistas Laura Capriglione e Lucas Ferraz publicaram no
Jornal Folha de São Paulo o artigo intitulado “DEM corresponsabiliza negros pela escravidão”.
Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u702198.shtml>. Acessado em 10
de Setembro de 2010.
229
Controvérsias à parte, vale à ressalva que: de fato, Gilberto Freyre fez várias
referências, em suas obras, às relações sexuais entre senhores de escravos e suas
escravas. Entretanto, não encontramos em nenhuma, embasamentos teóricos que
legitimem a afirmação do senador. No terceiro capítulo de sua obra maior, Casa Grande
e Senzala (1993), Freyre afirma que:
Neste trecho (como nas demais obras de sua autoria), a descrição da dinâmica
das relações sexuais entre membros da casa Grande e da Senzala, que mesclam aspectos
de violência e benevolência, parece coadunar com a perspectiva adotada pelo autor
sobre as demais esferas das relações sociais no Brasil, marcadas, não pelo conflito
aberto, mas pelo equilíbrio de antagonismos. A adesão a esta perspectiva “freyrriana”,
que reconhecia o Brasil como paraíso racial (se comparado a outras nações), não se
limitou ao senador Demóstenes Torres. O jurista Ibsen Noronha também fez referências
elogiosas ao autor pernambucano ao discorrer sobre o risco “em potencial” de
acirramento dos conflitos raciais no Brasil.
230
pretenderam-se justiceiros da História (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL,
2010, p. 196-197 - Grifo nosso).
“Expurgar todo tipo de ideologia das análises históricas e sociais”, este seria o
modo mais adequado, na opinião do jurista de garantir análises que produzissem
alegrias e não tristezas ou magoas. É curioso observar que: ao mesmo tempo em que se
filia a um modelo normativo capaz de produzir conhecimento histórico e felicidades, o
expositor reafirma seu posicionamento desprovido de ideologia. Ora, tanto os
indivíduos que abraçam concepções que atribuem à história (e/ou às demais ciências) o
papel de viabilizar a emancipação dos oprimidos por meio de denúncias das relações
sociais assimétricas (de classe, gênero ou raça); quanto àquele que se filiam as
concepções científicas “aparentemente” neutras (mas, que estão empenhadas em
produzir ordem e conformação social) são movidos por ideologias. No entanto, ao
referir-se a uma aula que havia preparado sobre as ações legislativas voltadas para a
libertação dos escravos no período do Brasil Imperial, Ibsen Noronha recomendou aos
ministros do STF a leitura do material, salientando a capacidade elucidativa do texto
(produzido a partir de fontes primárias), que evitando histórias de segunda ou terceira
mão - cheias de ideologia.
Todavia, Ibsen Noronha e os demais expositores contrários às políticas com
recorte racial ignoraram abertamente os relatos de “primeira mão” compartilhados pelos
poucos representantes da população negra que se expressaram na tribuna. Ao ignorarem
os relatos dos expositores negros presentes na Audiência, seus dilemas, desafios e
expectativas em relação as relações raciais no Brasil, alguns dos expositores contrários
às políticas de cotas, discursavam como se estivessem sozinhos no STF. Nas exposições
de Demóstenes Torres e Roberta Fragoso Kauffman, por exemplo, ambos pareciam
dialogar consigo, decidindo, por vezes, com base em abstrações sobre a vida da
população negra, o futuro mais adequado e digno para os “objetos” de suas ações
políticas ou investigações científicas.
231
Na dimensão objetiva dos Direitos Fundamentais, cabe ao Estado proteger a
dignidade dos negros, ainda que esses não a queiram protegida, porque isso é
uma ofensa demasiada a qualquer pessoa, especialmente em relação à sua
auto-identificação (idem, p.84).
232
Os trechos dos discursos de Demóstenes Torres e Ibsen Noronha, abaixo
relacionados, ilustram esta afirmação:
233
evidências empíricas mobilizadas para sustentar tais argumentos. Nota-se, portanto, nos
diferentes posicionamentos daqueles que se opuseram às políticas de cotas, que as
diferentes evidências empíricas indicando o papel ativo do Estado brasileiro na
perpetuação das assimetrias raciais, resultados de pesquisas levadas a cabo por
intelectuais negros (Medeiros, 2004; Silva Júnior, 1988), continuam a ser tratadas como
inexistentes.
Para aqueles que enxergam de modo positivo a história de intervenções do
Estado brasileiro no campo das relações étnico-raciais do Brasil, identificando nas
intervenções estatais um propósito de harmonizar as diferenças étnico-raciais e
promover o “equilíbrio de antagonismos”, a promulgação da Constituição Federal de
1988, é vista, em geral, como o auge democrático, expressão acabada da vocação
harmonizadora da sociedade e do Estado nacional. Para aqueles que, por outro lado,
enxergam de modo negativo a história de intervenções do Estado brasileiro no campo
das relações étnico-raciais, identificando nelas uma série de esforços não declarados
para promover o silenciamento e a invizibilização das camadas subalternas (e em
especial das populações negras e indígenas), a promulgação da Constituição Federal de
1988 é vista como uma ruptura com o establishment autoritário e elitista que marcaram
as constituições anteriores.
Como conseqüência dos diferentes diagnósticos acerca da atuação do Estado
brasileiro ao longo de nossa história imperial e republicana e das diferentes expectativas
relacionadas à Constituição de 88, os expositores expressaram diferentes perspectivas
sobre o Papel do Estado na garantia da Constituição. Tanto no discurso do professor
Fábio Konder Comparato, apresentado a seguir, quanto em boa parte dos trechos de
discursos referentes ao papel do Estado na garantia da Constituição, é possível
depreender a existência de uma forte coerência interna entre os significados atribuídos a
Constituição Nacional (à essência da Constituição) e as expectativas expressas em
relação à atuação do Estado.
234
inciso III mostra que o objetivo final é a eliminação das desigualdades sócio-
econômicas. E aponta, esse dispositivo, em especial, para a erradicação da
pobreza e da marginalização social. E o inciso IV, repito, tem sido mal
interpretado, porque não se percebe o conteúdo ativo que está dentro dessa
norma constitucional: "promover o bem de todos". Não se trata
simplesmente de deixar o Estado se mover de acordo com os movimentos
ou com as pressões. Promover é indicar um rumo. E esse rumo é
republicano, o bem comum de todos. E acrescenta o dispositivo:
proibidas as discriminações (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2010, p.
266-267 - Grifo nosso).
235
papel no que se refere à prestação de serviços públicos, de forma a
ampliar sua intervenção nos domínios das relações tanto subjetivas e
privadas, buscando reduzir a igualdade formal em igualdade de
oportunidade e tratamento. Entre essas políticas, defendemos a
implementação das Ações Afirmativas e política por Cotas Raciais como
medida capaz de efetivar com mais equidade o acesso da juventude negra, da
juventude pobre e dos povos indígenas, nas instituições federais e estaduais
públicas do ensino superior e do ensino de tecnológica (SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL, 2010, p.294 - Grifo nosso).
236
Enquanto, os defensores das políticas com recorte racial reivindicavam um
modelo de Estado capaz de implementar políticas públicas que articulem ações
universalistas e ações focalizadas no combate às desigualdades, reconhecendo tanto as
especificidades geracionais, de gênero e étnico-raciais; seus opositores (como os definiu
Sueli Carneiro) reivindicavam a necessidade e, sobretudo, a premência de um Estado
implementador de políticas universalistas. Para este segundo grupo, ao passo que as
políticas reivindicadas pelos defensores das cotas carregavam consigo o perigo de
provocar a fragmentação da nação e gerar felicidade apenas para um grupo (a elite
negra); as políticas universalistas seriam àquelas redentoras, capazes de promover a
“felicidade geral da nação”. Segundo Yvonne Maggie,
... A partir dos anos 1990, alguns setores do governo brasileiro e grupos
organizados em Ongs, ansiosos por um atalho que conduzisse a maior justiça,
propuseram a criação de leis raciais que nos levassem mais rápido ao fim das
desigualdades. Tal atalho foi construído sobre o argumento de que o racismo
é um dos fatores mais importantes na produção das desigualdades da nossa
sociedade. O Brasil, nunca tendo apartado legalmente cidadãos em nome de
identidades étnicas ou raciais, tem muito a fazer para aperfeiçoar o nosso
ideal de não racismo. Porém o governo brasileiro, infelizmente, não está
cumprindo sua obrigação e tenta impor uma lei que separa os cidadãos
uns dos outros em nome da “raça”. O que hoje está sendo proposto é o
caminho inverso feito pela África do Sul de Nelson Mandela (SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL, 2010, p.167 - Grifo nosso).
237
Bastaria oferecer cotas para estudantes pobres porque eles são
majoritariamente pretos e pardos, com a vantagem de não carimbar em
suas testas a marca da cor e o estigma que certamente lhes será imposto.
Dados elaborados a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilio
(PNAD) indicam que se fizermos esta escolha o número de pretos e pardos
beneficiados será muito maior do que se escolhermos o caminho de separar
os estudantes em brancos e “negros” legalmente (idem, p.169 - Grifo nosso).
Ora, pois, por que estou aqui? Cumpro o meu dever cívico de colaborar
como cientista e geneticista, que faz pesquisa ativa sobre a formação e
estrutura da população brasileira. Vale lembrar que em questões morais
e políticas o papel da ciência seria informativa e nunca prescritiva. Em
outras palavras, a ciência nunca pode dizer o que deve ser, mas a ciência
pode dizer o que não é. Assim, a ciência serve para afastar falácias e
preconceitos e desempenha um papel libertador no exercício das escolhas
morais. E a ciência possui uma única ferramenta para cumprir o seu
papel, a das evidências empíricas, ou seja, dos fatos experimentais. Nada
mais conta. A ciência nunca acredita só em palavras, ela é sempre
238
questionadora e busca a realidade por trás das aparências, das opiniões e dos
apelos emocionais que, infelizmente, são muitos (SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL, 2010, p.157 - Grifo nosso).
Dos oito expositores favoráveis a política de cotas, que tiveram seus discursos
analisados neste capítulo, nenhum deles fez referência direta ao papel que o
conhecimento científico deveria desempenhar no mundo moderno. Contudo, as críticas
apresentadas ao modo como esses conhecimentos científicos foram produzidos e
utilizados politicamente nas últimas décadas, permite visualizar algumas das reflexões
implícitas ao modelo de ciência moderna, e aos seus pressupostos internos. Em um
movimento simultâneo, estas vozes denunciam o processo de estigmatização racial
(produzido e/ou chancelado pelo conhecimento Científico dos séculos XIX e XX), bem
como verbalizam as expectativas dos grupos “invisibilizados” em relação aos novos
compromissos epistemológicos e políticos demandados do Estado, da Ciência e das
universidades. Os expositores José Jorge de Carvalho e Marcos Cardoso ilustram a
questão:
239
Segundo Paulo Paim, os debates ocorridos ao longo dos três dias de Audiência
Pública, abordando temas como a composição da população brasileira, suas condições
de vida, as relações raciais no Brasil, etc., os fazia lembrar-se de outro momento recente
da história brasileira: os debates que precederam à Abolição da Escravatura. Referindo-
se aos debates travados entre abolicionistas e escravocratas na ocasião Paulo Paim
afirma que:
Atualmente, não são raras as análises de conjuntura que têm procurado sustentar
a “preocupante” ausência de projetos de nação, consistentes e duradouros, gestados e
levados a cabo pelas classes políticas brasileiras. Embora não seja unânime, esta
constatação é ainda mais enfatizada quando se refere ao período de gestão de Luís
Inácio Lula da Silva, e do Partido dos Trabalhadores, à frente da presidência da
República.
No âmbito deste trabalho, todavia, entre os expositores que tiveram seus
discursos analisados, não seria adequado corroborar com este diagnóstico sobre a
ausência de projetos de nação. De modo geral, os discursos revelam uma estreita relação
entre projetos de nação, o posicionamento em relação às políticas de cotas raciais, às
representações que mantêm sobre o Brasil e as alternativas políticas consideradas mais
adequadas para conservar, atualizar ou reinventar a nação brasileira. Apesar de extenso,
o trecho do discurso do antropólogo Kabengele Munanga procura desvelar a existência
de, pelo menos, dois projetos distintos de nação, ambos orientados por representações
distintas acerca das imagens do Brasil.
240
Para concluir, penso que existe um debate na sociedade que envolve
pensamentos, filosofias, representações do mundo, ideologias e
formações diferentes. Esse pluralismo é socialmente saudável, na medida
em que pode contribuir para a conscientização de seus membros sobre
seus problemas e auxiliar a quem de direito, na tomada de decisões
esclarecidas. Este debate se resume a duas abordagens dualistas. A primeira
compreende todos aqueles que se inscrevem na ótica essencialista,
segundo a qual existe uma natureza comum a todos os seres humanos em
virtude da qual todos têm os mesmos direitos, independentemente de
suas diferenças de idade, sexo, raça, etnia, cultura, religião, etc. (...) As
melhores políticas públicas, capazes de resolver as mazelas e as
desigualdades da sociedade brasileira, deveriam ser somente macrossociais
ou universalistas. (...) Nesse sentido, a política de cotas é uma ameaça à
mistura racial, ao ideal da paz consolidada pelo mito de democracia racial. A
segunda abordagem reúne todos aqueles que se inscrevem na postura
nominalista ou construcionista, ou seja, os que se contrapõem ao
humanismo abstrato e ao universalismo, rejeitando uma única visão do
mundo em que não se integram às diferenças. Eles entendem o racismo
como produção do imaginário destinado a funcionar como uma
realidade a partir de uma dupla visão do outro diferente, isto é, do seu
corpo mistificado e de sua cultura também mistificada. O outro existe
primeiramente por seu corpo antes de se tornar uma realidade social. Neste
sentido, se a raça não existe biologicamente, histórica e socialmente ela é
dada, pois no passado e no presente ela produz e produziu vítimas. Apesar do
racismo não ter mais fundamento científico, tal como no século XIX, e não se
amparar hoje em nenhuma legitimidade racional, essa realidade social da raça
que continua a passar pelos corpos das pessoas não pode ser ignorada.
Grosso modo, eis as duas abordagens essenciais que nos dividem:
intelectuais, estudiosos, midiáticos, ativistas e políticos, não apenas no
Brasil, mas no mundo todo (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, p.235-
236 - Grifo nosso).
241
Apesar da evidente polarização em torno do debate sobre cotas raciais, relações
raciais e sobre as imagens da nação brasileira, os expositores que se opuseram as
políticas com recorte racial, em especial Yvonne Maggie, Roberta Fragoso Kaufman e
José Carlos Miranda, demonstraram que interpretavam de modo distinto as razões que
moviam os grupos divergentes. Além disso, os juízos de valor atribuídos aos distintos
posicionamentos adotados na Audiência levaram os expositores contrários a inverter os
julgamentos realizados pelos defensores das políticas de cotas raciais.
242
Afirmativas não podem ser reduzidas às dicotomias maniqueístas que opõem: brancos a
negros, ricos a pobres, racistas a não-racistas. De fato, as alternativas políticas eleitas
pelos expositores para superar os problemas brasileiros - que não são reconhecidos
como problemas por todos -, parecem estar intimamente associadas às formas como
estes concebem a própria nação (representações internas sobre a nação). No sentido
oposto, embora correlacionado, os projetos para a nação brasileira (entendidos como
projeções idealizadas) ajudam a definir aquelas que são consideradas como as mais
adequadas alternativas políticas capazes de garantir tal futuro. Na referida Audiência,
enquanto um dos grupos defendia que as políticas com recorte racial não seriam, em
definitivo, as mais recomendadas para favorecer o alcance do “Brasil do futuro”; outro
grupo, se dedicava a explicitar as bases modernas nas quais se fundam as desigualdades
e a defender a implementação de políticas específicas capazes de combatê-las.
a complexidade do julgamento complexidade do julgamento sob
responsabilidade dos ministros do STF que, naquele ano, julgariam a Argüição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186 e do Recurso Extraordinário
(RE) 597.285/RS.
Sem negligenciar o inestimável auxílio que a explicitação dos posicionamentos
divergentes pode representar para os ministros do STF que, terão sob sua
responsabilidade o julgamento da Argüição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) 186 e do Recurso Extraordinário (RE) 597.285/RS, é preciso
considerar que tamanha divergência implicará, possivelmente, em um maior (e porque
não, melhor) esforço analítico sobre a matéria. A entrevista concedida pelo Ministro
Ricardo Lewandowiski, no final do terceiro dia de Audiência Pública foi um indicativo
dos possíveis impactos da Audiência sobre a decisão do STF. Embora, extremamente
relevante para a nação brasileira, ela poderia demorar mais do que os representantes dos
diferentes grupos gostariam.
Eu espero trazer isso [os processos para julgamento no Plenário] ainda neste
ano, mas claro que é um ano difícil, é um ano eleitoral, eu participo do
Tribunal Superior Eleitoral, devo ser indicado presidente, vou participar da
preparação, da organização das eleições. Dado o interesse da sociedade, o
impacto que isso tem na nação brasileira, eu vou tentar trazer isso o mais
rápido, o quanto antes possível 113.
113
Disponível em http://supremoemdebate.blogspot.com/2010/03/audiencias-publicas-e-as-quotas.html
Acessado em 12 de Outubro de 2011.
243
Ao término da audiência, o ministro admitiu que a decisão a ser tomada pelo
STF, certamente, interferiria nas políticas a serem adotadas em todas as instâncias do
governo e, sobretudo, nas Instituições de Ensino Superior federais e estaduais do país;
embora o que o STF tenha que decidir na presente ação é a legitimidade constitucional
dos sistemas de cotas adotados pela Universidade de Brasília e pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Considerando estas questões, o ministro avaliou que os
debates realizados no auditório do STF cumpriram o objetivo esperado para a ocasião:
1) possibilitar o contraditório e 2) possibilitar a abordagem dos aspectos jurídicos,
históricos, sociológicos, antropológicos, econômicos, filosóficos, biológicos,
demográficos.
Contudo, apesar da riqueza e da diversidade de abordagens e representações
sociais em jogo (ou, talvez, em função desta diversidade), o Supremo Tribunal Federal,
até a presente data (início do mês de Dezembro de 2011) ainda não se pronunciou
definitivamente sobre a matéria.
244
Considerações finais
No dia 09 de Novembro de 2011 a Lei Estadual nº 370, que instituiu cotas de até
40% (quarenta por cento) para as populações negras e pardas no acesso à Universidade
do Estado do Rio de Janeiro e à Universidade Estadual do Norte Fluminense, completou
10 anos de promulgação e de efetividade no Brasil. De 2001 a 2011, várias iniciativas
de ações afirmativas já foram implementadas em diferentes instituições de ensino
superior brasileiro, e muitos estudantes que ingressaram na graduação já concluíram
seus cursos, alguns tendo ingressado na pós-graduação e outros no mercado de trabalho.
Neste contexto, o julgamento sobre a constitucionalidade ou
inconstitucionalidade das cotas raciais na Universidade de Brasília e da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, pelo Supremo Tribunal Federal deverá incidir, não
apenas nas possibilidades futuras de promover políticas públicas educacionais levando
em consideração aspectos étnico-raciais, mas nas experiências colocadas em curso ao
longo da última década. De acordo com Hazin (2010), o deferimento pelo STF da
ADPF 186 impetrada pelo Partido Democratas e do Recurso Extraordinário,
considerando inconstitucional as políticas de cotas implementadas na UNB e na
UFRGS, pode representar a ilegitimidade de quaisquer projetos, já existentes e por
existir; de políticas públicas orientadas por recortes raciais. Por outro lado, uma decisão
favorável à constitucionalidade das políticas de cotas implementadas na UNB e na
UFRGS, pode representar a emergência de um novo e importante paradigma no Direito
Brasileiro, capaz de abalizar as novas, e as já existentes, políticas com recorte racial.
Todavia, independentemente da decisão a ser tomada pelos ministros do STF, o
debate em curso ao longo dos últimos dez anos, no interior das universidades, na mídia,
nas casas legislativas e nas conversas cotidianas, já têm provocado efeitos significativos
nas esferas política, acadêmica e cultural do Brasil, ao possibilitar à sociedade brasileira
passar em revista sua identidade nacional, as bases constitutivas de sua estrutura social
e, sobretudo, o caráter das relações étnico-raciais vivenciadas pelos brasileiros
diuturnamente. Como afirmou o ministro Joaquim Barbosa Gomes no início da
Audiência Pública promovida pelo Supremo Tribunal Federal, o debate em curso sobre
ações afirmativas no Brasil possibilitou a sociedade brasileira um encontro com um
tema “sobre o qual ela nem sempre quis discutir com a devida abertura”.
245
A grande mobilização nacional gerada pelo debate em torno das políticas de
ações Afirmativas, talvez comparável apenas às mobilizações observadas nos momentos
que precederam a Abolição da Escravidão no ano de 1888, nos indica que, de fato,
estamos vivendo em um tempo de perguntas fortes. De acordo com Santos (2008, p.
13), “as perguntas fortes são as que se dirigem não apenas às nossas opções de vida
individual e coletiva, mas, sobretudo às raízes, aos fundamentos que criaram o horizonte
das possibilidades entre o que é possível optar”.
No debate em que estamos envolvidos acerca das ações afirmativas e das cotas,
podemos afirmar que algumas das perguntas fortes apresentadas à sociedade brasileira,
e que caberão ao Supremo Tribunal Federal responder, são: como é a sociedade que
temos, e qual a sociedade que queremos conservar, atualizar ou reinventar? Qual é o
papel da escola e da universidade, e dos conhecimentos produzidos por estas
instituições, na conservação, atualização ou reinvenção da sociedade brasileira? Quais
os brasileiros estão autorizados/legitimados a acessar e produzir estes conhecimentos
escolares e acadêmicos/científicos? Por fim, quais os brasileiros estão
autorizados/legitimados a acessar os recursos socialmente valorizados, bem como os
direitos de cidadania, existentes em nossa sociedade?
Como procurei mostrar ao longo deste trabalho, as respostas dadas pelo Estado
Brasileiro às demandas apresentadas pelas entidades negras e seus membros, de meados
da década de 1930 até meados da década de 1990, estiveram, geralmente, associadas a
uma perspectiva universalista, orientada por uma noção abstrata de sujeito universal
moderno – racional, centrado e unitário.
A emergência e fortalecimento, no decurso das décadas de 1980 e 1990, de
diferentes movimentos sociais, e em particular do movimento negro contemporâneo,
possibilitou o questionamento dos modos consagrados de o Estado formular e
implementar políticas públicas dirigidas aos grupos subalternizados. Possibilitou
também o fortalecimento de propostas de políticas multiculturais, empenhadas em
evidenciar e afirmar, de modo positivo, as diferentes identidades até então
negligenciadas. Adicionalmente, as intervenções políticas do movimento negro
contemporâneo nas últimas três décadas e as contribuições teóricas e políticas dos
intelectuais negros e da ampla rede anti-racista que se fortaleceu no interior das
instituições de ensino superior, têm possibilitado evidenciar as contraditórias relações
entre um país representado como racialmente democrático e as situações que favorecem
246
a perpetuação de discriminações raciais e de altas taxas de desigualdade entre negros e
brancos.
Ao denunciar tais contradições, os atores sociais envolvidos com a pauta anti-
racista têm logrado inserir na agenda pública, não apenas um debate sobre políticas de
redistribuição socioeconômica, mas também um debate em torno das representações
sobre a sociedade brasileira (sobre a educação formal, sobre a estratificação social e as
raízes da desigualdade e sobre a dinâmica das relações raciais no Brasil). Tem logrado
também confrontar os modos convencionados de representar e lidar com os indivíduos
oriundos de grupos subalternizados. Ao mesmo tempo em que questionan as
representações sociais que os vinculavam à “micróbios” e a objetos de pesquisas, tais
atores reivindicam, para si, novos papeis sociais: no campo educacional,
socioeconômico, da política e da ciências.
Para aqueles que desconheciam a historia de mobilização e de lutas das
entidades e das associações negras do inicio do século XX, do movimento negro
contemporâneo fundado na segunda metade da década de 1970, e das pautas
reivindicatórias (sobretudo no campo educacional) que o movimento negro
contemporâneo herdou de entidades como a Frente Negra Brasileira e o Teatro
Experimental do Negro, as demandas por políticas de Ações Afirmativas aplicadas ao
ensino superior brasileiro foram tratadas como modismos e/ou importação de modelos
norte-americanos. Também por isso, tais demandas foram fortemente criticadas e
combatidas, principalmente pelo grupo de intelectuais, artistas e ativistas de
movimentos sociais que, rapidamente, se organizou e se auto-intitulou “movimento
contra a racialização do Brasil”. A partir de então, passaram a imputar às políticas de
cotas raciais e ações afirmativas uma série de capacidades catastróficas. Dentre as
críticas mais recorrentes, figuravam aquelas que atribuíam às cotas e as ações
afirmativas a de criar identidades raciais estanques, de criar e/ou acirrar conflitos raciais
na sociedade brasileira, de provocar a queda da qualidade acadêmica, de incentivar o
desprezo pelo mérito individual e de provocar a desagregação da unidade nacional.
Referindo-se a alguns dos possíveis impactos negativos das políticas de cotas
raciais, os signatários do Manifesto “113 cidadãos anti-racistas contra as leis raciais”,
produzido no ano de 2008, afirmavam que as “leis raciais não ameaçam uma “elite
branca”, (...) mas passa(vam) uma fronteira brutal no meio da maioria absoluta dos
brasileiros. Essa linha divisória atravessaria as salas de aula das escolas públicas, os
247
ônibus (...), as ruas e as casas dos bairros pobres”114. Como alternativa política às cotas
raciais, e seus potenciais efeitos nefastos, os signatários do mesmo Manifesto exigiam
do Estado brasileiro a implementação de políticas universalistas, capazes de “elevar o
padrão geral do ensino mas, sobretudo, romper o abismo entre as escolas de qualidade,
quase sempre situadas em bairros de classe média, e as escolas devastadas das periferias
urbanas, das favelas e do meio rural”.
Da perspectiva adotada por Santos (1999), a de que estaríamos vivendo em um
tempo de perguntas fortes e de respostas fracas, a resposta política apresentada pelos
signatários do Manifesto contrário às cotas pode ser considerada uma resposta fraca, na
medida em que. não dá conta de reduzir a perplexidade que as perguntas fortes
explicitam; e pelo contrário, possibilita a ampliação desta perplexidade. Ao optar por
alternativas políticas que tendem a adiar a solução dos problemas a serem enfrentados,
(ex: “é preciso melhorar o ensino fundamental, gerando oportunidades iguais para todos
ingressarem no ensino superior”), os detratores das políticas de cotas raciais tendem a
transferir para um “futuro incerto” o horizonte das possibilidades em que seria possível
atuar, esvaziando o presente de possibilidades de atuação. De acordo com Santos
(2002), a indolente racionalidade hegemônica, ao contrair o presente e expandir o
futuro, tende a transformar o presente em experiência fugaz e passageira, tornando-se
responsável pelo extraordinário desperdício das inúmeras experiências sociais existentes
no mundo. Em oposição à esta razão indolente, responsável pelo aumento progressivo
deste desperdício, Souza (idem) propõe a emergência de uma razão cosmopolita que,
numa fase de transição, deveria “expandir o presente e contrair o futuro. Só assim seria
possível criar o espaço-tempo necessário para conhecer e valorizar a inesgotável
experiência social em curso no mundo de hoje”.
Para expandir o presente, Santos (idem) propõe a realização de uma Sociologia
das ausências; e para contrair o futuro, propõe uma sociologia das emergências.
Segundo ele, a sociologia das ausências consistiria numa investigação visando
demonstrar que o que não existe é, na realidade, ativamente produzido como não-
existente, isto é, como uma alternativa não credível ao que existe. O objetivo da
sociologia das ausências seria transformar as ausências em presenças. A sociologia das
emergências, por sua vez, consistiria na substituição do vazio do futuro por um futuro
de possibilidades plurais, concretas, simultaneamente utópicas e realistas, que se
114
Disponível no site: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR83466-6014,00.html.
Acessado no dia 15 de Outubro de 2011.
248
começaria a construir no presente. Segundo Santos (idem), o conceito que orientaria tal
sociologia seria o ainda-não, proposto por Ernst Bloch (1995)115. O ainda-não seria, por
um lado, a capacidade (potência) e, por outro, a possibilidade (potencialidade),
representando o movimento do mundo. Deste modo, a sociologia das emergências
consistiria numa investigação das alternativas possíveis no horizonte das possibilidades
concretas, o que possibilitaria uma ampliação do presente, juntando ao real as
possibilidades e as expectativas futuras que ele comporta.
Conforme procurei mostrar ao longo deste trabalho, as reivindicações e
mobilizações políticas realizadas em prol de políticas de redistribuição, reparação e
reconhecimento dirigidas à população negra no Brasil, que tem gerado posicionamentos
apaixonados de lado a lado, não podem ser tomadas como invenções de nosso tempo
presente. Ao resgatarem as demandas e as proposições políticas formuladas pelos
militantes e pelas entidades negras que atuaram no país desde o final do século XIX, os
intelectuais negros e a ampla rede anti-racista que se articulou no Brasil e no mundo têm
exercitado, na práxis, uma sociologia das ausências, ao evidenciar que aquilo que não
existe (a história da África e dos africanos no Brasil, por exemplo) foi ativamente
produzido como não existente. Adicionalmente, ao se organizarem, teórica e
politicamente, as entidades anti-racistas e os intelectuais negros têm pressionado as
diferentes instâncias do Estado brasileiro a repensar os modos convencionados de
pensar a educação formal, a ciência moderna, a política e o Estado. Com este
movimento, que de modo inovador e contraditório têm articulado ações de contestação,
de reivindicação e de proposição política, os atores sociais alinhados a uma perspectiva
anti-racista têm contribuído, tanto para a desestabilização de algumas representações
sociais historicamente construídas e socialmente legitimadas, quanto para a
desestabilização dos modos convencionados de intervir na esfera política brasileira,
colocando em prática uma verdadeira sociologia das emergências.
De acordo com Gomes (2011) Na defesa que fazem das políticas de ações
afirmativas, a ampla rede anti-racista que se articulou no Brasil e no mundo, ao mesmo
tempo em que se vincula à um novo projeto utópico para o Brasil, evidencia sua
preocupação em fortalecer os lastros com as experiências sociais vivenciadas no tempo
presente, procurando, assim, expandir o presente e contrair o futuro. Ao trazem para o
debate político e educacional os saberes identitários, políticos e corpóreos construídos
115
Bloch, Ernst. The principle of hope. Cambridge, Mass. MIT Press, 1995.
249
pela comunidade negra e sistematizados pelo movimento negro brasileiro ao longo da
história, os debates em torno das ações afirmativas trazem à tona (tiram da ausência),
um conjunto de saberes e experiências sociais capazes de favorecer a utópica reinvenção
da nação brasileira.
250
Diferentemente do ESQUEMA 1, apresentado e discutido no capítulo 5, o que se
observa nesta nova racionalidade orientada pelas experiências de ações afirmativas e de
cotas é a possibilidade de construção de um outro projeto de nação no qual as relações
étnico-raciais, vistas como estruturais e estruturantes da nossa constituição social e não
somente como mero epifenômeno da classe, sejam reconhecidas como um componente
importante na construção de uma sociedade democrática. Ao incorporar a dinâmica das
relações étnico-raciais no debate sobre o Brasil, estes novos atores políticos colocam em
relevo não só a miscigenação ou intensa diversidade cultural brasileira, mas, sobretudo,
a presença do racismo como mecanismo gerador de situações de distanciamento social,
político, econômico e educacional de negros e brancos. Abordam temas do presente,
como a perpetuação da desigualdade educacional entre negros e brancos, e revisitam
temas do passado, como o drama da escravidão, não como exercício de retórica, mas
com o objetivo declarado de não repetir os erros do passado e superar os obstáculos do
presente. Procuram com isto, não apenas reinventarem discursos sobre a nação
brasileira, mas reinventar modos políticos de intervir e viver no Brasil.
251
Esquema 2 – Nova racionalidade sustentada pela rede anti-racista
EXPERIÊNCIAS DE
IMPLEMENTAÇÃO DE COTAS
E AÇÕES AFIRMATIVAS
COTAS E AÇÕES
AFIRMATIVAS MODELOS
ESTRATIFICAÇÃO
PANORAMA DE POLÍTICAS
SOCIAL
DA EDUCAÇÃO PÚBLICAS
BÁSICA
REPRESENTAÇÕES ALTERNATIVAS
SOBRE POLÍTICAS
RAÍZES DA
DESIGUALDADE O BRASIL ASPECTOS DAS PAPEL DAS
RELAÇÕES CIÊNCIAS E DAS PAPEL DO ESTADO
ÉTNICO-RACIAIS UNIVERSIDADES E A GARANTIA DA
CONCEITOS DE CONSTITUIÇÃO
RAÇA, ETNIA E
MISCIGENAÇÃO
PROJETO
PARA A
NAÇÃO
MODELOS
IDEALIZADOS
PARA A NAÇÃO
252
Além das inúmeras experiências de ações afirmativas que têm sido colocadas em
práticas nos últimos anos em diferentes instituições de ensino superior, a crescente
produção bibliográfica sobre tais experiências também pode nos ajudar a compreender
as dimensões concretas da implementação destas ações, bem como dos impactos
pedagógicos, políticos e administrativos que o ingresso de um novo perfil de estudantes
tem provocado no interior destas instituições. São impactos externos e internos às
universidades, principalmente, as públicas. Um deles, e que merece ser mencionado, diz
respeito à necessidade de se repensar as políticas de permanência adotadas por essas
instituições, exigindo um redimensionamento das tradicionais políticas de assistência
estudantil já adotadas. Estas últimas têm sido alvo de discussões no interior do
Ministério da Educação e de várias críticas e demandas de aperfeiçoamento oriundas,
sobretudo, dos estudantes e do movimento estudantil. A política de cotas traz para a
universidade a necessidade de se redemocratizar por dentro, na medida em que amplia o
acesso a um público que antes quase não se via representado nos seus quadros
estudantis e acadêmicos.
Da perspectiva dos intelectuais negros, do movimento negro e da rede anti-
racista envolvida nos debates, estas experiências podem nos ajudar a construir respostas
fortes capazes de superar a perplexidade causada pelas perguntas fortes.
Wanderley (2008), refletindo sobre a história de introdução das cotas nos cursos
de graduação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, afirma que, apesar das
polêmicas e dos desafios enfrentados pela UERJ para assegurar a permanência dos
estudantes cotistas (o que a obrigou a reinventar suas políticas de permanência), a
reserva de vagas para estudantes negros e oriundos de escolas públicas provocou uma
necessidade interna de compreender melhor a dinâmica das ações afirmativas,
impelindo a universidade a se organizar para participar criticamente do processo de
convivência democrática com as diferenças. Já a equipe de Coordenação do Programa
Afrouneb, refletindo sobre os impactos da adoção de políticas de ações afirmativas na
Universidade Estadual da Bahia no ano de 2003, afirmou que as ações desenvolvidas no
programa têm repercutido positivamente no fortalecimento dos vínculos existentes entre
a universidade e os sistemas educacionais públicos da Bahia, na disponibilização de
material didático produzido, nas propostas metodológicas e nos processos de formação
continuada de professores, no auxilio acadêmico aos estudantes cotistas e na prática de
pesquisa na graduação e na pós-graduação. “Enfim, influem na qualidade do ensino
fundamental e na construção estrutural (...), daquilo que no título deste programa,
253
nomeamos como ‘uma nova cultura universitária’” (Machado; Mattos; et. all, 2008, p.
8).
Adicionalmente, e não menos importante, as políticas de cotas raciais e ações
afirmativas têm provocado impactos significativos nas histórias de vidas de milhares de
estudantes negros e suas famílias. Tais impactos não são mais apenas promessas
projetadas no futuro. São realidades observáveis no presente. Como afirmam alguns
estudantes negros(as) participantes de programas de ações afirmativas, de diferentes
instituições de ensino superior, que tiveram seus depoimentos reunidos no livro “Acesso
e Permanência da População Negra no Ensino Superior116”, o ingresso e/ou a
permanência em instituições de ensino superior, por meio de ações afirmativas, não
significou apenas a alteração de horizontes econômicos individuais. Não significou,
tampouco, a alteração apenas dos horizontes econômicos familiares. No plano
individual, o ingresso e a participação em programas de ações afirmativas significaram
alterações, tanto nas representações sobre a sociedade brasileira e sobre as relações
raciais, quanto nas identidades étnico-raciais e na auto-estima. No plano familiar,
significou a disseminação (para irmãos, primos, tios, etc.) de expectativas em relação à
educação formal, e de uma ética anti-racista questionadora das hierarquias raciais. No
plano acadêmico e profissional, as atividades de fortalecimento acadêmico
desenvolvidas no interior de diversos programas de ações afirmativas possibilitaram, de
modo direto e indireto, que os estudantes se tornassem referências, tanto fora, quanto
dentro de suas universidades.
O depoimento de uma estudante negra da Universidade Federal Fluminense,
participante de um grupo de estudos formados por estudantes negros, pode ser
ilustrativo das dificuldades, dilemas e potencialidades enfrentados pelos estudantes e
pelas políticas de ações afirmativas aplicadas ao ensino superior brasileiro. Ao
analisarmos a fala da depoente é possível perceber algumas das diferentes forças em
confronto no sentido de conservar, atualizar ou reinventar a dinâmica das relações
raciais no Brasil e, além disto, conservar, atualizar ou reinventar a própria nação
brasileira.
Há que se perguntar por que passado séculos de superação da escravidão (1888),
com o advento da república (1889), com os avanços políticos expressos por meio da
116
LOPES, Maria Auxiliadora; BRAGA, Maria Lúcia de Santana. (Org.). Acesso e permanência da
população negra no ensino superior. 1a. ed. Brasília: SECAD- Unesco, 2007.
254
Constituição Federal de 1988 na qual no artigo V, inciso XLII, o racismo passa a ser
considerado crime inafiançável e imprescritível, ainda temos que lidar com depoimentos
e sentimentos como os transcritos logo abaixo e que fazem parte da trajetória de
estudantes negros que ingressaram no ensino superior público brasileiro por meio das
cotas. Até quando ainda veremos o sentimento de que “tudo é mais difícil” para
determinados coletivos considerados diversos? O que há no “ambiente da universidade”
que interpõe tantos desafios para esses estudantes e que vão além do acadêmico? O que
a estudante do depoimento abaixo sinaliza ao dizer que, no seu processo de
permanência, ter encontrado um grupo de interlocução e de identidade lhe renovou os
ânimos emocionais e acadêmicos? Estamos falando só de mérito? Ao que tudo parece,
estamos diante de algo mais complexo, algo forte, que exige medidas fortes,
democráticas e coletivas, as quais poderão ser construídas por meio de uma nova
racionalidade que está em curso – em um processo de tensão – e que com avanços e
limites tem sido sustentada por ações que visam a construção de uma política
educacional democrática, afirmativa e anti-racista:
Existem horas que dá vontade de desistir de tudo... por que tudo pra
gente é mais difícil? Minha sorte é esse grupo. Aqui a gente chora a
nossa dor, respira fundo e os companheiros nos reanimam... é o que
me sustenta e me mantém ainda nesse ambiente de universidade...
não é mole não... é matar um leão por dia... desculpa (choro) mas se
desisto... qual é meu mérito? Vou até o fim. (Depoimento de uma
aluna negra da UFF) (Rocha, 2007, p. 257-258).
255
afirmativas colocam em xeque a nossa capacidade democrática de incluir os ocupantes
de patamares críticos de desigualdade e os diferentes, historicamente tratados como
inferiores.
Não se trata, aqui, de enalter as cotas e demais medidas de ação afirmativas de
maneira acrítica, mas, pelo contrário de construir e publicizar acadêmica e politicamente
outra forma de interpretá-las e trazer a emergência todo o processo histórico de lutas do
qual são herdeiras e fazem parte - um processo ainda feito invisível em muitos fóruns
onde esse debate acontece. Procurei nesse trabalho, entendê-las criticamente, e
contextualizá-las em meio a dois principais e tensos projetos de Brasil formulados desde
a abolição: o da conservação e o da reinvenção da nação à luz da questão racial. Para
tal, esse debate passa por um processo tenso de atualização, formulado por grupos
distintos e com lugares diferenciados na hegemonia política, econômica e acadêmica. É
o que vivemos nesse momento.
No caso da universidade, as ações afirmativas são entendidas, aqui, como
oportunidades acadêmicas coletivas e mais democráticas para incluir em patamar de
igualdade os sujeitos sociais considerados diversos, produzindo uma nova cultura e uma
outra política de ensino superior. As cotas raciais e demais iniciativas de Ações
Afirmativas que visam à permanência de estudantes negros na universidade, a despeito
de toda a polêmica e opiniões contrárias e favoráveis, têm possibilitado aos próprios
jovens negros rever conceitos e lógicas internalizadas sobre si mesmos, sobre suas
capacidades e seus desempenhos. Jovens negros mais afirmativos. Mais do que mérito,
trata-se da oportunidade de, por meio de experiências acadêmicas mais justas,
possibilitar o direito ao ensino superior como um fato, uma trajetória possível a todos, e
não somente para alguns. Enfim, trata-se de possibilitar a esses jovens o direito a uma
trajetória acadêmica forte que permita, ao longo desta, fazer uma revisão de si e de seu
potencial humano contestador, dinâmico e criativo.
Como é mágico compreender que somos capazes; não sei se é explícita
a magnitude que esta palavra assume: Capacidade. Serei professor,
médico ou artista, não importa isso agora; o que importa é que digo aos
meus primos que somos capazes, e que, se algo deu errado, é porque
lutamos “ainda contra a corrente”. Mas o mais importante é que
sabemos que somos capazes, agora sabemos (Morais,2004, p. 247).
256
Referências bibliográficas
ALONSO, Angela. Joaquim Nabuco: O crítico penitente. IN: André BOTELHO; Lilia
Moritz SCHWARCZ. Um enigma chamado Brasil: 29 intérpretes e um país. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.
ARAÚJO, Márcia Luiza Pires de. A escola da Frente Negra Brasileira na cidade de São
Paulo (1931 – 1937). Dissertação (mestrado) - Universidade de são Paulo. Faculdade de
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ANEXO I
I. Alan Kardec Martins Barbiero - Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições
Federais de Ensino Superior (ANDIFES).
III. Carlos Alberto da Costa Dias - Juiz Federal da 2ª Vara Federal de Florianópolis.
VII. Cledisson Geraldo dos Santos Junior – Diretor da União Nacional dos Estudantes
(UNE) - União Nacional dos Estudantes (UNE).
272
XII. Eunice Ribeiro Durham – Doutora em Antropologia Social pela Universidade de
São Paulo (USP), Professora Titular do Departamento de Antropologia da USP e
atualmente Professora Emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
USP.
XIV. Fernanda Duarte Lopes Lucas da Silva - Juíza Federal da Seção Judiciária do Rio
de Janeiro - Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE).
XX. João Feres. Mestre em Filosofia Política pela UNICAMP. Mestre e Doutor em
ciência política pela City University of New York (CUNY) - Instituto Universitário de
Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ).
273
XXVII. Luiz Felipe de Alencastro. Professor Titular da Cátedra de História do Brasil da
Universidade de Paris-Sorbonne - Fundação Cultural Palmares.
XXIX. Maria Paula Dallari Bucci – Doutora em Políticas Públicas pela Universidade de
São Paulo (USP). Professora da Fundação Getúlio Vargas. Secretária de Ensino
Superior do Ministério da Educação (MEC).
XXXI. Oscar Vilhena Vieira. Doutor e Mestre em Ciência Política pela Universidade de
São Paulo (USP) e Mestre em Direito pela Universidade de Columbia. Pós-doutor pela
Oxford University. Professor de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC/SP) e da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV/SP) - Conectas
Direitos Humanos (CDH).
274
da sociedade, bem como (ii) a mais ampla variação de abordagens sobre a temática das
políticas de ação afirmativa de acesso ao ensino superior.
A audiência pública será transmitida pela TV Justiça e pela Rádio Justiça (art.
154, parágrafo único, V, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal), assim
como pelas demais emissoras que o requererem. Tais pedidos deverão ser encaminhados
à Secretaria de Comunicação Social.
Publique-se.
275
ANEXO II
276
ANEXO II
277
ANEXO III
278