JESUS, Rodrigo Ednilson. Ações Afirmativas, Educação e Relações Raciais - Conservação, Atualização Ou Reinvenção Do Brasil

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

AÇÕES AFIRMATIVAS, EDUCAÇÃO


E RELAÇÕES RACIAIS:
CONSERVAÇÃO, ATUALIZAÇÃO
OU REINVENÇÃO DO BRASIL?

RODRIGO EDNILSON DE JESUS

BELO HORIZONTE
2011
Jesus, Rodrigo Ednilson de.
J58a Ações afirmativas, educação e relações raciais :
T conservação, atualização ou reinvenção do Brasil? / Rodrigo
Ednilson de Jesus. - UFMG/FaE, 2011.
277 f., enc,

Tese - (Doutorado) - Universidade Federal de Minas


Gerais, Faculdade de Educação.
Orientadora: Nilma Lino Gomes.
Inclui bibliografia.

1. Educação -- Teses. 2. Programas de ação afirmativa --


Teses. 3. Relações raciais -- Teses.
I. Título. II. Gomes, Nilma Lino. III. Universidade Federal de
Minas Gerais, Faculdade de Educação.

CDD- 370.19342

Catalogação da Fonte : Biblioteca da FaE/UFMG


Rodrigo Ednilson de Jesus

AÇÕES AFIRMATIVAS, EDUCAÇÃO E RELAÇÕES RACIAIS:


CONSERVAÇÃO, ATUALIZAÇAO OU REINVENÇÃO DO
BRASIL?

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação:


Conhecimento e Inclusão Social em Educação da
Faculdade de Educação da Universidade Federal de
Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do
título de Doutor em Educação.

Linha de Pesquisa: Educação, Cultura, Movimentos


Sociais e Ações Coletivas.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Nilma Lino Gomes

BELO HORIZONTE
2011
DEDICATÓRIA

Esta tese não poderia ser dedicada a alguém que não fosse minha mãe.
Clemência Maria de Jesus (in memorian), mulher negra nascida no
interior de Minas Gerais, começou a trabalhar na infância e somente
na fase adulta pôde concluir o ensino primário. Mesmo assim, sem
compreender bem os significados dos rituais escolares e acadêmicos,
ela depositava uma grande confiança no poder da escolarização
formal. Também por isso posso dizer que, mesmo sem imaginar que
um dia teria um filho “doto”, minha mãe foi a principal responsável
por criar as possibilidades para este momento se concretizasse.
AGRADECIMENTO

Apesar de curta, esta sessão de agradecimento foi uma das partes que mais me
consumiu tempo e memória. Na medida em que me lembrava daqueles(as) que me auxiliaram,
de maneira direta e indireta, na elaboração desta tese, lembrava-me também daqueles que
mesmo sem saber bem o tema de minha tese (ou mesmo o que era uma tese) estiveram
comigo em momentos que me ajudaram a chegar até aqui. Orientado pela preocupação de
lembrar-me de todos os grandes amigos vou organizar estes agradecimentos em quatro
núcleos, em torno dos quais minha vida está organizada. Antes, porém, gostaria de agradecer
nominalmente à duas mulheres.
Primeiramente, gostaria de agradecer à Professora Nilma Lino Gomes que, além de
excelente orientadora, têm se mostrado, ao longo dos dez anos em que nos conhecemos, uma
excelente amiga e conselheira. Sua excepcional competência acadêmica, aliada às
características de generosidade e humildade intelectual, virtudes presentes em poucos(as)
acadêmicos(as), me serviu como referência para a construção de uma sociedade e uma
universidade democrática, afirmativa e anti-racista. Quero agradecer também à minha esposa
Lorena Fernandes dos Santos que, com seus comentários e conselhos, me ajudou a superar os
incontáveis momentos em que a “síndrome da página em branco” ameaçou paralisar a escrita.
Devo acrescentar ainda que seu sorriso franco e aberto, que me recepcionou no retorno das
inúmeras viagens, foi para mim uma inesgotável fonte de inspiração.
O primeiro núcleo ao qual gostaria de me referir é o núcleo Ibirité. Quero agradecer à
minha “pequena grande família”: meu querido irmão, minha querida irmã, meus sobrinhos e
cunhados. Agradeço também a amizade da turma da CDB, que há 17 anos compartilha
comigo os melhores e os piores momentos da vida.
O segundo núcleo ao qual quero me referir é o núcleo Tupi, e as pessoas que apesar de
terem me recebido com certa desconfiança (afinal os “filósofos” não são muito normais ou
confiáveis), me acolheram como verdadeiro membro da família, aceitando e respeitando meus
hábitos e minhas manias “diferentes”.
O terceiro núcleo ao qual preciso me referir é o UFMG, no qual me formei acadêmica,
cultural, política e festivamente. Gostaria de agradecer à instituição UFMG por ter me
favorecido conhecer tantas pessoas importantes e que mudaram profundamente minha vida.
Aos inúmeros amigos feitos durante participação no Projeto Conexões de Saberes, no
Observatório da Juventude e no Programa Ações Afirmativas. Gostaria de agradecer, de modo
especial, a cumplicidade contra-hegemônica dos amigos da Coorte 2000 e do Balú Mágico.
Gostaria de dedicar um agradecimento especial à Daniel Martins, à Rivana Alves, à Fernanda
Vasconcelos que, de modo atencioso, leram partes da tese e deram valiosas sugestões, e à
Tiago Jorge, Carol Trindade, Karina Cursino e Tiago Monteiro que me auxiliaram em
momentos decisivos do trabalho.
Por fim, mas não menos importante, gostaria de me referir ao núcleo dos Vales do
Jequitinhonha e Mucuri. Agradeço aos meus alunos das diversas disciplinas da graduação da
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, que, de modo indireto, me
fizeram refletir sobre a necessidade de haver coerência entre o que eu falo enquanto
pesquisador e ativista social e o que eu faço enquanto professor. Agradeço enfim, à parceria e
a paciência de meus colegas de trabalho, especialmente aqueles lotados no Departamento
Interdisciplinar de Ciências Básicas que me provocaram a pensar sobre o significado concreto
da interdisciplinaridade e da troca de saberes.
RESUMO

A presente pesquisa, de caráter bibliográfico e qualitativo, tem dois objetivos, distintos


e correlacionados; o que explica a divisão da tese em duas partes. O objetivo principal da
primeira parte do trabalho é discutir o papel central que a educação, básica e superior,
desempenhou no processo de construção da sociedade brasileira até os dias atuais, tendo sido
utilizada, ora, como meio de manter e acirrar as distâncias sociais entre elites e camadas
subalternas da população, ora, como meio de possibilitar a inclusão social e a emancipação
socioeconômica e cultural destes grupos subalternizados. Por sua vez, o objetivo da segunda
parte deste trabalho é o de discutir como as atuais propostas de políticas de Ações
Afirmativas, que tem favorecido a retomada dos debates sobre relações raciais no Brasil, têm
tencionado o Estado, as universidades e a sociedade civil a repensarem as bases sobre as quais
se edificou o moderno Estado Brasileiro, sobretudo, a partir da Proclamação da República em
1889.
A tese que procurarei desenvolver neste trabalho é a de que as políticas públicas com
recorte racial recentemente implementadas no Brasil, em especial as políticas de Ações
Afirmativas – geralmente reduzidas a “políticas de cotas” -, têm desestabilizado as imagens
historicamente construídas e socialmente legitimadas sobre o Brasil, sobre o povo brasileiro e
sobre o modelo sui generis de relações raciais vigente no Brasil. Os posicionamentos teóricos
e políticos de diferentes atores sociais envolvidos nos debates sobre as políticas de cotas e
Ações Afirmativas, e em especial de 16 expositores participantes da Audiência Pública sobre
Políticas de Ação Afirmativa de Reserva de Vagas no Ensino Superior realizada pelo
Supremo Tribunal Federal no mês de Marco de 2010, foram utilizados para compreender as
divergentes representações sociais em disputa sobre raça e racismo, igualdade e desigualdade,
justiça e injustiça, identidade nacional e papel da educação formal.
O processo de análise dos discursos em defesa da constitucionalidade ou da
inconstitucionalidade das cotas raciais em instituições de ensino superior, tema da Audiência
Pública, evidenciou o fato de que não estamos diante apenas de “guerras de palavras”, mas de
disputas materiais e simbólicas pela imposição de concepções sobre o Brasil e, em
conseqüência, pela apropriação diferencial dos recursos materiais e simbólicos disponíveis.
Evidenciou ainda que as divergentes representações sobre o Brasil e sobre as relações raciais
brasileiras, que podem variar desde aquelas que denunciam a existência de discriminação
racial em vários espaços sociais, até aquelas que sustentam o caráter harmônico de nossas
relações raciais, estão intimamente associadas às formas como os atores sociais concebem as
alternativas políticas mais adequadas e mais coerentes com os projetos de nação aos quais se
filiam. Na concepção daqueles que denunciavam a inconstitucionalidade das políticas com
recorte racial, as políticas de cotas e de Ações Afirmativas não poderiam ser tomadas, em
definitivo, como as alternativas políticas mais adequadas para proporcionar a conservação da
“Nação Arco-Íris” - referencia a pluralidade racial brasileira. Por outro lado, o grupo defensor
da constitucionalidade das políticas com recorte racial, acreditava que somente com a
explicitação das bases modernas nas quais se fundam as desigualdades no Brasil, seria
possível conceber as alternativas políticas mais adequadas a necessária reinvenção do Brasil,
que possibilitasse a emergência de um novo tempo capaz de combinar a busca pela igualdade
com o respeito às diferenças.

Palavras chaves: Ações Afirmativas, Relações raciais e Educação.


ABSTRACT

This research, which has a bibliographical and qualitative characteristic, has two
distinct but related aims, what explains the thesis division in two parts. The main aim in the
first part is to discuss the central role that basic and higher education has played in the
constructive process of Brazilian society up to the present time, sometimes keeping social
inequalities and sometimes making social inclusion possible and promoting social, economic
and cultural emancipation of the poorest. The second part of this work aims to discuss how
current proposals of Affirmative Actions, which have helped to take up again discussions on
racial relations in Brazil, have provoked the State, universities and civil society to re-evaluate
the ground of the modern Brazilian State, principally after the Proclamation of the Republic in
1889.
The thesis I will support is that public policies presenting racial features that have been
carried out in Brazil, especially Affirmative Actions policies, often reduced to Quota policies,
broke down the historical image of Brazil, always legitimated by Brazilian society, which
reflects the Brazilian people and their sui generis racial relations. Theoretical and political
commitments regarding Quota policies and Affirmative Actions, especially the positioning of
16 expositors who participated in the Hearing on Affirmative Actions policies to reserve
places in Higher Education carried out by the Federal Supreme Court in March of 2010, were
used in order to understand divergent social representations on race and racism, equality and
inequality, justice and injustice, national identity and the formal education role.
The analysis of the speeches on the constitutionality or the unconstitutionality of race
Quota in universities and colleges, the theme of the Hearing, evidenced that we are not coping
with metaphors, but also with material and symbolic disputes to impose conceptions about
Brazil and to appropriate a different proportion of the available resources - material and
symbolic. It has also evidenced that the divergent representations of Brazil and of Brazilian
race relations can vary from those that denounce the race discrimination in many social
contexts to those that sustain the unity of race relations. These two points of view are closely
associated with how the social actors think about the political alternatives as more adequate
and coherent in relation to the nation projects they are inserted. To whom that denounce the
policy on race as unconstitutional the policy on Quota and Affirmative Actions might not be
the most appropriate alternative policies to provide the preservation of “Rainbow Nation”, in
reference to Brazilian racial plurality. On the other hand, to whom the race policies are
constitutional, just with the explanation about the modern ground on which Brazilian
inequalities are founded it would be possible to conceive of other possible policies more
adequate to reinvent the country. It would enable the emergence of a new social reality able to
combine the racial equality as an ideal and the respect for differences.

Key-words: Affirmative Actions; Race Relations; Education.


LISTA DE QUADROS

QUADRO 1 - PROPOSTA INICIAL DE INSERÇÃO NA CONSTITUIÇÃO DA “HISTÓRIA DAS

POPULAÇÕES NEGRAS DO BRASIL” E ALTERAÇÕES SUBSEQÜENTES .............................................. 143

QUADRO 2 - ARTIGO 26 DA LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO DE 1996 ............... ..........144

QUADRO 3 - ARTIGOS 26-A, 79-A E 79-B INCLUÍDOS NA LDB .................................................................. 146

QUADRO 4 - BREVE CARACTERIZAÇÃO DOS EXPOSITORES DA AUDIÊNCIA PÚBLICA ............... 193

QUADRO 5 - DIMENSÕES TEMÁTICAS E CATEGORIAS ANALÍTICAS .................................................. 198

QUADRO 6 - DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS TIDOS POR AFRONTADOS PELO SISTEMA DE

COTAS RACIAIS DA UNB, SOB O CRIVO DO PARTIDO DEMOCRATAS E INTELECTUAIS

CONTRÁRIOS ÀS AÇÕES AFIRMATIVAS....................................................................................................... 207

QUADRO 7 - DESCRIÇÕES NUMÉRICAS DAS CATEGORIAS ANALÍTICAS .......................................... 211


LISTA DE ESQUEMAS

ESQUEMA 1 – MODELO ANALÍTICO DOS DISCURSOS ............................................................ 201

ESQUEMA 2 – NOVA RACIONALIDADE SUSTENTADA PELA REDE ANTI-RACISTA ...... 252


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................ 13

PRIMEIRA PARTE

1 - A (DES)CONSTRUÇÃO SOCIAL DA NAÇÃO: CONFLUÊNCIAS E DISSONÂNCIAS ......... 23

1.1 – Sobra terra, mas falta Povo ........................................................................................................... 27


1.1.1 – A população negra nas narrativas históricas sobre Império e República ............................... 30
1.1.2 – Novas soluções para o Brasil? políticas de imigração e de assimilação ................................ 35
1.2 – A educação das populações subalternizadas e a construção da nação brasileira .......................... 51
1.2.1 – Surgimento da educação pública: fins públicos ou privados? ............................................... 53

2 – “A REVOLUÇÃO DOS MICRÓBIOS”: LUTAS POR RECONHECIMENTO E O DIREITO À UMA


NOVA HISTÓRIA ................................................................................................................................... 73

2.1 – Lutas por reconhecimento ............................................................................................................. 74


2.2 – Outros intérpretes ou outra história? ............................................................................................. 84

SEGUNDA PARTE

3 - AS AÇÕES AFIRMATIVAS E A RETOMADA DO DEBATE RACIAL NO BRASIL............ 107

3.1 – Os manifestos em torno das políticas de cotas ............................................................................ 109


3.1.1 – A abordagem culturalista e o genocídio identitário ............................................................. 117
3.1.2 – A abordagem classista e o consenso Direita/Esquerda ........................................................ 123
3.1.3 – A abordagem liberal e a defesa do mérito acadêmico ......................................................... 128
3.2 – De volta ao determinismo: “qual o desempenho acadêmico de cotistas”? .................................. 133

4 – REPERCUSSÕES POLÍTICAS E CIENTIFICAS DA “REVOLUÇÃO DOS MICRÓBIOS” 138

4.1 – Repercussões “da revolução” no campo das políticas educacionais ........................................... 140
4.2 – Repercussões “da revolução” no campo científico...................................................................... 150

5 - OS CAMINHOS PERCORRIDOS: O CAMPO DA PESQUISA E A METODOLOGIA ADOTADA


.................................................................................................................................................................. 163

5.1 – Breve sumário da Audiência Pública .......................................................................................... 163


5.2 – Os expositores e seus “discursos de verdade” ............................................................................. 191
6 - A CONSTITUIÇÃO DA NAÇÃO BRASILEIRA EM DISPUTA ................................................ 205

6.1 – Discutindo a nação ...................................................................................................................... 209


6.2 – O que discursar quer dizer? ......................................................................................................... 213
6.2.1 – Cotas raciais: “Você é a favor ou contra”? .......................................................................... 214
6.2.2 – Representações dissonantes sobre o Brasil .......................................................................... 218
6.2.3 – As alternativas políticas: modos de compreender e intervir ................................................ 232
6.2.4 – Os projetos para a Nação: conservar, atualizar ou reinventar? ............................................ 240

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................................. 245

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................................. 257

ANEXO 1: DESPACHO DE HABILITAÇÃO DE PARTICIPANTES DA AUDIÊNCIA PÚBLICA


................................................................................................................................................................................... 272

ANEXO 2: “INTERPELAÇÃO À UNESCO” – GUERREIRO RAMOS......................................... 276

ANEXO 3: “CIÊNCIA SOCIAL E IDESOLOGIA RACIAL” – LUIZ ANTÔNIO COSTA PINTO

.................................................................................................................................................................. 278
INTRODUÇÃO

A contemplação final do objeto de pesquisa explicitado neste texto resulta do processo


de autoconhecimento e entendimento de minha trajetória, como sujeito e, sobretudo, como
pesquisador, haja vista que precisei compreender quem fui (e sou), bem como o que fiz (e
faço) para discorrer sobre a temática étnico-racial que aqui se delineia. Nesse caso, não seria
inadequado afirmar que: a temática desta pesquisa me foi apresentada em meados de 2002,
quando do surgimento do Programa Ações Afirmativas 1, na UFMG, no qual fui partícipe
desde o início.

Num movimento introspectivo, vasculho na memória algumas lembranças sobre


minha vida acadêmica a fim de esclarecer o meu encontro com o tema deste trabalho. Para
tanto, regresso ao segundo semestre do ano 2000, quando ingressei no curso de graduação em
Ciências Sociais, da Universidade Federal de Minas Gerais, e conheci a professora Nilma
Lino Gomes que, não por acaso, viria a ser minha orientadora tanto na graduação como no
doutorado. E, recordo-me, então, do meu primeiro texto acadêmico (JESUS, 2004), no qual,
contando com a valorosa colaboração da professora Marildes Marinho (In Memorian),
descrevi curiosos acontecimentos que me impulsionaram a frequentar a Faculdade de
Educação, da UFMG e o “Ações Afirmativas”, cujo programa de pesquisa e extensão (embora
não fosse bolsista) estabeleci fortes vínculos teóricos, políticos e afetivos.

No (e com os membros do) Ações, evolui pessoal e profissionalmente: participei de


grupos de pesquisa, estudos, seminários (locais, regionais e nacionais); bem como pude
conhecer pessoas, opiniões e culturas diversas, que de alguma forma contribuíram para a
formação de minha identidade. Com isso, pude apresentar trabalhos em congressos, publicar

1
Programa de Ensino, Pesquisa e Extensão Ações Afirmativas, na UFMG, que integrou o conjunto dos 27
projetos aprovados no Concurso Nacional Cor no Ensino Superior, promovido pelo Programa Políticas da Cor,
do Laboratório de Políticas Públicas da UERJ, com apoio da Fundação Ford, no ano de 2001. Trata-se de uma
proposta que apresenta estratégias de intervenção com vistas a reduzir os efeitos antidemocráticos dos processos
de seleção e exclusão social impostos aos afro-brasileiros, visando promover a permanência (bem sucedida) de
estudantes negros, sobretudo, de baixa-renda, regularmente matriculados nos cursos de graduação da UFMG. O
programa objetiva, também, entrada destes nos cursos de pós-graduação, se fundamentando em duas linhas de
ação. A primeira envolve atividades para apoiar os estudantes beneficiários do programa, tanto do ponto de vista
acadêmico quanto material. A segunda se volta para o desenvolvimento da identidade étnico-racial, por meio de
debates, no interior da universidade, acerca da questão racial na sociedade brasileira e do envolvimento dos
alunos em atividades de ensino, pesquisa e extensão. Disponível em <http://www.fae.ufmg.br/acoesafirmativas/>
Acessado em 08 de Outubro de 2011.

13
artigos e capítulos de livros, lecionar em escolas regulares e universidades, orientar trabalhos
acadêmicos, ser coparticipante de bancas de conclusão de cursos e outros. Assim, aos “trancos
e barrancos”, fui me formando (e informando). E, foi me envolvendo com inúmeras
atividades acadêmicas e sociais do gênero que “me tornei negro” (SANTOS, 1983), não na
“cor da pele”, mas, no sentido lato da palavra.

Como um dos raros programas de ações afirmativas no estado de Minas Gerais (e


único do gênero na UFMG), logo, o “Ações Afirmativas” se tornou referência na temática
étnico-racial, tanto para os colegas de sala de aula, quanto para algumas instituições
educacionais fora da universidade. Embora, isso não significasse, em absoluto, que fossemos
especialistas na questão, entretanto, a incipiência das discussões em torno do assunto fez com
que fossemos vistos como “experts”. Em função disso, constantemente, éramos convidados
para realizar palestras ou participar de debates em diferentes espaços formativos, que em sua
maioria, aconteciam em escolas de ensino fundamental e/ou médio. De modo geral, em boa
parte desses eventos, a discussão girava entorno das cotas raciais que, recentemente, haviam
sido implementadas no Brasil, mais especificamente na Universidade Estadual do Rio de
Janeiro e na Universidade Estadual do Norte Fluminense, no ano de 2001.

Os discursos relacionados às políticas de cotas se tornavam enfadonhos e repetitivos,


visto que, os debates tendiam a se polarizar, posicionando, de um lado, os favoráveis e, do
outro, os contrários às políticas de cotas, fazendo com que os argumentos ficassem na
superficialidade da questão.

Dessa maneira, os opositores defendiam de modo ferrenho questões como: “é


impossível definir quem é negro no Brasil”; “essa medida é uma forma de discriminação
racial”; “essas políticas menosprezam a capacidade cognitiva dos estudantes negros”; “tais
políticas desconsideram o princípio do mérito” etc. Por outro lado, a previsibilidade dos
discursos contrários, levava os favoráveis à contraposição exaustiva de seus argumentos; uma
vez que não se preocupavam em propiciar reflexões, mas estavam empenhados em refutar os
primeiros. Nesse confuso cenário, nos encontrávamos, agindo da mesma forma, reproduzindo
as tendência e opiniões do meio, despendendo esforços para demonstrar que políticas de cotas
não eram (e não são) sinônimo de “ações afirmativas,” posto que, as mesmas dizem respeito a
uma modalidade entre as diversas medidas de ações possíveis - tendo sido, as primeiras
reivindicadas pelo movimento social negro brasileiro.

14
Hoje, nos parece óbvio que, o diagnóstico de nossas leituras introdutórias sobre as
relações raciais no Brasil evidencie que, naquela época, boa parte de nossas intervenções
resultassem de experiências pessoais (na universidade ou espaços sociais nos quais
circulávamos). Experiências essas que estimularam nossas reflexões sobre o significado de
“ser negro” neste país. E, embora, academicamente, seja questionável, particularmente, creio
que esse posicionamento “achista” de outrora fosse compreensível, uma vez que, as nossas
vivências, naturalmente, legitimavam a necessidade das políticas de ações afirmativas para a
população negra, embasando os nossos discursos em diferentes situações discriminatórias
e/ou racistas que havíamos vivenciado durante nossa vida estudantil. Quiçá, por isso, nos
parecia urgente à necessidade de evidenciar a existência do racismo no Brasil, lançando luz
sobre as questões do nosso cotidiano que, de modo geral, passam despercebidas; tais como: a
naturalidade com que são vistas as brincadeiras racistas entre colegas do ensino fundamental e
médio; o reduzido número de professores negros em cursos de ensino médio e, em especial no
ensino superior; o baixíssimo número de negros em cursos de graduação e pós-graduação, etc.

Assim, quanto mais participávamos de eventos acadêmicos vinculados à temática em


questão e líamos livros e artigos sobre o assunto, percebíamos as dificuldades materiais que
vivenciávamos para concluir o curso de graduação. Nesse caso, merece destaque que, naquela
época, havia certa sensação de insegurança quanto à violência policial ao nosso respeito,
quando voltávamos para casa no findar da noite. Era nítido que não éramos vistos com bons
olhos. A todo o momento, éramos sobressaltados pelo medo de retaliações sociais. Era como
se fossemos líderes de arruaças ou promotores de assaltos. Era como se os termos “negro e
bandidagem” fossem sinônimos. E, assim, aprofundando nessas lembranças, noto que essa
sensação não era exclusividade dos estudantes negros da UFMG. De modo geral, havia entre
a comunidade estudantil negra, em especial entre os alunos dos cursos noturnos, um
sentimento de não pertencimento àqueles espaços; imperando forte sensação de “patinho
feio”, de sermos elemento “estranho no ninho”.

Em Henriques (2000, 2001), por exemplo, descobrimos uma preocupante estatística:


“em 1999, apenas 2% dos jovens negros brasileiros estavam matriculados no ensino
superior.” O que, talvez, explicasse (mas, não justificasse) o estranhamento anteriormente
relatado, bem como o fato de sermos tão poucos (quando não, os únicos negros) nas salas de
aula.
De outra parte, ao lermos Nina Rodrigues (1976), Euclides da Cunha (2001) e Gilberto
Freyre (1993) começamos a compreender que as representações sociais, que teimavam em
15
estigmatizar e enclausurar a população negra em identidades e lugares sociais subalternos, não
eram frutos do acaso, mas, resultados de um longo processo de produção material e simbólica
que havia sido orientado por um modelo eurocentrado e “transmitia para o âmbito das
relações sociais: alguns padrões de beleza, sucesso e humanidade” antagônicos às
características dos afrodescendentes (trazidos e nascidos) no Brasil.
Em 2002, ao participarmos do II Congresso Nacional de Pesquisadores Negros, na
cidade de São Carlos, descobrimos que a produção acadêmica, no campo das relações étnico-
raciais brasileira, não se restringia às obras produzidas até a década de 1930 e elaboradas por
intelectuais brancos. Para nossa surpresa, havia um enorme contingente de pesquisadores
dedicados a produzir (através de inovadoras interpretações sobre a cultura afro-brasileira)
sobre: as identidades negras, as desigualdades raciais, as estratégias de resistência e
mobilidade social das populações negras, etc. Destes novos espaços, assim como dos debates
anteriormente citados, depreendíamos que as polêmicas em torno das políticas de cotas
raciais, na educação e no mercado de trabalho, rapidamente, se multiplicavam.
Em 2003, em palestra proferida na cerimônia de abertura do III Concurso Negro e
Educação, o professor Valter Roberto Silvério, do Departamento de Ciências Sociais da
UFSCAR 2, abordou, de modo provocativo, algumas das recorrentes polêmicas em torno das
cotas raciais. Inicialmente, definiu como equivocado o formato em que vinha ocorrendo o
debate sobre cotas raciais no Brasil. Segundo ele, ao reduzir a discussão sobre ações
afirmativas à sua modalidade mais polêmica (as reservas de vagas), o debate ficava restrito à
dicotomia entre favoráveis e contrários, negligenciando o objetivo principal da discussão:
racionalizar a inclusão de minorias, historicamente, discriminadas. Em detrimento destas
questões,

debater sobre a aceitação ou a não-aceitação das cotas, além de empobrecer a


discussão de conteúdo, significa perder a oportunidade de se perguntar e tentar
responder à seguinte questão: como podemos incluir minorias historicamente
discriminadas, uma vez que as políticas universalistas não têm tido o sucesso
almejado, e ao mesmo tempo debater em quais bases são possíveis rever aspectos
fundamentais do pacto social? (SILVÉRIO, 2002, p. 1).

Banalizado, o debate sobre o assunto se tornou polarizado e esvaziado politicamente.


Deste modo, acabou por obscurecer os elementos que, justamente, possibilitaram a
emergência das políticas de cotas e das reivindicações mais amplas por políticas de

2
UFSCAR – Universidade Federal de São Carlos.
16
reparações, de redistribuição e de reconhecimento, não entendidas como políticas excludentes
entre si. Para Silvério (2002), mais importante do que se posicionar contra ou a favor, às
políticas de ações afirmativas em vigor, é preciso compreender os contextos históricos, sociais
e políticos que permitiram e/ou favoreceram a emergência dessas reivindicações; levando em
conta, os impactos dessas políticas no campo científico, das políticas públicas e da
nacionalidade brasileira.
Um ano depois, o professor Valter Silvério retomaria estas questões em outra
palestra3, proferida na Faculdade de Educação, da UFMG, em 2003, quando abordou o tema
das Ações Afirmativas sob o crivo sociológico. Naquela época, apesar de marcante, o
discurso não exerceu impacto imediato sobre minhas pesquisas, embora tenha permanecido
latente em minha memória por aproximadamente oito anos. Deste modo, segui meu caminho
realizando pesquisas no âmbito da “educação e relações raciais” (JESUS, 2006), bem como
participando de eventos que tratavam do assunto, relutando, até o ano de 2008, em converter
essa temática em meu objeto de pesquisa. E, assim, paulatinamente, meu posicionamento
favorável às políticas de Ações Afirmativas se expandiu e não se limitava mais ao meu
pertencimento étnico-racial ou em minha participação no Programa de Ações Afirmativas, da
UFMG; agora, estava alicerçado sobre argumentos (históricos, sociológicos, econômicos,
filosóficos e pedagógicos) que foram se acumulando em minha trajetória acadêmica.
Lembro-me nitidamente que, apenas, em 2008, quando aprovado no processo seletivo
para o curso de Doutorado em Educação da UFMG, cujo projeto intitulado Políticas de Ações
Afirmativas e Imaginário Racial em Universidades Brasileiras e Sul-Africanas, comecei a me
dedicar, efetivamente, à pesquisa do assunto. O amadurecimento teórico da temática ocorreu
durante o curso de Doutorado, tendo sido possibilitando pela participação nas disciplinas e
nas atividades promovidas pelo Programa de Pós-Graduação, aliado às dificuldades de
conciliar meus compromissos docentes na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e
Mucuri (UFVJM) com o estágio no exterior – na University of de Cape Town; o que provocou
mudança de foco da pesquisa 4.

3
1º Ciclo de Debates do Programa Ações Afirmativas na UFMG: “Polêmica da raça: o olhar da sociologia e da
biologia”. Palestrantes: - Prof. Dr. Sérgio Danilo Pena (ICB/UFMG) - Doutor em Genética Humana e Médica e
professor titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia da UFMG e Prof. Dr. Valter Roberto Silvério
(UFSCAR) - doutor em Sociologia/UNICAMP e professor adjunto do departamento de Ciências Sociais da
UFSCAR. 04 de Junho de 2003, Belo Horizonte, Faculdade de Educação da UFMG - Campus Pampulha.
4
Após dois semestres dialogando com alguns professores da University of Cape Town, localizada na cidade do
Cabo, na África do Sul, recebi, no final do ano de 2009, uma carta de aceite para realizar um ano de “estágio
sandwich” no Departamento de Sociologia daquela universidade. No entanto, no mês de Janeiro de 2010, fui
17
Após muitas conversas e reflexões com minha orientadora, decidimos não remar
contra a maré, mas aproveitar a força da correnteza. Assim sendo, paramos de lutar contra o
que o desenvolvimento natural da pesquisa e efetivamos o inevitável: a realização de uma
investigação centrada nas representações sociais sobre o processo de implementação de Ações
Afirmativas no Brasil e suas implicações para o campo educacional, político e científico.
No ano de 2010 participei da “Audiência Pública sobre a Constitucionalidade de
Políticas de Ação Afirmativa de Acesso ao Ensino Superior”, realizada pelo Supremo
Tribunal Federal no mês de Março de 2010 na cidade de Brasília, que se converteria em
minha experiência de campo. Nela, tive a oportunidade de ouvir os posicionamentos teóricos
e políticos de várias referências nacionais no campo das relações étnico-raciais sobre as
políticas de cotas e de Ações Afirmativas, o que me permitiu organizar uma boa base de
dados qualitativos que viriam a ser analisados ao longo do no segundo semestre de 2010 e do
primeiro semestre de 2011. No ano de 2011 dediquei-me à escrita e a finalização da tese. De
maneira geral, as atividades realizadas ao longo dos quatro anos de doutoramento, como
discente na UFMG, como docente na UFVJM e como pesquisador no NERA/UFMG - Núcleo
de Estudos sobre Relações Raciais e Ações Afirmativas5, possibilitaram-me compreender que
o debate contemporâneo sobre políticas de cotas, políticas de ações afirmativas e demais
políticas com recorte racial no Brasil, escondem, mais do que revelam. Por trás dos
posicionamentos rápidos e objetivos, contra ou a favor, se escondem elementos muito
complexos e profundos que não se revelam nos posicionamentos dicotômicos.
De acordo com Duarte; Bertúlio; Silva (2008), organizadores do livro “Cotas raciais no
ensino superior: entre o jurídico e o político”, as resistências, abertas ou veladas, que alguns
estudantes negros passariam a enfrentar no interior das universidades a partir da
implementação das políticas de Ações, resultado do “abolicionismo acadêmico lento e
gradual”, seriam resultado de “uma das inúmeras formas de manifestação da tradição nacional
de nossas relações raciais”. Por outro lado, para Fry; Maggie; et. All, (2007, p. 9), organizadores
do livro “Divisões Perigosas: políticas raciais no Brasil contemporâneo”, o caminho
descortinado pela implementação das políticas de cotas raciais no ensino superior brasileiro, e

aprovado em concurso para professor assistente para a área de Sociologia na Universidade Federal dos Vales do
Jequitinhonha e Mucuri, campus localizado na cidade de Teófilo Otoni.
5
No ano de 2009, participei da Pesquisa “Práticas Pedagógicas de Trabalho com relações étnico-raciais na
escola na perspectiva da Lei 10.639/03”. Realizada em parceria com o MEC e a Representação da Unesco no
Brasil a pesquisa tinha como objetivo mapear e analisar as práticas pedagógicas desenvolvidas pelas escolas
públicas e pelas redes de ensino de acordo com a Lei 10.639/03, a fim de subsidiar e induzir políticas e práticas
de implementação desta Lei em nível nacional em consonância com o Plano Nacional de Implementação da Lei
10.639/03 .

18
do Estatuto da Igualdade Racial seria “terá efeitos colaterais sumamente indesejáveis no que
toca à sociabilidade e à concepção política da nação brasileira”.
Neste contexto, de conflitos e confrontos, a tese que procurarei desenvolver neste
trabalho se refere às políticas públicas com recorte racial, recentemente, implementadas no
Brasil, em especial as políticas de Ações Afirmativas (geralmente, reduzidas às políticas de
cotas), têm desestabilizado as imagens, historicamente, construídas e, socialmente,
legitimadas que dizem respeito: ao país, ao povo brasileiro e, sobretudo, ao modelo sui
generis de relações raciais vigente, que têm provocado tanta polêmica.
A presente pesquisa foi realizada por meio de análise bibliográfica e documental. A
análise bibliográfica consistiu na análise de livros, artigos, periódicos de circulação nacional e
sites da internet especializados na temática étnico-racial. Já a análise documental consistiu na
análise de Manifestos contrários e favoráveis às políticas de ações afirmativas e de cotas
raciais, e nas Notas Taquigráficas que registraram os discursos proferidos por diferentes
expositores que se pronunciaram na “Audiência Pública sobre a Constitucionalidade de
Políticas de Ação Afirmativa de Acesso ao Ensino Superior.” No intuito de identificar os
fundamentos teóricos, políticos e ideológicos que sustentam as perspectivas individuais dos
expositores sobre as políticas de ações afirmativas, sobre as políticas de cotas raciais e sobre
temas correlatos, os discursos dos expositores na Audiência serão submetidos à análise de
conteúdo e à analise do discurso.
A presente pesquisa apresenta dois objetivos distintos e correlacionados - o que
explica a divisão da tese em duas partes.
O objetivo principal da Primeira Parte do trabalho é discutir, por meio do pensamento
social e da historiografia, algumas das intensas disputas em torno da construção social da
nação brasileira e do papel central que a educação (básica e superior) desempenhou neste
processo, tendo sido utilizada, ora, como meio de manter e acirrar as distâncias sociais entre
elites e camadas subalternas da população, ora, como meio de possibilitar a inclusão social e a
emancipação socioeconômica e cultural destes grupos subalternizados. Apesar de não se tratar
de uma tese no campo da História da Educação, o reconhecimento da historicidade do tema
abordado nos exigiu uma incursão, ainda que breve, neste campo de conhecimento.
A Segunda Parte objetiva discutir como as atuais propostas de políticas de Ações
Afirmativas, que têm favorecido a retomada dos debates sobre relações raciais no Brasil, vêm
tencionando o Estado, as universidades e a sociedade civil a repensar as bases sobre as quais
se edificou o moderno Estado Brasileiro, em especial, a nação resultante da Proclamação da
República, em 1889. Para isso, levaremos em conta os posicionamentos teóricos e políticos de
19
diferentes atores sociais que (envolvidos nos debates sobre as políticas de cotas e Ações
Afirmativas) nos ajudam a compreender as divergentes representações sociais sobre os
conceitos de raça e racismo, igualdade e desigualdade, justiça e injustiça, o papel da educação
formal e a identidade nacional.

Estrutura da tese:

Esta tese está organizada em sete capítulos, distribuídos em duas partes, além desta
introdução. A Primeira Parte congrega os dois primeiros capítulos, ambos orientados pela
preocupação em oferecer ao leitor uma compreensão panorâmica dos contextos históricos,
sociais, políticos e educacionais que permitiram e/ou favoreceram a emergência das demandas
contemporâneas de políticas de ações afirmativas no Brasil.
No primeiro capítulo, discutiremos o papel do pensamento social e da historiografia,
ao longo dos séculos XIX e XX, no processo de construção da nação brasileira, bem como
sobre as estreitas relações entre pensamento social, historiografia e as políticas educacionais
dirigidas ao povo brasileiro e, especialmente à população negra, ao longo do período imperial
e republicano no Brasil.
No segundo capítulo discorreremos sobre o fenômeno chamado por Medeiros (2004)
de “revolução dos micróbios”, que teria emergido no Brasil, a partir da década de 1970, e se
constituiu como uma contundente contestação à imagem de nação que se consolidou ao longo
do século XX, além de uma visceral crítica ao contexto de desigualdade social e racial vigente
no país. Além disso, discutiremos alguns dos motivos que transformaram a educação em uma
das principais bandeiras de luta das entidades negras e do Movimento Negro Unificado, a
partir da década de 1970.
A Segunda Parte deste trabalho congrega do terceiro ao sétimo capítulo, todos eles
orientados pela preocupação em oferecer ao leitor uma compreensão das divergentes
representações sociais que se confrontam no processo de implementação de Ações
Afirmativas no Brasil, bem como de algumas implicações, materiais e simbólicas, da
discussão e implementação de políticas de ações afirmativas para o campo educacional,
político e científico e para a nacionalidade brasileira.
No terceiro capítulo, refletiremos as mais recorrentes controvérsias em volta das
políticas de ações afirmativas que, aos poucos, se converteram na principal bandeira de luta
do movimento antirracista brasileiro. Através dele, procurarei discutir, também, como as
20
diferentes mobilizações políticas (em defesa ou em oposição às políticas com recorte racial)
têm se baseado em representações sociais distintas e, por vezes, irreconciliáveis, acerca de
temas como raça e racismo, igualdade e desigualdade, justiça e injustiça, identidade nacional,
papel da educação formal, etc.
No quarto capítulo, discutiremos sobre algumas das principais repercussões políticas e
científicas geradas pela emergência das demandas em torno das políticas de ações afirmativas,
que ajudaram a recolocar na agenda pública de discussões (acadêmicas e políticas) o tema das
relações raciais no Brasil. Esse fato contribuiu para a emergência, no campo político, de
questionamentos sobre a hegemonia e a exclusividade das políticas universais e, no campo
cientifico, sobre a vitalidade hegemônica do princípio de neutralidade axiológica, que embora
agonizante, segue hegemônico.
O quinto capítulo se dedica aos processos metodológicos adotados para realização
desta pesquisa. Nele, apresentaremos as discussões iniciais da Audiência Pública sobre
Políticas de Ação Afirmativa de Reserva de Vagas no Ensino Superior, realizada em Março
de 2010, em Brasília, como subsídio para o julgamento do Supremo Tribunal Federal de uma
Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental impetrada pelo Partido Democrata. Além
disto, serão apresentados nesse o capítulo uma síntese dos argumentos utilizados por cada
expositor durante a audiência. Adicionalmente, explicitaremos as escolhas metodológicas
adotadas para a análise dos dados.
No sexto capítulo, no intuito de compreender os fundamentos sociais que sustentam os
posicionamentos em torno da constitucionalidade ou da inconstitucionalidade das políticas de
cotas raciais e de Ações Afirmativas no Brasil, realizaremos a análise dos discursos proferidos
na Audiência Pública; refletindo, ainda, sobre as disputas materiais e simbólicas em torno das
imagens, dos diferentes projetos defendidos pelos expositores e das divergentes alternativas
políticas defendidas para o Brasil, que, de modo indireto, contribuem para conservar, atualizar
ou reinventar esta nação.
No sétimo (e último) capítulo, apresentaremos as considerações finais e, por
conseguinte, as referências bibliográficas utilizadas para realização deste estudo.

21
- PRIMEIRA PARTE -

22
CAPÍTULO 1

1 - A (des)construção social da Nação: confluências e dissonâncias

“O que faz do ‘brasil’, Brasil?” Quais são os aspectos que distinguem a nação
brasileira dos demais Estados nações? Quais elementos são constitutivos da nossa nação?
Essas indagações foram imortalizadas pelo livro clássico do antropólogo Roberto da Matta
(1986), intitulado O que faz o Brasil, Brasil?, e não se trata de inquietações recentes, nascidas
na segunda metade do século XX, como o livro; mas de questionamentos históricos que
ecoam na História Geral do Brasil.

Nesse sentido, ao longo dos séculos XIX e XX, diversos pensadores, nacionais e
estrangeiros, que já se tornaram clássicos do pensamento social brasileiro, buscaram oferecer
respostas a essas reflexões. Dentre eles, podemos citar alguns pensadores brasileiros:
Visconde do Uruguai (1807-1866), Joaquim Nabuco (1849-1910), Silvio Romero (1851-
1914), Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), Euclides da Cunha (1866-1909), Francisco
José de Oliveira Viana (1883-1951), Gilberto Freire (1900-1987), Sérgio Buarque de Holanda
(1902-1982), Abdias do Nascimento (1914-2011), Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982),
Clóvis Moura (1925-2003) e Florestan Fernandes (1920-1995). Não obstante, em meio aos
nomes estrangeiros, podemos destacar alguns proeminentes intelectuais, como Donald
Pierson (1990-1995), Charles Wagley (1913-1991) e Roger Bastide (1898-1974).

Embora se distinguam em aspectos significativos, tanto no que concerne às áreas de


abordagem de seus estudos (história, sociologia, antropologia, economia, etc.), quanto em
suas filiações teóricas (positivista, racialista, culturalista, marxista, estruturalista, etc.),
podemos afirmar que é a preocupação em “pensar o Brasil” o ponto de aproximação entre
estes diferentes pensadores sociais brasileiros e estrangeiros.

Conforme afirma Zarur (2003, p.17), sem desconsiderar as perceptíveis diferenças


teóricas e políticas entre os modos de “pensar o Brasil,” havia entre os pensadores do Brasil,
certa “preocupação em construir uma civilização redentora nos trópicos, cuja proposta era
distinguir o pensamento social brasileiro, tendo como marco principal a definição da
identidade nacional’. Nesse caso, além dos nomes anteriormente citados, sem negligenciar
uma série de outros pensadores que não serão diretamente citados neste trabalho, a tarefa

23
(“pensar o Brasil”), também, seduziu os historiadores diversos (nacionais e estrangeiros) que
interessados em registrar a “história oficial do Brasil”, contribuíram para projetar a imagem:
às vezes, utópica, às vezes, caricatural deste país. Isso significava que a idéia de ter uma
sociedade nova em terras do Brasil, “não foram [idéias] simplesmente criadas por intelectuais
e reinterpretadas pelo povo. Ideias essas que resultam de um constante processo de troca entre
o povo brasileiro e sua elite” (idem, p.19). Processo esse que fez com que, ao longo do
desenvolvimento histórico da nação, a nacionalidade brasileira fosse inventada e reinventada,
repetidas vezes, provocando movimentos de conservação, atualização e reinvenção de
princípios, objetivos e utopias relacionados ao futuro.

No entanto, vale lembrar que, embora houvesse consenso entre os estudiosos


(pensadores e historiadores) a respeito de nossa identidade externa, o mesmo nunca foi
estabelecido em relação a nossa identidade interna. Ou seja, “se eram claros e evidentes os
aspectos que nos diferenciava das nações estrangeiras, sobretudo, as européias; não parecia
óbvio definir os elementos constituintes de nossa identidade nacional”, assim diz Ortiz
(2006). Portanto, se para alguns pensadores como Sílvio Romero, Nina Rodrigues e Oliveira
Viana, por exemplo, o traço miscigenado do nosso povo e da nossa cultura era um traço
distintivo de nossa identidade nacional, o que nos tornava uma sociedade sui-generis, embora
dificultasse a plena efetivação de uma nação civilizada nos trópicos; Gilberto Freyre, por
exemplo, acreditava que a miscigenação da população brasileira era a marca distintiva da
nação; a característica redentora (e necessária) que nos permitiria erguer a civilização nos
trópicos.

No que tange à sociedade em que viviam esses pensadores, quando emitiam juízos de
valores sobre seu tempo e o passado, merece destaque que os mesmos propunham formas para
manter os pontos positivos e superar os negativos de suas épocas, visando construir um futuro
ideal para a nação. Deste modo, registra-se que, nos anos que precederam à proclamação da
República brasileira (importante marco para a constituição do Brasil enquanto nação
“moderna”), vigorou a perspectiva pessimista, representada pelo pensamento racialista de
Nina Rodrigues e Silvio Romero, que sustentava a inevitável degeneração do povo brasileiro,
mantendo-se hegemônica entre os pensadores e criadores de nossa nacionalidade. Entretanto,
na década de 1930, houve uma guinada no modo de se pensar o Brasil, rompendo com as
teses catastróficas das correntes racialistas do final do século XIX.
Segundo Cardoso (1993), tomemos como exemplo: Casa Grande e Senzala, de
Gilberto Freire, cuja obra ressignificou o modo de pensar a nação, ajudando a “(re)inventar o
24
Brasil.” Por meio desta narrativa, o autor teria criado uma identidade nacional sedutora, cuja
imagem não refletia com fidelidade as peculiaridades do povo brasileiro, mas retratava os
nossos desejos em constituir a nacionalidade. Tratava-se, assim, de “um espelho narcisista do
Brasil, como o próprio autor, aliás, sempre o foi. Quem o mirar, achará que nossa cara é bela e
gostosa de ser vista” (idem, 1993, p.25).

Consoante, Zarur (2003) aponta que a utopia brasileira se fortaleceu com a expansão
da perspectiva culturalista do “mestre de Apipucos”, uma vez que, consistia exatamente “na
crença da chegada inevitável de uma civilização nova, mestiça e original, cuja ideia de
‘branqueamento’, antes de significar a limpeza e/ou a diluição do sangue negro, deveria
significar ‘amarronzamento, mestiçagem’”. Notadamente, uma série de levantamentos
recentes tem destacado que, de fato, esta imagem sobre a nação, que salienta a fluidez das
relações sociais e raciais, se tornou, por meio de um longo processo de imposição
imperceptível, haja vista que há um imaginário hegemônico 6. Todavia, como alerta o próprio
autor, “a crise de hoje é a crise desta ideia (deste modelo de identidade nacional), que sempre
funcionou como o motor do projeto nacional e das esperanças do país” (idem, p.17).

Segundo d’Adesky (2001), a crise a qual se refere Zarur (2003) diz respeito, ao menos
em parte, às lutas por reconhecimento travadas atualmente pelos movimentos sociais negros
no Brasil e pelos pensadores sociais contemporâneos que têm questionado a legitimidade e
hegemonia desta idéia e que, de modo direto e indireto, provocam deslocamentos nas imagens
construídas que se legitimaram como representação da nação brasileira. Deste modo, os
movimentos contemporâneos de luta pela redefinição simbólica da nação, como definiram
Moyá e Silvério (2009), não são os primeiros ou únicos com este caráter. Caminhando pela
história, encontramos diversas organizações populares, insurreições, batalhas e revoltas
realizadas em prol de direitos (ora relatadas pela historiografia nacional, ora oculta e tratadas
como inexistentes) atestando a natureza inacabada e volátil da invenção e reinvenção desta
nação. Entretanto, consideram os autores, “foi, somente, na segunda metade do século XX
que se tornou emergencial o surgimento de novos interpretes da história e da identidade
brasileira”.

Com trajetórias marcadas pelas participações em movimentos sociais, e uma incipiente


inserção em espaços acadêmicos, muitos destes novos pensadores sociais (intelectuais da

6 TURRA, Cleusa; VENTURI, Gustavo. Folha de São Paulo (jornal); Datafolha. Racismo cordial: a mais
completa analise sobre o preconceito de cor no Brasil. São Paulo: Ática, 1995.

25
primeira geração) protagonizaram amplo movimento de questionamento das interpretações
clássicas sobre a nação brasileira que apresentavam como traço comum: a invisibilização, por
meio de discursos sociológicos ou historiográficos, de uma grande parcela da população
brasileira (MOURA, 1991).

Nessa perspectiva, a construção deste primeiro capítulo, que será dividido em dois
tópicos, está orientada pela premissa de Anderson (2008): “o debate em torno da
autenticidade das nações é uma falsa questão, posto que toda nacionalidade seja produto de
uma invenção política”.

Assim, tomando a nacionalidade brasileira como uma “comunidade política


imaginada”, o objetivo deste capítulo é tecer breve revisão do processo de “invenção-
desconstrução-reinvenção” do Brasil, chamando atenção para as divergentes concepções,
interesses e forças políticas em jogo neste processo. Para isso, inicialmente, procuramos
discutir o papel de alguns pensadores sociais e dos historiadores no processo de construção da
nação entre os séculos XIX e XX, bem como as estreitas relações entre o pensamento social, a
historiografia e as políticas dirigidas ao povo brasileiro e, especialmente, à população negra.

Na segunda parte deste capítulo, procuro discutir o fenômeno “revolução dos


micróbios”, que emerge no Brasil a partir da década de 1970

Posteriormente, buscamos discorrer sobre o fenômeno que Medeiros (2004) chamou


de “revolução dos micróbios”, que emerge no Brasil, a partir da década de 1970, com a
participação destacada de novos pensadores sociais brasileiros que, além de apresentar uma
crítica visceral ao contexto de desigualdade social e racial vigente no país, apresentaram uma
contundente contestação à imagem de nação que se consolidou ao longo do século XX;
imagem alicerçada, tanto no orgulho de ser uma nação na qual a convivência harmônica entre
as três matrizes raciais seria predominante (Teoria da Democracia Racial), quanto no
inconfessável desejo de se tornar uma nação branca (Teoria do Branqueamento Racial) 7.

No entanto, vale destacar: este capítulo não pretende realizar um minucioso e


definitivo levantamento sobre o pensamento social brasileiro, posto que já existem obras
dedicadas a este fim que superariam, tanto em profundidade, quanto em densidade teórica, o
presente esforço (ANTUNES, FERRANTE, MORAES, 1986; BOTELHO, SCHWARCZ,

7 Para ver mais sobre estes temas, ler: MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil:
identidade nacional versus identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

26
2009). Cabe destacar ainda que o conjunto de pensadores sociais, clássicos e contemporâneos,
selecionados para terem suas idéias discutidas neste trabalho é, certamente, arbitrário, e foi
definido levando em consideração a presença ou a ausência, no interior de seus pensamentos,
de reflexões sobre a nação brasileira e de elaborações teóricas sobre as relações étnico-raciais
no Brasil.

1.1 – Sobra terra, mas falta povo

Um problema sobre o qual você não tem informação não existe. Você
não pode combater o que não existe. Se não está documentada, a
desigualdade não existe.
Edna Roland, Depoimento Histórias do Movimento Negro no
Brasil, 2007.

Em 1822, após a declaração da Independência do Brasil, as inquietações das elites


governantes, inicialmente preocupadas em ocupar o território brasileiro e garantir as
condições ideais para a exploração da matéria-prima abundantemente disponível, se alteram
de modo significativo. Por outro lado, as relações de poder vigentes no Brasil independente,
ao se alterarem, permaneceram as mesmas, pois ao conceberem o projeto de construção do
país amplamente baseado nas determinações econômicas e sociais vigentes à época da
colonização, incluindo a manutenção do regime monárquico e do sistema escravista, a elite
governante possibilitou a manutenção do passado colonial e a sua convivência com estruturas
independentes, o que determinou formas sui generis de relações sociais, políticas e
econômicas no Brasil independente.
Nesse sentido, a manutenção da monarquia como sistema de governo após a
Independência funcionou, tanto como modo de minimizar os impactos emancipatórios junto
às elites européias, como meio de manter a hegemonia interna dos grupos dominantes,
conforme salienta Moraes (2005). Assim, tendo consolidada a emancipação política, e tendo à
sua disposição um vasto contingente territorial não ocupado, a despeito de um pequeno
contingente humano capaz de ocupar o território; a idéia de construir um país se transforma
em projeto nacional comum, sendo capaz de unir as elites oligárquicas brasileiras. Entretanto,
27
como destaca Zarur (2003), a utopia brasileira, alimentada por muitos pensadores sociais
brasileiros e, em particular pelas elites governantes do Primeiro e Segundo Reinados e do
Período Regencial, de construir um país sem igual nos trópicos, encontrava um empecilho
concreto: a heterogênea composição da população brasileira.
Moraes (2005) também identifica, tal qual Zarur, o mesmo dilema que marcava o
pensamento social do período: “neste quadro de formação nacional tem-se: um território a
ocupar e um Estado em construção, mas a população disponível não se ajustava à
identificação de uma nação, conforme os modelos identitários vigentes nos centros
hegemônicos”.
A constatação, por parte da elite brasileira, de que o país não estava pronto e que sua
construção era tarefa urgente, implicou em uma série de desdobramentos nos planos privado
e, sobretudo, público.

O padrão discursivo básico do século XIX que conforma essa concepção estrutura-
se em torno do conceito de civilização, atribuindo portanto à monarquia brasileira
uma missão civilizadora. Construir o país é levar a civilização aos sertões, ocupar o
solo e subtrair os lugares da barbárie, o que cabe a uma elite que se autodefine como
‘representantes das idéias da ilustração’(MORAES, 2005, p.95).

Face às características fortemente centralizadoras e moralistas do governo imperial,


torna-se importante averiguar se havia, naquele período, a intenção de integrar a todos, de
forma efetiva, ao conjunto da nação. Vale salientar que, neste período, uma dúvida pairava no
imaginário das elites dominantes: não em relação à capacidade civilizadora da educação, mas
em relação à capacidade de índios e escravos negros serem civilizados. Nesse caso, resulta da
perspectiva romântica do século XIX, como bem representada por Gonçalves Dias e José de
Alencar, que o contato da população indígena e africana com alguns aspectos da cultura
civilizada de matriz européia (a catequese, a escolarização, as trocas monetárias) serviria para
reforçar a civilidade das classes dominantes e a inexorável barbárie de índios e negros.
Ortiz (2006) destaca que, ao longo da primeira metade do século XIX, os escritores
românticos brasileiros descobriram o elemento nativo e buscaram promovê-lo como símbolo
nacional, exaltando suas virtudes e feitos, consolidando a imagem de bom selvagem. Assim
sendo, se baseavam mais nas idealizações construídas oriundas dos critérios de civilização, do
que na “concretude” das populações indígenas brasileiras. Tais idealizações se associavam as
preocupações mais abrangentes, relacionadas com a construção de uma imagem coerente de
nação civilizada. Como parte integrante deste esforço, em [1838-1839], o Imperador Dom
28
Pedro I fundou o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), visando favorecer a
constituição da História da Nação. Com isso, “a nação recém-independente teria um passado
do qual pudesse se orgulhar e que lhe permitisse avançar com confiança para o futuro” (REIS,
2007). Em função disso, em 1840, o IHGB promoveu um concurso com o objetivo de premiar
aquele que elaborasse “o melhor projeto de escrita da história do Brasil”. Nesse caso, Karl
Phillipp Von Martius foi premiado. O autor definiu, em monografia publicada na Revista do
IHGB, de 18458, as linhas mestras de um projeto histórico capaz de garantir uma identidade
ao Brasil. A respeito deste projeto, Reis (2007, p. 27) advoga:

no essencial, a história do Brasil será a história de um ramo dos portugueses, pois o


português foi o conquistador e senhor, ele deu as garantias morais e físicas ao Brasil.
O português foi o inventor e motor essencial do Brasil. Aventureiro, no Brasil se
sentiu livre de sua obediência ao rei, sentiu que nada tinha acima de si, e avançou
para a conquista do interior. O historiador deverá transportar o leitor à casa dos
colonos e mostrar como viviam, como se relacionavam com seus vizinhos, escravos
e família. Quanto às demais raças, o historiador filantrópico, humano e profundo,
não poderá deixar de abordá-las, deverá defender essas raças desamparadas. Se o
português é a raça mais importante, as raças etiópicas e indígenas reagiram
positivamente.

Adolpho de Varnhagen, filho de pai alemão e mãe portuguesa, foi quem levou adiante
o propósito de Von Martius, tendo sido considerado, por isso, o primeiro historiador brasileiro
e o pioneiro na consolidação da utopia de constituir a história gloriosa da nação. Por meio de
relatos do passado nacional, identificado à prioristicamente como glorioso, Varnhagen
pretendia abrir caminho para a consolidação de um futuro promissor; dada à potencialidade
civilizatória proporcionada pela colonização portuguesa, negligenciando os males causados,
sobretudo, a utilização da escravidão negra no país. Convencido da superioridade racial do
colonizador português e da importância do empreendimento colonial português no Brasil, o
autor demonstrava a confiança no desaparecimento progressivo do sangue negro da população
brasileira, conforme o excerto abaixo da obra História Geral do Brasil, publicada em 1847:

Como a colonisação africana, distincta principalmente pela sua cor, veiu para o
diante a ter tão grande entrada no Brazil que se póde considerar hoje como um
dos três elementos de sua população, julgamos do nosso dever consagrar algumas
linhas neste logar a tratar da origem desta gente, a cujo vigoroso braço deve o Brazil
principalmente os trabalhos do fabrico do assucar, e moderadamente os da cultura
do caffé, mas fazemos votos para que chegue um dia em que as cores de tal
modo se combinem que venham a desaparecer totalmente no nosso povo os

8
MARTIUS, C. F. Von - Como se deve escrever a História do Brasil, publicado com O Estado de Direito entre
os autóctones do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1982.
29
característicos da origem africana, e, por conseguinte, a accusação da
procedência de uma geração, cujos troncos no Brazil vieram conduzidos em
ferros do continente fronteiro, e soffreram os grilhões da escravidão, embora
talvez com mais suavidade do que em nenhum outro paiz da América,
começando pelos Estadous Unidos do Norte, onde o anathema acompanha não só
a condição e a cor, como a todas as suas gradações; sendo neste ponto, como em
outros muitos, a nossa monarchia mais tolerante e livre que essa arrogante republica,
que tanto blasona de suas instituições libérrimas, e cujo aristocrático cidadão não
admitte a seu lado nas reuniões políticas, nem nas civis e sociaes, o pardo mais
claro, por maiores que sejam seus talentos e virtudes (VARHANGEN, 1847 apud
REIS, 2007, p.182-183 - Grifos nossos).

Mesmo se inferirmos que tal pensamento é fruto de uma determinada época, na qual as
relações sociais entre portugueses e seus descendentes, bem como africanos escravizados e
seus descendentes, eram outras, é interessante ponderar como o eixo estruturante desse
raciocínio prima pela inferioridade do negro. Esse caráter mágico e amenizador das tensões
daquela época (sobre a mistura racial e a idéia do Brasil como país da suavidade das relações
entre negros e brancos) ficaram arraigados à cultura brasileira que, infelizmente, perdura em
pleno século XXI.

1.1.1 - A população negra nas narrativas históricas sobre o Império e a República

Situados em contextos históricos diferentes, alguns dos historiadores e pensadores


sociais brasileiros referenciados neste trabalho, tais como: Francisco Varnhagen, André
Rebouças, Joaquim Nabuco, Sílvio Romero, Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Florestan
Fernandes, Clóvis Moura, Guerreiro Ramos e outros, produziram, cada um em seu tempo,
inovadoras obras sobre o Brasil, que apesar de inovadoras, não destoavam por completo do
pensamento coletivo dominante em suas época. É interessante notar, por exemplo, como as
teorias racialistas vigentes no final do século XIX e início do século XX no Brasil e
defendidas por Oliveira Vianna, durante primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945),
estavam sintonizadas com as tendências nacionais e internacionais dominantes desta época.
Dentre estas, destaca-se a tendência de anulação do elemento negro da historiografia do Brasil
(com exceção dos episódios nitidamente vinculados a escravidão), que, de certo modo,
cumpriam importante papel na sustentação e na legitimação de um sistema produtivo

30
escravocrata, centrado no trabalho braçal da população africana e por seus descendentes
escravizados.
Conforme afirma Ortiz (2006, p.19), no pensamento social e literário produzido no
país durante a primeira metade do século XIX, “nada se tem a respeito das populações
africanas; o período escravocrata é um longo silêncio sobre as etnias negras que povoam o
Brasil. Em função disso, em sua bricolage de uma identidade nacional, o romantismo pode
ignorar completamente a presença do negro” na construção da sociedade. Com isso, tomados
numa perspectiva puramente econômica, os africanos e seus descendentes no Brasil foram
compreendidos como mero objeto de trabalho, indignos de qualquer reconhecimento; ou,
quando isso ocorria, reconhecidos, tão somente, pelo contributo laboral no desenvolvimento
do sistema produtivo, sendo, portanto, desconsiderados como elementos humanos capazes de
contribuir para a construção da moderna e civilizada nação brasileira.
De acordo com Moura (1991), para compreender a historiografia produzida durante o
período imperial, é preciso tomá-la como suporte ideológico do sistema escravista que,
simultaneamente, racionalizava as contradições e dilaceramentos, possibilitando a
continuidade dos interesses da intelligentsia subordinada ideológica ou economicamente ao
sistema. Radicalizando o diagnóstico das interpenetrações entre as “vocações políticas” e as
“vocações científicas”, o referido autor apresenta crítica ferrenha aos historiadores que se
propuseram a escrever a história brasileira do período imperial e dos anos iniciais da
República. Depreende-se dele que para a historiografia brasileira produzida neste contexto, o
negro (bem como os demais grupos subalternizados) foi “o grande elemento desconhecido”,
tanto em relação às suas variadas características culturais, religiosas, linguísticas, etc., quanto
ao que se refere a sua contribuição para o Brasil.
Consoante, Moura (1991, p. 31) advoga: “os intelectuais comprometidos e/ou
subordinados ao sistema escravista desempenharam importante papel de naturalização do
sistema, ao mesmo tempo em que contribuíram para a impossibilidade da emergência”, ou
mera existência, de um sistema fundado em bases distintas. E, segue o autor: “esse
procedimento foi muito utilizado pelos intelectuais orgânicos do sistema escravista na
elaboração das Histórias do Brasil, posto que existisse certa manipulação maniqueísta da
presença das classes subalternas ao longo da história, provocando, de modo geral, a
caricaturização ou invizibilização destes” (idem, p.32). De fato, a historiografia oficial do
Brasil é escassa de fontes ou referências às populações subalternizadas e suas ações de
questionamento do sistema vigente. No caso do contributo da população negra, a
invisibilidade é ainda mais impressionante.
31
Os historiadores que se debruçaram sobre a nossa realidade jamais, ou muito
raramente, viram o negro como força dinâmica na nossa formação política, social,
cultural ou psicológica. Todos os antigos preconceitos bíblicos, cientificistas ou
racistas foram unidos, compactados e aplicados na análise do comportamento da
população negra (MOURA, 1990, p.12).

Segundo Moura (1990), é notória a ambivalência do julgamento dos autores das


diferentes Histórias do Brasil, em relação aos atos de negros e brancos no período escravista,
uma vez que o processo de “limpeza étnica” foi praticado, implicando na eliminação física de
determinados grupos étnico-raciais (populações negra e subalternizadas) da história oficial;
ora invisibilizando-os, ora assimilando-os.

Apesar das diversas posições em que esses historiadores se situam, uma coisa lhes é
comum: a visão de que os negros, índios e mestiços em geral são elementos
bárbaros, pagãos, gentios sem capacidade civilizadora e os brancos, detentores de
estruturas de poder, aqueles elementos que impulsionaram a nossa sociedade em
direção à civilização. (...) Todos os historiadores cujo pensamento analisamos são
acordes num particular: os negros não tinham condições de dirigir a sociedade, eram
por determinação divina ou de outra ordem condenados a serem massa dominada
pelos brancos, detentores do poder e do privilégio divino ou racial de dominar o
mundo (idem, p.213).

Com isso, as reflexões produzidas pelos pensadores sociais, a partir da segunda


metade do século XIX, ante a inevitabilidade da abolição do trabalho escravo, favoreceram a
retirada do elemento negro da relativa invisibilidade, contribuindo no fortalecimento das teses
sobre sua imaturidade civilizatória. O que permitiu alguns representantes das elites
dominantes a se autoproclamarem tutores dos interesses desta classe, vista como naturalmente
como inferior; sendo Joaquim Nabuco um caso exemplar desta questão.
Nascido no seio de uma família escravocrata no ano de 1849, na cidade de Recife,
Nabuco expressou toda a complexidade do pensamento social brasileiro do período pré-
abolicionista. O autor se tornou uma espécie de porta-voz da raça negra em favor da abolição
do trabalho escravo (ALONSO, 2009), tendo deixando grande legado, sobretudo, na
elaboração da obra “O abolicionista”, em 1883. De acordo com o autor, a escravidão como
instituição total, entranhada na formação da sociedade brasileira, era a verdadeira causa do
atraso brasileiro, posto que:

se entranhado na ocupação do território e, em par com a monocultura, esgotou a


terra e a concentrou, gerando feudos auto-isolados. Tolheu as atividades urbanas,
32
impedindo o desenvolvimento de um operariado assalariado e de classes médias, e
condenou os homens livre pobres à dependência dos grandes proprietários
(ALONSO, 2009, p.63).

Em sintonia com os anseios conciliatórios da elite governante, Nabuco conclamava a


todos (opinião pública, os políticos, o imperador, os abolicionistas e os proprietários de
escravos) à refundação nacional, por meio de reformas necessárias à modernização. O
protagonismo das elites por meio de ações legais, como a instituição da pequena propriedade
e o incentivo à atração de imigrantes europeus, foram formas eficientes de evitar os
inconvenientes de uma guerra civil ou de uma rebelião escrava.

A escravidão não há de ser suprimida no Brasil por uma guerra servil, muito menos
por insurreições ou atentados locais. Não deve sê-lo, tampouco, por uma guerra
civil, como o foi nos Estados Unidos. Ela poderia desaparecer, talvez, depois de uma
revolução, como aconteceu na França, sendo essa revolução obra exclusiva da
população livre; mas tal possibilidade não entra nos cálculos de nenhum
abolicionista. (...) A emancipação há de ser feita, entre nós, por uma lei que tenha os
requisitos, externos e internos, de todas as outras. É assim, no Parlamento e não em
fazendas ou quilombos do interior, nem nas ruas e praças das cidades, que se há de
ganhar, ou perder, a causa da liberdade. Em semelhante luta, a violência, o crime, o
desencadeamento de ódios acalentados, só pode ser prejudicial ao lado que tem por
si o direito, a justiça, a procuração dos oprimidos e os votos da humanidade toda.
(NABUCO, 1977, p.39-40)

Fortemente influenciado por um sentimento humanitário em relação ao sofrimento


daqueles que teriam construído o Brasil para usufruto de outros, ele constantemente aponta
que “o caráter socialmente construído das desigualdades, às vezes resvala para juízos sobre a
inferioridade de negros e chineses” (ALONSO, 2009). Nesse sentido, ele se torna expressão
das contradições da sociedade da época, potencializada pela coexistência de correntes liberais,
monarquistas, positivistas e republicanas, ao considerar que a Abolição definitiva do sistema
escravista poderia favorecer, não apenas a erradicação do suplício da raça negra, mas também
a erradicação do suplício do Brasil.

Se o que dá força ao abolicionismo não é principalmente o sentimento religioso, o


qual não é a alavanca de progresso que poderia ser, por ter sido desnaturado pelo
próprio clero, também não é o espírito de caridade ou filantropia. (...) No Brasil,
porém, o abolicionismo é antes de tudo um movimento político, para o qual, sem
dúvida, poderosamente concorre o interesse pelos escravos e a compaixão pela sua
sorte, mas que nasce de um pensamento diverso: o de reconstruir o Brasil sobre o
trabalho livre e a união das raças na liberdade (NABUCO, 1977, p.68).

33
Um exemplo instigante das contradições marcantes da sociedade da época, que se
equilibrava em um inusitado liberalismo conservador no interior de um sistema monárquico,
refere-se ao pouco reconhecimento atribuído a André Rebouças, que participou, juntamente
com Joaquim Nabuco, tanto da campanha abolicionista, quanto da criação da Sociedade
Brasileira contra a Escravidão.
Segundo Carvalho (2009), Rebouças integrava um segmento social restrito, porém
influente, de negros e mulatos urbanos instruídos que tinham adquirido acesso às elites
políticas e econômicas da corte brasileira9. Na perspectiva de Rebouças, o sistema
monárquico vigente no Brasil, que para muitos representava uma das causas do atraso
brasileiro, havia sido o elemento que provocou o florescimento das lutas contra a nobreza
territorial local, responsável pelo conservadorismo e pela manutenção do sistema escravista.
Nessa concepção, o fim da escravidão no Brasil deveria ser acompanhado por imediata
democratização da propriedade rural, o que só poderia ser viabilizado pelas mãos do
imperador.
O posicionamento político de Rebouças expressa, de forma enigmática, as
contradições do pensamento social e político da época, na medida em que se alinha às causas
abolicionistas e monarquistas, posto que defendia uma noção de liberdade consideravelmente
distinta daquela tornada hegemônica pelo liberalismo no ocidente. Sua concepção de
liberdade não concebia os indivíduos como perseguidores de seus interesses “egoístas”, mas
compreendia a liberdade como autogoverno de cidadãos livres. A crítica apresentada por ele
ao liberalismo clássico referia-se a recusa dos liberais em enfrentarem o problema da
escravidão, mantendo assim a nítida contradição entre defesa da liberdade e utilização de
trabalho escravo. As ideias de Rebouças, expostas no seu livro publicado em 1883,
Agricultura nacional, estudos econômicos: propaganda abolicionista e democrática,
defendiam a necessidade de implementar no país, o movimento denominado por ele de
“Democracia Rural Brasileira”.
Assim, se por um lado, Rebouças defende a liberação de terras como golpe
fundamental contra o sistema escravagista, Joaquim Nabuco considerava a escravidão e a
questão agrária problemas distintos, sendo que o segundo só poderia ser resolvido após a
resolução do primeiro. No que concerne à extinção do sistema escravista, ambos os autores

9
A relativa ascensão de mulatos e negros instruídos, segundo Carvalho (2009), pode ser associada à figura de D.
Pedro II e sua política de organização dos intelectuais e da cultura nos moldes das monarquias ilustradas da
Europa. Com a queda do Império em 1888, e a deportação de D. Pedro II, o contingente de intelectuais negros
sob a égide da República diminuiu consideravelmente.

34
(Rebouças e Nabuco) apregoavam ser um passo necessário, porém insuficiente, para culminar
na transição de um Brasil arcaico para um Brasil moderno e desenvolvido. Embora
consoantes, Nabuco via no influxo de uma “raça livre” (que representasse uma nova
mentalidade e contribuísse para a formação de uma nova sociedade nos trópicos), o esforço
complementar em prol do crescimento nacional.

Quando mesmo a emancipação total fosse decretada amanhã, a liquidação desse


regime só daria lugar a uma série infinita de questões, que só poderiam ser
resolvidas de acordo com os interesses vitais do país pelo mesmo espírito de justiça
e humanidade que dá vida ao abolicionismo. Depois que os últimos escravos
houverem sido arrancados ao poder sinistro que representa para a raça negra a
maldição da cor, será ainda preciso desbastar, por meio de uma educação viril e
séria, a lenta estratificação de trezentos anos de cativeiro, isto é, de despotismo,
superstição e ignorância. (...) Cada ano desse regime que degrada a nação toda, por
causa de alguns indivíduos, há de ser-lhe fatal, e se hoje basta, talvez, o influxo de
uma nova geração educada em outros princípios, para determinar a reação e fazer o
corpo entrar de novo no processo, retardado e depois suspenso, do crescimento
natural, no futuro, só uma operação nos poderá salvar - à custa da nossa identidade
nacional -, isto é, a transfusão do sangue puro e oxigenado de uma raça livre
(NABUCO, 1977, p.59-60).

1.1.2 - Novas soluções para o Brasil?: políticas de imigração e de assimilação

Não só o status de homem livre era o que animava os entusiastas das políticas de
imigração como meio de favorecer o desenvolvimento. Não era coincidência, portanto, o
consenso tácito entre as elites dominantes do período, e mesmo entre alguns abolicionistas
como o próprio Nabuco, de que o tipo ideal de imigrantes que a nação necessita eram os
loiros de ascendência ariana. A crença no poder da Eugenia, entendida como a ciência
responsável pelo aprimoramento da raça humana através da seleção dos genitores, por meio
do estudo da hereditariedade, passa, na transição do século XIX para o XX, a representar o
meio cientificamente mais eficiente para guiar o Brasil à modernidade.
Nessa perspectiva, a influência eugênica no Brasil buscou aumentar o contingente das
raças tidas como superiores, ao passo que coibia o aumento das raças inferiores, como forma
de atenuar os riscos de degeneração da sociedade brasileira profetizados pelo racismo
científico.

35
No final do século XIX e inicio do século XX, as teorias racialistas de Conde de
Gobineau e as teses evolucionistas de Charles Darwin10 exerceram grande influência nas
obras de importantes representantes do pensamento social brasileiro como: Silvio Romero,
Raimundo Nina Rodrigues e Euclides da Cunha. Estes, por consequência, exerceram grande
influência também nas políticas públicas, sobretudo as educacionais, colocadas em prática ao
longo de toda a Primeira República Brasileira.
Segundo Moura (1991), as grandes narrativas sobre o Brasil escritas até meados do
século XIX tendiam a associar a condição social dos grupos subalternizados (índios, negros e
mulatos) às suas (imaginadas) características ontológicas – procedendo, assim, a uma
naturalização de sua condição, que se explicavam pela inferioridade intelectual, indolência e
inaptidão para o trabalho. Como resultado indireto destas associações, as versões das
Histórias do Brasil, produzidas no período de emergência e fortalecimento das Ciências
Humanas (segunda metade do século XIX), passaram a utilizar um extenso leque de
categorias evolucionistas que atestavam, agora de forma científica, as crenças hierarquizantes,
até então assentadas em julgamentos religiosos e morais.

O capitalismo monta toda uma arquitetura teórica para justificar cientificamente o


que antes era justificado através de razões bíblicas, morais ou de competições locais.
Com isto, o racismo como hoje é conhecido racionaliza-se, isto é, deixa de
considerar essas diferenças raciais como simples opiniões teológicas ou empíricas,
para afirmar que cientificamente as raças não brancas e o negro em particular
encontram-se oprimidos e discriminados por incapacidade biológica de
acompanharem o processo civilizatório, aqui confundido e identificado com
expansão capitalista (MOURA, 1991, p. 214).

Convencidos da inferioridade intelectual e moral dos negros e mestiços brasileiros, e


de seu papel insignificante na criação de uma civilização, o projeto de embranquecimento
racial, moral e intelectual da nação passou a constituir o cerne do movimento nacionalista da
Primeira República. Construir uma nova nação brasileira, e equipará-la às nações mais
modernas e civilizadas da Europa, não implicava somente na purificação étnica da população,
ainda que, considerando a grande miscigenação da população brasileira, este fosse um
procedimento fundamental.
10
De acordo com Munanga (2004, p. 49), a essência da filosofia da história de Gobineau (é a de que) a raça
suprema entre os homens é a raça ariana, da qual os alemães são os representantes modernos mais puros. Todas
as civilizações resultam das conquistas arianas sobre os povos mais fracos; começaram todas a declinar quando o
sangue ariano diluiu-se por cruzamentos. Os brancos ultrapassam todos os outros na beleza física. Os povos que
não tem o sangue dos brancos aproximam-se na beleza, mas não a atingem. De todas as misturas raciais, as
piores, do ponto de vista da beleza, são as formadas pelo casamento de brancos e negros.

36
De acordo com Ortiz (2006), a influência que as teorias racialistas, produzidas na
Europa, tiveram no pensamento social e na historiografia brasileira não pode ser vista como
simples cópia de modelos explicativos. Segundo o autor, justamente no momento em que tais
teorias entram em declínio na Europa, elas emergem como explicações hegemônicas no
Brasil, o que evidencia, não um descompasso ou uma desatualização teórica, mas o fato de
que, mesmo tendo acesso às antíteses apresentadas a tais construções racialistas, os
pensadores brasileiros adotaram certas perspectivas teóricas que, utilizadas de modo parcial,
serviram como meio para explicar teórica e politicamente o que era considerado como um
problema concreto da nacionalidade.

O dilema dos intelectuais do final do século é o de construir uma identidade


nacional. Para tanto é necessário se reportar às condições reais da existência do país.
(...) Que assuntos são esses que preocupam a elite intelectual brasileira? A abolição,
o aproveitamento do escravo como proletário, a colonização estrangeira, a
consolidação da República (idem, p.30).

Em sua obra História da Literatura brasileira, Sílvio Romero (1960), sergipano


nascido no ano de 1852 que se tornou um dos baluartes do pensamento racialista no Brasil,
mostrava-se preocupado em descobrir se o cruzamento entre três raças tão distintas do ponto
de vista biológico (a branca, a negra e a indígena), poderia fornecer ao país uma imagem
original e viável. Nesse caso, o processo de mestiçagem em curso no Brasil poderia resultar
em uma futura sociedade brasileira homogênea, por meio da dissolução das heranças
biológicas e culturais dos não brancos. Desse modo, a mestiçagem era vista apenas como uma
fase do processo de constituição de uma sociedade superior de hegemonia branca.
Raimundo Nina Rodrigues, jurista maranhense nascido em 1862 foi outro ilustre
representante do pensamento racialista. No ano de 1894, publicou o livro As raças humanas e
a responsabilidade penal do Brasil, entrando em contenda aberta com as principais
conclusões de Sílvio Romero.
Na perspectiva de Raimundo Nina Rodrigues, o grande contingente de indivíduos
negros e mestiços que compunham a população brasileira, ao invés de representar apenas uma
fase intermediária no desenvolvimento da nação brasileira, levaria de modo inexorável, a
decadência do país. A partir da observação de significativas diferenças (vistas como
biológicas) entre os membros da população brasileira, o autor elaborou um continuum
hierárquico dos tipos raciais, no qual o grupo branco ocupava a mais elevada posição; o grupo
negro estava em posição superior ao grupo indígena, e ambos estavam em posição muito mais
37
elevada que os mestiços degenerados pelos cruzamentos de espécies distintas. Entre o grupo
de mestiços seria possível distinguir também os mestiços superiores e inferiores, que se
diferenciaram entre si pela espécie de cruzamento e, consequentemente, pelo grau de energia,
moralidade e inteligência (RODRIGUES, 1957 apud RAMOS, 1943) 11.
Com base nas teorias racialistas, Rodrigues defendia a tese da responsabilidade penal
atenuada às raças inferiores, afirmando que “(... a criminalidade do mestiço brasileiro é, como
todas as outras manifestações congêneres, sejam biológicas ou sociológicas, de fundo
degenerativo e ligado às más condições antropológicas do mestiçamento no Brasil”
RODRIGUES, 1957 apud RAMOS, 1943, p. 400).
Outro importante nome na época foi Euclides da Cunha, nascido no Rio de Janeiro, no
ano de 1866, o autor se dedicou às questões referentes à mestiçagem no Brasil. Apesar de ter
se formado em Engenharia na Escola Militar do Rio de Janeiro, atuou como jornalista e
ensaísta em muitos jornais e periódicos e, em 1902, publicou sua obra mais importante: Os
Sertões. Como era comum no período, sobretudo entre a classe literária brasileira, Euclides da
Cunha estava preocupado com o tema da identidade nacional.
Sob uma perspectiva relativamente distinta daquelas expressas por Sílvio Romero e
Nina Rodrigues, Euclides acreditava que, em determinado momento de nossa história, os
mestiços suplantariam em números, tanto os negros quanto os brancos, o que criaria um sério
inconveniente para a identidade nacional. Entretanto, esses autores concordavam com o
diagnóstico de que a miscigenação somente contribuía para a degradação moral das raças
puras 12.
Refletindo sobre a obra de Euclides da Cunha, e sobre a grande repercussão que
tiveram suas idéias, Ramos (1943) destaca a imensa competência literária do autor, que teria
conseguido transmitir aos seus leitores, por meio de uma obra de estilo ensaístico, o
sentimento de degeneração do mestiço, mesmo em uma época em que se tornava hegemônica
a força das ciências empíricas. Nesse sentido, a maldição do clima, apontada por Euclides,
somava-se a desgraça da raça, que determinava, nestes solos tropicais, a degenerescência inata
do mestiço. Assim, oprimido entre duas influências maléficas, o mestiço tenderia a deprimir-
se até chegar à extinção total.

11
RODRIGUES, N R.. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. Salvador, Progresso, 1957.
(1894)
12
CUNHA, Euclides da. Os sertões. 27. ed. Brasília: Campanha de Canudos, 1963.

38
A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. Ante as
conclusões do evolucionismo, ainda quando reaja sobre o produto o influxo de uma
raça superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem extremada
é um retrocesso. O indo-europeu, o negro e o brasílio-guarani ou o tapuia, exprimem
estados evolutivos que se fronteiam, e o cruzamento, sobre obliterar as qualidades
preeminentes do primeiro, é um estimulante à reviviscência dos atributos primitivos
dos últimos. De sorte que o mestiço - traço de união entre as raças, breve existência
individual em que se comprimem esforços seculares - é, quase sempre, um
desequilibrado (CUNHA, E., 2001 apud RAMOS, 1943, p.416).

Recuperando as distinções entre mestiços inferiores e superiores, feitas por Nina


Rodrigues, Euclides da Cunha distingue os sertanejos do interior dos mestiços do litoral,
imersos todos dentro do mesmo clima tropical “desgraçadamente degenerante” (CUNHA,
1963). Enquanto os mestiços do litoral eram compostos por tipos heterogêneos, tanto na cor
quanto na aparência física, "o sertanejo era antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo
exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral". Dessa maneira, o autor mescla em um
mesmo modelo, características físicas e morais, que se traduzem nas superstições, nos vícios e
nas virtudes.
Dentre este relativo consenso em torno da inferioridade racial dos não-negros, e da
consequente necessidade de minimizar, ou se possível erradicar, as marcas incivilizadas de
negros e indígenas, favorecendo o florescimento da civilização brasileira nos trópicos, Manuel
Bonfim se destacaria, juntamente com Alberto Torres, constituindo-se uma voz discordante
das doutrinas racistas vigentes à época, conforme Moura (1991) e Munanga (2004).
Segundo Moura e Munanga, as contribuições de ambos os autores, não
acompanhavam a tendência geral da historiografia clássica brasileira, todavia, muito
lentamente, vêm reverberando em produções mais recentes, que têm confrontado as visões
ainda hegemônicas de que o negro foi um sujeito passivo como escravo e biologicamente
inferior como cidadão. Em sua obra mais importante, A América Latina: males de origem,
publicada em 1905, Manuel Bonfim procura se opor às tradicionais idealizações da sociedade
brasileira que, ao mesmo tempo em que celebravam as potencialidades naturais do país,
atribuíam com a composição racial da sociedade brasileira, resultando no atraso cultural,
econômico e político.
Nascido em Sergipe, em 1868, Manuel Bonfim criticava tenazmente às perspectivas
deterministas vigentes à sua época,

o que lhe valeu, já em 1906, a reação irada de seu conterrâneo Silvio Romero, então
convencido da necessidade de submeter à sociedade brasileira a um tipo de
terapêutica étnica que assegurasse o gradual predomínio dos caracteres brancos

39
sobre os caracteres indígenas e, sobretudo negros na nossa população miscigenada, a
chamada teoria do ‘branqueamento’ (BOTELHO, 2009, p. 120-121).

Ao elaborar a tese de que os males de origem e os consequentes problemas


econômicos, políticos e culturais do Brasil não estavam vinculados a composição étnico-racial
da sua população, mas decorriam do próprio processo histórico de colonização ibérica,
Bonfim elege a educação como único meio capaz de superar as heranças culturais nefastas da
colonização. Distintamente dos pensadores de seu período, o autor não atribuía à educação
dirigida às classes subalternizadas e, em especial, à população negra o papel civilizacional.
Nessa perspectiva, o papel da educação seria (antes mesmo de qualquer reforma
econômica ou política) o de formar os brasileiros para uma nova sociedade. A confiança na
capacidade dos grupos subalternizados e da população negra de contribuírem intelectual,
material e politicamente para a construção de outra sociedade brasileira, capaz de extirpar a
herança ibérica e suas influências degenerativas, diferenciava o autor de Os males de origem
dos demais pensadores de sua época.
As obras Populações meridionais no Brasil, publicada em 1920 e Raça e Assimilação,
publicada em 1938, ambas escritas por Francisco de Oliveira Viana, carioca nascido no ano
de 1883, ajudam a reforçar a percepção de que: Manuel Bonfim era uma voz dissonante na
tradição racialista do período.
A exemplo de Nina Rodrigues, Oliveira Viana procura defender a tese de inferioridade
biológica dos negros e seus descendentes como forma de explicar as desigualdades sociais
vigentes. Por isso, afirma o autor que os atavismos (reaparecimento de certas características
no organismo depois de várias gerações de ausência) a que estavam sujeitos os descendentes
das raças inferiores implicaria no desaparecimento gradual destes elementos.

As duas raças são desiguais - e esta desigualdade se reflete na desigualdade da


riqueza eugenística das suas elites respectivas. Ora, como a civilização moderna é
muito exigente destes tipos superiores na composição de suas elites, compreende-se
e explica-se porque o negro, vivendo dentro desta civilização revele certa
inferioridade em face dos grupos brancos e brancoídes com os quais convive
(VIANA, 1932 apud RAMOS, 1943, p. 427) 13.

13
VIANA, Francisco José Oliveira. Raça e assimilação. 3. ed. São Paulo: Comp. Ed. Nacional, 1938 (Brasiliana.
Ser. 5; v.4).

40
Divergindo, um pouco, dos demais autores já citados, Viana (1938) inverte as ordens
de hierarquia, ao colocar o grupo indígena em posição superior ao grupo negro, afirmando
que a característica do primeiro (a altivez) é superior à característica do segundo (a
servilidade). Ao concordar com a superioridade do sertanejo, descendente dos indígenas, em
relação aos litorâneos, descendentes dos negros escravizados. O autor aproxima-se,
teoricamente, de Euclides da Cunha, entendendo que a característica de servilidade, observada
entre escravos africanos e seus descendentes, aliada a crescente migração européia para o
Brasil, resultaria, por fim, numa extinção gradual dos inferiores e numa progressiva
arianização neste país.
Apesar do estabelecimento de certo continuum hierárquico, Oliveira Viana acreditava,
de fato, que, de um modo geral, nenhum mestiço “prestava” (fosse ele cruzado com indígenas
ou com negros), justificando que a imobilidade social destes grupos seria uma comprovação
empírica de sua tese. Apesar disto, Viana (1938) não era tão pessimista sobre o destino do
Brasil quanto Euclides da Cunha, quando se refere às reflexões sobre a identidade nacional.
Conforme advogava, a eliminação dos mestiços, pela degenerescência ou pela morte, pela
miséria física ou moral, representava uma saída possível; posto que outra parte destes
mestiços (minoria absoluta) em virtude de seleções favoráveis seria apurada, a partir da quarta
ou da quinta geração, de seu sangue bárbaro. Deste modo, a única solução adequada para o
Brasil e para os próprios mestiços seria a imitação, física e moral, das características dos
brancos, a partir da assimilação da "moral e da mentalidade ariana". Chama-nos a atenção,
como bem destaca Ramos (1943; p.408) que "(...) isso foi escrito em 1938, época do apogeu
do nazi-fascismo no plano internacional e do estado-novíssimo no plano nacional”.
Notadamente, houve coerência nas afirmações do autor, uma vez que “suas idéias não tinham
significado científico, todavia político".
De fato, notamos que os diferentes modos de pensar o Brasil, expressos nas obras
produzidas ao longo do século XIX e XX e citadas anteriormente, se traduziam em formas de
atuar no plano político, transformando-se em formas de constituir a “comunidade imaginada”
chamada Brasil. Paradoxalmente, os diferentes pensadores da identidade brasileira, ao mesmo
tempo em que legitimavam as hierarquias entre raças (vistas como biologicamente distintas),
procuravam enfatizar à sui generis vocação da população em relação às diferenças raciais. De
modo que, as ambigüidades observadas, nos modos de ver a nação brasileira, não ficassem
restritas ao âmbito do pensamento social. Portanto, “as diferentes interpretações do Brasil
também se tornaram, ao longo do tempo, como que matrizes de diferentes modos de sentir e
pensar o país e de nele atuar” (SCHWARCZ e BOTELHO, 2009, p.13).
41
Justamente porque não operam apenas em termos cognitivos, mas constituem
também forças sociais que direta ou indiretamente contribuem para delimitar
posições e conferir-lhes inteligibilidade em diferentes disputas de poder travadas na
sociedade, as interpretações existem e são religadas no presente. E o reconhecimento
de que essas interpretações, como outras formas de conhecimento social, não são
meras descrições externas da sociedade, mas também operam reflexivamente, desde
dentro delas, e tem permitido reverter à imagem, algo difundida no passado recente,
da pesquisa do pensamento social como um tipo de conhecimento antiquário, sem
maior significação para a sociedade e para as ciências sociais contemporâneas
(idem, p. 14).

Ao longo do século XIX, e até meados da década de 1920, é possível notar que o
processo de constituição da identidade de uma nação, por meio da elaboração da História
oficial e/ou do pensamento social de um povo, evidencia a melancólica trajetória de uma
busca incessante pelo reflexo de Narciso. No caso brasileiro, sobretudo nas primeiras décadas
do século XX, esta busca identitária ratificava a incompatibilidade entre as imagens
projetadas sobre a nação e seu corpus constituinte (sua população).
As tentativas de construir uma nação civilizada nos trópicos se fizeram por meio da
enfática negação de suas marcas constitutivas (incluindo as marcas culturais, religiosas, e
valorativas das diversas etnias indígenas) dos diferentes grupos africanos arrancados de seus
territórios, e mesmo do colono português que acompanhou a nobreza colonizadora. Já em
Varhangem, o primeiro de nossos intérpretes a fazer o elogio da colonização portuguesa, as
características populares (rudes e anticivilizadas dos portugueses comuns) eram vistas como
degradantes para o desenvolvimento da nação. O que se almejava, neste período, como
espelho da nacionalidade brasileira era, exatamente, o inexistente. As raças vistas como
inferiores, e menosprezadas até o advento da Abolição, foram recorrentemente compreendidas
como as antípodas perfeitas do que se imaginava para o país. Havia, assim, um racismo
baseado na afirmação da “implausibilidade” de certos grupos (em especial os descendentes de
africanos, vistos como primitivos e animistas) de pertencerem à civilização, e mesmo à
humanidade. Racismo este diferencialista, que absolutizava as diferenças raciais entre os
grupos sociais, implicando em uma espécie de fagocitose; numa absorção física e simbólica
dos tipos raciais inferiores, percebidos como indesejáveis para a formação da nacionalidade.
Nessa perspectiva, a grande contribuição que o pensamento social da década de 1930
oferece ao Brasil é exatamente a possibilidade de "salvar a nação". Aderindo ao método - que
se convencionou chamar de “sociologia do cotidiano”, Gilberto Freyre, importante
antropólogo pernambucano nascido em 1900, inovou o modo de pensar o Brasil e se colocou

42
em rota de colisão com os pensadores deterministas que apregoavam a decadência do Brasil
devido a sua composição miscigenada. Tendo sido introduzido na perspectiva culturalista por
Franz Boas14, durante uma estadia na Universidade de Columbia, no principio da década de
1920, Gilberto Freyre se opôs frontalmente às teorias racialistas de Nina Rodrigues, Euclides
da Cunha e Oliveira Vianna.
Franz Boas, em sua famosa conferência intitulada Raça e Progresso, proferida no
encontro da American Association for the Advancement of Science, do ano de 1931, criticou
fortemente, por meio de pesquisas empíricas, as idéias de caráter racista que vogavam no
meio acadêmico norte-americano e que haviam se disseminado pelo mundo. Segundo o autor,
toda distinção de comportamento de um grupo deve ser explicado pelas características
aprendidas (culturais) e não através das características inatas.
Tendo “importado” esse modelo explicativo culturalista, Freyre construiu suas
principais obras, Casa Grande e Senzala (1933) e Sobrados e Mucambos (1936), procurando
negar os diagnósticos e previsões anteriores sobre a degeneração do povo brasileiro, e
buscando deslocar as diferenças entre negros, brancos e indígenas para o âmbito cultural,
mostrando ainda que fora a presença dos mestiços no país que possibilitou a formação de uma
nacionalidade sui generis.
De acordo com Cardoso (1993), ao lado de Sérgio Buarque de Holanda, Celso Furtado
e Caio Prado Júnior, “Gilberto Freyre se destaca como um dos autores que mais ajudaram a
inventar o Brasil”, tendo se convertido em autor revolucionário, tanto pela coragem de opor-
se a tradição racialista do pensamento brasileiro, quanto por sua capacidade de construir um
painel, ainda que deformado por sua posição de classe, sobre a sua própria realidade.

A estrutura de Casa grande e Senzala é uma estrutura simples, a oposição é clara


também. O “nós” que se forma é o “nós” que está baseado na casa grande e na
senzala, nas raças formadoras, e se opõe aos outros, que não são assim. Não é o
holandês que vai plasmar o Brasil: não poderia; é o português, porque o português
conseguiu essa amálgama com o negro que permitiu a individualidade da civilização
brasileira, criando uma identidade redefinida miticamente por Gilberto Freyre. E
criou uma identidade que fez com que o leitor, ao lê-la, não a rejeitasse. Não se trata

14
Antropólogo norte-americano de origem alemã, nascido em 1858, Franz Boas contribuiu para firmar as bases
da antropologia como ciência. Diferente dos evolucionistas que dominavam a Antropologia em seu princípio,
Boas argumentava que em contraste com o senso comum, raças distintas da caucasiana, "raças como os índios do
Peru e da América Central haviam desenvolvido civilizações similares àquelas nas quais as civilizações
européias tinham sua origem". Embora seus escritos ainda reflitam um certo racismo inerente ao seu tempo,
Boas foi pioneiro nas idéias de igualdade racial que resultaram nos estudos de Antropologia Cultural da
atualidade. Como orientador de antropólogos notáveis como Margaret Mead, Melville Herkovits, Ruth
Benedict e do brasileiro Gilberto Freyre, Boas ficou conhecido posteriormente como pai da Antropologia
contemporânea.

43
de um espelho horroroso, para mostrar uma cara que nós não gostaríamos de ter.
será um espelho narcisista, como o próprio autor, aliás, sempre foi. Quem o mirar
achará que nossa cara é bela e gostosa de ser vista (CARDOSO, 1993, p.25).

Concomitante a esse reconhecimento, de inaugurar uma nova tradição no pensamento


social brasileiro, Cardoso autor alerta: as críticas dirigidas às obras de Freyre referem-se ao
caráter conservador de suas interpretações, mas é importante destacar que seu legado guarda
algumas semelhanças com as obras de Francisco Varhangen, não apenas no que se refere ao
elogio da colonização portuguesa, mas também em relação à compreensão de que o processo
escravocrata brasileiro, assentado em certa benignidade e tolerância, teria sido mais ameno do
que os demais sistemas escravocratas.
De acordo com Freyre (1993), teria sido a ausência de orgulho racial entre os
colonizadores portugueses, povo historicamente miscigenado, o que contribuiu para assimilar
e digerir as origens multirraciais e multiculturais brasileiras, criando uma nova cultura e um
povo único. Por outro lado, ante a falta de sentimento ou da consciência da superioridade da
raça, tão salientes nos colonizadores ingleses, o colonizador do Brasil apoiou-se no critério da
pureza da fé.

Colônia fundada quase sem vontade, com um sobejo apenas de homens, estilhaços
do bloco de gente nobre que só faltou ir inteira do reino para as Índias, o Brasil foi
por algum tempo a Nazaré das colônias portuguesas. Sem ouro nem prata. Somente
pau de tinta e almas para Jesus Cristo. Para a escravidão, saliente-se mais uma vez
que não necessitava o português de nenhum estímulo. Nenhum europeu mais
predisposto ao regime de trabalho escravo do que ele. No caso brasileiro, porém, nos
parece injusto acusar o português de ter manchado, com instituição que hoje nos
repugna, sua obra grandiosa de colonização tropical. O meio e as circunstancias
exigiram o escravo. A princípio o índio. Quando este, por incapaz e molengo,
mostrou não corresponder às necessidades da agricultura colonial – o negro. Sentiu
o português com o seu grande senso colonizador, que para completar-lhe o esforço
de fundar agricultura nos trópicos – só o negro. O operário africano. Mas o operário
africano disciplinado na sua energia intermitente pelos rigores da escravidão (idem,
p.322).

Na perspectiva de d’Adesky (2001), o pensamento freyriano, apesar de superar o


racismo diferencialista de tipo biomaterialista expresso por Sílvio Romero, Nina Rodrigues e
Oliveira Viana, não consegue extirpar, por completo, o racismo em relação aos grupos não-
brancos. Por outro lado, a tradição deste pensamento, fundada por Freyre, inaugura um novo
tipo de racismo.

44
Não se trata de um racismo genocida que leva ‘a execução de um programa de
eliminação física baseado em uma ideologia racista. Ao contrário, trata-se de um
racismo universalista totalitário, que a todos impõe um modelo normativo de síntese
do humano. É nesse sentido que é excluído aquele que não corresponde ao tipo
humano idealizado. O racismo assim determinado apresenta-se, então, como um
sistema homogeneizador através da mestiçagem inter-racial (D’ADESKY, 2001,
p.82).

Deste modo, além de ter contribuído para a criação das bases simbólicas que
subsidiariam a construção da imagem de um Brasil moderno, baseada no que se passou a
chamar de “Mito da Democracia Racial”, e que aos poucos se consolidou interna e
externamente, o pensamento freyriano teria se transformado na garantia de legitimidade da
revolução burguesa de 1930, reforçando o espírito conciliador da articulação “pelo alto”.
A despeito das críticas e denúncias recorrentemente feitas por entidades negras acerca
da situação de subalternidade na qual se encontrava a população negra no Brasil ao longo das
primeiras décadas do século XX, a imagem acerca da prevalência do caráter harmonioso das
relações raciais no Brasil permanece hegemônica. Na visão de Hasenbalg (2005, p.253), como
construção ideológica, a “democracia racial” não é um sistema desconexo de representações,
pois está profundamente entrosada numa matriz mais ampla de conservadorismo ideológico,
em que a preservação da unidade nacional e a paz social são as preocupações principais.
Pouco conhecido no âmbito da Ciência Social brasileira, o sociológico Guerreiro
Ramos, baiano nascido em 1915, destaca-se como uma das vozes dissonantes em relação aos
pressupostos estruturadores da noção de democracia racial brasileira. Oliveira (2009) chama
atenção para a seguinte questão: o pouco respeito aos cânones acadêmicos e às tradições
sociológicas hegemônicas, em sua época, explica, ao menos em parte, o relativo ostracismo
enfrentado pelo pensamento de Guerreiro Ramos; que adepto de uma “Sociologia em mangas
de camisa”, como ele próprio definia, criticou veementemente toda corrente de pensadores
sociais brasileiros, incluindo Florestan Fernandes e Luís Aguiar Costa Pinto.

Segundo Guerreiro Ramos, o desconhecimento (ou negação intencional) da cultura


nacional e, sobretudo do povo brasileiro, fazia com que os pensadores sociais da época não
reconhecessem a dinamicidade da vida do povo (dos grupos negros e indígenas), levando-os a
concebê-los e retratá-los como objetos de museu. A crítica apresentada pelo autor era a de que
até aquele momento, poucos foram os autores que conceberam os negros (e os grupos
indígenas) como sujeitos reais da sociedade brasileira, incluindo reflexões sobre sua
incorporação à sociedade de classes ou sua ascensão social. Pelo contrário, estavam mais
45
preocupados em enquadrar estas populações a partir de suas sobrevivências africanas,
transformando-as em material etnográfico. A crítica apresentada por Guerreiro Ramos aos
pensadores sociais brasileiros da época, que se dedicavam às pesquisas raciais, era também
uma crítica a forma de institucionalização das próprias Ciências Sociais no Brasil que, tendo
transformado o negro em objeto de análise, não tinha o objetivo de “transformar a condição
humana do negro na sociedade brasileira” (GUERREIRO RAMOS, 1957, p.128). Em função
disso, os estudos sobre as sobrevivências africanas no Brasil seriam utilizados como meios
para conservar e legitimar as distâncias sociais entre negros e brancos no Brasil.
A vinculação de Guerreiro Ramos ao Teatro Experimental do Negro (TEN), na década
de 1940, e sua parceria intelectual com Abdias do Nascimento, permitiram ao sociólogo
construir alternativas políticas e epistemológicas para o problema das relações raciais no
Brasil. Assim, apesar de reconhecer a perpetuação das desigualdades entre negros e brancos,
que espelhava as mesmas posições estruturais vigentes durante o período escravista, Guerreiro
Ramos recusava-se a utilizar o termo “problema do negro”, por acreditar que a sociologia do
negro nada mais era do que uma ideologia da brancura, na qual este era considerado um
problema, pois destoava dos padrões normativos de uma sociedade que deveria ser branca; ou,
quando muito, réplica aperfeiçoada dos padrões europeus impostos durante a dominação
colonial.
Na concepção do sociólogo baiano, a mudança deste cenário, passaria pela formação
de uma elite negra intelectualizada, capaz de refletir sociologicamente sobre suas vivências no
contexto urbano e de franco desenvolvimento da nação, e assim, estimular o reconhecimento
dos indivíduos negros enquanto sujeitos sociais e políticos.
Para os intelectuais negros reunidos em torno do TEN, a afirmação da diversidade em
um contexto de desenvolvimento econômico nacional, exigiria a educação da população negra
(a partir do que Guerreiro Ramos chamava de negritude), e a reeducação da população
branca, por meio da remoção do racismo dos setores dominantes da sociedade; setores estes
expressivamente brancos.

(...) à nova fase dos estudos sobre relações de raça no Brasil, fase que se caracteriza
pelo enfoque de tais relações, desde um ato de liberdade do negro. É minha
convicção que desta mudança de orientação resulte, não um conflito insolúvel entre
brancos e escuros, mas uma liquidação de equívocos de parte a parte e,
conseqüentemente, uma contribuição para que a sociedade brasileira se encaminhe
para o rumo de sua verdadeira destinação histórica ¾ a de tornar-se, do ponto de
vista étnico, uma conjunctio oppositorium (GUERREIRO RAMOS, 1957, p.159).

46
Colocando em prática sua plataforma política e teórica sobre relações raciais no Brasil,
o TEN realizou no Rio de Janeiro, em 1950, o Primeiro Congresso do Negro Brasileiro, que
tinha como objetivo central aproximar cientistas sociais, intelectuais (de modo mais
abrangente) e ativistas do movimento negro, para gerar uma ampla aliança entre trabalho
acadêmico e intervenção política, em prol da diminuição das desigualdades vigentes entre
negros e brancos.
Entre os participantes do evento estava Roger Bastide, francês nascido em 1898,
importante referência nos estudos sobre cultura afro-brasileira e professor de Antropologia da
Universidade de São Paulo desde 1938. Logo após a realização do Congresso, Bastide
recebeu um convite do chefe do setor de relações raciais do Departamento de Ciências Sociais
da UNESCO, o francês Alfred Métraux, para coordenar uma série de investigações no Brasil
sobre as relações inter-étnicas, que passou a ser conhecido como Projeto UNESCO.
O Projeto UNESCO, que se notabilizou como uma das mais importantes investigações
coletivas sobre relações raciais no Brasil, guardava algumas afinidades com as proposições
vocalizadas por Guerreiro Ramos durante a realização do congresso do Negro Brasileiro. De
acordo com Maio (1999),

A tese de Guerreiro foi incorporada na parte relativa às recomendações do evento,


ao lado de outra sugestão que propunha “o estudo, pela UNESCO, das tentativas
bem sucedidas de solução efetiva dos problemas de relações de raças, com o
objetivo de prestigiá-las e recomendá-las aos países em que tais problemas existem”
(NASCIMENTO, Ab. 1982, p.402). A resolução não teve repercussão imediata
junto à Unesco. Entretanto, as posições de Guerreiro Ramos com relação à proposta
da agência internacional revelam um momento de disputa quanto à natureza política
e/ou acadêmica do projeto a ser realizado (Idem, p.146).

De acordo com Maio (2009), a escolha do Brasil como laboratório de experiências


bem-sucedidas de contatos inter-étnicos visava “apresentar ao mundo os detalhes de uma
experiência no campo das interações raciais julgadas, na época, singular e bem-sucedida,
tanto interna quanto externamente”. Segundo o autor, as imagens projetadas pelas narrativas
de Gilberto Freyre (1993) e Donald Pierson (1971) sobre as relações raciais no Brasil foram
fundamentais para a escolha do país como “caso exemplar” de convivência harmoniosa de
grupos étnicos distintos. Assim, além dos esforços empreendidos pela ONU, no fim da
Segunda Guerra Mundial, no intuito de desacreditar cientificamente o conceito de raça, que
havia sustentado ideologicamente o genocídio de mais de seis milhões de judeus e de dezenas
de milhares de outros membros de grupos considerados "racialmente inferiores" (ciganos,
47
deficientes físicos e mentais, eslavos, poloneses, russos e membros de outros países do leste
europeu), a apresentação, em âmbito mundial, de um exemplo concreto de convivência das
diferenças, de “equilíbrios de antagonismos”, era providencial.

De fato, havia dentro da organização (UNESCO) uma imagem positiva do país em


matéria racial. Numa época em que a Unesco procurava tornar inteligível o
genocídio nazista, no intuito de impedir que o fenômeno viesse a repetir-se, a
instituição assumiu como um dos seus principais objetivos criticar e, com isso,
eliminar a validade científica do conceito de raça. Neste caso, o Brasil apresentava-
se como um “laboratório sócio-antropológico” privilegiado para desqualificar a
importância conferida aos constructos raciais em nome da promissora experiência de
miscigenação e assimilação (MAIO, 1999, p.151).

As investigações levadas a cabo ao longo da década de 1950, viabilizando o projeto


Unesco, foram realizadas por um extenso grupo de cientistas sociais estrangeiros (Donald
Pierson, Roger Bastide, Charles Wagley, Alfred Métraux etc.) e brasileiros (Arthur Ramos,
Florestan Fernandes, Oracy Nogueira, Costa Pinto, Fernando Henrique Cardoso, Otavio Ianni,
etc.), quase todos vinculados a emergente Escola Paulista de Sociologia.
Antes da divulgação dos dados oficiais derivados do ciclo de investigações realizado
pela Unesco, Alfred Métraux, chefe do setor de relações raciais do Departamento de Ciências
Sociais da UNESCO, divulgou um balanço de sua viagem à Bahia, no ano de 1950. Ao
mesmo tempo em que expressava uma visão idílica sobre o Brasil e sobre a miscigenação
observada em Salvador, o texto também denunciava a existência de discriminações raciais e
de condições desfavoráveis aos negros nas disputas com os brancos. Outros pesquisadores do
projeto, tais como Florestan Fernandes e Roger Bastide (1955), Oracy Nogueira (1954),
Fernando Henrique Cardoso e Otávio Ianni (1960), também chegaram a conclusões
semelhantes à Métraux.
No prefácio do livro escrito por Fernando Henrique Cardoso e Otávio Ianni, por
exemplo, Florestan Fernandes é categórico.

Não existe democracia racial efetiva (no Brasil), onde o intercâmbio entre
indivíduos pertencentes a “raças” distintas começa e termina no plano da tolerância
convencionalizada. Esta pode satisfazer às exigências de “bom tom”, de um
discutível espírito cristão e da necessidade prática de “manter cada um em seu
lugar”. Contudo, ela não aproxima realmente os homens senão na base da mera
coexistência no mesmo espaço social e, onde isso chega a acontecer, da convivência
restritiva, regulada por um código que consagra a desigualdade, disfarçando-a acima
dos princípios da ordem social democráticas (FERNANDES IN CARDOSO,
IANNI, 1960, p. xi)

48
A realização do “Projeto Unesco”, ao mesmo tempo em que contribuiu para a
(re)emergência da temática racial no campo acadêmico nacional e internacional,
estabelecendo nítidas distinções conceituais em relação ao racismo científico vigente nas
primeiras décadas do século XX, contribuiu para a profissionalização e, para a relativa
autonomização, das ciências sociais no Brasil, que até aquele momento estavam amalgamados
aos setores técnico-burocráticos da gestão governamental e/ou da docência (CORRÊA, 1988).
Florestan Fernandes, paulista nascido em 1920, no período de realização do Projeto
Unesco, já se destacava como um nome proeminente da emergente sociologia brasileira. Foi
um dos primeiros estudantes do curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da USP e um dos orientandos mais destacados de Roger Bastide, com
quem escreveu o livro: Brancos e Negros em São Paulo, em 1959. Nesta obra, Bastide e
Florestan ratificavam a persistência da discriminação racial no Brasil, arraigada aos fatores
históricos, tais como: a escravidão tardia, a herança colonial e a dependência em relação ao
capital externo. De acordo com os autores, a passagem do sistema de trabalho servil para um
modelo de trabalho livre e assalariado não havia proporcionado à população negra recém-
liberta o usufruto real das vantagens do sistema capitalista, pois estes passaram dos postos
mais subordinados da hierarquia servil, aos postos mais precários da hierarquia capitalista.
A perpetuação das posições sociais, bem como dos estereótipos negativos em relação a
negros e mestiços, contribuíram para a manutenção dos padrões discriminatórios em pleno
século XX, fazendo com que a pressão dos fatos modificasse as representações sociais e as
atitudes discriminatórias. Para os autores, somente a pressão dos fatos poderiam modificar as
representações sociais e as atitudes discriminatórias, pois sem a transformação radical das
posições ocupadas por negros e mulatos, as mudanças profundas em atitudes tão fortemente
arraigadas, seriam pouco prováveis. Com isso, criava-se um círculo vicioso: se por um lado,
as alterações das representações sociais a respeito dos negros e mestiços dependiam da
alteração real dos papéis sociais ocupados por eles; a alteração do status dos negros e
mestiços também dependia, ao menos em parte, da alteração da representação a seu respeito,
que tornava-se mais difícil de ser alterada, na medida em que muitos negros e mestiços
internalizavam as representações negativas sobre eles e seus pares.

Os resultados de nossas entrevistas com personalidades de cor, que viveram nesse


período de transição, mostram que “a falta de preparo”, “a timidez” e “o medo”
fizeram que os negros e os mestiços “não ambicionassem” ocupar cargos e posições
encarados como apanágio da gente branca e com que desistissem de pretender
participar ativamente de sua influência política ou de sua vida social. Enfim,
aceitavam as circunstâncias, “ficando em seu lugar”. Os incorformistas, que

49
rompiam esse padrão dominante de ajustamento inter-racial, sofriam decepções e em
geral “falhavam”, pois dificilmente veriam correspondidas suas expectativas
(BASTIDE; FERNANDES, 1959, p.139).

De acordo com Bastide e Fernandes (1959), as pequenas modificações nas


representações sociais e nas ocupações de negros e mestiços e a proximidade histórica com o
período escravocrata, mostravam-se modestas demais para ensejar mudanças significativas
nas aspirações destes sujeitos. Entretanto, tomadas como produtos arcaicos da escravidão, as
diferenças percebidas entre brancos e negros no Brasil, com o tempo, deixariam de ser
explicadas em função de diferenças raciais, passando a ser fruto apenas de diferenças de
classe.

O que se evidencia é que se está constituindo uma nova constelação das relações
raciais, na qual a integração social não sofrerá, provavelmente, uma influência tão
intensa de determinações socioculturais ligadas com as diferenças raciais e com as
gradações da cor da pele, como ocorreu no passado. (...) Assim, nota-se que a esfera
mais afetada pelas transformações recentes é antes da discriminação econômica e
social, com base na cor, que a do preconceito de cor propriamente dito (BASTIDE;
FERNANDES, 1959, p.144).

Adicionalmente, Bastide e Fernandes (idem) afirmavam que as diferenciações raciais


nos campos ocupacionais, educacionais e de representações tenderiam a desaparecer com o
tempo, dando lugar a outras lógicas de diferenciação. Não obstante, diziam os autores, “as
mudanças macroestruturais acarretariam mudanças microestruturais, interferindo tanto na
‘alter-representação’ sobre os indivíduos negros, quanto na ‘auto-representação’ dos negros
brasileiros; modificando inclusive as suas aspirações” (idem, p.401). Com isso, a superação
progressiva das diferenciações raciais no contexto capitalista brasileiro fomentaria as lutas de
emancipação, transferindo-as para o (adequado) terreno das lutas de classe, abandonando as
lutas entre grupos raciais (verdadeiros estamentos) e viabilizando a emergência de uma
revolução proletária.
Situadas no campo teórico-político da esquerda brasileira, as reflexões feitas por
Florestan Fernandes sobre as relações raciais nas décadas de 1950 e 1960, não podem ser
desvinculadas do projeto de desenvolvimento do Brasil ao qual se vinculava (e pelo qual
lutava). Para ele, a realização efetiva de um projeto de desenvolvimento passaria,
obrigatoriamente, pela superação das distâncias sociais entre negros e brancos herdadas do
passado escravista.

50
Os posicionamentos de Florestan Fernandes, em relação ao papel que o ensino de
Sociologia deveria desempenhar na consolidação e desenvolvimento do Brasil, por exemplo,
eram esclarecedores quanto à forma como concebia os principais problemas nacionais e as
alternativas políticas mais viáveis para superá-los. Para Fernandes (1977), a inclusão da
sociologia no ensino secundário poderia desempenhar importante papel na superação das
heranças do passado, tanto ao possibilitar aos estudantes um conhecimento seguro do sistema
social brasileiro, quanto ao transformar a mera transmissão de conhecimentos escolares (de
caráter conservador), em uma experiência transformadora e desenvolvedora da criatividade.
Contrariando as heranças positivistas da sociologia francesa, que primava pela separação
entre ciência e política, Fernandes (Idem1977) se notabilizou por sua incansável militância em
prol da democratização do ensino, e em particular pela defesa da escola pública, lócus
privilegiado para a gestação da experiência revolucionária. Visando oportunizar condições de
libertação da opressão social, o autor defendia a superação da conservadora forma escolar,
que baseada na mera transmissão de conhecimentos, não possibilitava a educação se tornar,
para os estudantes, uma experiência transformadora da realidade e desenvolvedora da
criatividade.

1.2 – A educação das populações subalternizadas e a construção da nação


brasileira

Minha avó paterna, Mariana, foi uma pessoa muito importante na


minha vida. (...) Ela era filha de escravos. (...) Quando fiz sete anos e
comecei a freqüentar a escola, teve um episódio que marcou bastante
a minha vida. (...) No primeiro dia em que fui para a escola, eu recebi
um caderno, um lápis e, estranhamente, a minha avó colocou na bolsa
um pedaço de madeira (...) e falou: ‘agora vocês vão para a escola.
Vão passar por momentos muito difíceis. Quando alguém chamar
vocês de neguinho, você pegue esse pau e desce o sarrafo’.
Flávio Jorge Rodrigues da Silva, Depoimento Histórias do
Movimento Negro no Brasil, 2007.

No tópico anterior, por meio da apresentação das perspectivas teóricas de pensadores


sociais e historiadores, procurei apresentar os diferentes e, por vezes, antagônicos, modos de
“pensar o Brasil” e as relações raciais existentes ao longo dos séculos XIX, XX e início do
século XXI. Neste tópico, procuraremos discutir, as estreitas relações entre pensamento
social, historiografia e as políticas educacionais dirigidas ao povo brasileiro e, especialmente
à população negra, ao longo dos séculos XIX e XX, ora utilizadas como meio de manter e
51
acirrar as distâncias sociais entre elites e camadas subalternas da população, ora, como meio
de possibilitar a inclusão social e a emancipação socioeconômica e cultural desses grupos
subalternizados.
De acordo com Bourdieu (1998), as perspectivas teóricas apresentadas no tópico
anterior, boa parte delas produzidas no ambiente científico, e vistas como verdades
incontestes, devem ser encaradas como representações sociais, produzidas em meios onde o
objeto em disputa é o poder de propor ou impor concepções legítimas sobre o mundo. As
representações sociais vigentes em cada período histórico são, portanto, produtos de lutas
materiais e simbólicas pela imposição de concepções sobre o mundo (social, natural,
biológico, etc), e estão em estreita ligação com os interesses de apropriação diferencial dos
recursos materiais e simbólicos disponíveis.
Como resultado dessas lutas, algumas representações se legitimam e se tornam
hegemônicas sobre as demais. Isso ocorre exatamente, quando estas se coletivizam e passam a
ser vistas como ocorrências naturais. Mesmo as classificações tidas como naturais, apóiam-se
em traços arbitrários, e são produtos de disputas materiais e simbólicas, pela imposição
legítima de significados. Deste modo, as representações sociais não podem ser compreendidas
apenas como reflexos da realidade, mas, como forças capazes de instituir, através de sistemas
de percepção, a realidade. E por serem socialmente aceitas e legitimadas, acabam ganhando
status de realidade objetiva, mesmo se tratando de representações falsas ou ilusórias.
Aplicado ao campo das relações raciais no Brasil, a crença na Democracia Racial
Brasileira, erigida há algumas décadas no campo cientifico, mas que extrapolou os limites da
academia e do próprio país, se apresenta como um bom exemplo de como as representações
sociais tem uma efetividade nos pensamentos, nas ações individuais, e nas políticas públicas
de governo e de Estado. Ainda que muitos estudos recentes venham apontando as diversas
expressões das desigualdades raciais no Brasil, questionando assim a pretensa harmonia entre
as “raças fundadoras da nação”, o Mito da Democracia Racial ainda têm sustentado
pensamentos e atitudes e orientado ordenamentos jurídicos e políticas públicas.
Para Fernandes (2007), apesar da tendência em “pensarmos o campo das políticas
públicas unicamente caracterizado como administrativo ou técnico, e assim livre do aspecto
‘político’ propriamente dito”, é preciso considerar que a elaboração e implementação de
determinadas políticas sempre está relacionada com um conjunto de representações sociais
acerca da questão em disputa. Os processos decisórios, portanto, sempre incorporam aspectos
simbólicos, políticos e/ou ideológicos. Em função disso, é coerente afirmar que: as diferentes
políticas públicas (alternativas políticas) praticadas no Brasil, ao longo dos séculos XIX e
52
XX, sempre foram orientadas por representações sociais acerca do Brasil e do povo brasileiro
(imagens do Brasil) e por um, ou mais, projeto de nação.
Ao longo dos séculos XIX e XX, os divergentes modos de representação social sobre
o Brasil e sobre o povo brasileiro (e, em especial, a população negra), influenciaram, de modo
significativo, a formulação de políticas públicas destinadas a civilizar o povo e a desenvolver
o país nos diversos setores da nação: mercado de trabalho, agricultura, educação, etc.
No campo educacional, algumas políticas dirigidas à população negra se destacaram
por seu forte caráter moralizador, tendo sido elaboradas com a preocupação de cumprir, pelo
menos, dois papéis fundamentais: a) possibilitar a aquisição, por parte da população negra, de
requisitos mínimos de civilidade e b) oferecer à nação brasileira, trabalhadores com
qualificação mínima necessária, com o intuito de viabilizar o ingresso do Brasil no rol de
países civilizados. Merece destaque, portanto, o fato de que as disputas entre aqueles que
enxergam a educação como meio de condicionar o comportamento das gerações mais novas,
facilitando sua adaptação aos requisitos societários, e aqueles que enxergam a educação como
um espaço de desenvolvimento da consciência crítica, possibilitando aos estudantes um futuro
emancipatório, não seja um fenômeno recente.

1.2.1 – Surgimento da educação pública: fins públicos ou privados?

Desde o período imperial até os dias atuais, a educação e, mais recentemente, a


escolarização formal, passaram a representar um lócus privilegiado de intervenção sobre o
povo brasileiro, que, durante o período colonial e imperial, se restringia às populações
indígenas e aos homens libertos. Como salienta Veiga (2007), a disseminação da escola
pública no Brasil se deu, a partir de 1822, inspirada em pressupostos iluministas e liberais que
integraram o projeto de construção da nação em prol da civilização da população brasileira.

Depois da independência, a institucionalização da escola pública, gratuita e


obrigatória passou a representar um elemento de afirmação do novo governo do
Brasil – ou seja, era um ato político com o objetivo de organizar e dar coesão à nova
sociedade nacional. As elites política e intelectual do país se investiram da missão de
civilizar o povo, representado por elas como: indolente, descuidado e atrasado.
Acima de tudo, no entanto, caberia à educação desfazer os valores miscigenados e a
diversidade de comportamentos de uma população ela própria miscigenada e
diversa, homogeneizando-os em novos parâmetros e atitudes (VEIGA, 2007, p.131-
132).

53
Marcadas por uma lógica colonialista, as elites (políticas e econômicas) brasileira
faziam questão de ostentar uma tradição de pensamento social tomada por empréstimo dos
países europeus. Defendiam uma noção de civilização que desconsiderava, de modo
estratégico, todos os conhecimentos dos povos nativos e dos que foram trazidos das diferentes
regiões da África. Nesta equação desigual, mesmo os conhecimentos trazidos e transmitidos
pelos escravos africanos, tais como: as diversas técnicas de metalurgia, o cultivo de plantas
tropicais e a pecuária extensiva, sofreram uma espécie de antropofagia, sendo incorporados
pelos colonizadores portugueses, que buscaram assimilá-lo, para, posteriormente, negar sua
origem.
Em discurso proferido no ano de 1843, o senador da República Bernardo Pereira de
Vasconcelos causou rebuliço no Senado ao afirmar que: a “África civilizou o Brasil”.
Baseado nesta premissa, ele defendeu a continuidade do tráfico negreiro para o Brasil,
considerando que o fim do influxo de africanos neste lado do Atlântico poderia significar o
início de tendências barbarizadoras por aqui. Vale notar que a postura ambígua do senador,
quanto à capacidade civilizatória do continente africano, destoava do relativo consenso
existente entre as elites política e econômica, e entre pensadores como Nina Rodrigues, Sílvio
Romero e Oliveira Viana, para os quais as populações autóctones e os povos africanos
trazidos para o Brasil eram seres subdesenvolvidos (tecnológica, cultural e intelectualmente),
condição que podia ser atestada por suas crenças animistas, fetichistas e seus hábitos bárbaros
e rudes.
Em consonância com as teorias evolucionistas em voga na segunda metade do século
XIX, que identificavam a Europa como baluarte da civilização ocidental e os demais povos
como símbolos das etapas inferiores do processo evolutivo, a introdução da educação pública
no Brasil se desenvolveu de forma centralizada e com um forte viés moralizador. Por isso, a
educação, circunscrita a de primeiras letras, passou a figurar como uma das poucas propostas
dirigidas às camadas populares, vistas como inferiores e insolentes.
De acordo com Fonseca (2007), o debate sobre a escolarização do contingente negro
em situação de escravidão no Brasil era pauta recorrente nas assembléias legislativas de
importantes províncias brasileiras do século XIX. Em 1835, na província de Minas Gerais,
por exemplo, foi estabelecida a obrigatoriedade da escolarização formal para os meninos
livres de 8 a 14 anos. Mesmo que esta lei não tenha beneficiado a população escrava
diretamente, posto que seu acesso às escolas formais fosse cerceado em função de seu status
jurídico, a mesma acabou por alcançar um número considerável de meninos negros e pardos
libertos.
54
As evidências empíricas da presença negra nas escolas formais do século XIX
apontam para a compreensão que também os negros tinham sobre a importância da
escolarização formal. A busca por essa escolarização, ainda no período de escravidão, estava
associada a representações que podem ser vistas como os dois lados de uma mesma moeda.
Apesar de vinculado ao objetivo de favorecer a continuidade de um “pensamento colonial”
(SANTOS, 2007), a escolarização formal era encarada, por um lado, como uma forma de
inserção no “mundo civilizado” dos brancos, e por outro, como um instrumento de
moralização das classes subalternas.
De acordo com Barros (2005), No que diz respeito às ações brancas em prol da
escolarização da população negra, no final do século XIX, sabe-se que: elas eram vistas como
altamente desejáveis, pois seriam capazes de proporcionar aos futuros ex-escravos uma
educação para o trabalho, para a liberdade e para a construção da nação. “Lendo mais
profundamente o debate, percebemos que certa preocupação dos homens do período era:
como manter o controle sobre essa massa que não teria mais o chicote como forma de
coerção?” (Idem, p.81). Neste contexto, o imaginário acerca da inferioridade racial congênita
da população negra no Brasil, se misturava com o imaginário iluminista sobre as capacidades
civilizatórias da escolarização.
Por outro lado, as ações negras, que se fortalecerem a partir do inicio do século XX,
ao mesmo tempo em que buscavam reabilitar a dignidade do ex-cativo e seus descendentes
(por meio da realização de concursos de belezas, bailes e outros eventos destinados a resgatar
a auto-estima da população negra), havia incentivo à inserção da população negra no sistema
oficial de ensino, através de campanhas em jornais, associações, etc. Mais adiante,
discutiremos algumas dessas iniciativas negras no contexto republicano.
Nos anos que precederam a Abolição, foram as ações brancas em prol da
escolarização da população negra que se destacaram. De acordo com Fonseca (2002),
contextualizar o cenário de debates em torno da promulgação e efetivação da Lei do Ventre
Livre em 1871 seria um procedimento fundamental para a compreensão das disputas em torno
da escolarização dos negros e da Abolição da Escravidão. Ainda segundo ele, os dois
primeiros artigos da lei Rio Branco, aprovada e promulgada sob o número 2.040, versavam
sobre os termos que tornariam livres, as crianças nascidas de ventre escravo.

De acordo com o primeiro artigo, os filhos menores ficariam em poder e autoridade


dos senhores de suas mães, os quais tinham obrigação de criá-los e tratá-los até
idade de oito anos. Chegando os filhos das escravas a esta idade, o senhor teria a
opção de receber uma indenização do Estado no valor de 600$000, ou utilizar-se dos
serviços dos menores até a idade de 21 anos completos. (...) O artigo segundo
55
instituía que o governo poderia entregar às associações por ele autorizadas os filhos
das escravas nascidos após a data de aprovação da lei e que fossem cedidos ou
abandonados pelos senhores, ou ainda tirados destes em virtude de maus-tratos.
Essas associações teriam o direito a serviços gratuitos dos menores até a idade de 21
anos, podendo, inclusive, alugar seus serviços; em contrapartida, eram obrigados a
criar e educar os menores, a constituir um pecúlio e procurar, após o fim do tempo
de serviço, uma colocação para os egressos (FONSECA, 2002, p.30 - Grifo do
autor).

Fonseca (2002) chama a atenção ainda para o objetivo implícito da implementação da


lei: realizar uma transição gradual do trabalho escravo para o trabalho livre, reforçando a
tradição conservadora dos processos de transição política observada no Brasil. Apesar de
mostrar-se conservadora em diversos aspectos, o autor defende que a Lei do Ventre Livre
deve ser considerada singular, tanto para a historiografia geral, quanto para a história da
educação; pois é o primeiro momento em que a educação dos negros é publicamente referida,
estabelecendo a responsabilidade da educação dos ingênuos aos senhores de escravos, que
após educar os menores teriam o direito a uma indenização do Estado. Neste período, a
educação parece representar, tanto para abolicionistas quanto para os senhores resignados
com a abolição iminente, o principal instrumento capaz de guiar a sociedade brasileira rumo à
modernidade.
De acordo com Nabuco (1977, p.4)

Quando mesmo a emancipação total fosse decretada amanhã, a liquidação desse


regime só daria lugar a uma série infinita de questões, que só poderiam ser
resolvidas de acordo com os interesses vitais do país pelo mesmo espírito de justiça
e humanidade que dá vida ao abolicionismo. Depois que os últimos escravos
houverem sido arrancados ao poder sinistro que representa para a raça negra a
maldição da cor, será ainda preciso desbastar, por meio de uma educação viril e
séria, a lenta estratificação de trezentos anos de cativeiro, isto é, de despotismo,
superstição e ignorância. O processo natural pelo qual a escravidão fossilizou nos
seus moldes a exuberante vitalidade do nosso povo durante todo o período de
crescimento, e enquanto a nação não tiver consciência de que lhe é indispensável
adaptar à liberdade cada um dos aparelhos do seu organismo de que a escravidão se
apropriou, a obra desta irá por diante, mesmo quando não haja mais escravos.

No trecho apresentado acima, Nabuco explicita sua confiança na capacidade que uma
educação viril e séria teria de promover ordem e o progresso - alicerces fundamentais de uma
nação republicana e civilizada. Essa confiança estava consoante com os imaginários
dominantes no período, que concebiam como necessária à instalação da República como uma
necessária mudança na sociedade brasileira, que preparando as bases para a entrada em uma
nova era de progresso e desenvolvimento, possibilitaria a conservação da ordem instituída.

56
Sobre o valor simbólico atribuído à educação e à escolarização formal dirigida às
populações subalternas, os projetos educacionais civilizatórias acabaram sendo derrotados
pelos projetos imigracionistas, no limiar do século XX. Ainda que, boa parte dos principais
pensadores e políticos empenhados nos debates públicos pré-abolicionistas não
antagonizassem a escolarização dos ex-cativos (entendida como meio de dar-lhes civilidade) e
a imigração de mão-de-obra européia (entendida como meio de melhorar a qualidade da
população brasileira), os dois projetos, em seu âmago, expressavam concepções distintas e
quase antagônicas. Nesse caso, é possível afirmar que a vitória dos projetos imigracionistas
em relação aos projetos de escolarização dos ex-cativos significou também a vitória do
Projeto Republicano sobre o Projeto Imperial. Logo, uma vitória das Luzes Republicanas (do
Iluminismo, da racionalidade, da Ciência, do Capitalismo e do Positivismo) sobre as trevas do
passado Imperial.
No campo educacional, a vitória de uma doutrina baseada na racionalidade e que se
opunha ao tradicionalismo imperial deixaria marcas definitivas, conforme definiam os
15
republicanos. Esta nova doutrina era fortemente influenciada pelo positivismo Comteano ,
tendo como pressupostos a ordem e a estabilidade, que permitiram o estabelecimento de leis
gerais que auxiliaram na compreensão do mundo natural e social. Submetido à ordem, numa
ambivalência existencial, o progresso representava, portanto, a capacidade de compreender o
real, dominando-o e transformando-o.
Nessa perspectiva, a criação de grupos escolares em São Paulo, a partir do ano de
1893, pode ser compreendida como sintoma, quase imediato, da hegemonização das luzes
republicanas sob as trevas imperiais. As escolas isoladas (símbolo da escolarização imperial)
foram, gradativamente, substituídas por grupos escolares que buscavam consolidar nas
províncias brasileiras os mesmos princípios educacionais vigentes nos Estados Unidos e em
países europeus.

A escola graduada fundamentava-se essencialmente na classificação dos alunos pelo


nível de conhecimento em agrupamentos supostamente homogêneos, implicando a
constituição das classes. Pressupunha, também, a adoção do ensino simultâneo, a
racionalização curricular, controle e distribuição ordenada dos conteúdos e do tempo
(graduação dos programas e estabelecimento de horários), a introdução de um sistema
de avaliação, a divisão do trabalho docente e um edifício escolar compreendendo

15
Positivismo Comteano foi uma doutrina social que exerceu influência direta em muitos dos pensadores
brasileiros, em especial nos republicanos. Ele defendia a compreensão científica do mundo, bem como a
necessidade racional de (re)organizar a sociedade, evidenciando uma perspectiva extremamente pedagógica em
relação à sociedade e ao povo.

57
várias salas de aula e vários professores. O modelo colocava em correspondência a
distribuição do espaço com os elementos da racionalização pedagógica – em cada sala
de aula uma classe referente a uma série; para cada classe, um professor (SOUZA,
2004, p. 114).

De acordo com Faria Filho (2000), com base em pesquisa histórica realizada sobre a
educação primária na cidade de Belo Horizonte no principio do século XX, ao mesmo tempo
em que a nova forma escolar refletia o imaginário social e o momento concreto de
racionalização e urbanização, ela se destacava como uma importante produtora e
conformadora do novo tipo de racionalidade mental, econômica e urbanística que se desejava.
Quiçá por isso, esse novo modelo escolar fosse visto como uma poderosa arma que combatia:
os resquícios deixados pelo período imperial, assim como “a apatia do povo frente à vida
pública (e à república de uma maneira geral), a aversão ao trabalho manual, dentre outras”
(Idem, p.27). Adicionalmente, é preciso reconhecer que o consenso compartilhado entre
educadores e políticos acerca da criação dos grupos escolares e de sua capacidade de instaurar
uma racionalidade progressista, estava intrinsecamente relacionado com os novos imperativos
colocados pela dinâmica capitalista no país e seus requisitos básicos. A ênfase na disciplina,
na organização, no controle dos corpos e na aquisição de competências técnicas, perceptíveis
em vários relatórios educacionais encontrados pelo autor, evidencia a aproximação entre
escola e o mundo do trabalho, sobretudo o fabril.

(...) boa parte daqueles que construíram o pensamento pedagógico e mineiro e


brasileiro – e por que não, latino-americano – entre o final do século XIX e o início do
século XX tinham grande familiaridade e diálogo com o movimento de reorganização
do trabalho ou – o que é parte do mesmo movimento – com o processo de
estabelecimento de um mercado de trabalho livre sobre o signo das relações
capitalistas (FARIA FILHO, 2000, p.35).

Tornada pública, e destinada às classes trabalhadoras dos meios urbanos (consideradas


atrasadas e ignorantes), a emergente escola da Primeira República nasce sobre os auspícios
dos interesses privados: preocupados em garantir a ordem social e política e em possibilitar o
desenvolvimento do sistema capitalista no Brasil. Considerando o incipiente processo de
urbanização e industrialização no período republicano e a precária oferta de prédios escolares,
sobretudo nas áreas rurais e nas localidades mais distantes dos centros em urbanização,
amplos setores da população brasileira continuavam excluídos do processo educacional. A
população negra que no período já começava a ocupar os mucambos urbanos (FREYRE,
58
1996), ainda residia, majoritariamente, nas zonas rurais. Em razão disto, a substituição
progressiva das escolas isoladas nas áreas agrícolas (por grupos escolares localizados nos
grandes centros urbanos) afetou, de modo expressivo, as crianças e os jovens negros. De
acordo com Veiga (2007, p.247):

Isso se deveu a vários fatores. Em primeiro lugar, as localidades precisavam contar


com a existência de grupos escolares (...). Além disso, nem todos os grupos escolares
estavam no mesmo patamar, e o ingresso nos mais qualificados dependia muitas vezes
de favorecimentos pessoais e injunções políticas. A seriação e a passagem de uma
série pra outra por meio de exames anuais, por sua vez, revelam dois fenômenos
educacionais: a repetência e a evasão. Assim, mesmo que os filhos dos pobres
tivessem acesso à escola, a freqüência, em geral, era irregular, e a evasão, significativa
– até pela necessidade de inserção precoce das crianças oriundas das camadas mais
pobres no mercado de trabalho formal ou informal.

Termos excessivamente naturalizados atualmente, as novas formas de nomear os


sujeitos da educação do período, diferem radicalmente das formas corriqueiras como os
elaboradores das políticas educacionais se referiam aos “objetos” da educação no Brasil
imperial entre as décadas de 1830 e 1880: os ingênuos, filhos dos escravos.
Sobre essas questões, vale ressaltar que: o projeto nacional de fundação da educação
republicana (marcada pelos incentivos ao desenvolvimento capitalista e a modernização) foi
extremamente eficiente, no plano simbólico, ao transformar em alunos todos aqueles que
estavam sujeitos ao imperativo da escolarização formal. Mesmo entre os contemporâneos
historiadores da educação nota-se a tendência em referir-se aos freqüentadores dos grupos
escolares como alunos, estudantes ou, em alguns casos, filhos de trabalhadores. Termos
excessivamente naturalizados atualmente, esta nova terminologia difere, radicalmente, das
formas corriqueiras como os elaboradores das políticas educacionais se referiam aos “objetos”
da educação no Brasil imperial, entre as décadas de 1830 e 1880: “os ingênuos, filhos dos
escravos, etc.”.
Sobre o prisma da universalização, gratuidade e democratização, as políticas
educacionais republicanas, ao mesmo tempo em que dificultaram a presença da população
negra nos grupos escolares (ante as dificuldades de acesso e de permanência), possibilitaram a
invizibilização progressiva destes estudantes, ao referenciá-los por meio do termo genérico de
alunos. A incorporação imediata, nas relações educacionais escolares, do imperativo abstrato
da igualdade (situação que não podia ser observada entre as condições de vida de
descendentes dos senhores de escravos, descendentes dos homens livres e descendentes dos
escravos), favoreceu o estabelecimento de rígidos padrões de conduta, comportamento e
59
normalidade que, apesar de se autoproclamarem includentes, acabaram por excluir todos
aqueles que não se adequavam aos padrões estabelecidos.

O discurso republicano aprimorou os preconceitos raciais por meio da ciência. Esse


fator é muito importante para pensarmos os processos de desqualificação social da
população negra e mestiça. A tentativa de introduzir na escola um processo de
homogeneização cultural se fez à custa da negação dos valores étnicos e da cultura de
grande parte da população brasileira (VEIGA, 2007, p.264).

Paradoxalmente, o exercício de invisibilização simbólica da população negra,


colocada em prática por historiadores e pensadores sociais do século XIX, como José de
Alencar e Adolfo Varhangen, por exemplo, ressurge pari-passu à consolidação da República
brasileira. Deste modo, a população negra, alçada ao centro do debate social, econômico e
educacional, no final do século XIX e início do século XX, gradativamente desapareceu dos
relatos historiográficos ao longo do século XX, se tornando presumida dentro do contingente
das camadas populares e da classe operária urbana. Fato esse que reforça a exclusão
duplicada: primeiro, em relação ao acesso efetivo aos espaços sociais da sociedade urbana
brasileira (incluindo aqui as instituições escolares); segundo, em relação aos dilemas,
necessidades e contribuições da população negra na construção da história brasileira e da
história da educação no Brasil.
Na década de 1920, o novo modelo de organização escolar representado pelos grupos
escolares começa a sofrer severas críticas de representantes dos setores políticos e
educacionais. Em 1932, um grupo de intelectuais encabeçado por Anísio Teixeira 16 elabora o
Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em que o modelo escolar republicano figura
como alvo principal. Dentre os signatários deste manifesto, destacavam-se vários cientistas
sociais que, vinculados às diferentes esferas estatais, criticavam a “educação tradicional”,
assentada, segundo eles, em bases irracionais e concepções burguesas que deixavam os
indivíduos numa autonomia isolada e estéril. De acordo com o Manifesto, a principal causa
dos problemas na educação tradicional estava "na falta, em quase todos os planos e
iniciativas, da determinação dos fins de educação (aspecto filosófico e social) e da aplicação

16
Anísio Spínola Teixeira nasceu na cidade de Caetité, em 12 de julho de 1900. Foi jurista, educador e escritor.
Personagem central na história da educação no Brasil, nas décadas de 1920 e 1930, difundiu os pressupostos do
movimento da Escola Nova, que tinha como princípio a ênfase no desenvolvimento do intelecto e na capacidade
de julgamento, em preferência à memorização. Foi um dos mais destacados signatários do Manifesto dos
Pioneiros da Educação Nova em defesa do ensino público, gratuito, laico e obrigatório, divulgado em 1932.

60
(aspecto técnico) dos métodos científicos aos problemas de educação" (idem, 1932). Não
obstante, o modelo de ensino rigidamente organizado em matérias, lições e exercícios
mecânicos, impedia o pleno desenvolvimento do indivíduo, bem como do florescimento de
suas aptidões e capacidades, atributos fundamentais do desenvolvimento da sociedade.

A educação nova, alargando a sua finalidade para além dos limites das classes,
assume, com uma feição mais humana, a sua verdadeira função social, preparando-
se para formar "a hierarquia democrática" pela "hierarquia das capacidades",
recrutadas em todos os grupos sociais, a que se abrem as mesmas oportunidades de
educação (MANIFESTO PIONEIROS DA EDUCAÇÃO NOVA,
1932).

De acordo com Cunha (1994), apesar da aparente proeminência dada ao âmbito


individual pelo Movimento escolanovista, era eminentemente social a preocupação do
movimento. A racionalização dos processos de ensino-aprendizagem defendida pelos
signatários do manifesto não representa um fim em si mesmo, mas um meio necessário para a
adequada compreensão das personalidades e dos processos de desenvolvimento das crianças,
que possibilitaria as intervenções necessárias para a concretização do projeto de nação
acalentado pelas elites nacionais.

No ideário escolanovista, o emprego da mensuração de atributos individuais encontra-


se fortemente influenciado por um raciocínio que advém das necessidades da
administração empresarial. Plínio Olinto 17 analisa o caráter “altamente econômico” da
orientação profissional, prática de que resulta “a diminuição ou o desaparecimento do
mau profissional, o que vinha avolumado nos últimos tempos, principalmente entre o
operariado” (CUNHA, 1994, p.69).

Como se observa no excerto acima, apesar de adotar uma postura progressista em


relação à organização educacional chamada de “tradicional”, as concepções pedagógicas dos
signatários do manifesto eivam por viés moral. Esse viés, embora não fosse consensual entre
os escolanovistas, pode ser identificado nos registros escritos de um dos mais importantes

17
OLINTO, Plínio. Do valor do exame psico-fisiológico na pesquisa das aptidões. Escola Nova, São Paulo, v. 3,
n. 12, p. 109-18, maio/jun. 1931.

61
18
seguidores do movimento: Antônio Sampaio Dória - que versava sobre os objetivos da
educação moral e as conseqüências de seu desenvolvimento.

(...) não basta à supremacia das emoções de amor e sacrifício. O de que mais se
precisa, é habituar os educandos a praticar, e resistir às mil seduções de que o mal se
reveste. O hábito de resolver-se por si mesmo, de se preverem as conseqüências do
que se resolve, e de não fugir, mas arrostar serenamente as conseqüências do que se
faz, é o principal, é quase tudo na educação moral (DÓRIA, 1928, p. 84-85).

E continua...

vigorando ela, o mal que se pratique, refletirá em reações sobre o seu próprio autor,
inexoravelmente. As doenças, as degenerações orgânicas, as censuras, as reclusões
nas penitenciárias e nos manicômios, e até as defesas pessoais vão eliminando, por
seleção natural, os maus, os golpeadores da natureza humana, individual ou social.
Não importa que o autor ignore a maldade do seu ato. A reação inexorável da
natureza, e a reação justa da sociedade eliminarão pouco a pouco, como a
educação e a eugenia, os infratores das leis da vida. Ao cabo de milênios de
responsabilidade e seleção, os melhores hão de sobreviver. Estará, então, ultimada a
vontade de Deus: o bem pelo bem será, então, praticamente, a suprema ambição dos
homens (DÓRIA, 1928, p.86-87 - Grifo do autor).

Ao vincular-se a concepções científicas que primavam pela mensuração e


quantificação, Dória e outros membros do movimento escolanovistas (como Fernando de
Azevedo e Lourenço Filho) procuravam superar racionalmente a contradição empírica entre
um modelo de educação universal e a exclusão de determinados indivíduos dos níveis mais
altos de escolarização. Ao passo que o caráter universalizante da educação (observado por
meio dos uniformes, programas escolares e métodos científicos de ensino) constituía uma
necessidade política e social que visava a ‘homogeneização cultural’ do povo (CUNHA,
1994, p.68), a aplicação de uma ‘pedagogia experimental com base na ciência’, possibilitaria
a identificação dos níveis diferenciados de desenvolvimento, das qualidades e das aptidões
das crianças e, por meio destes conhecimentos objetivos, favoreceria a formação de
indivíduos e trabalhadores mais adaptados aos requisitos de construção de uma nação
industrializada, urbana e moderna.
Para Dávila (2006), mesmo os intelectuais progressistas do período (1930-1940),
incluindo os signatários do Manifesto Pioneiros da Educação Nova, estavam fortemente
convencidos da superioridade da "raça branca", não numa perspectiva biológica, mas cultural.
18
Antônio Sampaio Dória era advogado de formação, ex-ministro da Justiça do Brasil e professor de Psicologia,
Pedagogia e Educação Cívica na Escola Normal de São Paulo.
62
Em decorrência da hierarquia cultural entre os grupos, eles acreditavam que, somente, a
educação fosse o meio privilegiado para se transmitir os valores culturais, higiênicos e
comportamentais dos grupos superiores aos grupos inferiores. Segundo o mesmo autor, a
retórica científica, médica, técnica e meritocrática, utilizada para justificar as políticas
educacionais que produziam e reproduziam a superioridade cultural da população branca em
relação à população negra, esteve, estreitamente, vinculada aos valores sociais e raciais dos
intelectuais e operadores do sistema educacional brasileiro. Portanto, dotados da
"incumbência de forjar um Brasil europeu (e presos a um senso de modernidade vinculado à
brancura) esses educadores construíram escolas em que quase toda ação e prática
estabeleciam normas racializadas e concedia ou negava recompensas com base nelas" (idem,
p.25).
Outra observação importante é que na medida em que o ideário de ensino universal se
formava, seguia tendo uma parcela da população brasileira que permanecia sem direito
integral à educação (mesmo a tradicional). O Manifesto Pioneiro da Educação Nova, cujo
lema era a igualdade de direito na república, continuava perpetuando a invisibilidade da
condição de desigualdade e subalterna da população negra na sociedade brasileira.
Essas contradições (resultantes da hegemonização das políticas universalistas no
campo educacional destinadas à classe operária urbana) fortaleceram a invisibilização física e
simbólica da população negra. Na década de 1930, algumas experiências comunitárias de
escolarização para negros foram esboçadas, na cidade de São Paulo, sem grandes sucessos.
Ressentindo-se das inúmeras discriminações (abertas e veladas) e tendo internalizado o
imaginário hegemônico sobre a qualificação educacional (como passaporte para o
pertencimento nacional), membros de associações negras brasileiras começaram a organizar
escolas primárias nos principais centros urbanos do país.

No início do século XX, o movimento criou suas próprias organizações, conhecidas


como entidades ou sociedades negras, cujo objetivo era aumentar sua capacidade de
ação na sociedade para combater a discriminação racial e criar mecanismos de
valorização da raça negra. Dentre as bandeiras de luta, destaca-se o direito à
educação. Esta esteve sempre presente na agenda desses movimentos, embora
concebida com significados diferentes: ora vista como estratégia capaz de equiparar
os negros aos brancos, dando-lhes oportunidades iguais no mercado de trabalho; ora
como veículo de ascensão social e, por conseguinte de integração; ora como
instrumento de conscientização por meio da qual os negros aprenderiam à história de
seus ancestrais, os valores e a cultura de seu povo, podendo a partir deles reivindicar
direitos sociais e políticos, direito à diferença e respeito humano (GONÇALVES e
SILVA, 2000, p.337).

63
Uma destas organizações, a Frente Negra Brasileira (FNB), fundada em 16 de
Setembro de 1931, na cidade de São Paulo, resultou da obstinação de Francisco Lucrécio,
Raul Joviano do Amaral, José Correia Leite e outros. Tendo atuado por seis anos, foi extinta
em 1937 pelo Estado Novo, deflagrado por Getúlio Vargas. Apesar da curta existência,
registra-se que a FNB teve ascensão meteórica, alcançando projeção nacional e internacional.
De acordo com Nascimento (1976), membro dessa organização e um dos militantes mais
importantes do movimento negro brasileiro, “a Frente fazia protestos contra a discriminação
racial e de cor em lugares públicos, sob a perspectiva de integrar os negros na sociedade
nacional, (...) o que lembrava muito o movimento pelos direitos civis dos negros norte-
americanos” 19.
Atualmente, a FNB é vista, por alguns pesquisadores, como uma organização
conservadora e de direita, que se alinhou às políticas estadonovistas de Getúlio Vargas, além
de ter em suas bases simpatizantes do Integralismo e do Fascismo.

(...) há, nos meios acadêmicos, a visão cristalizada de que a Frente Negra teria sido
uma organização de direita. O próprio Florestan Fernandes a considera uma entidade
desprovida de força transformadora, já que a Frente jamais teria tomado uma posição
dogmática e utópica diante do preconceito de cor. Segundo Florestan, a entidade se
limitara a afirmar que o preconceito existia e emparedava o negro na sociedade, e a
propagar mecanismos societários de reação ativa contra ele, sem se propor, entretanto,
a extirpá-lo para sempre (...) e como não queriam modificar a ordem social, também
não viam por que se interessar pela transformação do branco além dos limites
envolvidos pela aceitação igualitária (BARBOSA, M., 1998 apud ARAÚJO, 2008)20.

No entanto, vale a ressalva, enquanto frente política, tal organização era composta por
tendências diversas, algumas, inclusive, consideradas de direita. Contudo, essas primícias não
eram hegemônicas entre membros da Frente; o que teria motivado divergências ideológicas
no interior da associação. De acordo com o modelo criado pelo filósofo francês Pierre-André
21
Taguieff , o tipo de antirracismo adotado pela Frente Negra pode ser classificado como
“Antirracismo universalista de tipo espiritualista”, que parte do princípio de que os grupos
identificados como inferiores não estão fadados a permanecerem na parte mais baixa da escala
civilizacional. Beneficiando-se de uma convivência em meios favoráveis ao desenvolvimento

19
Trecho de depoimento de Abdias do Nascimento publicado no livro Memórias do Exílio. Disponível em
http://www.abdias.com.br/movimento_negro/frente.htm Acessado em 24 de Fevereiro de 2011.
20
BARBOSA, Márcio. Frente Negra Brasileira: depoimentos. São Paulo: Quilomboje, 1998.
21
TAGUIEFF, Pierre-André. Les fins de l’antiracisme. Paris: Éditions Michalon, 1995.

64
e ao progresso, e experimentando a educação racionalizadora dos costumes, destruidora de
preconceitos e eliminadora dos particularismos culturais “bárbaros” ou “arcaicos”, todos
teriam acesso à civilização. Este seria um antirracismo de cunho igualitário e hiper-
racionalizante (TAGUIEFF, 1995 apud D’ADESKY, 2001).
Apesar das divergências políticas e ideológicas na FNB, havia relativo consenso na
necessidade de combater a discriminação racial, o que possibilitou a realização conjunta de
diversos projetos (sociais, educacionais e políticos) destinados à população negra. O jornal A
voz da Raça, veículo oficial de comunicação da Frente Negra, publicava mensagens,
reportagens e artigos, assim como eventos “domingueiros” e os cursos de formação social,
cumprindo importante papel no projeto de integrar os negros à sociedade brasileira da época.
Consoante com as representações vigentes, a escolarização formal era vista como veículo
privilegiado para promover a desejada integração dos negros e transformação da sociedade.
Tomamos um texto, escrito por autor desconhecido, publicado no jornal “A voz da
Raça” em 17 de Junho de 1933, e reproduzido por Araújo (2008), para elucidar as
expectativas nutridas em relação à escolarização formal:

RUMO À ESCOLA. A instrução é a cultura do nosso espírito, tanto intelectual e


material quando procuramos aprender uma disciplina que nos auxilie, materialmente
como sejam as várias profissões. A cultura da nossa inteligência é a instrução
intelectualmente falada. O mestre é o seu apregoeiro por excelência, incumbe-se de
ensinar as crianças. Mas nem sempre, principalmente em nossos dias! Também o
adulto vai à escola. A escola é o recinto sagrado (...) é na escola que encontramos os
meios preciosos para nos fazer entendidos pelos novos irmãos. Somos seus fiéis
discípulos e os mestres sacerdócios amáveis que nos dão à luz do saber. Para eles
devemos a nossa educação em geral. (...) a perfeição da educação é a instrução
combatida com polidez e o bem viver e a ciência unida à virtude. Oh, paes! Mande
vossos filhos no templo da instrução intelectual “a escola” não os deixeis analfabetos
como dantes! Hoje temos tudo, aproveitai às horas noturnas si os trabalhos vos
impedem. Ides à escola! Aproveitai o precioso tempo para engrandecer a nossa raça e
o nosso querido Brasil (idem, p.98-99).

A crença no papel fundamental da escola no desenvolvimento profissional e moral dos


indivíduos e da nação, somada à percepção das dificuldades enfrentadas pela população negra
para frequentar as escolas subsidiadas pelo governo, onde eram desconsiderados ou
abertamente discriminados, foram determinantes para a criação do Departamento de
Educação e Instrução da FNB e dos cursos de formação social e alfabetização de adultos.
Sabe-se que em meados de 1933, as primeiras iniciativas educacionais da Frente
Negra convergiram para a criação da Escola Primária da Frente Negra Brasileira. Esta
escola primária funcionava na sede da associação, no bairro da Liberdade em São Paulo, e
65
contava com professoras negras contratadas tanto pela associação quanto pelo Estado.
Segundo Araújo (2008), além de atender crianças negras, a escola era destinada também aos
descendentes de imigrantes japoneses que moravam na região. Assim como a Frente Negra
Brasileira, a escola primária funcionou até o ano de 1937, quando também foi obrigada a
fechar suas portas.
De acordo com Pinto (1993) a educação concebida por associações negras como a
FNB buscavam “uma maneira de o negro ganhar respeitabilidade e reconhecimento, de
habilitá-lo para a vida profissional, de permitir-lhe conhecer melhor os seus problemas e, até
mesmo, como uma maneira de combater o preconceito”. Embora essas reivindicações fossem
específicas, elas não destoavam do imaginário sócio-educacional da época. Quiçá por isso, a
educação formal seduziu amplos setores da sociedade (incluindo as associações negras), posto
que era vista como meio de integração e ascensão social no nível micro, bem como
instrumento de modernização e desenvolvimento macroeconômico e social. Além disso, a
adesão da comunidade negra à bandeira de luta pela educação se conectava aos ideários
nacionais emergentes no período, e contribuía, ainda que de modo indireto, para a
hegemonização das idéias, valores e hábitos das classes dominantes.
Em artigo intitulado “Diário Trabalhista e democracia Racial nos anos 40”,
Guimarães (2008) destaca as aproximações existentes entre as idéias propugnadas pela Frente
negra Brasileira, por Gilberto Freyre e por Arthur Ramos e cita o artigo publicado no Diário
Trabalhista do dia 09 de Março de 1946 e escrito por Abdias do Nascimento:

A fictícia igualdade social de todos os brasileiros, a nossa decantada democracia de


cor, tão engalanada de lantejoulas e jóias de ouro, não resistiu à análise fria e
imparcial da ciência. A sociologia e a antropologia falaram através de autoridades
como Gilberto Freire e Artur Ramos, denunciando os atentados criminosos sofridos
pelos negros em seu patrimônio espiritual e cultural. Muitos outros observadores e
pesquisadores ergueram sua voz, entre os quais se destaca o sincero e desassombrado
jornalista R. Magalhães Jr. condenando os processos ignóbeis forjados para ainda
uma vez mais escravizar os descendentes do povo africano (Diário Trabalhista,
9/3/1946 apud GUIMARÃES, 2008, p.168).

Ao se opor frontalmente a tradição racialista dos pensadores do inicio do século XX


que diagnosticavam a inevitável degenerescência do povo brasileiro, Gilberto Freyre passa a
ser reconhecido de modo positivo e utilizado como “fonte de legitimidade intelectual” para as
teses da FNB. As referências explícitas ao autor, bem como a outros ilustres representantes
das Ciências, parecem evidenciar a percepção que as entidades negras e seus membros

66
tinham, acerca da crescente legitimidade que as análises acadêmicas aos poucos vinham
obtendo.
No caso específico de Gilberto Freyre, que gostava de ser chamado de escritor e, por
vezes, abandonava o rigor cientifico, chama-nos a atenção como sua interpretação sobre o
Brasil se tornou hegemônica nos círculos políticos e acadêmicos (dentro e fora do país).
Todavia, é interessante observar que a relação estabelecida entre os ativistas negros das
décadas de 1930 e 1940 e as teses do autor oscilava entre “a apropriação e a oposição”. Na
medida em que os movimentos incorporavam parte das teses apresentadas por Freyre e Ramos
(como forma de reabilitar ontológica e historicamente a população negra), os membros dessas
associações denunciavam a perpetuação do “problema negro” no Brasil, contradizendo, ao
menos em parte, a imagem harmônica derivada do “equilíbrio de antagonismos” freyreano.

Na maioria das vezes, porém, Abdias e seus companheiros estavam na defensiva,


tentando convencer a opinião pública de que havia realmente um “problema do negro”
no Brasil e de que eles não o estavam criando do nada. Três pontos eram regularmente
citados como compondo o “problema do negro”: alienação econômica e social dos
negros na pós-Abolição; preconceito de cor e inaceitável discriminação dos negros no
comércio, nas Forças Armadas e no Itamaraty; o sentimento de inferioridade dos
próprios negros (FREYRE, 1993, p.172).

Nesse sentido, alguns membros da FNB acreditavam que a nova Democracia Racial só
poderia ser alcançada por meio de uma Segunda Abolição da Escravidão, uma vez que o
“problema negro” seria superado quando fosse garantido os direitos civis plenos para essa
parcela da população. Segundo eles, os remédios mais adequados para a resolução do
“problema” passavam, tanto pela mobilização da população negra, quanto do
desenvolvimento de uma moderna cultura negra, popular e erudita, visceralmente vinculadas à
educação. Isso explica o fato de “O Teatro Experimental do Negro, a Orquestra Afro-
Brasileira, de Abigail Moura, e o Centro de Cultura Afro-Brasileiro, de Solano Trindade,
terem sido as melhores expressões dessa vontade, assim como o eram os jornais negros de
São Paulo” (idem, p.172).
O Teatro Experimental do Negro, por exemplo, foi idealizado, fundado e dirigido por
Abdias do Nascimento, de 1944 a 1966. Tinha como objetivo central a criação de uma nova
dramaturgia que, entre outras coisas, possibilitasse a valorização do negro no teatro. Assim,
visando o florescimento de uma nova atitude (sobre si mesmos e os espaços sociais que
ocupavam ou almejavam ocupar), o TEN proporcionava aos seus membros (operários,

67
empregados domésticos, favelados sem profissão definida, modestos funcionários públicos)
cursos de alfabetização, cultura geral e dramaturgia.

Cerca de seiscentas pessoas, entre homens e mulheres, se inscreveram no curso de


alfabetização do TEN, a cargo do escritor Ironides Rodrigues, estudante de direito
dotado de um conhecimento cultural extraordinário. Outro curso básico, de iniciação à
cultura geral, era lecionado por Aguinaldo Camargo, personalidade e intelecto ímpar
no meio cultural da comunidade negra. Enquanto as primeiras noções de teatro e
interpretação ficavam a meu cargo, o TEN abriu o debate dos temas que interessavam
ao grupo, convidando vários palestrantes, entre os quais a professora Maria Yeda
Leite, o professor Rex Crawford, adido cultural da Embaixada dos Estados Unidos, o
poeta José Francisco Coelho, o escritor Raimundo Souza Dantas, o professor José
Carlos Lisboa (NASCIMENTO, 2004, p.211).

Segundo Gonçalves e Silva (2000)

... no que se refere ao acesso à educação, o TEN tinha proposições relativamente


realizáveis: ensino gratuito para todas as crianças brasileiras, admissão subvencionada
de estudantes nas instituições de ensino secundários e universitário, de onde foram
excluídos por causa de discriminação e da pobreza resultante de sua condição étnica.
Em termos concretos, o TEN acreditava que seria possível combater o racismo por
meio de procedimentos culturais e educativos, restituindo a verdadeira imagem
histórica do negro (GONÇALVES E SILVA, 2000, p.148).

A resoluta negação da “forma anquilosada e imobilista de uma instituição acadêmica”,


e a clara opção por uma orientação pragmática e dinâmica faziam com que o Teatro
Experimental do Negro não se limitasse à indignação e a denúncia da perpetuação das
desigualdades raciais e do racismo ostensivo que se revelava no teatro, na televisão e no
sistema educativo. No interior do TEN, o ideal de ocupação do espaço teatral e educativo,
pouco a pouco, foi sendo extrapolado; cedendo espaço às formas complementares de atuação
nos cenários: político e das ciências sociais.
Destaca-se como uma das mais importantes ações promovidas pelo TEN no campo das
Ciências Sociais, a organização do Congresso do Negro Brasileiro (em parceria com o
Instituto Nacional do Negro, dirigido pelo sociólogo Guerreiro Ramos). No âmbito político,
além da passagem de alguns de membros por cargos legislativos, o TEN organizou o Comitê
Democrático Afro-Brasileiro que aspirava preparar a comunidade negra para o processo de
construção da nova democracia após a queda do Estado Novo. Tal comitê era composto por

68
negros ativistas e líderes estudantis que se reuniam na sede da União Nacional dos
Estudantes.

O comitê passou um tempo inicial lutando pela anistia dos presos políticos (na sua
maioria brancos). Entretanto, quando chegou à hora de tratar das preocupações
específicas à comunidade negra, o projeto foi vitima da patrulha ideológica de
supostos aliados que acabou desarticulando o comitê. Invocaram o velho chavão de
que o negro, lutando contra o racismo, viria a dividir a classe operária
(NASCIMENTO, 2004, p.222).

De fato, para diferentes intelectuais brasileiros vinculados a tradição marxista a


questão racial era vista como “epifenômeno da desigualdade social”, posto que não passava
de uma herança nefasta do período escravocrata, que inexoravelmente seria superada pelo
acirramento das contradições de classe na sociedade capitalista. Além de enfrentar este tipo de
resistência, os membros das entidades negras percebiam-se numa opressão bilateral, tendo
suas reivindicações deslegitimadas, tanto por grupos vinculados ao pensamento de esquerda,
quanto por grupos vinculados ao pensamento de direita. Ao passo que, entre os membros dos
grupos vinculados à direita, que posteriormente se consolidariam como forças dominantes no
período de ditadura militar, as demandas apresentadas pelas entidades e associações negras
representavam um grande perigo à consolidação da coesão nacional, entre os membros de
grupos vinculados a esquerda, as demandas específicas apresentadas pelas associações negras
ameaçavam a “virtual” união da classe operária. Se para os primeiros, uma educação
universalista, capaz de transmitir conteúdos e valores únicos aos componentes da nação
deveria desempenhar o papel crucial de controle das massas, numa equação vertical de
transmissão de conhecimentos; para os segundos, a educação poderia possibilitar, por meio de
uma relação dialógica entre estudantes e professores, a ampliação da participação social e
política das massas proletarizadas rumo à emancipação social, quiçá rumo à revolução do
proletariado.
Nascido em 1920, o sociólogo baiano Luis de Aguiar Costa Pinto, alinhado à tradição
marxista de pensamento, e integrante do grupo de pesquisadores envolvidos com o projeto
UNESCO, se tornou, durante sua trajetória intelectual desenvolvida no estado do Rio de
Janeiro, um dos alvos principais das críticas feitas por Guerreiro Ramos. Estabeleceram, ao
longo da década de 1950 e 1960, um intenso e inamistoso debate sobre: as relações raciais no
Brasil, o preconceito racial, a questão da nacionalidade e, também, o papel das entidades
negras no combate às desigualdades raciais. De acordo com Guerreiro Ramos, a Sociologia

69
feita por Costa e Pinto, e que orientavam suas conclusões sobre relações raciais no Brasil, era
reflexo de teorias transplantadas irrefleditamente para o contexto brasileiro, uma espécie de
“sociologia importada”, “consular”, “enlatada” que, desconsiderando as particularidades
nacionais, evidenciavam toda a falta de compromisso com o desenvolvimento e autonomia da
sociedade brasileira.
De acordo com Costa Pinto (1953), a eliminação do racismo da sociedade brasileira
dependeria de amplas modificações estruturais, que seriam conduzidas, não pelas elites negras
educadas, como defendia Guerreiro Ramos, mas pela verdadeira classe revolucionária da
história: o proletariado. O fato de ser majoritariamente composta por negros e mulatos,
possibilitaria a classe operária lutar pela supressão, tanto das contradições de classe, quanto as
de fundo racial.

(...) quando o preconceito a atinge, ela [a classe operária] reage de pronto, e


diretamente, como quem repele uma afronta pessoal, muitas vezes violentamente, à
sua maneira. Não discute pomposamente, nem elabora explicações sofisticadas sobre
o pai de uma de sua negritude. Se o problema surge, ela simplesmente o enfrenta,
como homem(nos) simples, como homem(nos) do povo. E como o preconceito não se
apresenta numa frente única e unida, apoiado pela lei e cristalizado numa doutrina,
consistindo antes num sistema de atitudes e estereótipos que não raro se contradizem e
não apresentam qualquer coerência, moralmente batido pela ciência e pela história, o
negro-massa encara-o sempre face a face, em cada forma ou circunstância em que se
manifesta, e destrói-o e vence-o em mil batalhas quotidianas, pensando, sentindo e
agindo menos como raça, mais como massa, cada vez mais como classe (PINTO,
1953, p.337-338).

As conclusões críticas elaboradas por Costa Pinto em relação ao papel de vanguarda


assumido pelas lideranças negras no contexto urbano brasileiro, como no excerto acima,
foram elementos adicionais para agudizar os embates entre Guerreiro Ramos e o autor. Em
artigo intitulado “Interpelação à Unesco” e publicado no dia 03 de Janeiro de 1954 no diário
carioca “O Jornal”, Guerreiro Ramos denunciava, não apenas as conclusões teóricas
defendidas por Costa Pinto, no que se referia as relações raciais na cidade do Rio de Janeiro.
Guerreiro Ramos se indignou com (o que chamou de) injúrias feitas aos lideres do Teatro
Experimental do Negro, tomando-os por aventureiros e até cafetões.

O que há de correto no “aproach” adotado pelo livro nada mais é do que repetição,
extensão ou glosa de tese e trabalhos do TEN. O autor, entretanto, oculta dolosamente
o que deve ao TEN e se apresenta como um “desvirginador” de campos de estudo. Por
exemplo, C.P, vangloria-se de ser o primeiro a focalizar o negro como brasileiro, de
um ponto de vista não-exótico ou não espetacular, quando isto constitui um laitmotivo
dos documentos do TEN. (Vide “A UNESCO e o negro carioca”in Diário de Notícias
de 20-12-53). Aliás, em 1953, Costa Pinto diz em Lutas de Famílias no Brasil que vai

70
formular as bases metodológicas para o estudo da questão quando a referida obra não
passa de um plágio de Jacques Lambert e de um pastiche de Frederic Engels.

No dia 10 de Janeiro de 1954 Costa Pinto publicou um esclarecimento curto, no diário


carioca “O Jornal”, acerca das criticas recebidas em razão da publicação do livro. Nitidamente
dirigido a Guerreiro Ramos, Costa Pinto não citou em nenhum momento o nome de seu
opositor. Após contextualizar os leitores nos procedimentos teóricos e metodológicos
adotados na pesquisa e no livro, Costa Pinto afirma que “isto foi feito com rigoroso critério
cientifico, apoiado em documentação exaustiva e sempre citada, e com a constante e exclusiva
preocupação em acertar”. Adicionalmente, faz uma reflexão, com base em uma analogia com
o campo de pesquisa natural, acerca dos desafios enfrentados pelo pesquisador na área das
ciências humanas.

A despeito disto, neste caso, mais uma vez, o pesquisador teve de viver as
experiências que singularizam a ciência das relações humanas entre todas as ciências:
referimo-nos ao fato, às vezes sacrificante mas sempre fascinante, de lhe ser permitido
ver como o seu material, ou uma parte dele, reage às conclusões de um estudo sobre
ele mesmo. Duvido que haja biologista que depois de estudar, digamos, um micróbio,
tenha visto esse micróbio tomar da pena e vir a público escrever sandices a respeito do
estudo do qual ele participou como material de laboratório”. Nascimento apud
Medeiros, 2004, p.168.

Analisar, em profundidade, as divergências teóricas e políticas entre estes


pesquisadores que se imiscuíram no campo das relações raciais nas décadas de 1950 e 1960
seria, sem dúvida, um exercício analítico muito promissor. Compreender suas motivações
políticas e teóricas mais a fundo, sem dúvida, nos ajudaria a compreender este embate
especifico aludido acima. Todavia, como este não constitui um dos objetivos desta tese;
importa-nos destacar agora como, apesar dos perceptíveis avanços socioeconômicos, políticos
e educacionais alcançados por, pelo menos, uma parcela da população negra brasileira do
período, as representações sociais que estigmatizavam a população negra evidenciam toda sua
vitalidade.
Ao comparar os “grupos envolvidos na situação estudada”, incluindo aí o próprio
Guerreiro Ramos, com micróbios, numa nítida ação de desumanização da população negra,
Costa Pinto reforça os imaginários estigmatizadores fundados e reforçados pela ciência
ocidental desde, pelo menos, o século XV. Ao identificar a população negra como “objeto de
investigação”, por isso, indigna de fazer questionamentos sobre a produção da verdade
cientifica ou falar aos outros sobre sua própria existência, seus anseios e suas dificuladades,
Costa Pinta retoma e atualiza as concepções elitistas e racialistas de alguns proeminentes
71
pensadores do principio do século XX. Não por acaso, a analogia entre micróbios e membros
da população negra nos faz lembrar as afirmações feitas por Raimundo Nina Rodrigues no seu
livro Os Africanos no Brasil escrito entre os anos de 1890 e 1905. As afirmações contidas no
oitavo capítulo desta obra, intitulado Valor social das raças e povos negros que colonizaram
o Brasil e seus descendentes, são ainda mais reveladora das semelhanças: “A geral
desaparição do índio em toda a América, a lenta e gradual sujeição dos povos negros à
administração inteligente e exploradora dos povos brancos, tem sido a resposta prática a essas
divagações sentimentais” (RODRIGUES, 1976, p. 264).
Ao discutir a emergência do movimento negro contemporâneo no Brasil, nos anos
finais da década de 1970, Medeiros (2004) afirma que, “para a perplexidade e angústia dos
muitos que se afinam, ainda que inconscientemente, com esse tipo de etnocentrismo vulgar,
está em pleno curso uma verdadeira revolução”. Cansados da condição de objetos de
pesquisa, os sujeitos historicamente vistos como micróbios, teriam se apropriado dos
microscópios, e agora, por dentro da arena acadêmica, seriam os responsáveis por formular
contundentes contestações às imagens historicamente formuladas sobre si, sobre a nação
brasileira e sobre o persistente quadro de desigualdade social e racial vigente no país.
No próximo capítulo, “A revolução dos micróbios” e algumas de suas repercussões no
campo político e cientifico serão nossos temas de análise.

72
CAPÍTULO 2

2 – “A Revolução dos Micróbios”: lutas por reconhecimento e o direito à uma


nova história

O surgimento do Movimento Negro Unificado no cenário político nacional no ano de


1978, em consonância com as lutas mais gerais pela redemocratização no país, deixou marcas
importantes nas estratégias de atuação do movimento contemporâneo. Além de reforçar a
herança dos militantes históricos, no que se refere às denúncias de discriminação racial nas
escolas e em outros espaços, o MNU promoveu uma guinada em suas articulações, visando
intervir nas organizações públicas que produziam e reforçavam as discriminações raciais.
Assim, além de propor espaços comunitários de formação educacional e política da população
negra em geral, e da militância em específico, o movimento passou, a partir deste período, a
reivindicar uma nova postura estatal no trato das questões raciais no Brasil. Passaram também
a pressionar o Estado a reconhecer e a se comprometer com a superação do racismo no Brasil,
a lutar pelo reconhecimento da história e da contribuição das populações negras no Brasil, e
passaram, sobretudo, a questionar o lugar de “objeto de pesquisa” historicamente reservado à
população negra pela ciência moderna.
De acordo com Medeiros (2004) trata-se de uma verdadeira Revolução: “A Revolução
dos Micróbios”. Segundo ele,

hoje, (...) os micróbios começaram a se qualificar para o embate na arena acadêmica,


por meio de mestrados e doutorados, demonstrando um ávido interesse pelas ciências
sociais e humanas, e especialmente pelos estudos de relações raciais. Assumiram,
assim, o microscópio e passaram a examinar o ‘biologista’, que, numa curiosa
inversão de papéis, muitas vezes se irrita com as suas conclusões (idem, p. 107).

A percepção do caráter estrutural do racismo, derivado das representações sociais


persistentes em relação a inferioridade da população negra, e que ajudava a explicar o
contexto persistente de desigualdade social entre negros e brancos no Brasil, levou as
entidades negras e os diversos membros individuais a romperem com a tradição denunciativa
e voltada ao combate não-estatal da discriminação racial. Em oposição às perspectivas de
assimilação adotadas pelos movimentos antirracistas da década de 1920 e 1930, o movimento
73
negro (emergente na década de 1970) se mobilizou para ressignificar a identidade negra
brasileira, vinculando à noção de afro-descendência, e incorporando marcas estéticas,
culturais e religiosas anteriormente negadas, tanto fora quanto dentro do movimento.
O Movimento Contra a Discriminação Racial (MCDR), que posteriormente se
transformaria em Movimento Negro Unificado (MNU), como ampla aliança contra o
tratamento depreciativo ao qual era submetida à população negra brasileira, converteu-se,
rapidamente, em principal canal de reivindicação de políticas de redistribuição e
reconhecimento para esta parcela da população. Tais demandas, apresentadas a diversas
instâncias governamentais, não se limitavam a reivindicar acesso igualitário à saúde, à
educação e ao mercado de trabalho.
Exigiam também, o reconhecimento de que, a despeito da crença coletiva no Mito da
Democracia Racial – que sustentava a igualdade formal e ontológica dos brasileiros
descendentes das diferentes matrizes formadoras da nação, as diferentes características
fenotípicas possibilitavam que alguns brasileiros pudessem continuar, no âmbito das relações
sociais (sobretudo naquelas em que o poder estaria em jogo), a serem considerados micróbios
e, deste modo, desumanizados.
O Movimento Negro, e suas articulações, também exigiam do Estado e, de modo mais
abrangente, de toda a sociedade o reconhecimento das particularidades culturais, religiosas,
estéticas, etc. da população afrobrasileira. Exigiam ainda, o reconhecimento de que estas
particularidades (culturais, religiosas, estéticas) de matriz africana, apresentadas
ufanisticamente como demonstração do caráter harmônico das relações raciais, se convertiam,
nas relações cotidianas, em alvos preferenciais de ações discriminatórias e racistas.
Finalmente, exigiam do Estado maior empenho na implementação de políticas públicas que,
reconhecendo e valorizando tais peculiaridades, promovessem o igualitário acesso aos direitos
civis.

2.1 – Lutas por reconhecimento

De acordo com Tayllor (1993), o surgimento de diversos movimentos sociais


vinculados às lutas por reconhecimento (articuladas àquelas de redistribuição e justiça social)
está estreitamente vinculado às necessidades das sociedades democráticas modernas e à
74
progressiva substituição do principio de honra (organizador das hierarquias em sociedades
rigidamente hierarquizadas) pelo principio de dignidade humana. Os movimentos que lutam
por reconhecimento, como o Movimento Negro Unificado, só puderam emergir no cenário
político após a supressão das estruturas sociais baseadas em rígidas hierarquias, como as
organizadoras do sistema feudal ou do sistema escravocrata. Nestes sistemas sociais
fortemente hierarquizados, os indivíduos não eram considerados seres ontologicamente iguais
e, portanto, não poderiam reivindicar o reconhecimento igualitário, já que a honra (qual se
mensurava o status social de senhores e escravos) era distribuída em razão das características
herdadas e da posição de nascimento. Segundo Taylor (idem, p. 60), em sistemas sociais
assim hierarquizados, “para que algunos tuvieran honor em este sentido, era essencial que no
todos lo tuvieran” 22.
Refletindo sobre as bases ideológicas nas quais se organizavam (social e
politicamente) alguns sistemas de governos baseadas na honra, Moore (2007) afirma que a
Grécia Antiga se destaca porque se tratava de “uma sociedade escravista, na qual a honra era
distribuída assimetricamente entre gregos e não-gregos”. Nesta sociedade, as identidades
individuais e coletivas estavam intrinsecamente relacionadas aos lugares de nascimento dos
cativos e dos cidadãos livres aptos a freqüentar a polis grega. Além de se organizar social,
política e economicamente em torno da escravidão, Moore (Idem) destaca também que, a
partir do século IV a.c começaram a ser formuladas as primeiras teorias que iriam funcionar
como justificadoras da escravidão e das regulamentações das cidades-Estado, e que definiam
o papel do escravo na sociedade grega.
Segundo o autor, longe de expressarem preocupações com as condições de vida dos
escravizados, as teorias produzidas naquele contexto refletiam as tentativas de justificar a
existência de uma crescente população de cativos. Boa parte destas teorias foi produzida
justamente no período em que, comandada pelo imperador Alexandre – O Grande, a Grécia
intensificava a substituição da escravização dos nacionais pela servidão dos povos bárbaros.
Neste período, os bárbaros não eram, necessariamente, vistos como seres cruéis, ignorantes e
sem caráter (enfim, aqueles que vivem na barbárie); mas, eram tidos como aqueles que, em
oposição aos gregos, livres frequentadores da polis, estavam submetidos ao despotismo de um
rei. Em função disso, se pode inferir que os julgamentos dos gregos sobre os bárbaros eram
francamente etnocêntricos e essencializadores.

22
Para que alguns tivessem honra neste sentido, era essencial que nem todos tivessem.

75
“Tal como colocado por Heródoto23, o grego não aceitaria ser subjugado, enquanto
o bárbaro não conheceria um modo de vida que não implicasse subjugação. Assim,
Heródoto aponta serem os egípcios “incapazes de viver sem rei”, e que, apesar de
serem “possuidores de grande sabedoria”, eles não se põem menos do lado dos
“bárbaros” (HARTOG24 apud MOORE, 2007, p.67).

Na sociedade grega do século IV a.c, as características raciais ainda não eram


utilizadas como justificativas para a escravização dos bárbaros. Como demonstram Moore
(2007) e Munanga (2004), o discurso racial emerge somente no século XIX como meio para
justificar a dominação, colonização e escravidão moderna. Todavia, as justificativas utilizadas
como meio de legitimar a escravização dos bárbaros, recorrentemente associavam
características físicas a comportamentos morais. De acordo com Benjamin Isaac25 (apud
MOORE, 1993),

os gregos construíram um continuum que, por meio de três formulações gerais,


associava o estrangeiro à escravidão e a inferioridade: 1) há continuidade entre
características físicas e morais; 2) as relações entre traços mentais, físicos e morais são
inalteráveis pela vontade humana e 3) as características humanas são determinadas por
fatores hereditários ou por influências externas (clima ou geografia) 26 (idem, p.75).

A incorporação do mundo grego aos domínios romanos, “inscrita na dinâmica de


expansão desse último a partir do século IV a.C, concorreu mais para a permanência e a
atualização dos valores da civilização helenística do que para qualquer outra forma de ruptura
drástica”. No Império Romano, por exemplo, apesar da existência de formas variadas de

23 Nascido na cidade grega Halicarnasso no século V a.C. , Heródoto foi um importante geógrafo e historiador. Escreveu a história da invasão persa da Grécia nos princípios
do século V a.C. Sua obra ficou posteriormente conhecida como As histórias de Heródoto.

24
HARTOG, François. Memórias de Ulisses: narrativas sobre a fronteira na Grécia antiga. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 2004.
25
ISAAC, Benjamin. The invention of racism in classical antiquity. New Jersey: Princeton University Press,
2004.
26
As representações cartográficas produzidas no período que frequentemente retratavam a África (ou Etiópia,
como era chamada), como um espaço geográfico extremamente quente e com ventos descontrolados estavam
vinculados aos imaginários deterministas sobre o poder do clima na configuração das aptidões morais dos
indivíduos. De acordo com Moore (nota de rodapé, p.106), por mais de um milênio, gregos e romanos utilizaram
dois termos para designar tanto a cor negra quanto os povos dessa cor (melanos aethiops ou ethiops); sendo o
último (na sua acepção literal de “caras pretas” ou “caras queimadas”) o mais utilizado para designar os povos
negros, da África ou da Ásia (dravidianos), com os quais os gregos e os romanos travaram contato. Logo,
etimologicamente, aethiops corresponde a uma substância negra, proveniente do óxido de ferro, antigamente
aplicada a várias preparações com o fim de obter uma cor preta ou muito escura.
76
exploração da mão-de-obra, o trabalho escravo aos poucos se tornou preponderante. Tal
atitude fundamentou o protorracismo romano (herança da tradição grega) que apregoava a
escravização de indivíduos etnicamente diferenciados. Analisando aos primeiros séculos da
Era Cristã em Roma, verifica-se que apesar da relativa simpatia que os valores cristãos
inspiravam nos romanos com relação aos escravos, a instituição escravocrata não chegou a ser
seriamente questionada, tendo sido, inclusive, referenciada em textos bíblicos, nos quais não
se pode observar nenhum tipo de interdição moral à escravidão. “O bom tratamento dos
senhores em relação aos escravos foi amplamente defendido, muito mais para assegurar sua
honra do que para minimizar o sofrimento dos subjugados” (MOORE, 1993, p.81 - Grifo do
autor).
A queda do Império Romano permitiu a gradual expansão do processo de Islamização
do norte da África (iniciado no século VII d.c) tendo se tornado fator decisivo para a
consolidação de um modelo de escravidão protorracial. Naquele momento, homens negros
escravizados no norte da África passaram a ser maciçamente utilizados nas diferentes
atividades produtivas do Império Árabe. Assim, embora a religião islâmica tenha
reinterpretado ao seu modo a escravidão, no mundo Árabe, os escravizados africanos
continuaram desempenhando as mesmas tarefas historicamente atribuídas aos escravizados de
27
outros Estados-Nação . Em capítulo intitulado Maldição de Ham: origem da escravidão
racial?, Moore (idem) apresenta e discute um dos mais conhecidos mitos racialistas da
história da humanidade.

A naturalização da escravidão negra encontra sua fonte de legitimação na lenda


muçulmana segundo a qual “Ham”, filho de Noé, e ancestral dos negros, foi
condenado a ser negro por causa do seu pecado. A maldição de ser negro e
escravizado foi transmitida a todos os seus descendentes. Essa história dá um
exemplo interessante dos objetivos e da utilização dos mitos. A origem da maldição
do Ham é evidentemente bíblica (Gênesis IX – 1-27) e rabínica. Mas na versão
judaica, a maldição diz respeito à escravidão e não à cor da pele e se abate em
Canaã, o mais jovem filho de Cam e não sobre seus outros filhos, entre os quais
Kush, presumido ancestral negro (idem, p.86-87).

De acordo com o autor, havia uns “sem-números” de narrativas poéticas e anedóticas


produzidas no Império Árabe que ilustravam as crenças da pretensa inferioridade dos negros
africanos. Textos estes nos quais as representações sociais negavam as habilidades:
intelectual, estética, moral e religiosa dos negros (sobretudo dos escravizados), posto que os
2727
Os suportes ideológicos utilizados no mundo islâmico para legitimar a escravidão negra, passaram a fazer
referências, diretas e indiretas, a uma suposta inferioridade dos africanos, convertendo uma série de mitos
protorracialistas em valores religiosos e/ou científicos.
77
mesmos fundamentavam-se na estrutura social vigente que impregnava todas as esferas da
vida social. Tal perspectiva fortemente arraigada à tradição árabe foi exportada à Península
Ibérica no século VII. Em função disso, “pode-se afirmar que o modelo de escravidão racial
(que elegeu um grupo racial como alvo) foi um modelo erigido, defendido, fortalecido e
divulgado pelos árabes muçulmanos entre os séculos VII e XV” (idem, p.105).
Se, como afirmava o antropólogo brasileiro Gilberto Freyre (1993), os colonizadores
brasileiros já possuíam experiências interculturais e inter-raciais em razão da longa
permanência dos árabes na península ibérica, o que explicaria o fascínio sexual dos
portugueses pelas mulheres de pele morena (numa alusão mítica à moura encantada), não
seria menos plausível afirmar que tais contatos possibilitaram a transmissão de toda sorte de
preconceitos raciais já cultivados no Império árabe, e que por sua vez, haviam sido herdados
do império romano e do império grego. De acordo com Munanga (2004), tais preconceitos,
baseados em concepções racialistas das diferenças culturais e religiosas, estavam na base das
relações escravistas mantidas no Brasil ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX.
Segundo Bastide e Fernandes (1959), nos anos iniciais da colonização européia nos
países africanos e ao longo do período escravocrata no Brasil, as distinções cromáticas foram
utilizadas como modo de separação dos indivíduos “nobres” daqueles passíveis à escravidão.
“A cor passou a ser um símbolo de posição social, um ponto de referência visível e inelutável,
através da qual se poderia presumir a situação de indivíduos isolados” (idem, p.86). Assim, as
representações pejorativas atribuídas a estes grupos, inclusive a partir da negação de seu
status de humanidade, serviram para legitimar a dominação física e simbólica de um grupo
sob o outro.

As diferentes modalidades através das quais se processou a discriminação racial,


tinham por função manter as distâncias sociais intransponíveis, que dividiam os
dois mundos coexistentes e superpostos, e garantiam a partilha desigual de direitos
e deveres, assegurada pelo regime servil (idem, p.91).

Segundo os mesmos autores, as discriminações raciais (que primeiro justificavam a


ordem servil) passaram ao longo do tempo a desempenhar uma função social específica,
atuando em favor da perpetuação do sistema social vigente o que favorecia a cristalização nos
imaginários a respeito das posições sociais pertinentes às raças pertencentes aos senhores e
aos escravos. Com o tempo, as características negativas atribuídas aos escravos estavam tão
fortemente associadas ao indivíduo negro (com tom de pele mais escura que a do senhor); do

78
mesmo modo, às características positivas estavam vinculadas ao indivíduo branco (o senhor).
A imutabilidade das representações sociais em relação aos negros libertos, no decorrer do
período republicano, evidencia a constatação de que, apesar de não pertencerem mais à
condição social de escravos, estes não conseguiam se libertar das representações negativas
relacionadas à cor de sua pele.
Deste modo, mesmo após a Proclamação da República em 1889, que aboliu
juridicamente a rígida estrutura hierárquica do sistema escravista e a dicotomia existente entre
os possuidores e os não possuidores de honra, a população negra continuou sendo alvo de
ações preconceituosas que colocavam em questionamento a dignidade humana de negros,
pardos e mestiços, e os reduzia a condição de micróbios.
Referindo-se a dinâmica das relações étnico-raciais no Brasil, Ianni (2004) afirma
que...
A ideologia racial dos que discriminam, dos que mandam, os quais podem
ser "brancos" ou outros, sintetiza e dinamiza a intolerância, a xenofobia, o
etnocentrismo, o preconceito ou o racismo. É a ideologia racial que articula
e desenvolve a gama de manifestações, signos, símbolos ou emblemas com
os quais indivíduos e coletividades "explicam", "justificam",
"racionalizam", "naturalizam" ou "ideologizam" desigualdades, tensões e
conflitos raciais. O racista fundamenta em argumentos que parecem
consistentes e convincentes a sua "taxionomia" e "hierarquização",
distinguindo, delimitando, segregando ou estranhando o "outro": negro,
árabe, judeu, índio chinês, oriental e assim por diante. São estereótipos,
signos, símbolos mobilizados ao acaso das situações elaboradas no curso de
anos, décadas, séculos, com os quais o "branco", "dolicocéfalo", "europeu",
"ariano", "norte-americano", "ocidental" explica, legitima, racionaliza ou
naturaliza a sua posição e perspectiva privilegiadas, de controle de
instrumentos de poder. Nesse sentido é que essa ideologia é uma técnica de
estigmatização recorrente, reiterada em diferentes formulas e verbalizações,
desenvolvendo a metamorfose da marca em estigma (Ianni, 2004, p. 24).

Nas últimas décadas, um grande número de pesquisadores do campo das relações


étnico-raciais lançou luz sobre os danos causados às crianças, jovens e adultos negros pelos
atos racistas e discriminações subliminares, que de forma, direta e indireta, coloca em questão
o status de humanidade destes indivíduos.
Em um pioneiro trabalho no campo da psicanálise abordando as relações raciais,
Souza (1983) afirmava que: o processo de tornar-se negro no Brasil era uma experiência
geralmente dolorosa, face às contradições existentes entre o ideário eurocêntrico
compartilhado pela população brasileira e as marcas culturais, fenotípicas, estéticas e
religiosas desta população. Por meio de estudos realizados com pessoas negras em processo
de ascensão social, o autor discute o impacto da “ideologia do branqueamento” sobre a

79
personalidade do negro, levando em conta que "para o psiquismo do negro em ascensão, que
vive o impasse consciente do racismo, o importante não é saber viver e pensar o que poderia
vir a dar-lhe prazer, mas o que é desejável pelo branco" (idem, p.7). Nesse caso, para àqueles
que se empenham no processo de ascensão social, o sofrimento e os conflitos identitários
seriam inevitáveis, sobretudo, em uma sociedade em que a única possibilidade de se
humanizar: é se aproximar, o máximo possível, de um modelo branco de identificação.
Em estudo realizado em duas escolas da cidade de Belo Horizonte/MG, Fazzi (2004)
procurou investigar a presença do preconceito racial na infância e as formas pelas quais ele se
perpetuava e se cristalizava ao longo da vida dos sujeitos. Segundo a pesquisadora, a decisão
de observar crianças na escola deriva da discussão “de como a escola contribui ou não na
formação e manutenção de preconceitos raciais. A escolha foi orientada pelo fato de a escola
ser um lócus privilegiado de concentração de crianças, onde as relações entre elas são mais
constantes e densas” (op. cit., p.22). Nesse sentido, as observações foram realizadas em
escolas de níveis socioeconômicos distintos: uma localizada em uma favela de Belo Horizonte
e a outra localizada em um bairro de classe média. Ao longo das conversas e brincadeiras
realizadas com as crianças, nas quais elas classificavam racialmente os colegas e a si mesmas,
Fazzi captou as representações sociais das crianças sobre os diferentes grupos raciais.

Na brincadeira do assalto, o papel social reservado ao boneco não-branco foi o de


ladrão. Além disso, algumas falas ressaltaram a idéia de que preto é pobre, e branco
é rico. Lúcia, do grupo de crianças pobres, nove anos, branca, justificou a sua
afirmação de que branco era mais rico que preto lembrando que “Xuxa é branca,
Angélica é branca, Domingão do Faustão é branco, Silvio Santos é branco” e Anita
concluiu: “Tudo lá na televisão é branco”. Outra indicação da associação do não-
branco com posições social inferiores foi dada pela reação de duas outras crianças
do grupo pobre quando solicitadas a indicar um dos bonecos que se parecia com
médico(a). “Essa, porque ela é branca” e “Esse aqui não; médico preto é feio
demais! E ainda com roupa branca!” E outra criança, ao perceber que escolheu uma
boneca não-branca para ser faxineira acrescentou: “Não importa a cor, não importa
a cor”, querendo, dessa forma, dissociar cor e posição social. Uma menina de nove
anos disse que “preto, tão preto assim” era feio e “branco não, sabe por quê?
Porque os brancos parecem ricos e os pretos parecem pobres”. Imediatamente, uma
colega que estava no grupo contestou: “mas, tem preto rico... Como que o Grupo do
Molejo é moreno e eles são ricos?” (percebe-se aqui a intercambialidade entre as
categorias: preto e moreno). E a primeira criança tentou manter a sua posição
afirmando que “é porque eles canta, né? Eles era pobre” (FAZZI, 2004, p.132).

Em 2006, pesquisa realizada com jovens do Ensino Médio, JESUS (2006), procurou
medir os possíveis impactos da internalização de estigmas raciais no processo de construção
das aspirações profissionais e educacionais, ao comparar respostas de jovens estudantes,
negros e brancos, da cidade de Belo Horizonte/MG que contestaram à pergunta: “Qual o tipo
80
de emprego que você deseja ter aos 30 anos de idade?”. Neste estudo, 908 estudantes com
idade entre 15 a 28 anos, autodeclarados negros ou brancos e matriculados em alguma escola
estadual, municipal ou particular do município de Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais,
tiveram suas respostas analisadas pelo autor que buscou identificar:

(...) as aspirações ocupacionais dos estudantes pesquisados são bastante otimistas.


Boa parte dos estudantes deseja ocupar, aos trinta anos de idade, ocupações de alto
prestígio social, e com alta exigência de escolaridade. Outro achado interessante
deste estudo é o fato de que, ainda que as aspirações dos estudantes, considerados
como um todo, sejam bastante otimistas, pudemos perceber que as aspirações
ocupacionais dos estudantes brancos são significativamente mais otimistas do que as
aspirações dos estudantes negros. Desta forma, acabamos por perceber que a
assimetria na distribuição dos recursos socialmente valorizados, não é a única forma
de desigualdade que separa indivíduos negros e brancos, posto que os níveis de
aspirações ocupacionais, analisados neste trabalho, também são desiguais (JESUS,
2006, p.14).

De acordo com Tayllor (1993), o falso ou inadequado reconhecimento pode acarretar


traumas profundos nos indivíduos estigmatizados, em virtude disso, ue:

o reconhecimento adequado das identidades individuais e coletivas não se resume a


uma cortesia ou uma dádiva dirigida aos “outros”, mas uma necessidade humana
vital; tanto que as diversificadas lutas por reconhecimento que temos observado
atualmente são, neste sentido, denúncias incisivas de que determinadas identidades
não tem sido reconhecidas em toda sua plenitude humana; desumanizadas, portanto,
por meio de atos racistas, sexistas, “homofóbicos”, xenófobos, etc (idem, p. 65)

De acordo com Tayllor (idem), em um contexto democrático, para que um indivíduo


seja reconhecido como cidadão, apto a usufruir dos direitos de cidadania, é preciso que o
mesmo seja reconhecido como um ser ontologicamente igual, através de um processo
dialógico de construção identitária. Neste sentido, o caráter dialógico para a construção
identitária, implica que as imagens criadas pelos “outros” sobre o “eu”, por meio do
reconhecimento, do não-reconhecimento ou de um reconhecimento equivocado da
humanidade do sujeito, têm um considerável impacto na construção das imagens que este faz
sobre si mesmo. Um dos impactos negativos do não-reconhecimento (ou do reconhecimento
inadequado) é que ao internalizarem uma imagem depreciativa de si mesmo (o que ocorre
tanto com mulheres criadas no seio de sociedades patriarcais quanto pessoas negras criadas no
seio de sociedade racistas), esses indivíduos podem se torna incapazes de aproveitar eventuais
novas oportunidades educacionais ou ocupacionais, mesmo quando são retirados os possíveis
obstáculos que impedem o seu desenvolvimento. “Según esta ideia, su propia auto
depreciación se transforma em uno de los instrumentos más poderosos de su propia opresión.

81
Su primera tarea deberá consistir em liberarse de esta identidad impuesta y destructiva (idem,
p.72)”28. Com isso, podemos inferir que o falso reconhecimento não só explicita uma falta de
respeito aos outros, mas pode infligir feridas dolorosas nos sujeitos, levando-os a desenvolver
um ódio mutilador contra seu eu. Por isso, segundo Taylor (idem), as demandas por
reconhecimento, apresentadas por grupos minoritários ou subalternizados, se devem aos
supostos nexos existentes entre reconhecimento e identidade, “donde este último término
designa algo equivalente a la interpretación que hace una persona de quién es y de sus
características definitorias fundamentales como ser humano (idem, p. 77)”.
Para Martucelli (1996), durante muito tempo, os modelos democráticos vigentes nos
países ocidentais modernos, se alicerçaram, na invisibilidade das identidades particulares em
favor de identidades coletivas e universais. As propostas identitárias subjacentes a tais
modelos de democracia, não propunham a negação radical da diversidade cultural e social,
mas se organizavam em função das tentativas de construção de “uma linguagem institucional”
que traduzisse a diversidade em termos universais. Por isso, as políticas formuladas e
implantadas pelo Estado, neste contexto, orientavam-se pela noção abstrata de um sujeito
universal moderno que, necessariamente, deveria atender às exigências fundadas pelo projeto
iluminista: “ser racional, centrado e unitário”. Nisto, ao exigirem do Estado o
desenvolvimento de políticas multiculturais, os movimentos que lutavam por reconhecimento
acabavam explicitando, também, a existência de identidades até então negligenciadas pela
imagem de um sujeito universalista. Note, portanto, que:

A crise da visão da igualdade social sob influência de uma concepção totalizante da


sociedade acarreta uma mudança profunda, formulada pela noção de eqüidade. Em
sua formulação clássica, a igualdade enfatiza os elementos comuns aos indivíduos
genéricos e não suas diferenças, seus particularismos coletivos, ela remete sempre a
uma concepção global e comum da sociedade. É diferente o que se dá com a noção
de “eqüidade” que reconhece a pertinência política das especificidades culturais dos
indivíduos e dos grupos, aceitando a idéia de um tratamento diferenciado dos
membros dessas coletividades (MARTUCELLI, 1996, p.21).

Segundo Taylor (1993, p.67), “la sociedad supuestamente justa y ciega a las
diferencias no sólo es inhumana (en la medida en que suprime las identidades) sino también,

28
Segundo esta idéia, sua própria autodepreciação se transforma em um dos instrumentos mais poderosos de sua
própria opressão. Sua primeira tarefa deverá consistir em libertar-se desta identidade imposta e destrutiva
(Tradução nossa).
82
29
en una forma sutil e inconsciente, resulta sumamente discriminatoria” . No caso do
movimento negro no Brasil, as críticas multiculturais têm sido direcionadas, não apenas às
desigualdades e seus mecanismos invisíveis que provocam as assimetrias no acesso a recursos
socialmente valorizados, como também na alquimia invisível que transforma todo brasileiro
(de diferentes raças, etnias e origem social) em mestiços; encobrindo assim, as especificidades
culturais e as identidades étnico-raciais, bem como as diferentes experiências de vida
derivadas destes distintos pertencimentos. De maneira ampla, se trata de um movimento de
repolitização da cultura e das próprias identidades culturais.
Nesse sentido, Gonçalves e Silva (2006) chamam a atenção para a mudança
paradigmática provocada pelo multiculturalismo (a partir da década de 1970) que embasou e
preparou os movimentos de protestos contra os modelos de dominação cultural.

Foi a partir daí que negros índios e minorias étnicas em geral começam a detonar os
critérios que os classificam como naturalmente inferiores aos grupos étnicos
dominantes. Os achados culturalistas vão inspirar os movimentos de mulheres, em
várias partes do mundo, contra a suposta supremacia natural dos homens. O mesmo
vai ocorrer com os homossexuais, que passam a produzir novas imagens de si
mesmos e a combater, por vias judiciais, preconceitos em relação a seu
comportamento sexual. Enfim, motivados por uma leitura mais questionadora da
diversidade humana, os grupos culturalmente dominados buscam conquistar,
paulatinamente, sua emancipação, abandonando os valores culturais que os
oprimem (idem, p.24).

Assim, em um cenário de crise do Mito da Democracia Racial, provocada pelos


questionamentos de sua legitimidade simbólica e concreta, as lutas emergentes não estão
orientadas apenas pelo ideário de igualdade formal, e não exigiem apenas políticas de
redistribuição socioeconômica dirigidas a cidadãos reconhecidos como iguais. As críticas
multiculturais, intrinsecamente vinculadas a desejos e exigências de reconhecimento,
denunciam a dominação silenciosa de uma identidade (ou de uma cultura) sobre outras.
Além de atuarem politicamente no campo das relações raciais brasileiras,
reivindicando, sobretudo no campo educacional, uma inflexão na dinâmica destas relações, os
diferentes membros do movimento negro produziam conhecimentos acadêmicos sobre as
relações raciais em que estavam inseridos e chamavam a atenção para os estreitos vínculos
entre práticas sociais e os imaginários racialistas e racistas que, ao longo do século XIX e XX,

29
A sociedade supostamente justa e cega às diferenças, não é somente desumana (na medida em que suprime as
identidades), mas, também, de um modo sutil e inconsciente, torna-se sumamente discriminatória (Tradução
nossa).

83
foram produzidos e hegemonizados no Brasil. Mais do que militantes políticos, estes homens
e mulheres negros(as) são pensadores sociais contemporâneos, já que no decurso de suas
intervenções políticas eles acumulam e produzem conhecimentos teórico-práticos acerca da
cultura brasileira, das estruturas sociais e das relações interpessoais numa sociedade
fortemente racializada como a nossa. Adicionalmente, reorientam suas ações futuras com base
nos conhecimentos que acumularam e produziram sobre a realidade das relações raciais no
Brasil.
Procurando evidenciar um outro aspecto do movimento que Medeiros (2004) chamou
de Revolução dos Micróbios, o segundo tópico deste capítulo apresentará, por meio de
relatos e depoimentos de homens e mulheres que participaram ativamente de entidades e
grupos negros nas últimas décadas do século XX, uma “versão” silenciada de nossa história
recente.

2.2 – Outros intérpretes ou outra história?

Eu sempre digo que o movimento negro tem sido muito generoso com
a sociedade brasileira. Tu já imaginaste o que é trazer para a
sociedade diversas comunidades, no país inteiro que estavam
invisíveis para ela durante séculos? Isso vai ser de uma importância
muito grande para a própria sociedade brasileira começar a
rediscutir sua identidade.
Zélia Amador, Depoimento Histórias do Movimento Negro no
Brasil, 2007.

Conforme afirmado anteriormente, o objetivo principal deste tópico é apresentar novas


possibilidades de compreensão do presente, por meio de uma releitura da história recente do
Brasil, relatada e interpretada por sujeitos tomados, até bem recentemente, como micróbios.
Explicitar estas novas perspectivas pode nos ajudar a compreender o caráter não-linear e,
portanto, intensamente contraditório da construção da nação brasileira. Todavia, apresentar e
discutir novas perspectivas sobre nossa história recente, não significa inventar algo que não
existia; ainda que por meio da invisibilização de fatos e coisas (do processo social de

84
construção de coisas como ausências) acabamos internalizando a noção de que determinados
fatos ou coisas, realmente, não existiram.
Sob o crivo de esse novo olhar, crítico e diferenciado, iniciaremos este tópico,
lançando luz em nossa história recente, confrontando-a com a espécie de “ditadura de uma
história única”. Dessa nova perspectiva, esperamos depreender melhor leitura, não somente,
do nosso passado, mas, sobretudo, do nosso presente e de nosso futuro.
Como já discuti anteriormente, os anos de ditadura militar (que se estendeu de 1964 a
1985), foram marcados pelo surgimento, e ressurgimento, de diversos grupos sociais
organizados. Foi o período de fortalecimento dos movimentos estudantis e sindicais, bem
como da explosão de diferentes movimentos grevistas pelo país. A referida década também
ficou conhecida como período de insurreição sindical, no qual se destacaram as greves no
ABC paulista, lideradas por Luís Inácio Lula da Silva, que cerca de 30 anos depois se
transformaria no primeiro trabalhador a assumir o cargo de presidente do Brasil.
30
O que se convencionou chamar de “Movimento Negro” , formado por pessoas de
vários estados brasileiros e vinculados a diversas entidades, também surgiu neste contexto de
efervescência política, e refletia, tal como a maioria dos demais movimentos, as contradições
e expectativas do período. De acordo com Pinho (2007), um dos aspectos que motivaram as
lutas empreendidas pelas entidades negras surgidas entre o final da década de 1960 e o início
da década de 1970, foi à preocupação com a ressignificação simbólica de eventos históricos e
aspectos das relações raciais no Brasil, incluindo o 13 de Maio, o Quilombo dos Palmares e o
próprio Zumbi.

Tal conversão foi possível porque, durante todo o regime militar, diversos grupos se
organizaram no país. No Rio Grande do Sul, o já citado Grupo Palmares. No
segregado interior de São Paulo, assistiu-se a uma intensa movimentação com o
grupo Evolução de Campinas, fundado por Thereza Santos e Eduardo Oliveira, em
1971, e o Festival Comunitário Negro Zumbi (Feconezu), criado em 1978 e que
existe até o dia de hoje. (...) No Rio de Janeiro, o Instituto de Pesquisas e Estudo de
Cultura Negra no Brasil (IPCN) e a Sociedade de Estudo de Cultura Negra no Brasil
(Secneb), a Sociedade de Intercâmbio Brasil África (Sinba), o Grupo de Estudos
André Rebouças, etc. (PINHO, 2007, p.89).

No livro Histórias do Movimento Negro no Brasil: depoimentos ao CPDOC, Alberti e


Pereira (2007) reúnem e organizam uma série de depoimentos de “alguns dos principais

30
Segundo d’Adesky (2001), durante o I Encontro Nacional de Entidades Negras, realizado em 1991 na cidade
de São Paulo, se convencionou que o termo “Movimento Negro” definiria “o conjunto de entidades e grupos, de
maioria negra, que têm o objetivo específico de combater o racismo e/ou expressar valores culturais de matrizes
africanas”.
85
personagens do movimento negro que atuam desde as décadas de 1970 e 1980 em todas as
regiões do país”31. Nesta obra, os depoentes refletem sobre temas variados, como: a tomada
da consciência da negritude, o processo de organização do Movimento Negro Unificado, as
relações político-partidárias, as formas de atuação política das entidades e do MNU, etc. De
modo geral, os depoimentos são particularizados, entretanto, possibilitam visualizar, não
apenas, histórias omitidas sobre a construção do Brasil, mas também histórias sobre a vida
dos sujeitos que se apresentam nas páginas do livro. São as “micro-histórias construindo a
macro-história”; ou, dito de outro modo, são as histórias das entidades negras que se
confundem com as histórias de seus integrantes.
O reconhecimento da discriminação racial no Brasil, e a obstinada decisão de
combatê-la e superá-la, não define a identidade apenas das entidades negras emergentes a
partir da década de 1970, mas define também a identidade de seus membros. Tornar-se
membro de uma entidade negra, naquele período, era compreendido como uma das formas de,
tendo-se tornado negro, lutar pela erradicação do que, em geral, lhes dava a consciência de ser
negro: a discriminação racial. Por isso, vemos nos relatos de muitos depoentes que a
experiência de sentir a discriminação racial era um dos principais móbiles do reconhecimento
de sua identidade (ser negro). Diante disso, a experiência de tornar-se negro não se resumia,
portanto (e continua a não se resumir), a uma experiência racional, posto que implica também
na experiência subjetiva de sentir-se discriminado pelo fato se ser negro.
Nesse contexto, muitos depoentes descrevem que, a descoberta de que eram negros se
deu justamente nas primeiras séries do ensino fundamental, ou em contextos de preparação
para o ingresso em instituições escolares. Isso significa que tanto a escola, quanto a família,
foram determinantes para forjar a identidade negra destes sujeitos. Segundo Nilma Bentes
(2007) 32,

“É na escola que a gente aprende pela primeira vez que existe discriminação, que
existe a questão do negro. Porque você não sabe explicar, mas é discriminado na
escola. É uma dor que vem desde cedo e faz com que a maioria de nós, negros, ou
fique dócil demais ou se rebele, ou tente se mimetizar, se esconder” (BENTES, N.,
2007 apud. ALBERTI; PEREIRA, 2007, p.40).

31
O livro reúne 38 (trinta e oito) depoimentos, sendo 23 (vinte e três) homens e 15 (quinze) mulheres. Apesar de
haver no livro, depoimentos de militantes nascidos em vários Estados da Federação, há uma maior representação
de militantes do Sudeste do Brasil.
32
Nilma Bentes nasceu na cidade de Belém do Pará no ano de 1948. Formada em Agronomia pela Universidade
Federal Rural da Amazônia, fez parte do quadro técnico do Banco da Amazônia por 26 anos. Em 1980,
participou da fundação do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa).

86
33
Flávio Jorge Rodrigues da Silva (2007) destaca o papel de sua avó paterna no seu
processo de reconhecimento identitário.

No primeiro dia em que fui para a escola, eu recebi um caderno, um lápis e,


estranhamente, minha avó colocou na bolsa um pedaço de madeira. Ela pegou um
cabo de vassoura, cortou em dois pedaços, um para mim e o outro para o meu irmão,
e falou: “Agora vocês vão para a escola. Vocês vão passar por momentos muito
difíceis. Quando alguém chamar vocês de neguinhos, você pegue esse pau e desce o
sarrafo.” A partir daquele momento comecei a ter contato com o racismo e com a
diferença existente entre brancos e negros (SILVA, F. R. S, 2007 apud. ALBERTI;
PEREIRA, 2007, p. 40).

Ainda que muitos depoentes do livro tenham feito referências incisivas ao espaço
escolar como lócus privilegiado de manifestação de discriminações raciais, e reconhecimento
da negritude, esta não é uma situação que pode ser universalizada para todos os indivíduos
negros. No Brasil, por exemplo, a experiência da discriminação racial (que por vezes não é
reconhecida como tal, sendo atenuada como uma espécie de “descortesia urbana”), nem
sempre leva os indivíduos discriminados a refletirem sobre seu pertencimento étnico-racial.
Entre os depoimentos apresentados no livro, muitos relatam que apenas no período de
faculdade, ou de atuação em outras entidades políticas, se deram conta da real situação dos
negros; tendo, inclusive, passado, em alguns casos, por diversas entidades e movimentos
sociais sem pensar sobre esta questão.
Segundo Diva Moreira (2007) 34, a questão racial ficou latente durante muitos anos de
sua vida, conforme descrito abaixo:

Em 1967, eu estava com um pé na universidade, iniciando o curso de comunicação


social, na Universidade Federal de Minas Gerais, e um pé na luta contra a ditadura,
participando de manifestações, passeatas estudantis, correndo de polícia, correndo
de bomba de gás lacrimogêneo... Eu tinha a minha inserção na faculdade, a minha

33
Flávio Jorge Rodrigues da Silva, nascido na cidade de Paraguaçu Paulista em são Paulo no ano de 1953, é
formado em Ciências Contábeis pela PUC de São Paulo em 1981. Participou do Movimento Estudantil durante a
segunda metade da década de 1970, e no ano de 1979 foi um dos fundadores do Grupo Negro da PUC. Em 1991
participou da fundação da Organização Negra Soweto, e no período de 1995 e 1999 ocupou o cargo de primeiro
secretário da Secretaria Nacional de Combate ao Racismo do Partido dos Trabalhadores (PT).
34
Diva Moreira nasceu na cidade mineira de Bocaiúva no ano de 1946. Formada em Comunicação Social, foi
integrante do Partido Comunista entre 1968 e 1987 e técnica de pesquisa e planejamento da Fundação João
Pinheiro, em Belo Horizonte, entre 1975 e 1988. No ano de 1987, fundou a Casa Dandara na cidade de Belo
Horizonte, e entre os anos de 1998 e 2000, foi titular da Secretaria Municipal para Assuntos da Comunidade
negra de Belo Horizonte.

87
inserção no movimento jovem da Igreja Católica, e era uma pessoa extremamente
ativista. (...) Mesmo com tudo isso, a questão racial não emergia. Não emergia em
mim. Em todos esses movimentos sociais, em todos esses contextos sociais dos
quais eu fiz parte, em toda a minha rede de relações, nunca a questão racial emergiu!
Era uma coisa que não existia. No Partido Comunista, nada; na Igreja Católica,
nada: éramos todos filhos de Deus; no movimento estudantil, nos movimentos de
esquerda, essa questão não emergiu. Ela sequer poderia ter sido chamada na época
de epifenômeno, de uma questão de superestrutura, porque não existia. Era a
invisibilidade total e absoluta da questão racial naquela época (MOREIRA, D., 2007
apud. ALBERTI; PEREIRA, 2007, p. 52).

O processo de invisibilização da questão racial, relatado por Diva Moreira, não pode
ser tomado como marca regional, referente apenas às entidades situadas na cidade de Belo
Horizonte, pois se trata de uma característica comum a boa parte dos movimentos
progressistas em atividade no Brasil que se opunham a ditadura militar. Assim sendo, atuando
como militantes de diferentes organizações vinculadas à esquerda (sindicatos, movimentos
estudantis, setores progressistas da Igreja Católica, etc.), muitos dos entrevistados se
ressentiam da ausência de espaços para o debate da questão racial e das condições de vida do
povo negro no interior de suas entidades.
35
De acordo com Carlos Alberto Medeiros (2007) , as primeiras evidências de um
movimento coletivo urbano no Rio de Janeiro, que passou a ser chamado de “Black Rio”, foi
o suficiente para gerar reações conservadoras, tanto da esquerda, quanto da direita brasileira.
As atividades desenvolvidas por algumas equipes de soul do subúrbio carioca, inspiradas no
estilo musical negro norte-americano, tinham como objetivo transmitir à população negra
mensagens positivas, tais como: “estude e cresça”. Isso criou um movimento de não aceitação
ideológica das correntes filosóficas que vigoravam: enquanto a direita acreditar que se tratava
de sinais de “conspiração comunista”, os comunistas acreditavam se tratar de uma “invasão
imperialista”. Segundo Medeiros (2004), o próprio Gilberto Freyre, antropólogo culturalista já
apresentado neste trabalho, publicou um artigo virulento contra a invasão norte-americana
representada pelo soul no Brasil.

Será quês estou enxergando mal? Ou terei realmente lido que os Estados Unidos vão
chegar ao Brasil (...) norte-americanos de cor (...) para convencer os brasileiros

35
Carlos Alberto Medeiros nasceu na cidade do Rio de Janeiro no ano de 1947. Formado em Comunicação
Social, ajudou a fundar a Sociedade de Intercâmbio Brasil-África (Sinba) no ano de 1974, e no ano de 1975,
participou da fundação do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN). Foi membro do Grupo
Interministerial para a Valorização da População Negra entre 1995 e 1996 e subsecretário adjunto de Integração
Racial na Secretaria de Estado de Direitos Humanos e da cidadania no governo Anthony Garotinho em 1999 no
Rio de Janeiro.

88
também de cor de que seus bailes e suas canções afro-brasileiras teriam de ser de
“melancolia” e de “revolta”? E não, como acontece hoje (...), os sambas, que são
quase todos alegres e fraternos. Se o que li é verdade, trata-se mais uma vez, de uma
tentativa de introduzir, num Brasil que cresce plena e fraternalmente moreno – que
parece provocar ciúme nas nações que também são birraciais ou trirraciais – o mito
da negritude, não do tipo do Senghor, da justa valorização dos valores negros ou
africanos, mas do tipo que às vezes traz a “luta de classes” como instrumento de
guerra civil, não do Marx sociólogo, ma do outro, do inspirador de um marxismo
militante que é provocador de ódios (...). O que se deve destacar, nestes tempos
difíceis que o mundo está vivendo com uma crise terrível de liderança (...) (é que) o
Brasil precisa estar preparado para o trabalho que é feito contra ele, não apenas pelo
imperialismo soviético (...) mas também pelo dos estados Unidos (FREYRE, 1977
apud MEDEIROS, 2004, p.70).

Para muitos dos militantes, que participaram da história do movimento negro durante
as décadas de 1970 e 1980, a vinculação à entidades de esquerda que lutavam contra a
ditadura militar, lhes colocava em uma posição ambígua em relação as influências norte-
americanas. Ao mesmo tempo em que repudiavam a postura imperialista com que os EUA
orientavam suas relações internacionais, muitos se inspiravam nas lutas pelos direitos civis
levadas a diante por figuras como Ângela Davis, Martin Luther King, Malcom X e os
Panteras Negras. Para além do movimento norte-americano pelos direitos civis, Hédio Silva
36
Júnior (2007) , identifica mais dois grandes movimentos que influenciaram diretamente o
discurso da geração que se engajou no movimento negro deste período: 1) o movimento de
lutas por independência dos países africanos (sobretudo dos países lusófonos como Angola,
Moçambique, São Tomé e Príncipe e Guiné Bissau) e 2) o movimento da negritude que,
impulsionado por intelectuais da África e das Antilhas, tinha como objetivo principal
revalorizar, cultural, política e artisticamente, o povo negro na África e na diáspora.
É salutar observar que, naquele período, as principais influências para a
conscientização e organização das primeiras entidades negras brasileiras, fundadas no
princípio da década de 1970, eram internacionais, dando a falsa impressão de que, no âmbito
brasileiro, as lutas negras estavam sendo iniciadas do “marco zero”. De fato, existiam poucas
referências às lutas negras anteriormente travadas no Brasil, evidenciando que, de forma
eficiente, as experiências de contestações da ordem racista vigente no país, foram sendo

36
Hédio silva Júnior nasceu na cidade de Três Corações em Minas Gerais no ano de 1961. Advogado e doutor
em direito constitucional, integrou o Conselho de Participação e desenvolvimento da Comunidade Negra do
estado de São Paulo em 1986 e presidiu a Convenção Nacional do Negro no mesmo ano. Em 1992, fundou em
São Paulo o Centro de Estudos das Relações de trabalho e Desigualdade (CEERT).

89
gradualmente construídas como não existentes, transmitindo a falsa impressão de nunca terem
existido.
Para Amauri Mendes Pereira (2007) 37,

O objetivo da Sociedade de Intercâmbio Brasil-África, Sinba, criada em 1974, era


fazer intercâmbio Brasil-África. Mas como fazer isso? Não tinha nada. África, para a
gente, ainda era a áfrica, a gente não conhecia nada. Começamos a conhecer toda
essa literatura, essa luta, através do Centro de estudos Afro-Asiáticos. O passado a
gente só veio a conhecer naquele momento. Eu não tinha a menor noção de
“movimento negro”. Para mim, a referência era os Estados Unidos. No Brasil, nunca
tinha tido. Eu vou ouvir o nome de Abdias Nascimento já em 1975, 76: um, dois
anos depois de estar dedicado à luta (PEREIRA, A., 2007 apud ALBERTI;
PEREIRA, 2007, p.93).

A redescoberta da história das lutas negras, travadas no Brasil no decorrer da primeira


metade do século XX, foi um processo lento e gradual, resultante das redes pessoais que
alguns militantes da nova geração estabeleceram com alguns militantes históricos, como
Abdias do Nascimento e José Correia Leite (membros fundadores da Frente Negra Brasileira),
Henrique Cunha (ex-diretor do Jornal Clarim d’Alvorada) e Clóvis Moura (importante
historiador brasileiro), o que possibilitou o resgate das histórias de lutas das organizações
negras.
O contato crescente com tais personalidades ajudou a fortalecer, entre as várias
entidades surgidas no princípio da década de 1970, a preocupação em resgatar e disseminar a
história das populações negras no Brasil. Neste período, várias entidades negras foram
fundadas em diferentes estados: o grupo Palmares (1971), no Rio Grande do Sul, o Centro de
Cultura e Arte Negra - CECAN (1972), em São Paulo, a Sociedade Cultural Bloco Afro Ilê
Aiyê (1974), em Salvador, bem como diversos grupos no Rio de Janeiro, por exemplo, o
Centro de Estudos Afro-Asiáticos – CEAA (1973), a Sociedade de Intercâmbio Brasil-África
– SINBA (1974), o Instituto de Pesquisa das Culturas Negras – IPCN (1975), etc.
Apesar de existir certa articulação entre os grupos criados à época, que regularmente
se comunicavam por meio de cartas, é importante destacar a existência de muitas divergências
políticas e ideológicas entre estes (mais do que divergências teóricas); o que de certo modo
explica a proliferação de grupos em uma mesma cidade, como era o caso da Sinba e do IPCN

37
Amauri Mendes Pereira nasceu na cidade do Rio de Janeiro no ano de 1951. Formado em Educação Física, foi
fundador da Sociedade de Intercambio Brasil-África (Sinba) em 1974 e dirigente do jornal Sinba, publicado pela
entidade entre 1977 e 1980. Participou da fundação do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN) em
1975 e do Movimento Negro Unificado em 1978.

90
na cidade do Rio de Janeiro. Referindo-se as divergências existentes entre os componentes da
Sinba e do IPCN (grupo criado a partir de uma cisão na Sinba), Amauri Mendes Pereira
(2007) destaca que...

... havia certa articulação entre nós, mas a gente dizia assim: “Eles (do IPCN) são os
negros burgueses. A pequena burguesia negra. Nós estamos fora. Somos
revolucionários negros, nossa visão é revolucionária. Nosso referencial não são os
Estados Unidos. Os Estados Unidos criaram uma elite negra. Nossa visão são as
lutas de libertação africanas, luta armada”. Esse era o nosso referencial: Samora
Machel, Eduardo Mondlane, Agostinho Neto, Amilcar Cabral... A gente fazia essas
cisões, que depois vimos que eram completamente inconsistentes (PEREIRA, A.,
2007 apud ALBERTI; PEREIRA, 2007, p.141).

A despeito destas dissonâncias, o ano de 1978 marcou uma série de reuniões e


encontros de grupos que, comungando de princípios parecidos, ansiavam a criação de um
movimento abrangente contra a discriminação racial no país. Segundo Milton Barbosa38,
várias entidades negras participaram da reunião realizada no dia 18 de Junho de 1978, em São
Paulo, período em que dois episódios de discriminação racial revoltaram a população negra e
fortaleceram a necessidade de organizar um protesto contra a discriminação racial. Dessa
forma, em 07 de Julho de 1978, nas escadarias do Teatro Municipal em São Paulo, aconteceu
o ato de fundação do Movimento Negro Contemporâneo. De acordo com Milton Barbosa
(2007).

foi interessante também, porque foi à primeira manifestação, o primeiro ato público
no centro de uma grande cidade no Brasil que foi feito e não foi reprimido, naquele
período. Havia greves em São Bernardo, houve manifestações lá no largo dos
Pinheiros, dos estudantes, mas nós fizemos a primeira no centro da cidade de São
Paulo. Em 1978, eles reprimiram, jogaram bomba em tudo quanto é canto. Aquela
nossa, não, foi feita e foi vitoriosa. Eles tiveram que engolir. Se reprimissem ia ficar
claro que era racistas mesmo, porque o mundo inteiro estava antenado: saiu na
Folha, no Estadão, saiu em tudo quanto é lugar, nas rádios, televisão (BARBOSA,
M., 2007 apud ALBERTI; PEREIRA, 2007, p.152).

O Movimento Negro Unificado (MNU), primeiro surgiu com o nome de Movimento


Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR). Segundo Barbosa, a inclusão do termo
“Negro” foi apresentada por Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez, o que significou uma

38
Milton Barbosa, mais conhecido como Miltão, nasceu na cidade de Ribeirão Preto em São Paulo no ano de
1948. Cursou Economia na USP, mas não concluiu, tendo sido diretor do Centro Acadêmico de Economia e
Administração desta universidade. Foi um dos fundadores do Movimento Negro Unificado em 1978, tendo
presidido o ato público de lançamento do movimento.

91
mudança significativa na concepção do movimento, que passou a ser chamado de Movimento
Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR). Depois, o movimento foi
chamado apenas de MNU, haja vista que os integrantes chegaram à definição, após muitas
divergências, de que a luta contra a discriminação racial era uma bandeira, uma palavra de
ordem do movimento, e não devia ser incluída ao nome.
O caráter plural das entidades negras emergentes, da década de 1970, com diferentes
concepções políticas, ideológicas e teóricas, fizeram com que, apesar de unificadas, essas
entidades optassem por diferentes estratégias de atuação: panfletagem, palestras e exposições
individuais, textos e manifestos publicados em jornais, produção de jornais independentes,
atividades político-partidárias, organização de blocos afros, etc.
A despeito das divergências de concepções e estratégias, o dia 20 de Novembro de
1978 ficou conhecido como: Dia Nacional da Consciência Negra, em homenagem ao dia de
morte de Zumbi dos Palmares, o que possibilitou uma nova unidade entre as entidades negras
que, anteriormente, se articularam em torno do combate a discriminação racial. Sem dúvida,
há fatores políticos por trás da definição desta data, dentre eles evidencia-se a recusa das
imagens passivas atribuídas à população negra com a comemoração do dia 13 de Maio, e
também, da imagem benevolente atribuída à Princesa Isabel, que tendo “libertado” os
escravos, pôs fim a qualquer necessidade de ações reivindicatórias por parte dos ex-cativos.
Notadamente, além de reivindicar protagonismo histórico, um dos objetivos (ou
conseqüência) da associação do dia 20 de Novembro ao Dia da Consciência Negra foi a
necessidade crescente de retirar da invisibilidade a história dos descendentes de africanos no
Brasil e, adicionalmente, a história do próprio continente africano.
Segundo Frei Davi 39,

sempre que eu tocava na questão do negro com uma pessoa negra, a primeira coisa
que ela fazia era recusar a idéia. Então eu procurava formas indiretas, procurava
trabalhar outros dramas (...) Para puxar o assunto do negro nós projetávamos slides
sobre a história do negro no Brasil, dando eles consciência histórica, porque
entendíamos que a consciência histórica é o primeiro passo para o despertar da
consciência (DAVI, 2007 apud ALBERTI; PEREIRA, 2007, p.191).

39
Frei Davi nasceu na cidade de Nanuque em Minas Gerais. Em 1952, entrou para a Ordem Fransciscana, em
São Paulo e se formou em Teologia, em 1983. Participou da formação dos Agentes Pastorais Negros e ajudou a
fundar a o Pré-vestibular para Negros e Carentes (PVNC) no início da década de 1990 e a Educação e Cidadania
de Afro-descendentes e Carentes (Educafro), no final da década de 1990.
92
40
Não obstante, Maria Raimunda Araújo (2007) , ou simplesmente, “Mundinha
Araújo", argumenta:

Já em Maio de 1980 fizemos a primeira semana do Negro e, desde a primeira, a


gente se voltou para fazer palestras nas escolas. Nesse mesmo ano comecei a ir para
o Arquivo Público para pesquisar, porque achei que tinha que ter informações sobre
o negro no Maranhão nos arquivos. E lá eu já pesquisei sobre as leis abolicionistas
(...) Pegava o texto da Lei Áurea. (...) Poxa, isso causava uma sensação nas escolas.
Não era só por você está dizendo “no Brasil tem discriminação”, mas era pelo novo
que a gente estava levando, era pelas coisas que nunca antes tinham sido discutidas
com os professores, e o próprio preconceito na sala de aula, o preconceito em todo
local (ARAÚJO, M., 2007 apud ALBERTI; PEREIRA, 2007, p. 202).

No decorrer das décadas de 1980 e de 1990, as atividades promovidas pelas entidades


negras vinculadas ao MNU extrapolaram o âmbito comunitário em que eram realizadas até
então, e as experiências acumuladas de trabalho com as populações negras, tanto urbanas,
quanto rurais, passaram, gradativamente, a inspirar e orientar atividades, projetos, programas,
secretárias e conselhos com ênfase na questão racial, no âmbito dos governos municipais e
estaduais.
Neste contexto, de Abertura Política 41 e de preparação para o Centenário da Abolição
da Escravidão, foram criados os primeiros órgãos públicos voltadas à questão racial em
algumas das mais importantes cidades brasileiras: Em 1983, durante o governo Franco
Montoro, foi criado o Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do
Estado de São Paulo. No ano de 1986, durante o governo de Jânio Quadros na cidade de São
Paulo, foi criado o Conselho Municipal do Negro. Em 1988, ano do Centenário da Abolição,
foi criada a Fundação Cultural Palmares, entidade pública vinculada ao Ministério da
Cultura do Governo Federal. Já em 1991, durante o governo de Leonel Brizola, no Estado do
Rio de Janeiro, instituiu-se a Secretaria de Defesa e Promoção da População Negra, cujo
primeiro secretário foi Abdias do Nascimento.
Na mesma época da criação destes variados órgãos governamentais e a vinculação de
militantes do movimento negro nestes espaços, que deram visibilidade nacional (de forma

40
Maria Raimunda Araújo, mais conhecida como Mundinha Araújo, nasceu na cidade de São Luís do Maranhão
no ano de 1943. Formada em Comunicação Social foi fundadora do Centro de Cultura Negra do Maranhão
(CCN) em 1979. Foi diretora do Arquivo Público do Maranhão entre 1991 e 2003.
41
A abertura política, que se iniciou em 1974 e terminou em 1985, é o nome que se dá ao processo de
liberalização da ditadura militar que governou o Brasil. Realizada de forma lenta, gradual e segura, a abertura se
contrapõe ao fechamento do regime, durante os governos de Artur da Costa e Silva e Emilio Garrastazu Médici.

93
gradativa) à questão racial, os militantes negros se tornaram porta-vozes, propositores e
executores de suas próprias demandas (da comunidade negra). Contudo, ao contrário da
compreensão não-conflitiva que o termo “de forma gradativa” pode indicar, a incorporação da
temática e das demandas da população negra nos espaços políticos não se deu de forma
harmônica. Refletindo sobre tais questões Ivanir dos Santos(2007) 42 revela:

Sempre fiz política partidária a partir de uma perspectiva do movimento negro.


Nunca fiz política no movimento a partir do PT (...) Mas eu estou dizendo para
vocês que a gente é de um movimento social que não é um movimento social
tradicional. Quais são os dois movimentos sociais tradicionais, na lógica partidária?
O movimento estudantil e o movimento sindical. A maioria dos quadros partidários
vem desse movimento ou daquele. Aqui está a intelectualidade e aqui está o
operário, a vanguarda, mas estão também os setores médios que se organizam em
sindicatos. Normalmente a massa não participa desse tipo de movimento.
Movimento de favelas, movimento negro, movimento de crianças e adolescentes são
movimentos olhados de forma secundária dentro do partido. Não são valorizados
dentro da disputa partidária. Porque tradicionalmente não são setores que, segundo
eles, enfrentam o capital. Essa é a noção dos partidos de esquerda, que acham que
esses segmentos dividem a luta de classe (...) Eles nunca compreenderam que o
movimento negro é um dos movimentos mais revolucionários que esse país pode
produzir. Mexe com a ruptura, inclusive, de uma visão eurocêntrica de uma
sociedade que tenta se firmar como eurocêntrica. Mesmo a luta dos operários no
Brasil, em dado momento, é dirigida por pessoas com noções eurocêntricas
(SANTOS, I., 2007 apud ALBERTI; PEREIRA, 2007, p. 235).

Cabe enfatizar que, a abertura gradativa de espaços políticos nas três instâncias de
governo (municipal, estadual e federal) ao movimento negro, não se deveu apenas a
repercussão causada pelas atividades culturais, formativas e informativas promovidas pelas
diferentes entidades negras no Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Maranhão,
Alagoas, Pará, etc. Além das atividades realizadas e voltadas “para dentro”, as entidades e o
MNU continuaram a realizar, ao longo da década de 1980, uma série de atividades (passeatas,
congressos e protestos), no intuito de denunciar e sensibilizar a sociedade civil e os órgãos
governamentais sobre a persistência da discriminação racial no país, naturalizada pelo Mito da
Democracia Racial e pela Teoria do Embranquecimento. Se durante o período áureo de
Ditadura Militar, a face “sócio-recreativa” e cultural do movimento negro era a que mais se

42
Ivanir dos Santos nasceu na cidade do Rio de Janeiro no ano de 1952. Foi criado no Sistema de Atendimento
ao Menor (SAM) e na Fundação Nacional para o Bem-estar do Menor (Funabem). Em 1980 fundou a
Associação dos Ex-alunos da Funabem (Asseaf) e em 1984 formou-se em Pedagogia. No ano de 1989 fundou o
Centro de Articulação das Populações Marginalizadas (CEAP) e em 1995 participou da Coordenação Executiva
da Marcha Zumbi dos Palmares Contra o racismo pela Cidadania e pela Vida em 1995.

94
destacava; o período de Abertura possibilitou o ressurgimento da face “político-
reivindicativa”, adormecida, mas nunca totalmente negligenciada.
A realização da “Marcha contra o Racismo”, no ano de 1983, da Candelária à
Cinelândia no Rio de Janeiro, foi seguida pela realização da Convenção Nacional do Negro,
em Brasília, no ano de 1986; quando diversas entidades negras do país, independente de
serem filiadas ao MNU, discutiram um conjunto de propostas a ser apresentada a Assembléia
Nacional Constituinte de 1987-1988. Esta Convenção foi precedida de um conjunto de
encontros regionais (como por exemplo, III Encontro de Negros do Norte e Nordeste,
ocorrido em 1983, em São Luís; o I Encontro Estadual de Negros do Rio de Janeiro, ocorrido
no mesmo ano, na cidade do Rio de Janeiro, além de outros), todos organizados em torno do
tema central: O negro e a constituinte.
Segundo Hédio Silva Junior (2007), que apesar de nunca ter sido militante orgânico do
MNU, participou de uma série de atividades do movimento e ocupou a condição de presidente
do Congresso Nacional do Negro em 1986, apesar das sérias divergências entre os
participantes do evento, alguns consensos existiam.

O primeiro consenso era a criminalização do racismo. E depois, no curso dos


debates, eu me lembro que foi a primeira vez em que me ative a essa demanda das
comunidades de quilombo. Porque em São Paulo nós temos 32 comunidades de
quilombo, eu já tinha ouvido falar, mas não tinha realmente a dimensão do
problema. Foi nesse encontro que especialmente o pessoal do Nordeste pautou o
tema das terras de comunidades de quilombo com muito vigor e nós, então, tivemos
a oportunidade de perceber a dimensão que o problema tinha. Esse também foi um
tema consensual (SILVA JR, 2007 apud ALBERTI; PEREIRA, 2007, 250-251).

Referindo-se ao cenário pré-constituinte no Maranhão e a articulação com o MNU,


Maria Raimunda Araújo (2007) reflete sobre o conjunto de demandas das comunidades
quilombolas do Maranhão e de outros Estados.

Em 1986, fizemos o I Encontro de Comunidades Negras Rurais do Maranhão, que


teve como tema “O negro na Constituição”, porque já estava se discutindo isso. Aí não
era só o Maranhão. Tinha a Mari Balocchi lá em Goiás, com a questão dos Kalunga, já
tinha saído os Negros de Cedro, que é sobre essa comunidade, e já tinha algumas
pessoas fazendo denúncias em relação a essas terras de preto. Eu também participava
de um bando de encontros e já levava slides das comunidades. Agora, de onde saiu
para botarem “remanescentes de quilombos” na Constituição, eu não sei. Porque a
gente já sabia que o negro tinha tido diversas formas de acesso a terra, não
necessariamente só essa de ser remanescente de quilombo (ARAÚJO, M., 2007 apud
ALBERTI; PEREIRA, 2007, p.248).

95
O ano1988, marcado como ano de Comemoração do Centenário da Abolição da
Escravidão no Brasil e promulgação da Nova Constituição Brasileira, representou um
importante marco na história do Movimento Negro Contemporâneo. Apesar do caráter festivo
que alguns setores da sociedade brasileira procuraram dar ao centenário da Abolição da
43
Escravidão , a compreensão unânime entre as entidades negras do período era a de que:
1988 deveria ser o momento de dar visibilidade a questão racial no Brasil, por meio da
realização de protestos e denúncias acerca das heranças maléficas da escravidão sobre a
população negra. Nesse sentido, o período representou a transição de posturas políticas, uma
vez que, marcou, a passagem de uma postura eminentemente denunciativa, para as posturas
mais propositivas; além do fortalecimento e da convergência das denúncias e protestos contra
as “farsas” da Abolição e da Democracia Racial.

Os três deputados negros 44 no congresso constituinte (o congresso trabalhou em 1986


e 1987 para elaborar uma nova constituição para o Brasil) foram bem sucedidos na
definição do racismo como um crime inafiançável para o qual não há nenhuma lei de
limitações, na afirmação do multiculturalismo, na inclusão de um compromisso em
relação à proteção de práticas culturais afro-brasileiras, além da concessão de títulos
aos ocupantes de terras dos antigos quilombos (isto é, comunidades estabelecidas por
escravos fugitivos antes da emancipação ocorrida em 1888). Em 1989, o Congresso
aprovou a Lei 7716, de autoria do deputado negro Luis Alberto Caó, para implementar
a cláusula constitucional contra o racismo (HTUN, 2003, p. 18).

Vale ressaltar que essa postura ativa e crítica adotada pelo MNU e pelas demais
entidades negras, sobretudo, durante as duas décadas que precederam à promulgação da nova
Constituição Nacional e das comemorações do centenário da Abolição da Escravatura, foi
fortemente influenciada pela divulgação de trabalhos acadêmicos baseados nos dados
quantitativos gerados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), no ano de
1976 (HASENBALG, 1979; PASTORE, 1979; SILVA, 1981)45.

43
Amauri Mendes Pereira, em seu depoimento, refere-se a uma vinheta de 50 segundos, criada e exibida pela
Rede Globo no final do ano de 1987. Tratava-se de uma campanha intitulada “Axé da Globo” com a participação
de vários artistas negros e representantes negros da sociedade civil. Disponível em
<http://www.youtube.com/watch?v=4_DGxzo53Js>. Acessado em 08 de Outubro de 2011.
44
A deputada Benedita Sousa da Silva Sampaio do PT/RJ, o deputado Carlos Alberto Caó do PDT/RJ, e o
deputado Paulo Paim do PT/RS foram os três deputados negros eleitos para a composição da Assembléia
Constituinte.

45
A intensificação do uso de analises quantitativas aplicadas ao estudo das desigualdades sociais e raciais,
provocou uma alteração significativa na tradição de trabalhos acadêmicos sobre relações raciais no Brasil: ao
mesmo tempo em que passou a ser reincorporada ao rol de interesses de pesquisadores acadêmicos não
96
Dessa forma, ao evidenciar a perpetuação dos padrões de desigualdades raciais no
Brasil, bem como as tímidas modificações nas posições sociais e no status das populações
negras e brancas, existentes desde o período escravista, que determinavam o caráter
subalterno da inclusão da população negra no mundo capitalista nacional, os trabalhos
divulgados contribuíram para fortalecer a percepção, já compartilhada pelas entidades negras,
de que a Constituição de 1988 poderia figurar como um momento de (re)fundação do Brasil,
enfatizando a defesa de uma sociedade multirracial, multicultural e livre de qualquer tipo de
preconceitos (conforme Artigo 3°, inciso IV), de terrorismo e de racismo (Artigo 4°, inciso
VIII).
Para Gomes, J. (1999, p.308), “a aprovação pelo Congresso Nacional da Lei
n.7.347/85, em 1985, complementada pela promulgação da nova Constituição de 1988,
anunciou uma mudança vital nesse campo (do direito)”. Estes dois atos normativos serviram
como verdadeiros divisores de águas para o campo jurídico brasileiro, passando a reconhecer,
no que tange a tradição essencialmente individualista do establishment jurídico nacional, os
interesses e os direitos coletivos. A participação ativa de diferentes movimentos sociais na
elaboração da Carta Magna de 1988, possibilitou a mobilização e publicação de demandas
coletivas de diferentes grupos sociais organizados, distinguiu-se radicalmente das demais
experiências brasileiras ao longo do século XX, marcadas pelo autoritarismo, centralização e
ausência de participação popular.

A experiência política e constitucional do Brasil, da independência até 1988, é a


melancólica história do desencontro de um país com sua gente e com seu destino.
Quase dois séculos de ilegitimidade renitente do poder, de falta de efetividade das
múltiplas Constituições e de uma infindável sucessão de violações da legalidade
constitucional. Um acúmulo de gerações perdidas. A ilegitimidade ancestral
materializou-se na dominação de uma elite de visão estreita, patrimonialista, que
jamais teve um projeto de país para toda a gente. Viciada pelos privilégios e pela
apropriação privada do espaço público, produziu uma sociedade com déficit de
educação, de saúde, de saneamento, de habitação, de oportunidades de vida digna
(BARROSO; BARCELLOS, 2003, p.168).

Na perspectiva dos movimentos negros organizados, a mobilização que se criou em


torno da Constituinte Brasileira e das comemorações do Centenário da Abolição da
Escravatura no ano de 1988, “contribuí(ram) para a criação, ainda no governo José Sarney, no

vinculados a militância em entidades negras, algumas abordagens de aspectos do nosso tipo sui generis, de
desigualdades raciais, por vezes, se fizeram dissociadas de reflexões mais aprofundadas sobre o nosso modelo,
também sui generis, de relações raciais, de discriminação racial e de produção de racismo (Fernandes, 2005;
Henriques, 2001).

97
âmbito do Ministério da Cultura (Minc), de uma Assessoria para Assuntos Afro-brasileiros e,
posteriormente, em 1988, da Fundação Cultural Palmares” (JACCOUD; BEGHIN, 2002). As
repercussões políticas provocadas por estes dois eventos, além das mobilizações populares
organizadas em torno destes, acabaram por repercutir também, nas esferas governamentais
estaduais e municipais durante toda a década de 1990. No ano de 1995, por exemplo, durante
a realização do X Encontro Nacional do Partido dos Trabalhadores, em Guarapari (ES), foi
criada a Secretaria Nacional de Combate ao Racismo, do PT. De acordo com Flávio Jorge
Rodrigues da Silva, militante tanto do partido como do MNU e eleito primeiro secretário da
recém-criada secretaria, os principais defensores da proposta de criação de um órgão interno
ao partido, empenhado em discutir e combater o racismo, foram Benedita da Silva e Luís
Inácio Lula da Silva.
No mesmo ano de 1995, foi realizada, em Brasília, a Marcha Zumbi dos Palmares
pela Cidadania e pela Vida, em comemoração ao tricentenário da morte de Zumbi dos
46
Palmares , organizada por entidades vinculadas ao movimento negro em diversos estados
brasileiros e que reuniu mais de 30 mil pessoas, marcando uma nova fase de lutas raciais no
país.
Um dos aspectos distintivos desta nova fase foi, justamente, a postura reivindicatória
em relação às instâncias governamentais, e em especial ao governo federal, para que fossem
incorporadas e executadas as demandas especificas apresentadas pela população negra. De
acordo com Édson Cardoso (2007), durante a Marcha, em ocasião de entrega ao presidente da
República de um documento sobre a situação do negro no país e de um programa de ações
para superação do racismo e das desigualdades raciais, ele teria dito a Fernando Henrique
Cardoso que “no governo dele, como nos outros, tinha IPEA, tinha IBGE, tinha dados, mas
não tinha políticas públicas e o que a gente estava querendo eram políticas que levassem à
superação das desigualdades” (CARDOSO, É., 2007 apud ALBERTI; PEREIRA, 2007,
p.345).
É importante destacar que, da parte do chefe do Executivo Federal, havia uma
significativa abertura em relação ao tema e as demandas apresentadas pela população negra.
Em seu discurso de posse, por exemplo, proferido no Senado Nacional, no dia 01 de Janeiro

46
A Marcha Zumbi dos Palmares – contra o racismo, pela cidadania e a vida foi organizada com êxito pelo
Movimento Negro, em 1995, para ser um marco em homenagem aos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares,
o líder do maior, mais duradouro e mais famoso símbolo da luta dos negros no Brasil contra o regime
escravocrata: a República/Quilombo dos Palmares, que resistiu por um século, na Serra da Barriga, no estado de
Alagoas.

98
de 1995, o, então, presidente Fernando Henrique Cardoso reconheceu a existência e a
relevância do problema racial no Brasil. FHC reconheceu também a necessidade de
estabelecer interlocuções políticas com o MNU e fez, ao menos, duas referências diretas à
questão racial no país, às desigualdades marcantes entre negros e brancos e seu propósito
pessoal e político de combater tais desigualdades.

Vamos assegurar uma vida decente às nossas crianças, tirando-as do abandono das
ruas e, sobretudo, pondo um paradeiro nos vergonhosos massacres de crianças e
jovens. Vamos assegurar com energia, direitos iguais aos iguais. Às mulheres,
que são a maioria do nosso povo e às quais o País deve respeito oportunidades de
educação e de trabalho. Às minorias raciais e a algumas quase maiorias - aos
negros, principalmente - que esperam que igualdade seja, mais do que uma
palavra, o retrato de uma realidade. Aos grupos indígenas, alguns deles
testemunhas vivas da arqueologia humana e testemunhas da nossa diversidade.
Vamos fazer da solidariedade o fermento da nossa cidadania em busca da igualdade
(Discurso de Posse) 47 (Grifos nossos).

Da parte de Sueli Carneiro (2007), a Marcha Zumbi dos Palmares e os protestos e


manifestações realizados em ocasião do Centenário da Abolição, foram os atos políticos mais
importantes do movimento negro contemporâneo:

Particularmente, acho que foi um momento também emblemático, em que nós


voltamos para a rua com uma agenda crítica muito grande (...) que expressava a
nossa reivindicação de políticas públicas que fossem capazes de alterar as condições
de vida de nossa gente (CARNEIRO, S., 2007 apud ALBERTI; PEREIRA, 2007,
p.345).

Em resposta às reivindicações apresentadas durante a Marcha, Fernando Henrique


Cardoso criou, por decreto, no mesmo período em que acontecia a Marcha, o Grupo de
Trabalho Interministerial de Valorização da População Negra (GTI População Negra), ligado
ao Ministério da Justiça. Inicialmente, composto por oito representantes da sociedade civil
(originários do Movimento Negro) e 10 representantes governamentais, tendo como
coordenador geral Hélio Santos, o GTI, que iniciou sua atuação no ano de 1996, foi criado
com os objetivos de: i) propor ações de combate à discriminação racial; ii) elaborar e
promover políticas governamentais; iii) estimular ações da iniciativa privada; iv) apoiar a

47
Disponível em http://www.planalto.gov.br/publi_04/colecao/discurs.htm . Acessado em 23 de Agosto de 2010

99
elaboração de estudos atualizados; e v) estimular iniciativas públicas e privadas que
valorizassem a inserção qualificada dos negros nos meios de comunicação.
Avaliando os três primeiros anos do grupo, Hélio Santos afirmou:

Neste campo foram tomadas até agora ações que combatem o preconceito e o ao
racismo. As de cunho compensatório ainda estão no plano do debate. Uma parte
fundamental da política educacional, que precede a formulação de políticas
compensatórias, consiste em combater, nas escolas, o preconceito e o racismo contra
os negros. A ação positiva consiste na valorização da comunidade afro-brasileira e
apreciação do papel que desempenhou e desempenha na construção econômica e
cultural do país. Este caminho favorece a elevação da auto-estima do alunado negro.
(SANTOS, 1998 apud JACCOUD; BEGHIN, 2002, p.42) 48.

Conforme observa Carlos Alberto Medeiros (2007), as discussões sobre políticas


compensatórias dirigidas à população negra já eram objetos de preocupações de muitos
militantes desde a década de 1980, no âmbito do governo Franco Montoro, em São Paulo.
Entretanto, foi a partir da criação do GTI População Negra, durante a gestão presidencial de
Fernando Henrique Cardoso, que o movimento se fortaleceu de modo institucional,
49
reivindicando políticas de Ações Afirmativas que, até aquele momento, eram defendidas
apenas por militantes negros e suas entidades, ainda que de modo não-consensual.
Os trabalhos, as reflexões e as proposições elaboradas no âmbito do GTI, utilizando,
de modo sistemático, os dados quantitativos sobre as desigualdades sociais e raciais no Brasil,
ajudaram a embasar o posicionamento do governo brasileiro, não apenas internamente, mas
também durante a Terceira Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial,
Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância; ocorrida no ano de 2001, em Durban, na
África do Sul.
O texto intitulado Desigualdade Racial no Brasil: evolução das condições de vida na
década de 90, produzido por Ricardo Henriques a partir de dados gerados por sua equipe de
trabalho, foi um dos resultados do programa de estudos e pesquisa voltado para a questão da
desigualdade racial no interior do IPEA. Nele, Henriques (2001) destaca que o fortalecimento

48
Hélio Santos. Políticas Públicas para a população negra no Brasil. Observatório da Cidadania, n° 2. Rio de
Janeiro, Ibase, 1998.
49
De acordo com Gomes (2001), Ações Afirmativas são políticas criadas no intuito de promover grupos
socialmente discriminados, devem ir além de reservas de vagas em espaços determinados, notadamente aqueles
em que membros destes grupos não estão representados. Políticas de Ações Afirmativas neste sentido, ao invés
de fundarem-se apenas em aspectos compensatórios, restitutivos ou jurídicos punitivos, devem estar ancorados
também em aspectos de promoção, que possibilitem a reversão de um quadro simbólico sobre as populações
discriminadas às quais tais políticas se destinam.

100
recente do movimento negro no período de redemocratização no Brasil, havia sido
fundamental para o questionamento da tese da Democracia Racial, que enfatizava a fluidez
das relações raciais no país, e a conseqüente ausência de preconceitos e/ou barreiras raciais.

O pertencimento racial tem importância significativa na estruturação das


desigualdades sociais e econômicas no Brasil. O aceite dessa tese, apesar de ainda
limitado, tem crescido no interior da sociedade civil, sobretudo a partir dos anos 80,
com o fortalecimento do Movimento Negro e a produção acadêmica de diagnósticos
sociais sobre as desigualdades raciais. Esse texto pretende apresentar um
mapeamento das condições de vida da população brasileira nos anos 90,
privilegiando o recorte racial de forma a servir como mais uma contribuição ao
diagnóstico das desigualdades raciais no Brasil (HENRIQUES, 2001, p.1).

A publicação do livro Mobilidade Social no Brasil, escrito por José Pastore e Nelson
do Valle Silva, no ano 2000, também contribuiu significativamente no embasamento da
comitiva brasileira na Conferência de Durban, e na instrumentalização teórica de diversos
pesquisadores das relações raciais no Brasil. Prefaciado pelo então presidente Fernando
Henrique Cardoso, o livro de Pastore e Silva (2000) buscou captar, por meio de análises de
dados de diferentes PNADs brasileiras, a dinâmica e a evolução da estrutura da sociedade
brasileira ao longo das décadas.
Vale lembrar que, o livro não se tratava apenas de um estudo sobre as trajetórias
sociais entre gerações e dentro da mesma geração, mas principalmente sobre a estrutura social
e a composição de estratos sociais ao longo de décadas.

Com efeito, as análises de Pastore e Silva são essencialmente convergentes com


minha própria interpretação do processo de transformações profundas que, nem
sempre apreciado em toda sua extensão, está em curso no Brasil. Em mais de uma
ocasião já mencionei, por exemplo, que, em conseqüência de movimentos que têm a
ver com economia, com a cultura, com a educação e com um conjunto de valores
que se alteraram profundamente nas últimas décadas, houve no Brasil importantes
modificações que alteraram as relações entre os grupos sociais e entre as classes.
Houve, nesse âmbito, uma segmentação ou mesmo, em alguns casos, uma
fragmentação das antigas classes. (...) Outro aspecto que me animo a comentar no
Mobilidade Social no Brasil são as discrepâncias descritas no capítulo 7, de taxas de
mobilidade social em função de desvantagens raciais. Os argumentos de Pastore e
Silva apontando para a existência de um volume proporcionalmente menor de
mobilidade ascendente de não-brancos em comparação com brancos, movimento
este que se acentua nas camadas sociais mais altas, expressa de forma cientifica a
necessidade de encaramos o desafio de dar dimensão concreta às teses da
democracia racial no Brasil (CARDOSO, F. 2000 IN PASTORE; SILVA, 2000, p.
vii, viii).

101
No campo científico, a divulgação destes estudos, fortemente alicerçados em análises
estatísticas, foi determinante na progressiva mudança observada no plano político, a partir de
meados da década de 1980. No plano epistemológico, os novos dados quantitativos
produzidos no período contribuíram na legitimação de parte dos argumentos já utilizados por
amplos setores do movimento social negro, que também passaram a utilizar os dados recém-
divulgados como forma de embasar as denúncias sobre discriminação no mercado de trabalho,
na educação, na saúde, no acesso a terra e a moradia, etc.

Os fóruns preparatórios para a Conferência de Durban (realizados em 2001 na África


do Sul) deixaram mais evidentes as articulações entre o movimento negro, no plano
transnacional, e a rede de movimentos, ONGs, organizações multilaterais e aparatos
estatais no âmbito da luta pelos direitos humanos. Se nos anos 80 a luta anti-racista era
representada pela aliança entre cientistas sociais e o movimento negro, com reduzido
raio de influência, a partir da segunda metade dos anos 90 e, em particular, no início
do século XXI, novos atores se posicionaram a favor da implementação de 'políticas
raciais'. Agências do Estado como o Ipea e o Itamaraty, jornalistas, economistas,
setores da academia e parlamentares de variados matizes ideológicos passaram a se
identificar com a pauta de reivindicações discutida em arenas internacionais; em que
políticas públicas racializadas deveriam ser o norte para se atingir justiça social, em
contraposição às de perfil universalista (MAIO; MONTEIRO, 2005, p.427).

A articulação de algumas destas entidades negras, tanto do Brasil, quanto da América


Central e Latina, para participação na III Conferência Mundial contra o Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, foi oportunidade
ímpar para denunciar a persistência da discriminação, do racismo e do sexismo em seus países
de origem, e pressionar os países participantes da Conferência a adotarem compromissos para
o combate e a erradicação das condições discriminatórias.
De acordo com Carneiro, S. (2002), pelo fato de as conferências organizadas pela
Organização das Nações Unidas, terem se tornado, após a queda do Muro de Berlim, espaços
importantes no processo de reorganização do mundo e de elaboração de diretrizes para
políticas públicas, a Conferência realizada em Durban tornou-se um espaço privilegiado para
a adoção de tais compromissos. Além disso, a Batalha de Durban evidenciou que as questões
étnicas, raciais, culturais e religiosas, e todos os problemas nos quais elas se desdobram
(racismo, discriminação racial, xenofobia, exclusão e marginalização social de grandes
contingentes humanos considerados ‘diferentes’) ainda mantinham o potencial para polarizar
o mundo contemporâneo. Com isso, as tensões e conflitos que emergiram durante a
Conferência de Durban evidenciaram ainda, o receio, de fundo econômico, de que a
escravidão viesse a ser reconhecida como crime lesa-humanidade e, desta decisão, derivasse
102
uma série de reparações aos danos causados pelo processo colonial nos países africanos e aos
afrodescendentes espalhados pelo mundo.
Conforme destacou Carneiro, S. (2002), nesse contexto de acirramento de ânimos, no
qual se desenvolveu a Conferência, a aprovação da Declaração e do Plano de Ação de
Durban, que reconheciam a persistência do racismo, da xenofobia e da intolerância como
produtos (diretos e indiretos) do colonialismo, além da problemática específica das mulheres
negras e das múltiplas formas de discriminação que estas enfrentavam, marcou uma das
vitórias da Conferência.

Reconhecemos a necessidade de se adotarem medidas especiais ou medidas


positivas em favor das vítimas de racismo, discriminação racial, xenofobia e
intolerância correlata com o intuito de promover sua plena integração na sociedade.
As medidas para uma ação efetiva, inclusive as medidas sociais, devem visar
corrigir as condições que impedem o gozo dos direitos e a introdução de medidas
especiais para incentivar a participação igualitária de todos os grupos raciais,
culturais, lingüísticos e religiosos em todos os setores da sociedade, colocando a
todos em igualdade de condições. Dentre estas medidas devem figurar outras
medidas para o alcance de representação adequada nas instituições educacionais, de
moradia, nos partidos políticos, nos parlamentos, no emprego, especialmente nos
serviços judiciários, na polícia, exército e outros serviços civis, os quais em alguns
casos devem exigir reformas eleitorais, reforma agrária e campanhas para igualdade
de participação (DECLARAÇÃO E PLANO DE AÇÃO DE DURBAN, 2001, p.21).

As inovações políticas representadas pelos resultados da III Conferência de Durban,


que a colocaram como um marco orientador das políticas multiculturais (com importância
especial para as políticas de reconhecimento implementadas no Brasil), não se referem apenas
ao reconhecimento da persistência da discriminação, do racismo, do sexismo e da intolerância
como estruturadores das relações sociais cotidianas no mundo, mas referem-se, sobretudo, ao
compromisso, exigido dos países signatários da Declaração e do Plano de Ação, em adotar
posturas enfáticas na formulação ou redesenho de suas políticas públicas nas áreas de
educação, saúde, emprego; acesso a terra e moradia, etc.
No plano político, o consenso construído na Conferência acerca da necessidade de
“tratar desigualmente os desiguais”, através da implementação de políticas públicas
compensatórias; ao mesmo tempo em que possibilitava a visibilização de identidades
coletivas historicamente silenciadas e substituídas por modelos abstratos de humanidade,
possibilitava a atualização dos dilemas modernos entre os direitos universais do homem e os
direitos específicos de grupos sociais. No caso brasileiro, por exemplo, as demandas por
reconhecimento de identidades historicamente silenciadas, da população negra em especial,

103
desestabilizam não apenas os modos legitimamente consagrados de distribuição das riquezas
materiais da nação, mas, sobretudo, os modos de apresentar e representar a nação brasileira,
baseada, desde a década de 1930, em um universalismo excludente.

De fato, nada mais contrário à identidade nacional brasileira, tal como foi formada
historicamente - como identidade autocolonial, culturalmente híbrida e racialmente
mestiça -, que o reconhecimento étnico-racial dos negros. Assim, os que por ventura
tinham sólidos interesses na manutenção das desigualdades encontraram aliados
cujos motivos eram puramente ideológicos, pessoas que viam nas políticas dirigidas
preferencialmente aos negros a penetração no Brasil do 'multiculturalismo' e do
'multirracionalismo' de extração anglo-saxônica (GUIMARÃES, 2003, p.253-254).

50
Chamados de racialistas por aqueles que se intitulam antirracialistas , o movimento
negro, a partir de então, apesar das inúmeras resistências que passou a enfrentar, fortaleceu
suas demandas de implementação de políticas com recorte racial. Deste modo, desestabilizou,
de modo radical, os modos consagrados de pensar e construir, tanto as políticas públicas
quanto a própria nação. Com isso, a ampla rede de indivíduos e entidades alinhadas a uma
agenda antirracista, não reivindicam apenas justiça social, baseada no principio de igualdade
formal, mas incorporam em suas bandeiras de reivindicação demandas por reparações,
reconhecimento e ações afirmativas para a população negra.
O progressivo estabelecimento de políticas com recorte racial em prol da população
negra (lei 10.639/03, políticas de reservas de vagas no ensino superior, políticas de reservas
de vagas nos veículos de comunicação, bolsas de estudos para candidatos a carreira
diplomática 51, etc.), tem radicalizado a noção liberal de justiça social, ao pressionar o Estado

50
O Blog Non-race é hoje o principal espaço aberto de discussões em torno não-racialização do Brasil. De
acordo com o moderador do Blog: “Este é um blog destinado à defesa de duas idéias inseparáveis”. A
primeira: o racismo é uma chaga intolerável, que diminui e desumaniza os seres humanos. A segunda: a doutrina
racialista, expressa no projeto de criação de leis raciais, degrada a democracia, oficializa o mito da raça e,
voluntariamente ou não, estimula o racismo. Nossas idéias estão expostas em dois documentos que inspiraram à
criação deste blog: a Carta Pública ao Congresso Nacional de 30 de maio de 2006 (veja aqui) e a carta ao STF
intitulada Cento e Treze Cidadãos Anti-racistas Contra as Leis Raciais, de 21 de abril de 2008(aqui). Esta carta
teve a adesão de mais de 4 mil pessoas, cuja lista nominal está disponível aqui.
51
Lançado em 2002, o Programa de Ação Afirmativa do Instituto Rio Branco – Bolsa Prêmio de Vocação para a
Diplomacia foi instituído com a finalidade de proporcionar maior igualdade de oportunidades de acesso à
carreira de diplomata e de acentuar a diversidade étnica nos quadros do Itamaraty. Trata-se de iniciativa pioneira
e original, que procura investir na capacitação de candidatos afro-descendentes à carreira de diplomata, por meio
de concessão de bolsas de estudos, com duração de dez meses, destinadas a custear cursos e aulas preparatórios
ao Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata, além da aquisição de livros e material didático. É
desenvolvido em parceria com o CNPq(Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e com
a participação da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial e da Fundação Cultural Palmares.

104
brasileiro a reconhecer as características multi-étnicas e pluriculturais de seu povo. Em função
disso, o movimento tem, às vezes, tomado à rota de colisão com o ideário homogeneizante
que tem marcado os esforços de construção da nação desde a década de 1930.
Dentre as políticas com recorte racial citadas acima, orientadas pela busca da
igualdade racial e da construção de um país verdadeiramente multicultural e multirracial, as
políticas de Ações Afirmativas dirigidas ao ensino superior brasileiro (e, geralmente,
reduzidas às políticas de cotas para estudantes negros em instituições de ensino superior) são
as que têm deslocado radicalmente as concepções historicamente vigentes nos campos: das
políticas públicas e das ciências sociais, bem como nos modos de compreender e construir o
Brasil. Dessa forma, levando em conta a centralidade que tais políticas têm adquirido no
campo das políticas públicas dirigidas à população negra, o terceiro capítulo (da segunda
parte desta tese), tem como objetivo discutir, de modo mais detalhado, o contexto de
emergência destas políticas no Brasil e as principais polêmicas suscitadas por elas.

105
SEGUNDA PARTE

106
CAPÍTULO 3

3 – As ações afirmativas e a retomada do debate racial no Brasil

Como procurei mostrar ao longo do primeiro e do segundo capítulo deste trabalho, as


reivindicações atuais das entidades negras contemporâneas no campo educacional guardam
estreitas relações com as demandas apresentadas pelas entidades negras durante a primeira
metade do século XX no Brasil. O resgate histórico das lutas negras no pós-abolição,
promovido pelos militantes da década de 1970, somado às influências exercidas pelos
ativistas e pensadores dos movimentos de libertação dos países africanos e dos ativistas do
Movimento pelos Direitos Civis nos Estados Unidos, ajudaram a moldar o novo ethos do
movimento negro brasileiro a partir da segunda metade da década de 1970. Todavia, apesar
das diferentes fontes que serviram de inspiração ao movimento negro contemporâneo, é
possível afirmar que grande parte das proposições apresentadas pelo movimento negro
brasileiro é tributária direta das lutas e conquistas do Movimento pelos Direitos Civis nos
Estados Unidos.
Iniciado um século após a Abolição da Escravidão nos Estados Unidos (1863), o Civil
Rights Moviment marcou um importante momento na luta pela implementação de políticas
públicas dirigidas a população negra norte-americana, no intuito de superar as assimetrias
entre as condições de vida de negros e brancos no pós-abolição. No ano de 1960, pressionado
52
pelas intensas pressões do Civil Rights Moviment, o presidente Lyndon Johnson utilizou,
pela primeira vez, o termo Ações Afirmativas para designar a modalidade de política que
buscava alterar o quadro de desigualdades entre brancos e negros norte-americanos.
Várias décadas antes, entretanto, no princípio do século XX, políticas dirigidas a um
grupo social específico, como as ações afirmativas, já haviam sido colocadas em prática.

52
Lyndon Baines Johnson, nascido em 27 de agosto de 1908 foi o trigésimo sexto presidente dos Estados
Unidos, de 1963 a1969. Lyndon Johnson era vice-presidente de John Kennedy, e assumiu o cargo
de presidente com o assassinato do mesmo. Foi em seu governo que os EUA entraram totalmente na Guerra do
Vietnã. Ele completou o mandato de Kennedy e foi eleito presidente em uma vitória na eleição presidencial de
1964. Johnson era um importante líder do Partido Democrata dos Estados Unidos e como presidente foi
responsável pela criação da lei da "Grande Sociedade", programa que incluía os direitos civis, sistema de saúde
pública, conhecido nos EUA por Medicare, assistência à educação e a "Guerra contra a Pobreza".
Simultaneamente, ele envolveu o país na Guerra do Vietnã, começando com 16 mil soldados norte-americanos
em 1963 e passando a 500 mil no começo de 1968. Faleceu no ano de1973.

107
Como destaca Weisskopf (2008), na Índia, tais políticas foram dirigidas a um grupo social
específico, os Dálits, no intuito de promover melhores condições de vida em relação aos
membros da casta dominante, os Brahmin. Ainda de acordo com o autor, nos Estados Unidos
e na Índia, as políticas de Ações Afirmativas foram colocadas em prática, sobretudo, no
mercado de trabalho e no sistema educacional, justamente nas esferas em que encontraram
maior contestação.
Segundo Moehlecke (2002), apesar das semelhanças entre as políticas de ações
afirmativas aplicadas nos Estados Unidos e na Índia, nos diferentes países onde já foram
aplicadas as Ações Afirmativas assumiram variadas formas (ações voluntárias, de caráter
obrigatório, estratégias mistas, programas governamentais, orientações jurídicas, etc) e foram
destinadas a diferentes públicos (minorias étnicas, raciais e mulheres).
No Brasil, os movimentos pela implementação de políticas de ações afirmativas,
fortemente inspirados no Civil Right Moviments e majoritariamente indiferentes à experiência
indiana, ao mesmo tempo em que defendiam as ações afirmativas como modo de combater as
desigualdades de acesso e permanência das populações negras e brancas no ensino superior
brasileiro, as defendiam também, como modelo de outro formato de políticas públicas,
orientadas por uma lógica multicultural que possibilitasse o reconhecimento das diferenças,
tanto no âmbito da educação escolar quanto em outras esferas da vida social.
Para Gomes, J. (1999), políticas criadas com o intuito de promover grupos socialmente
discriminados deveriam ir além de reservas de vagas em espaços determinados, notadamente
aqueles em que membros destes grupos não estão representados. Políticas de Ações
Afirmativas, ao invés de fundarem-se apenas em aspectos compensatórios, restitutivos ou
jurídicos punitivos, deveriam estar ancorados também em aspectos de promoção de
identidades positivas, que possibilitassem a reversão de um quadro simbólico depreciativo
sobre as populações discriminadas.

As Ações Afirmativas podem ser entendidas como um conjunto de políticas públicas


e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas
ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para
corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por
objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais
como a educação e o emprego. Diferentemente das políticas governamentais anti-
discriminatórias baseadas em leis de conteúdo apenas proibitivo, que se
singularizam por oferecerem às respectivas vítimas tão somente instrumentos
jurídicos de caráter reparatório e de intervenção ex post facto, as ações afirmativas
têm natureza multifacetária, e visam a evitar que a discriminação se verifique nas
formas usualmente conhecidas – isto é, formalmente, por meio de normas de
aplicação geral ou específica, ou através de mecanismos informais, difusos,
estruturais, enraizados nas práticas culturais e no imaginário coletivo. Em síntese,

108
trata-se de políticas e mecanismos de inclusão concebidas por entidades públicas,
privadas e por órgãos dotados de competência jurisdicional, com vistas à
concretização de um objetivo constitucional universalmente reconhecido – o da
efetiva igualdade de oportunidades a que todos os seres humanos têm direito
(GOMES, J., 2001, p. 39-41).

De acordo com Fry e Maggie (2005), no entanto, a implementação de políticas de


Ações Afirmativas no Brasil, ao invés de promover uma efetiva igualdade de oportunidades
entre todos os brasileiros, ameaçaria, não somente a integridade nacional, mas também a
dignidade de todos os brasileiros que seriam obrigados, em um futuro breve, a abdicar do
privilégio que hoje possuem de não se identificar como negros ou como brancos; mas apenas
como brasileiros.

As medidas pós-Durban, ao proporem ações afirmativas em prol da “população


negra”, rompem não só com o racismo e o anti-racismo tradicionais, mas também
com a forte ideologia que define o Brasil como país da mistura, ou, como preferia
Gilberto Freire, do hibridismo. Ações afirmativas implicam, evidentemente,
imaginar o Brasil composto não de infinitas misturas, mas de grupos estanques: os
que têm e os que não têm direito à ação afirmativa, no caso em questão, “negros” e
“brancos” (FRY; MAGGIE, 2005, p. 304).

Com o propósito de dar visibilidade aos diferentes pontos de vista que se apresentam
no debate, procurarei, ao longo do terceiro capítulo, discutir as mais recorrentes controvérsias
em torno das políticas de ações afirmativas que, aos poucos, se converteram na principal
bandeira de luta do movimento antirracista brasileiro e no principal alvo daqueles que se auto-
nomeiam “anti-racialistas”. Procurarei discutir ainda, como as mobilizações políticas no
sentido de contestar ou apoiar tais políticas se baseiam em representações sociais distintas, e
por vezes irreconciliáveis, acerca de temas como raça, racismo, identidade nacional, políticas
públicas, etc.

3.1 – Os manifestos em torno das políticas de cotas

A cota entrou no relatório oficial do governo que foi para a


Conferência de Durban, quando eu, com um grupo de pessoas, numa
audiência com o presidente da República, sugeri ao Fernando
Henrique que adotasse nem que fosse a cota no Relatório. Porque
abriria o debate. E ele aí assumiu. Tanto que a imprensa foi lá e
pinçou justamente a cota. Ao mesmo tempo em que ela pinçou para
desmoralizar, abriu o debate.
Ivanir dos Santos. Depoimento Histórias do Movimento Negro no Brasil:
Depoimento ao CPDOC, 2007, p. 393.
109
De acordo com o levantamento realizado pelo “Fórum Interinstitucional em defesa das
53
Ações Afirmativas” , cerca de setenta instituições de ensino superior, entre estaduais e
federais, já haviam implementado, até o final de 2007, alguma forma de política de ações
afirmativas de acesso ou de permanência, para estudantes negros, indígenas e/ou oriundos de
camadas populares. Uma análise dos processos de implementação de ações afirmativas nas
diferentes instituições de ensino superior, poderá indicar que, no plano empírico, as soluções
encontradas pelas universidades refletem os dilemas, os interesses e as representações em
torno da educação, dos conceitos sobre igualdade e desigualdade, das relações raciais, dos
critérios de justiça social, etc.
Dentre os modelos adotados pelas instituições de ensino superior, que implementaram
políticas de ações afirmativas até o ano de 2007, os mais recorrentes foram os que se
baseavam em reservas de vagas (com percentuais e beneficiários diferenciados) ou em adição
na nota dos exames vestibulares. Universidades como UNB, UERJ, UENF, UNEB, UFMA,
UFBA optaram pelo modelo de reserva de vagas, ao passo que universidades como USP,
UNICAMP, UFPE e UFMG optaram pelo sistema de bônus ou pontuação adicional. Apesar
da variabilidade deste diagnóstico, haja vista que nesse momento nos encontramos ainda no
meio do processo de discussão e de implementação de Ações Afirmativas, o cenário atual nos
indica a importância crescente que políticas específicas passaram a ter nos últimos anos,
refletindo o estado atual das lutas sociais que tem marcado o Brasil desde os anos finais do
século XIX. Todavia, na medida em que as Ações Afirmativas se institucionalizaram,
principalmente no campo educacional, as resistências a tais políticas também se fortaleceram.
Tendo realizado uma análise dos enquadramentos interpretativos expressos pelos
principais jornais e revistas do país sobre as políticas de ações afirmativas e sobre as cotas
raciais, Moyá e Silvério (2009) concluíram que 75% dos artigos e editoriais veiculados no
período de 1995 a 2006, expressavam contrariedade a tais políticas. Em certa medida, a
existência de tantas divergências em relação às ações afirmativas, e em relação às melhores
formas de combater as assimetrias entre negros e brancos no Brasil, ajudam a explicar parte
dos reveses sofridos pelas entidades negras nos últimos anos54.

53
Para realizar uma consulta detalhada ao mapa das Ações Afirmativas no Brasil, visite o site:
http://www.acoes.ufscar.br/. Acessado em 25 de Outubro de 2009.
54
Dos episódios recentes, a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288, de 20 de Julho de 2010)
talvez seja o caso mais expressivo. Comemorado por alguns e criticado por outros, a redação final do Estatuto da
110
Nessa perspectiva, o atendimento incompleto das demandas apresentadas pelos
Movimentos Negros, se deve, ao menos em parte, ao fato de que, nos processos decisórios
que se desenrolam nas instituições de ensino superior, no mercado de trabalho e nos diferentes
âmbitos governamentais, conjuntos de imaginários, interesses e prioridades distintas, e por
vezes contraditórias, disputam centralidade. Além disso, a pouca presença (e em alguns
espaços ausência total) de políticos, juristas, jornalistas e intelectuais negros e brancos com
postura antirracista ou pelo menos como uma visão aberta às políticas afirmativas como forma
de correção de desigualdades nos espaços de poder e de decisão midiática, política e
acadêmica (emissoras de TV, câmara dos deputados, senado federal, ministérios, Supremo
Tribunal Federal, Ministério Público, reitorias, conselhos universitários, entre outros) pode
contribuir para que, nos momentos de embate e de decisão sobre as políticas com recorte
étnico-racial, e em especial em relação às Ações Afirmativas, a interpretação e as posturas
contrárias e, por vezes, distorcidas sobre tais políticas prevaleçam e tenham hegemonia. Não
se pode dizer, portanto, que haja uma representação democrática da diversidade étnico-racial
brasileira nos espaços de poder e tampouco que haja um debate igualitário de diferentes
posições e interpretações sobre o tema. A unilateralidade da discussão nos espaços decisórios
é ainda uma predominância na tão decantada democracia brasileira. Por outro lado, os negros
e aliados da luta antirracista encontram nos movimentos sociais, nas Ongs e, mais
recentemente, nas redes sociais o espaço para discussão, reivindicação e circulação das suas
idéias 55.
Dentre as ações de resistência e oposição às políticas de Ações Afirmativas e de cotas,
o manifesto “Todos têm direitos iguais na República democrática”, escrito em 2006, se
destaca. Assinado por um grupo superior a uma centena de intelectuais contrários ao Estatuto
da Igualdade Racial e as cotas raciais, além de artistas e ativistas do movimento negro56, o
manifesto entregue aos presidentes do Senado e da Câmara Federal provocou importantes
impactos políticos. Esse primeiro manifesto foi confrontado, cinco dias depois, com o
documento intitulado “Manifesto em favor da lei de cotas e do Estatuto da Igualdade

Igualdade transformou em lei algumas reivindicações originais do movimento negro, mas deixou de fora outras
reivindicações importantes.
55
Um dos blogs sobre Ações Afirmativas mais ativos até o ano de 2010 era o
http://emdefesadasacoesafirmativas.blogspot.com/
56
Dos 113 (cento e treze) signatários do Manifesto, 3 (três) se declararam ativistas de algum movimento negro:
Almir da Silva Lima - Jornalista, MOMACUNE (Movimento Macaense Culturas Negras, Macaé-RJ; José Carlos
Miranda - Diretório Estadual do PT SP, Coordenação do Comitê por um Movimento Negro Socialista (MNS);
José Roberto Ferreira Militão - Advogado, AFROSOL-LUX - Promotora de Soluções em Economia Solidária.

111
Racial57”, favorável às cotas raciais e ao Estatuto da Igualdade Racial e entregue, também, no
Senado e na Câmara Federal. No ano de 2008, o Estatuto da Igualdade Racial, bem como
todas as suas proposições, voltou a ser objeto de controvérsia. Na ocasião, mais dois
Manifestos foram elaborados e entregues ao Supremo Tribunal Federal e ao Senado
Brasileiro: o primeiro intitulado “113 cidadãos antirracistas contra as leis raciais” e contrário
às cotas e ao Estatuto da Igualdade Racial, e o segundo intitulado "Manifesto em Defesa da
Justiça e Constitucionalidade das Cotas", favorável às cotas e ao Estatuto.
Tanto em 2006 quanto em 2008, os manifestos em defesa do Estatuto e das Políticas
de Cotas foram elaborados em resposta aos manifestos contrários. Apesar da importância que
as reservas de vagas para estudantes negros no ensino superior brasileiro tinham para o
movimento negro e para os outros atores envolvidos com a luta antirracista no Brasil, outras
demandas contidas na proposta original do Estatuto da Igualdade Racial, como a
implementação efetiva da lei 10639/03 na educação básica, o combate à discriminação e às
desigualdades raciais e a defesa do acesso a terra para remanescentes quilombolas, tinham
importância igual ou maior que as próprias cotas. Entretanto, nos debates que se seguiram a
partir da proposição do Estatuto, estes outros pontos não geraram tamanho desacordo quanto
às políticas aplicadas ao Ensino Superior.
Nesse sentido, identificar os principais argumentos utilizados nos manifestos,
contrários e favoráveis, pode nos auxiliar na compreensão dos motivos pelos quais as
propostas de reservas de vagas para estudantes negros em instituições públicas de ensino
superior geraram, e continuam gerando, tamanha polêmica e oposição. No primeiro Manifesto
contrário às cotas e ao Estatuto da Igualdade Racial, por exemplo, sem desconsiderar todo o
conjunto de argumentos complementares, podemos identificar a premissa de inexistência de
distinções raciais no Brasil como o ponto central da argumentação.

57
O Estatuto da Igualdade Racial, projeto de lei 3198/00, foi apresentado no dia 07 de Junho de 2000 à Câmara
dos Deputados pelo então Deputado Federal Paulo Paim, do partido dos trabalhadores (PT) do Rio Grande do
Sul. De acordo com a emenda original, o Projeto de Lei visava “instituir o Estatuto da Igualdade Racial, em
defesa dos que sofrem preconceito ou discriminação em função de sua etnia, raça e/ou cor, e dá outras
providências”. O projeto de lei visava estabelecer, legalmente, os direitos das populações negras no acesso à
Saúde, Educação, Cultura, esporte e lazer, além de ratificar o direito de culto e de consciência religiosa, bem
como os direitos ao acesso a terra e a moradia adequada. O Estatuto ratifica ainda, a obrigatoriedade do ensino
de história da África e da Cultura afro-brasileira nas escolas públicas e privadas, temática já abordada pela lei
10.639 do ano de 2003, que alterou a Lei 9394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação. A subseção I do
Estatuto, referente ao sistema de cotas nas Universidades Federais Brasileiras, reafirmava o compromisso
estabelecido pelo poder público em assegurar vagas à população negra nos diferentes cursos oferecidos pelas
Instituições Federais de Ensino.

112
O princípio da igualdade política e jurídica dos cidadãos é um fundamento essencial
da República e um dos alicerces sobre o qual repousa a Constituição brasileira. Este
princípio encontra-se ameaçado de extinção por diversos dispositivos dos projetos
de lei de Cotas (PL 73/1999) e do Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000) que
logo serão submetidos a uma decisão final no Congresso Nacional. O PL de Cotas
torna compulsória a reserva de vagas para negros e indígenas nas instituições
federais de ensino superior. O chamado Estatuto da Igualdade Racial implanta uma
classificação racial oficial dos cidadãos brasileiros, estabelece cotas raciais no
serviço público e cria privilégios nas relações comerciais com o poder público para
empresas privadas que utilizem cotas raciais na contratação de funcionários. Se
forem aprovados, a nação brasileira passará a definir os direitos das pessoas com
base na tonalidade da sua pele, pela "raça". A história já condenou dolorosamente
estas tentativas (MANIFESTO TODOS TÊM DIREITOS IGUAIS NA
REPÚBLICA DEMOCRÁTICA, 2006)58.

A resistência, expressa no manifesto, à utilização de critérios raciais, sobretudo


quando a cobrança de classificação parte de uma instituição do Estado, parece coerente com a
defesa que os signatários do manifesto fazem das políticas universalistas, baseadas na
igualdade formal, como modo mais adequado de superar as desigualdades entre brasileiros de
diferentes tons de pele.

Qual Brasil queremos? Almejamos um Brasil no qual ninguém seja discriminado, de


forma positiva ou negativa, pela sua cor, seu sexo, sua vida íntima e sua religião;
onde todos tenham acesso a todos os serviços públicos; que se valorize a diversidade
como um processo vivaz e integrante do caminho de toda a humanidade para um
futuro onde a palavra felicidade não seja um sonho. Enfim, que todos sejam
valorizados pelo que são e pelo que conseguem fazer. Nosso sonho é o de Martin
Luther King, que lutou para viver numa nação onde as pessoas não seriam avaliadas
pela cor de sua pele, mas pela força de seu caráter. (MANIFESTO TODOS TÊM
DIREITOS IGUAIS NA REPÚBLICA DEMOCRÁTICA, 2006).

Baseando-se na constatação de que, em geral, nas relações cotidianas as diferenças


fenotípicas dos brasileiros são tratadas como diferenças raciais, os signatários do contra-
manifesto intitulado “Manifesto em favor da lei de cotas e do Estatuto da Igualdade Racial”,
denunciavam a perpetuação das desigualdades raciais no Brasil, evidenciadas nos índices
diferenciais de acesso ao mercado de trabalho, à saúde e à educação. Além disso, o Manifesto
assinado por intelectuais negros e brancos e ativistas do Movimento Negro, ainda denunciava
o fato de que o Estado brasileiro, por muito tempo, desempenhou papel ativo na manutenção e
consolidação das assimetrias raciais no Brasil.

58
Disponível no site: http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u18773.shtml. Acessado no dia 15 de
Novembro de 2009.
113
A desigualdade racial vigente hoje no Brasil tem fortes raízes históricas e esta
realidade não será alterada significativamente sem a aplicação de políticas públicas
dirigidas a este objetivo. A Constituição de 1891 facilitou a reprodução do racismo
ao decretar uma igualdade puramente formal entre todos os cidadãos. A população
negra acabava de ser colocada em uma situação de completa exclusão em termos de
acesso à terra, à renda, ao conjunto de direitos sociais definidos como “direitos de
todos”, e à instrução para competir com os brancos diante de uma nova realidade de
mercado de trabalho que se instalava no país. Enquanto se dizia que todos eram
iguais na letra da lei, várias políticas de incentivo e apoio diferenciado, que hoje
podem ser lidas como ações afirmativas, foram aplicadas para estimular a imigração
de europeus para o Brasil. Esse mesmo racismo estatal foi reproduzido e
intensificado na sociedade brasileira ao longo de todo o século vinte. Uma série de
dados oficiais sistematizados pelo IPEA no ano 2001 resume o padrão brasileiro de
desigualdade racial: por quatro gerações ininterruptas, pretos e pardos têm contado
com menos escolaridade, menos salário, menos acesso à saúde, menor índice de
emprego, piores condições de moradia, quando contrastados com os brancos e
asiáticos. (MANIFESTO EM FAVOR DA LEI DE COTAS E DO ESTATUTO DA
IGUALDADE RACIAL, 2006)59.

Além das denúncias apresentadas em relação à secular desigualdade entre negros e


brancos, nos diferentes espaços da vida social brasileira, o manifesto em favor das cotas e do
Estatuto da Igualdade Racial ressaltou as assimetrias raciais no contexto do ensino superior.
Os argumentos apresentados no manifesto evidenciam ainda que as expectativas depositadas
nas políticas aplicadas ao ensino superior, não se resumem a amenização das assimetrias
numéricas entre os grupos raciais neste nível de ensino, mas na construção coletiva de um
novo senso de justiça multirracial e multi-étnico entre os brasileiros.

Colocando o sistema acadêmico brasileiro em uma perspectiva internacional,


concluímos que nosso quadro de exclusão racial no ensino superior é um dos mais
extremos do mundo. Para se ter uma idéia da desigualdade racial brasileira,
lembremos que, mesmo nos dias do Apartheid, os negros da África do Sul contavam
com uma escolaridade média maior que a dos negros no Brasil no ano 2000; a
porcentagem de professores negros nas universidades sul-africanas, ainda na época
do apartheid, era bem maior que a porcentagem dos professores negros nas nossas
universidades públicas nos dias atuais. (...) Para que nossas universidades públicas
cumpram verdadeiramente sua função republicana e social em uma sociedade multi-
étnica e multi-racial, deverão algum dia refletir as porcentagens de brancos, negros e
indígenas do país em todos os graus da hierarquia acadêmica: na graduação, no
mestrado, no doutorado, na carreira de docente e na carreira de pesquisador
(MANIFESTO EM FAVOR DA LEI DE COTAS E DO ESTATUTO DA
IGUALDADE RACIAL, 2006)

Além de explicitar as divergências em relação às políticas mais adequadas para


superar as desigualdades entre negros e brancos no Brasil, os argumentos apresentados no

59
Disponível no do site: http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u18773.shtml. Acessado no dia 15
de Novembro de 2009.
114
primeiro manifesto pró-cotas explicitou a existência de divergentes projetos de nação que
disputavam legitimidade.

Se a Lei de Cotas visa nivelar o acesso às vagas de ingresso nas universidades


públicas entre brancos e negros, o Estatuto da Igualdade Racial complementa esse
movimento por justiça. Garante o acesso mínimo dos negros aos cargos públicos e
assegura um mínimo de igualdade racial no mercado de trabalho e no usufruto dos
serviços públicos de saúde e moradia, entre outros. Nesse sentido, o Estatuto
recupera uma medida de igualdade que deveria ter sido incluída na Constituição de
1891, no momento inicial da construção da República no Brasil (MANIFESTO EM
FAVOR DA LEI DE COTAS E DO ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL,
2006)

No mesmo período em que foram formulados e entregues os dois manifestos de 2006,


o livro “Não somos racistas”, escrito pelo jornalista e sociólogo Ali Kamel e prefaciado pela
antropóloga Yvonne Maggie, foi entregue ao presidente do Congresso Nacional. Rapidamente
o livro se tornou um sucesso de vendas; em parte, devido à ampla divulgação dos meios
jornalísticos e em particular, em um determinado canal de televisão 60. Após a publicação do
livro, os argumentos alinhavados por Kamel acerca das relações étnico-raciais e das ações
afirmativas no Brasil, passaram a exercer uma forte influência em vários setores da opinião
pública brasileira. No prefácio do referido livro, Yvonne Maggie antecipa as críticas
apresentadas por Kamel ao Estatuto da Igualdade Racial.

Os modelos estatísticos divulgados pela imprensa (que afirmam que as desigualdades


entre negros e brancos se devem ao racismo dos brancos) não são os únicos alvos de
Ali Kamel, que se insurge, no capítulo sete, contra o Estatuto da Igualdade Racial,
para mostrar que este documento é prova irrefutável de que há quem queira ver o país
cindido racialmente. O documento, diz ele, é uma prova de que “queremos uma nação
bicolor, apenas negros e brancos, com os brancos oprimindo os negros”. A solução
dada por estes que vêem assim o nosso país nesse documento é investir ad nauseam
em cotas raciais de todo o tipo. Será esse o Brasil que queremos? Pergunta ele.
(KAMEL, 2006, p. 10)

No ano de 2007, outro livro crítico às políticas de cotas e ao Estatuto Racial foi
lançado, e também recebeu ampla divulgação nos principais veículos jornalísticos do país.
Organizado por um conjunto de intelectuais vinculados à Antropologia, à Sociologia e à
Psicologia (Peter Fry, Yvonne Maggie, Marcos Chor Maio, Simone Monteiro e Ricardo
Ventura Santos), o livro “Divisões Perigosas” se tornou um dos grandes marcos na cruzada

60
Durante o período de elaboração, publicação e divulgação do livro “Não somos racistas”, Ali Kamel exerceu o
cargo de diretor da Central Globo de jornalismo; cargo em que permanece até o presente momento.
115
61
“contra a racialização do Brasil” . O livro, que reúne diversos artigos escritos entre 2002 e
2006, apresenta, segundo seus organizadores, uma vigorosa contestação à lei que estabelece
as cotas raciais nas instituições federais de ensino superior e ao chamado Estatuto da
Igualdade Racial. De acordo com os organizadores do livro-coletânea:

Ao ampliar o debate no seio da sociedade, a coletânea se posiciona contra o processo


de racialização em curso no país, que, em nome da justiça social, concebe o
preconceito racial como o principal eixo explicativo do entendimento das
desigualdades sociais e como definidor de políticas sociais. Indo além, os autores
recusam a restauração do conceito anacrônico de “raça” como instrumento de ação
política. Os artigos são críticos aos projetos políticos pretensamente igualitários que
tem como objetivo a polarização da sociedade em ‘brancos’ e ‘negros’. Os autores
alertam para o fato de que a produção de identidades fixas, estimulada pelo Estado,
fortalece ainda mais o conceito de ‘raças’ distintas e, em última análise pode suscitar
a cisão racial (FRY; MAGGIE; et al, 2007).

No ano de 2008, mais dois Manifestos, um contrário e um favorável às políticas de


cotas, foram lançados62. Sem desconsiderar os diferentes contextos em que foram produzidos
os Manifestos Contrários e os Manifesto Pró-cotas nos anos de 2006 e 2008, chama-nos a
atenção o fato de que, em ambos os períodos, e nos quatro manifestos, o debate em torno da
existência ou inexistência de raças no Brasil e, em consequência, em torno da pertinência da
adoção de políticas com recorte racial, continuou tendo centralidade. Assim, para além das
evidentes controvérsias em torno das alternativas mais adequadas para resolver os problemas
raciais brasileiros, é possível perceber que também estamos envolvidos em um debate sobre a
existência ou inexistência de problemas raciais no Brasil.
Na perspectiva daqueles que tem se posicionado publicamente sobre as Ações
Afirmativas, os eixos básicos do discurso podem ser agrupados em três tipos de abordagens63:

61
No Blog Contra a racialização do Brasil (http://noracebr.blogspot.com/ ) o livro “Divisões Perigosas” é citado
como o primeiro entre os 10 livros como referência para a leitura.
62
Para acompanhar algumas das divergências em torno desta temática, ver: MANIFESTO “Todos têm direitos
iguais na República Democrática”. Brasília,29/06/2006(a); MANIFESTO “Em favor da Lei de Cotas e do
Estatuto da Igualdade Racial”.Brasília, 04/07/2006(b); MANIFESTO “Centro e treze cidadãos anti-raciais contra
as leis raciais”. Brasília, 30/04/2008(a); MANIFESTO “120 anos de luta pela igualdade racial no Brasil:
Manifesto em defesa da justiça e da constitucionalidade das cotas”. Brasília, 13/05/2008(b); NASCIMENTO,
Alexandre do. Os novos Manifestos sobre as cotas. Revista Lugar Comum: Estudos de Mídia, Cultura e
Democracia, n. 25/26, Rio de Janeiro, 2008.
63
Cabe destacar aqui que o fato de os oposicionistas às políticas de ações afirmativas terem se antecipado e
apresentado um Manifesto contra as Cotas, exerceu grande influência na antítese apresentada pelos defensores
das Cotas, que ficaram preocupados em contestar os argumentos mobilizados pelos primeiros. Isto não significa,
em absoluto, que os contrários às cotas foram os primeiros a pautarem a temática de Ações Afirmativas na
sociedade brasileira. Pelo contrário, só o fizeram como resposta as demandas apresentadas pelo movimento
negro, fora e dentro das instituições superiores de ensino.
116
1) Abordagem Culturalista (que tem abordado a existência ou a inexistência de raças), 2)
Abordagem Classista (que tem abordado o caráter das desigualdades sociais no Brasil; se de
classe, se raciais ou se articulam classe e raça) e a 3) Abordagem Liberal (que trata de temas
como a igualdade formal, nos termos do texto constitucional e o debate sobre o princípio do
mérito). Apesar da separação operacional entre as três abordagens, nos posicionamentos
acerca das Ações Afirmativas, argumentos vinculados às três abordagens, por vezes, foram
utilizados de forma articulada, unificando Direita e Esquerda no que Paixão (2008) chamou
de “Santa Aliança”. Tais abordagens, originalmente produzidas em contextos intelectuais e
políticos distintos, têm sido articulados e rearticulados com o objetivo (nem sempre explícito)
de sustentar posicionamentos teóricos e demarcar lugares políticos. Os três sub-tópicos
subsequentes tem como objetivo apresentar os principais argumentos mobilizados em cada
uma das abordagens.

3.1.1- A abordagem Culturalista e o genocídio identitário

Dos diversos argumentos mobilizados na cruzada contra as políticas de Ações


Afirmativas, aqueles que se baseiam na inexistência biológica de raças e que, orientados por
tal perspectiva culturalista64, denunciam o perigo que a criação de identidades raciais fixas
representa para a consolidação da democracia, são os mais utilizados. Uma análise atenciosa
das obras que têm se posicionado contrariamente às políticas de ações afirmativas nos últimos
anos65, poderá revelar a surpreendente recorrência aos estudos do genoma humano, principal
referência para os argumentos em torno da inexistência de raças. Desenvolvido pelo
pesquisador Sérgio Pena, do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG, o estudo sobre o
genoma humano apresenta como uma de suas principais conclusões, o fato de que:

Raças humanas não existem do ponto de vista genético ou biológico (Templeton,


1999). Apenas 5% da variação genômica humana ocorre entre as chamadas "raças".
Ademais, somente 0,01% do genoma humano varia entre dois indivíduos. Em outras

64
De acordo com Consorte (1997), o culturalismo é a vertente do pensamento antropológico que confere à
cultura o primado da explicação ou da responsabilidade pela diversidade humana, recusando todo e qualquer tipo
de explicação evolucionista. Criado pelo antropólogo Franz Boas, o culturalismo foi responsável por duas
rupturas fundamentais: uma com o determinismo geográfico e outra com o determinismo biológico.
65
Das dez obras sugeridas pelo Blog Contra a racialização do Brasil (Norace) a seus leitores, oito tem como
argumento principal a inexistência de raças do ponto de vista biológico.
117
palavras, toda a discussão racial gravita em torno de 0,0005% do genoma humano!
(PENA; BORTOLINI, 2004, p. 46).

A centralidade que os argumentos referentes ao genoma humano ganharam na


reportagem de capa da edição 2011 da Revista Veja, maior revista semanal do país, é um bom
exemplo da legitimidade que o argumento apresentado por Pena e Bortolini (2004), desfruta
não só no campo acadêmico. Estampada com letras garrafais, a manchete apresentada pela
revista do dia 06 de junho de 2007, era a seguinte: “Gêmeos idênticos, Alex e Alan foram
considerados pelo sistema de cotas como BRANCO e NEGRO. É mais uma prova de que
RAÇA NÃO EXISTE” (Grifos originais).
O episódio envolvendo dois estudantes gêmeos, que se inscreveram no vestibular da
UNB através do sistema de cotas, foi amplamente noticiado e debatido pela mídia impressa e
televisiva no ano de 2007 e nos anos subsequentes. Entrevistados pela banca responsável por
avaliar as inscrições dos candidatos nesta modalidade, um dos estudantes foi considerado apto
a concorrer pelo sistema de cotas e o outro não. Ao mesmo tempo em que relatam o episódio,
as autoras da reportagem acima citada, se posicionam contrariamente às políticas de cotas na
UNB e, de modo extensivo, a todas as Instituições de Ensino Superior.
Ao definirem como argumento principal do texto, a negação do conceito de raça e de
sua validade biológica, as autoras da reportagem argumentam que o projeto de separar os
brasileiros e definir seus direitos com base na "raça", além de representar uma afronta a
Constituição, tratando negros e brancos de forma desigual, é também um disparate científico.
Argumentam que “Sérgio Pena, (...) divulgou na semana passada um outro estudo, feito em
parceria com a BBC Brasil, mostrando que várias celebridades negras brasileiras também têm
forte ascendência européia” (ZAKABI; CAMARGO, 2007). Desse modo, por meio da
contestação da validade biológica das raças, as autoras constroem seu argumento contra a
legalidade, a viabilidade e os critérios de justiça que sustentariam as políticas de reserva de
vagas para estudantes negros em cursos superiores de universidades brasileiras.

Alan e Alex são gêmeos univitelinos, ou seja, foram gerados no mesmo óvulo e,
fisicamente, são idênticos. Eles se inscreveram no sistema de cotas por acreditar que
se enquadram nas regras, já que seu pai é NEGRO e a mãe, BRANCA. Seria de
esperar que ambos recebessem igual tratamento (ZAKABI; CAMARGO, 2007)
(Grifos do autor).

Apesar da enfática crítica que as autoras fazem à utilização do conceito biológico de


raças como forma de identificar e diferenciar brasileiros negros e brancos, questionando
118
inclusive a possibilidade de diferenciá-las de algum modo, é possível perceber como as
referências (implícitas) às categorias fenotípicas possibilitam que os leitores identifiquem, tal
como fizeram as autoras, o pai negro e a mãe branca. As autoras utilizam na reportagem,
como de resto fazem boa parte dos brasileiros nas relações sociais cotidianas, a noção
socialmente compartilhada que tende a identificar indivíduos fenotipicamente mais escuros
como pessoas negras e indivíduos fenotipicamente mais claros como pessoas brancas. O
próprio geneticista Sérgio Pena, ao fazer referência ao modo como as pessoas se relacionam
com as diferenças fenotípicas, reconhece que as representações sociais e os julgamentos
valorativos acerca de grupos e indivíduos, nem sempre levam em consideração as mais
recentes descobertas genéticas.

Mesmo não tendo o conceito de raças pertinência biológica alguma, ele continua a ser
utilizado, qua construção social e cultural, como um instrumento de exclusão e
opressão. Independente dos clamores da genética moderna de que a cor do indivíduo é
estabelecida por apenas um punhado de genes totalmente desprovidos de influência
sobre a inteligência, talento artístico ou habilidades sociais, a pigmentação da pele
ainda parece ser um elemento predominante da avaliação social de um indivíduo e
talvez a principal fonte de preconceito. (PENA; BORTOLINI, 2004, p. 46).

De acordo com Guimarães (1999), no caso brasileiro, o que daria vitalidade às


distinções e os julgamentos raciais realizados diuturnamente seriam, justamente, os
significados socialmente produzidos e compartilhados sobre a idéia de raças.

‘Raça’ é um conceito que não corresponde a nenhuma realidade natural. Trata-se,


contudo, de um conceito que se denota tão somente uma forma de classificação
social, baseada numa atitude negativa frente a certos grupos sociais, e informada por
uma noção específica de natureza, como algo endo determinado. A realidade das
raças limita-se, portanto, ao mundo social. Mas, por mais que nos repugne a
empulhação que o conceito de ‘raça’ permite , ou seja, fazer passar por realidade
natural, preconceitos, interesses e valores sociais negativos e nefastos -, tal conceito
tem uma realidade social plena, e o combate ao comportamento social que ele enseja
é impossível de ser travado sem que se lhe reconheça a realidade social que só o ato
de nomear permite (GUIMARÃES, 1999, p. 9).

No decurso da década de 1930, o brasilianista Charles Wagley (1963) já havia


chamado a atenção para este modo sui generis de relações raciais no Brasil e na América
Latina.

Na América Latina, de um modo geral, desenvolveu-se um conceito de raça baseado


nas características fenotípicas e sócio-econômicas do indivíduo, em vez da definição
genética implícita na regra de hipodescendência norte-americana. Ao sul do rio
119
Grande, raça seria melhor definida como raça social, dado que não se refere a um
grupo de pessoas que é julgado como similar em sua natureza essencial socialmente
definida, que resulta (no fato de que) as relações raciais serem relações mais de
estrutura social que raça geneticamente concebida (WAGLEY, 1963 apud SILVA,
1994).

Apesar do relativo consenso científico em torno da não validade genética do conceito


de raças, que evidencia o consenso em torno da unidade da raça humana; é possível notar, de
maneira explícita, em Wagley (1965), Pena e Bortoloni (2004) ou Guimarães (1999), ou de
maneira implícita, em Zakabi e Camargo (2007), que as raças, compreendidas como
representações sociais, ainda tem um pleno significado social na sociedade brasileira, pois é
com base em características fenotípicas, que designam o entendimento público de raça (como
a cor da pele, o tipo de cabelo, formato do nariz e dos lábios, etc.), que estrutura todo um
conjunto eficaz de relações e representações sociais.
Paradoxalmente, as referências recorrentes ao argumento da inexistência biológica de
66
raças, feitas por proeminentes antropólogos brasileiros envolvidos no debate em torno das
Ações Afirmativas (boa parte dos quais foram os signatários dos Manifestos contra as Cotas e
o Estatuto Racial de 2006 e 2008), evidenciam a transferência da autoridade científica sobre a
temática étnico-racial, do campo cultural para o campo da genética.
Todavia, uma rápida retrospectiva do percurso histórico da Antropologia até se
consolidar como disciplina científica, pode nos ajudar a reconhecer certa coerência na posição
atual destes antropólogos que se opõem, tão veementemente, às políticas com recorte racial.
Como já afirmei anteriormente, a resoluta negação de Franz Boas à utilização de um conceito
genético de raça como forma de explicar a diversidade humana, foi exatamente o
posicionamento que ajudou a fundar e distinguir a Antropologia Cultural da Antropologia
Física, tão em voga nas décadas finais do século XIX e princípio do século XX 67.

Uma radical mudança na maneira dos brasileiros se verem dá-se com a publicação
de Casa grande e senzala de Gilberto Freyre, em 1933, que logo se transformaria em
clássico maior da nossa literatura social. A Freyre deve-se a substituição do conceito
de “raça” pelo de “cultura”, na imagem que os brasileiros fazem de si mesmos. A
linha mestra do pensamento social brasileiro até então, a da especificidade de uma
nova civilização tropical, não só é mantida como enfatizada. Com o abandono de
“raça”, fica muito mais fácil “construir a nação dos mestiços”. (ZARUR, 2003, p.
30).

66
Entre os antropólogos envolvidos no debate sobre Ações Afirmativas, destacam-se Peter Fry, Yvonne Maggie,
Eunice Durham, George de Cerqueira Zarur, Lilia Schwartz, Mariza Peirano, Miriam Goldenberg, etc.
67
No Brasil, o herdeiro intelectual de Boas e da perspectiva culturalista foi o antropólogo pernambucano
Gilberto Freire que, não por acaso, se tornou o autor mais citado pelos estudiosos das relações étnico-raciais,
tanto entre aqueles que, politicamente, defendem as políticas de ações afirmativas e de cotas quanto e, sobretudo,
entre aqueles que se opõe a elas.
120
Ao prometerem fidelidade à tradição fundante da Antropologia Cultural, alguns
antropólogos, tais como Peter Fry, Yvonne Maggie e George Zarur, incorrem, a meu ver, em
um duplo equívoco: a) desconsiderarem o papel que a crença na existência de raças
(independente de sua existência biológica) desempenha na estruturação da cultura nacional
contemporânea; e b) negarem a existência de raças, e, ao mesmo tempo, defenderem a
existência da miscigenação.
Ora, a própria idéia de miscigenação - como produto do intercurso sexual entre
indivíduos de grupos distintos - já sinaliza o vigor da “raça social”, tanto no imaginário
quanto nas práticas sociais dos brasileiros. Afinal, como seria possível miscigenar, se somos
todos iguais? Observa-se que a idéia de miscigenação já carrega em si mesma o pressuposto
da diferenciação, que por vezes não se resume apenas ao campo cultural, abarcando também
diferenças racializadas.
Ao realizarem a crítica enfática à idéia de raça, mobilizando argumentos genéticos
para sustentar seus posicionamentos científicos, os antropólogos supracitados, transferem para
a genética a capacidade de fazer prescrições sociais e de definir o mundo cultural. Dito de
outro modo, a perspectiva culturalista defendida por estes autores, de modo implícito, acaba
por reforçar uma postura eminentemente positivista, onde só o que existe enquanto realidade
empiricamente observável é o que existe cientificamente.
Sob uma perspectiva política, ao basearem seus principais argumentos na inexistência
de raças e, em consequência, na inexistência de desigualdades raciais, os signatários do
Manifesto contrário às cotas, as autoras da reportagem anteriormente apresentada e os autores
dos livros já citados, acabam por influenciar profundamente a antítese de seus opositores.
Diante da negação da existência da raça, os defensores das políticas com recorte racial se
vêem obrigados a apresentar argumentos que comprovem a existência de diferenciações
raciais e que, como consequência, permitam conceber a implementação de políticas com tal
recorte.
De modo consciente ou inconsciente, aqueles que se opõem às políticas com recorte
racial acabam por obrigar seus oponentes a defenderem suas singularidades e, em última
análise, a própria existência. Paradoxalmente, no caso da população negra brasileira, o
exercício de afirmação de suas singularidades precisa passar, necessariamente, pela
ressignificação positiva das marcas que, historicamente, têm sido utilizadas para negar a
humanidade daqueles supostamente identificados como pertencentes a uma raça inferior.
121
Nesse sentido, a afirmação da especificidade de ser negro no Brasil passa, geralmente, ainda
que não de modo obrigatório, pela experiência sensitiva (subjetiva) de vivenciar a
discriminação racial. Não é coincidência, portanto, que, tanto no primeiro quanto no segundo
manifesto em defesa das cotas e do Estatuto da Igualdade Racial, a apresentação de dados
estatísticos sobre o tema no Brasil tenha sido acompanhada de denúncias sobre a persistência
do racismo e da discriminação racial no país.
Todavia, entre os adeptos de uma “imaginária” neutralidade científica, tanto a crença
em raças, quanto os comportamentos racistas derivados desta crença, e, ainda, quanto à
sensação de ter sido discriminado não passam de fenômenos subjetivos, que só podem ser
identificadas em indivíduos isolados e, portanto, não se configuram como realidades
empiricamente verificáveis. Nesse sentido, raça e racismo não seriam considerados como
elementos estruturantes das relações sociais brasileiras, pois seriam apenas manifestações
subjetivas, reflexos da ignorância de determinados indivíduos.
No entanto, apesar do imaginário e das ações racistas se expressarem por meio de
indivíduos, e não da sociedade brasileira (lógica que reificaria a sociedade); seria inadequado
afirmar que é o indivíduo X ou Y que cria e mantêm as práticas e pensamentos racistas. Ao
surgir como expressão de um ponto de vista de determinado grupo, o racismo pode ser
expresso por indivíduos, mas é o compartilhamento e a reprodução de significados sociais, de
práticas e pensamentos racistas que cria e recria o racismo, transformando-o no que Bourdieu
(1999) chamou de Estruturas Estruturadas Estruturantes, ou seja, representações
compartilhadas coletivamente, criadas socialmente e que possibilitam a reprodução destas
representações.
Por fim, afirmar que o racismo no Brasil se expressa por meio de um racismo
institucional, não significa dizer que o processo discriminatório tenha sido adotado de forma
legal ou oficial pelo Estado Brasileiro, como nos Estados Unidos na era do Sistema Jim
Crow68 ou na África do Sul na era do Aphartheid69. Afirmar que existe racismo institucional

68
Jim Crow faz referência ao sistema de segregação racial que prevaleceu no sul dos Estados Unidos entre 1876
e 1965. A origem da expressão "Jim Crow" tem sido atribuída ao termo "Jump Jim Crow", umacanção e dança
caricatural de afro-americanos realizada pelo ator branco Thomas D. Rice (1808-1960) usando o rosto pintado de
preto (blackface) que surgiu pela primeira vez em 1832 e era usada para satirizar as políticas populistas do
presidente Andrew Jackson (1767-1845). Como resultado da fama de Rice, "Jim Crow" se tornou uma expressão
pejorativa que designava um africano americano por volta de 1838. Posteriormente, as leis de segregação racial,
que estabeleciam separação entre negros e brancos, ficariam conhecidas como leis Jim Crow. Disponível em
http://newyorkibe.blogspot.com/2011/03/o-novo-jim-crow-controle-e-morte-social.html Acessado em 11 de
Outubro de 2011.
69
O termo apartheid se refere a uma política racial implantada na África do Sul. De acordo com esse regime, a
minoria branca, os únicos com direito a voto, detinha todo poder político e econômico no país, enquanto à
122
no Brasil, significa dizer que as práticas de hierarquização a partir da crença na existência de
raças superiores e inferiores (intelectual, cultural e socialmente), foram instituídas enquanto
prática social, e são cotidianamente (re)instituídas enquanto instituição social, tendo plena
efetividade em nossas representações e práticas sociais.

3.1.2- A abordagem Classista e o consenso Direita/Esquerda

No debate contemporâneo sobre Ações Afirmativas, os argumentos derivados de uma


abordagem classista das relações raciais brasileiras podem ser classificados em dois grupos
distintos, ainda que parecidos: o primeiro tipo de argumento identifica na estrutura social
brasileira assimétrica, e não no sistema de seleção para os cursos superiores, os principais
problemas que dificultam o acesso ao ensino superior no país, independentemente da raça/cor
dos candidatos. Nessa perspectiva, apenas uma redistribuição de renda em prol daqueles que
estão na base da pirâmide seria capaz de equacionar as assimetrias futuras. O segundo tipo de
argumento, apesar de reconhecer um problema de viés de seletividade no sistema de seleção
para o ensino superior brasileiro, que privilegiaria estudantes oriundos de camadas sociais
privilegiadas (mormente estudantes das escolas privadas), está baseado na premissa de que a
desigualdade no acesso ao ensino superior atingiria da mesma maneira brancos e negros
pobres. Nesta segunda perspectiva, o artifício de reserva de vagas nas instituições de ensino
superior passaria a ser admitido, mas somente para estudantes oriundos de escolas públicas.
Nos debates sobre Ações Afirmativas que se desenrolaram no Brasil, até meados da
década de 2000, o primeiro tipo de argumento era utilizado de forma recorrente pelos
detratores das políticas de cotas. Entretanto, a partir da segunda metade da década de 2000, o
segundo tipo de argumento começou a ser reiteradamente utilizado nos debates públicos e,
por vezes, ambos os argumentos foram utilizados de forma articulada. Chama-nos a atenção,
o fato de que tais argumentos tenham sido utilizados, e continuam sendo, por políticos e

imensa maioria negra restava a obrigação de obedecer rigorosamente à legislação separatista.


A política de segregação racial foi oficializada em 1948, com a chegada do Novo Partido Nacional (NNP) ao
poder. O apartheid não permitia o acesso dos negros às urnas e os proibia de adquirir terras na maior parte do
país, obrigando-os a viver em zonas residenciais segregadas, uma espécie de confinamento geográfico.
Casamentos e relações sexuais entre pessoas de diferentes etnias também eram proibidos. Com a posse de
Frederick de Klerk na presidência, em 1989, ocorreram várias mudanças. Em 1990, Mandela foi libertado e o
CNA recuperou a legalidade. Klerk revogou as leis raciais e iniciou o diálogo com o CNA. Sua política foi
legitimada por um plebiscito só para brancos, em 1992, no qual 69% dos eleitores (brancos) votaram pelo fim do
apartheid. Disponível em http://www.brasilescola.com/geografia/apartheid.htm Acessado em 11 de Outubro de
2011.
123
intelectuais vinculados, tanto à esquerda quanto a direita brasileira, evidenciando que não se
trata de um discurso, essencialmente, partidarizado.
De acordo com José Carlos Miranda, signatário do Manifesto “Todos têm direitos
iguais na República Democrática” e coordenador do Movimento Negro Socialista, as cotas
raciais não seriam capazes de resolver os problemas dos negros e dos pobres brasileiros, posto
que as condições de vida desses grupos seriam fruto das desigualdades marcantes da
sociedade brasileira: “uma sociedade de classes”. Na sua perspectiva, toda política destinada a
erradicar a desigualdade deveria atuar junto aos excluídos de maneira geral, sem realizar
distinções raciais.

Por que o governo não propõe um plano para equiparar a qualidade de todas as
escolas públicas de ensino médio e fundamental às escolas privadas? Por que não
elaborar um projeto para tornar obrigatório o ensino médio, como foi feito com o
ensino fundamental. Por que não federalizar as universidades privadas, que só
sobrevivem por meio do recebimento de verbas públicas, ampliando radicalmente as
vagas no ensino público? São medidas que vão no sentido de mais igualdade, de
ampliação dos serviços públicos de qualidade para todos (MIRANDA, 2007 apud
FRY; MAGGIE, 2007, p. 322).

Em investigação realizada com membros da elite econômica e política brasileira, boa


parte deles vinculados a posições político-ideológicas de direita e de centro, Reis, E. (2000),
observou que a grande preocupação expressa por estes grupos com relação à pobreza e à
desigualdade, coexistia com a defesa contundente de políticas públicas universais como modo
mais adequado de resolver os problemas identificados.
Interrogados sobre os principais problemas do Brasil, os entrevistados tenderam a
conferir prioridade à questão social, atribuindo ao acirramento das desigualdades uma das
principais ameaças à democracia. Quando questionados sobre as melhores formas de
combater tais desigualdades, os entrevistados indicaram, na sua grande maioria, a educação
como forma de intervenção estratégica. De acordo com Reis, E. (2000) a aposta das elites em
políticas universais, como forma de resolver os problemas de desigualdade no país, refletem a
crença amplamente difundida no poder da escola de promover ascensão social, sem implicar
em uma troca de posições sociais. Nesse sentido, o otimismo da era desenvolvimentista
parece se perpetuar no pensamento das elites nacionais, que apostam na criação de novas
posições estruturais e novas ocupações sociais, que viriam a ser preenchidas pelas novas
gerações. Assim, as novas gerações poderiam ascender socialmente, sem, contudo, provocar a

124
mobilidade descendente de membros de outros setores. Em suma, as elites apostariam na
possibilidade de melhoria para os pobres, sem custos diretos para os não-pobres.
Reis, E. (idem) chama a atenção, ainda, para o consenso entre as elites acerca da
inconveniência de políticas de discriminação positiva em favor de determinadas minorias.
Assim, apesar de reconhecerem a existência de preconceito racial no Brasil, expressam uma
rejeição, quase unânime, às políticas diferencialistas. “No discurso aberto das elites, a
preferência por iniciativas universalistas se soma à condenação explícita de medidas de ação
afirmativa” (REIS, J, 2000, p. 147).
Apesar da convergência de opiniões, de “gregos e troianos”, acerca das políticas de
ações afirmativas, o posicionamento assumido por militantes e intelectuais vinculados a um
pensamento de direita (ou centro) no que tange a esta matéria, explicita bem as diferenças no
que se refere às representações sobre as origens da desigualdade, e sobre as formas mais
adequadas de combatê-las. De acordo com Bobbio (2001), a direita é inigualitária não devido
às más intenções intrínsecas, mas por acreditar que as desigualdades são, não apenas
inelimináveis, mas também úteis, na medida em que promovem a incessante luta pelo
melhoramento da sociedade.
Os argumentos utilizados por Kamel (2006), para definir os principais males que
afetariam a sociedade brasileira, revelam-se uma síntese dos argumentos anteriormente
referidos. De acordo com o autor, ao contrário do racismo propagandeado por todos aqueles
que têm a intenção de transformar o país numa “nação bicolor”, o que prevaleceria no Brasil
seria o “classismo: preconceito contra os pobres”.

Estou cada mais convencido de que o racismo decorre essencialmente do ‘classismo’.


O negro que dirige um carro de luxo e é confundido com um motorista, e, por isso,
maltratado, é mais vítima de ‘classismo’ do que racismo. Uma vez desfeito o mal-
entendido, um tapete vermelho se estende para a vítima (KAMEL, 2006, p. 101).

Neste e em outros argumentos apresentados anteriormente, o reconhecimento da


desigualdade enquanto marca da identidade nacional, parece conviver com a ambígua postura
que, ora reconhece e ora nega a existência do racismo.
Entre os intelectuais, políticos e ativistas vinculados a esquerda, que se posicionam
contrariamente às políticas de cotas, as obras produzidas pelo
70
economista, filósofo, historiador e jornalista Karl Marx , e alguns de seus seguidores,

70
A seguir apresento algumas das principais obras produzidas por Karl Marx, algumas em parceria com
Friedirich Engels: MARX, K. & ENGELS, F. A Ideologia Alemã. Trad. Castro e Costa, L. C. São Paulo:
125
parecem se constituir como as principais referências teóricas. Por meio de uma (re)leitura
teórica da perspectiva materialista, com especial destaque para as obras de Karl Marx e de
Florestan Fernandes no Brasil, o contexto de desigualdades sociais é visto como reflexo direto
da contradição capital x trabalho, que produz e reproduz opressores e oprimidos. Sob este
ponto de vista, todas as situações de desigualdades que marcam as condições de vida de
negros, mulheres, imigrantes, etc., podem ser compreendidas como reflexos – diretos e
indiretos - da contradição basilar produzida pelo sistema capitalista. Nesse sentido, as
mobilizações coletivas vinculadas às lutas antisexistas, antirracistas e anti-homofóbicas, seria
apenas uma estratégia ideológica das forças conservadoras (leia-se capitalistas) para
enfraquecer as lutas proletárias 71.
Aplicado aos debates acerca das Ações afirmativas no Brasil, um alinhamento
ortodoxo à perspectiva marxista, poderia significar a recusa intransigente de qualquer forma
de medida corretiva, que não significasse a universalização do acesso de “todos” ao ensino
superior, através da supressão do sistema capitalista e de sua desigualdade característica.
Significaria, portanto, a crítica intransigente a qualquer modelo de exame de seleção, bem
como aos argumentos centrados no mérito; em uma defesa coerente da universalidade de
direitos. Todavia, o posicionamento adotado no “Manifesto Todos têm direito igual na
República Democrática”, assinado por um pequeno grupo de ativistas de esquerda e um
grande número de intelectuais e militantes não-proletários, é o de que:

... a verdade amplamente reconhecida é que o principal caminho para o combate à


exclusão social é a construção de serviços públicos universais de qualidade nos
setores de educação, saúde e previdência, em especial a criação de empregos. Essas
metas só poderão ser alcançadas pelo esforço comum de cidadãos de todos os tons
de pele contra privilégios odiosos que limitam o alcance do princípio republicano da
igualdade política e jurídica (MANIFESTO TODOS TÊM DIREITO IGUAL NA
REPÚBLICA DEMOCRÁTICA, 2006).

Do ponto de vista dos militantes e/ou intelectuais vinculados a um pensamento de


direita, a igualdade, herdeira direta das lutas burguesas do século XVIII na Europa e na
América do Norte, é ostentada como principal bandeira. Por meio de um processo de

Martins Fontes, 2002; MARX, K. Manuscritos Económico-Filosóficos. Trad. Campos, J. Cidade do México:
Fondo de Cultura Económica, 1962; MARX, K. Contribuição para uma Crítica da Economia Política. Trad.
Malagodi, E. São Paulo: Abril Cultural, 1982; MARX, K. O Capital – Livro I. Trad. Barbosa, R. e Kothe, F. São
Paulo: Abril Cultural, 1983.
71
Esta aliás, tem sido uma das principais críticas apresentadas em relação a atuação de agências internacionais
ocupadas em incentivar e fortalecer o campo de estudo das relações raciais no Brasil. Um dos alvos preferências
dos críticos é a Ford Fundations, que tem atuado no Brasil na distribuição de bolsas de pesquisa de pós-
graduação e no fomento à atividades de pesquisa. (Magnoli, 2009; Bourdieu, Wacquant, 1998).

126
importação e atualização, a igualdade formal, enquanto valor, amalgamou-se ao pensamento
social e às estruturas políticas brasileiras a partir da última década do século XIX. Entretanto,
a defesa do princípio de igualdade formal, que no período das Revoluções Burguesas operou,
juntamente com os princípios de liberdade e fraternidade, como ideais revolucionários contra
os privilégios nobiliárquicos, acabou se tornando no Brasil, um eficiente meio de conservação
da ordem e do status quo. Aqui, o conceito liberal de igualdade, assentado na igual
capacidade dos indivíduos de tornarem-se diferenciados por meio do mérito individual,
convive, de modo paradoxal, com evidências empíricas que mostram as desiguais
oportunidades que diferenciam homens e mulheres, trabalhadores urbanos e trabalhadores
rurais, negros e brancos, etc. Voltaremos a este ponto na próxima seção, quando discutiremos,
de forma mais aprofundada, as implicações de uma abordagem liberal no debate sobre ações
afirmativas e cotas.
Se até meados da década de 2000, as respostas apresentadas às demandas por Ações
Afirmativas eram, geralmente, reduzidas a demandas por cotas raciais e, consideradas
irrelevantes ou inadequadas, a progressiva adoção de políticas de Ações Afirmativas, nas suas
diferentes modalidades, por instituições superiores de ensino de todo o Brasil, acabaram por
influenciar uma virada no debate acadêmico e político. A oposição intransigente às políticas
de cotas raciais, e a defesa também intransigente da universalização do direito à educação, a
ser alcançado pela melhoria da qualidade da educação fundamental brasileira, passou a
conviver com uma defesa intransigente de políticas de cotas, exclusivamente, para estudantes
oriundos de escolas públicas.
Interessante observar que, a incorporação ao debate do segundo tipo de argumento,
não implicou na substituição de um argumento pelo outro. Assim, o reconhecimento da
existência de um viés de seletividade nos processos seletivos para o ensino superior, que
poderia representar um golpe definitivo na crença na igualdade formal e nas oportunidades
abertas a todos (meritocracia), foi absorvido como prova cabal de que a desigualdade
educacional no Brasil atingiria “democraticamente” todos aqueles estudantes pobres; fossem
eles negros, brancos, indígenas, orientais, etc.
De acordo com alguns representantes de instituições de ensino superior brasileiro, a
opção pelas cotas sociais em instituições superiores de ensino surgiu como uma forma
alternativa de superar as desigualdades educacionais sem, no entanto, enfrentar o incômodo
debate racial. O acréscimo de pontos nas notas obtidas pelos candidatos nos exames
vestibulares, que passaria a ser conhecido como Políticas de Bônus e pontuação adicional
despontou, a partir de então, como uma alternativa estratégica de ampliação do acesso ao
127
ensino superior. Ao se referir a política de bônus implementada na UFMG no ano de 2008,
inspirada no sistema de pontuação adicional adotado pela UNICAMP, o então Reitor Ronaldo
Tadeu Pena afirmou:

O bônus segue linha diferente da política de cotas, porque não se baseia em simples
reserva de vagas. Ele depende diretamente do aproveitamento do aluno, o que
valoriza o mérito do estudante que teve mais dificuldades para estudar e, ainda
assim, se aproxima da aprovação (BOLETIM UFMG, 2008, p. 4)72.

A inflexão pela qual passou o debate a partir da segunda metade da década de 2000,
além de possibilitar a emergência de novas propostas de democratização do ensino superior,
também favoreceu algumas alterações nas proposições iniciais de reserva de vagas para
estudantes negros. Ao articular o critério socioeconômico com o critério racial, passando a
contemplar, tanto estudantes negros oriundos de escolas públicas, quanto estudantes oriundos
de escolas públicas (independentemente de sua auto-classificação racial), os novos modelos
de “inclusão” acabaram por contradizer um dos mais recorrentes argumentos utilizados por
aqueles que se opunham às cotas raciais.
De modo não intencional, o desenrolar do debate em torno das chamadas “cotas
raciais”, parece ter favorecido a emergência do debate em torno das chamadas “cotas sociais”,
que não estavam colocadas na agenda pública sobre o ensino superior antes das reivindicações
apresentadas por militantes e entidades negras. Desse modo, as demandas por ações
afirmativas para a população negra no ensino superior, acusadas de “favorecer a classe média
dos negros, que não seria a mais necessitada dos beneficiários” (KAUFFMAN, 2007),
acabaram por favorecer, de modo indireto, o ingresso de muitos estudantes brancos pobres em
Instituições de Ensino Superior por todo o Brasil.

3.1.3- A abordagem Liberal e a defesa do mérito acadêmico

De uma perspectiva liberal, a principal crítica às Ações Afirmativas e às políticas de


cotas refere-se à ameaça que tais políticas representariam ao princípio do mérito individual.
72
A política de Bônus começou a ser implementada na UFMG a partir do Vestibular 2009. Candidatos que
freqüentaram a escola pública nos sete últimos anos da educação básica passaram a contar com bônus de 10%
sobre a pontuação obtida no concurso. Para aqueles que, com a mesma trajetória escolar, se declararem negros
(pretos e pardos) a pontuação adicional acrescentará mais 5%, ou seja, esse candidato terá um total de 15% de
bônus. Os bônus são concedidos nas duas etapas do concurso. Atualmente, além do bônus, a UFMG passou
adotar, também, a nota do ENEM na primeira etapa do vestibular.
128
De acordo com Vieira (2004), a concepção moderna de mérito, entendida como um modelo
de seleção dos mais aptos, teria se desenvolvido na Europa, durante os séculos XVII ao XIX -
período de grandes transformações políticas, econômicas e sociais - como promessa de
atender a necessidade de impessoalidade, por intermédio da especificação objetiva das
capacidades individuais de cada um. A intensidade das mudanças ocorridas no período,
associadas às inúmeras agitações e revoltas, acabou por colocar em xeque as velhas estruturas
que durante séculos haviam sustentado os privilégios da aristocracia. As revoluções políticas
deste período, em especial as Revoluções Francesa e Americana, começaram a sedimentar os
princípios de uma nova ordem jurídica e política, inspirada nos ideais iluministas e no
liberalismo econômico, e orientada pelos princípios de liberdade, propriedade e igualdade
jurídica.
Em consonância com as aspirações de legitimação da burguesia ascendente do século
XVII, o filósofo inglês John Locke, o autor mais proeminente do Liberalismo Econômico e do
Jusnaturalismo do século XVII, desenvolveu as bases teóricas para a consolidação do
princípio moderno de mérito, opondo-se assim aos privilégios hereditários da nobreza. De
acordo com Locke (1994) seria por meio do trabalho que os homens modificam a natureza e
criam a propriedade, que por ser produto de um empreendimento humano pré-societário, se
define como um direito natural e inalienável do indivíduo. Nessa perspectiva, caberia ao
Estado, constituído após a criação da propriedade, agir apenas na garantia da vida, da
liberdade e dos bens individuais. Desta perspectiva, a igualdade entre os cidadãos se referiria
à equivalente capacidade de intervir no ambiente e modificá-lo, produzir bens e criando a
propriedade.
Assim, ao mesmo tempo em que a crença liberal do “somos todos iguais” expressa
uma forte confiança na igual capacidade de trabalho e modificação do ambiente; expressa,
também, a defesa da liberdade como valor natural dos indivíduos. Desse modo, a defesa
contundente do mérito se articula com a defesa da liberdade, de caráter também liberal, que os
indivíduos possuiriam de escolherem seus destinos, e tornarem-se diferenciados devido às
assimétricas capacidades de produzirem a si mesmos. De uma perspectiva liberal, portanto,
acreditar na máxima “somos todos iguais” não significa, em absoluto, acreditar na
inexistência de distinções; mas antes, acreditar na existência de distinções justas, produzidas a
partir dos esforços diferenciados que os indivíduos, dotados das mesmas capacidades e
oportunidades, fazem para se tornarem socialmente diferenciados.
De acordo com Dumont (1993), se no Antigo Regime, as marcas nobiliárquicas e
hereditárias eram vistas como meios legítimos de ascensão social, as revoluções burguesas,
129
que marcaram o mundo nos séculos XVIII e XIX, deslocaram para o indivíduo, e para suas
capacidades pessoais, a responsabilidade por sua posição na estrutura social. Atualmente, os
princípios liberais, com ênfase na igualdade jurídica entre os sujeitos, não são defendidos
apenas por militantes e intelectuais declaradamente liberais, sendo possível observar certa
hegemonia de tais valores no meio social mais abrangente.
Para muitos defensores do princípio meritocrático, é no campo acadêmico que o
princípio de mérito verdadeiramente se concretiza; primeiro nos processos de admissão, e em
seguida, nos processos de produção de conhecimento. Entendida como o lócus privilegiado da
meritocracia, não caberia às universidades resolver, por meio de diferentes ações de
democratização do acesso ao ensino superior, as desigualdades sociais consolidadas fora
delas. Agir de acordo com este anseio igualitário seria, portanto, uma traição a “vocação”
acadêmica. Esta é a opinião do professor de Direito da UFMG, João Batista Villela:

Criar distinções fundadas na etnia ou em condições sociais e econômicas é um modo


cínico e arrogante de legitimar preconceitos, porque perpetua a inferioridade do
desvalido. Ao se afastar do princípio do mérito para pôr a serviço do imediato
nivelamento social, a universidade começa por trabalhar contra a principal de suas
forças, que é precisamente o dinamismo transformador do saber. Nega-se a si
própria. Rompe com suas origens. Trai o seu destino (VILLELA, 2005, p. 2)

Em consonância com o professor da UFMG, o reitor da Universidade Estadual


Paulista (Unesp), Antônio Manoel dos Santos Silva, defende que a inclusão social dos mais
pobres não deve ser função da universidade, pois “é o local de uma elite, que não a financeira:
a dos que podem ser aproveitados pela nação para desenvolver a pesquisa e estar na liderança
do País” (SILVA, A., 2002 Apud MOYÁ; SILVÉRIO, 2009, p. 238). Deste argumento, e de
sua postura explicitamente elitista, depreende-se uma nítida defesa do status quo. A
radicalização deste argumento foi expressa por Simon Shwartzman, durante debate na USP no
ano de 2004.

O tema da “inclusão social” passou a ser dominante no debate intelectual sobre o


ensino superior do país, e isto está prejudicando a discussão de outros temas
fundamentais. Uma forte pressão “igualitarista” também está afetando instituições que
deveriam ter como base os valores tradicionais da academia: competência, competição
e concentração de talentos, de uma “elite” do conhecimento. (SHWARTZMAN, 2004
apud MOYA; SILVÉRIO, 2009, p. 238)

Os argumentos apresentados acima, em defesa da presença exclusiva de uma elite


intelectual no interior das instituições de ensino superior, suscitam algumas questões
130
relevantes: a) seria possível constatar empiricamente no Brasil, diferenças significativas entre
as “elites intelectuais” e entre as “elites econômicas e políticas”? b) defender a existência
legítima de elites intelectuais, em um contexto amplamente desigual como o Brasil, não seria
equivalente a defender a existência legítima de elites econômicas e políticas?
De uma perspectiva histórica, é possível observar no Brasil, uma estreita relação entre
elites intelectuais e políticas, que se retroalimentam, na medida em que, são exatamente os
filhos destas elites econômicas aqueles que acessam e concluem o ensino superior, no Brasil e
fora dele. Ao mesmo tempo, são exatamente a estes egressos do ensino superior que,
geralmente, tem sido destinada a grande maioria dos cargos e postos de maior retorno
financeiro e de maior projeção política do país. Nesse sentido, defender a existência de uma
“elite” - seja ela intelectual, política ou econômica - e ao mesmo tempo defender o mérito
individual como meio adequado e suficiente de ascensão social, não seria uma contradição de
princípios?
Para aqueles que recorrem à abordagem liberal para sustentar sua oposição às políticas
de ações afirmativas e de cotas, a assimetria de qualidade na formação inicial dos indivíduos,
materializada na oposição maniqueísta entre escolas públicas e escolas privadas, é
recorrentemente utilizada para explicar, tanto os acessos diferenciais ao ensino superior,
quanto às diferentes posições sociais ocupadas pelos brasileiros na fase adulta. Por esta lógica,
a suposta falta de qualidade das escolas públicas brasileiras, e a conseqüente, incapacidade de
proporcionar aos egressos um ensino que lhes permita competir em pé de igualdade com os
estudantes de escolas privadas, seria a principal explicação para a sobre-representação de
mérito entre os filhos da classe média e alta.
Aliás, o consenso quase absoluto que se construiu acerca da falta de qualidade das
escolas públicas brasileiras é outro ponto que merece destaque. Tanto entre aqueles que
defendem a necessidade de políticas de ações Afirmativas quanto entre aqueles que se
mostram contrários, o consenso em torno do suposto fracasso das escolas públicas, e sua
consequente incapacidade para preparar os estudantes para os exames vestibulares, parece
crescente. Nesse ponto, vale à pena lembrar que justamente no período de apogeu do
alinhamento do Estado brasileiro à perspectiva neoliberal, ao longo da década de 1990, o
diagnóstico acerca do fracasso da coisa pública, em função dos vícios de gestão, se tornou o
principal argumento utilizado em favor das privatizações realizadas no Brasil.
Naquele período, ao buscar explicações para o fracasso da coisa pública em geral, e
das escolas públicas em específico, não era raro que o processo de democratização do ensino
fundamental e médio fosse identificado como o nó górdio do problema. Subjacente a tal
131
argumento, parecia repousar a crença de que o ingresso dos filhos da massa trabalhadora nas
instituições escolares teria determinado o início do declínio destas instituições. Espaços
anteriormente reservados a poucos (aos filhos da “elite intelectual”), as escolas públicas
teriam sido, progressivamente, ocupadas por uma leva de estudantes sem desejo ou habilidade
de estudar e aprender. Nestas escolas “massificadas”, as altas taxas de reprovação e evasão
escolar, observadas principalmente entre os filhos da classe trabalhadora, só vinham reforçar
tais crenças. A queda da qualidade acadêmica das escolas de ensino fundamental e médio,
portanto, se evidenciava por meio do fracasso daqueles que, não acostumados com o ambiente
escolar, não conseguiam se adaptar.
Curiosamente, no atual debate que presenciamos sobre a democratização do ensino
superior no Brasil, argumentos similares aos anteriormente citados são utilizados. Todavia, se
no debate acerca da qualidade no ensino fundamental e médio brasileiros, as escolas públicas
são aquelas consideradas como desprovidas da qualidade supostamente existente entre as
escolas privadas; no âmbito do ensino superior a equação se inverte. No debate sobre Ações
Afirmativas, são os defensores do mérito acadêmico, geralmente membros de instituições
públicas de ensino superior, que vem a público profetizar o fim da qualidade das instituições
públicas de ensino superior caso todos os cidadãos brasileiros, aptos a cursarem o ensino
superior (ou seja, que tem direito à educação superior), tiverem acesso a este espaço 73. Tanto
no ensino fundamental e médio como no ensino superior, a substituição progressiva da “elite
intelectual” por uma massa de estudantes, possuidores do direito constitucional à
escolarização formal, mas supostamente desprovidos dos requisitos intelectuais considerados
necessários, passa a ser vista como uma eminente ameaça à qualidade do sistema de educação
superior do país.
Entretanto, a supervalorização da qualidade das instituições públicas de ensino
superior, frente à propalada deficiência acadêmica das instituições privadas de ensino
(abstraindo as evidentes diferenças no que se refere à infraestrutura), parece subverter a lógica
neoliberal segundo a qual os problemas das escolas públicas estariam vinculados aos vícios da
coisa pública. De modo implícito, esta inversão no discurso sobre qualidade parece
evidenciar, não apenas a existência de crenças sobre diferenças entre a coisa pública e a coisa
privada, mas antes a persistência de crenças cristalizadas sobre “supostas” características
inatas dos diferentes públicos: estudantes de escolas públicas de ensino fundamental e médio

73
O inciso constitucional que se refere ao papel do Estado na garantia do acesso ao ensino superior é, no
mínimo, ambíguo. Ao definir que o acesso “aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação
artística, (se dará) segundo a capacidade de cada um”; o inciso V do artigo 208 evidencia sua inspiração liberal,
mas deixa em aberto o significado da expressão “capacidade de cada um”.
132
e estudantes de instituições privadas de ensino superior versus estudantes de escolas privadas
de ensino fundamental e médio e estudantes de instituições públicas de ensino superior.

3.2 - De volta ao determinismo: “qual o desempenho acadêmico de cotistas”?

(...) O saber medido no vestibular é, no máximo, 10% do saber de


uma pessoa. E que o vestibular pega justamente o saber que alguns
têm dinheiro para comprar. Outros saberes que são importantes para
a faculdade, mas não são medidos no vestibular, o pobre tem:
perspicácia, inteligência, capacidade... E por isso o pobre está
fazendo sucesso na universidade.
Frei Davi Depoimento Histórias do Movimento Negro no Brasil:
Depoimento ao CPDOC, 2007, p. 419.

Cerca de dez anos após a implementação das primeiras políticas de reservas de vagas
para estudantes negros em instituições superiores de ensino (UERJ e UENF no Rio de
Janeiro), boa parte dos debates atuais ainda tratam o assunto no nível especulativo,
desconsiderando as dezenas de experiências acumuladas ao longo da década. A grande
maioria dos argumentos mobilizados no debate público, sobretudo os contrários às ações
afirmativas e as políticas de cotas, se assentavam, e continuam a se assentar, em projeções
acerca do futuro das relações raciais no Brasil, da qualidade da educação superior e da
unidade nacional; todos estes vistos por uma perspectiva enfaticamente pessimista. A
implementação de políticas com recorte racial, a um só tempo, teria o poder de causar o
surgimento de conflitos raciais (desconhecidos pela história brasileira), o fracasso
generalizado da qualidade e do mérito acadêmico no ensino superior e, ainda, a emergência de
cisões raciais; além do surgimento de particularismos separatistas.
Um dos impactos significativos deste “relativo consenso pessimista” foi a formação de
uma parcela da opinião pública fortemente indisposta a tais políticas, ainda que, boa parte,
desconhecedora destas mesmas políticas. Em trabalho anterior (JESUS, 2009), procurei
mostrar como, nos recentes debates sobre tais políticas, o senso científico se articula e/ou se
apropria de argumentos compartilhados pelo senso comum. Referindo-me a um artigo escrito
por Fry e Maggie (2004), no qual os autores justificam sua oposição às ações afirmativas e às
cotas a partir dos argumentos apresentados por seus leitores do Jornal O Globo, “que na
tradição antropológica seriam as vozes “dos ‘nativos’, e por isso deveriam ser levados a
sério”, concluo que:

133
ao mesmo tempo em que alguns argumentos expressos pelo senso comum
reproduzem os argumentos científicos, notamos que o discurso cientifico por vezes
se baseia em representações compartilhadas com o senso comum, mas que ao
transmutarem-se em discursos científicos acabam por adquirir status de verdade
(JESUS, 2009, p. 107).

Conforme afirmado em outro momento, as críticas incisivas apresentadas às políticas


com recorte racial, além de possibilitar a formação de um julgamento desfavorável entre a
opinião pública em relação à temática, também exerceram influência direta nas antíteses
apresentadas pelos defensores de tais políticas. Nesse contexto, não bastava apenas apresentar
argumentos favoráveis a tais iniciativas; era preciso apresentar indicadores capazes de refutar
as previsões pessimistas com relação aos efeitos de tais políticas.
De acordo com Santos e Queiroz (2005), tanto a ausência de dados concretos sobre o
pertencimento racial dos estudantes matriculados nas instituições de ensino superior antes do
início das políticas de cotas, quanto o nível “especulativo” em que foram mantidos os debates
sobre tal temática, explicitava a urgência em realizar avaliações comparativas entre os
desempenhos dos estudantes cotistas e não-cotistas e os impactos provocados nas instituições
de ensino que adotaram tais políticas.

Encontramo-nos perante um quadro em que, se, por um lado, intelectuais e,


sobremaneira, cientistas sociais encontram na imprensa uma maior probabilidade de
divulgação de suas posições – e, diga-se de passagem, a divulgação na imprensa
tem sido, em maior escala, de posições contrárias ao sistema de cotas –, por outro
lado, faltam análises que possam nos oferecer instrumentos capazes de medir o
impacto dessas políticas nas universidades, a forma como o sistema anterior foi ou
não efetivamente alterado, e os significados advindos da substituição do sistema
amparado na noção de mérito por um sistema que introduziu as variáveis cor ou
raça, origem escolar, gênero e residência como fatores a serem ponderados no
ingresso (SANTOS; QUEIROZ, 2007, p. 2).

Após analisar os dados relativos aos candidatos inscritos no vestibular da


Universidade Federal da Bahia (UFBA) nos anos de 2003, 2004 e 2005 74, Santos e Queiroz
(idem) afirmam que, no ano de 2005, um número maior de estudantes pretos e pardos foi
selecionado no exame vestibular da instituição. Segundo eles, no ano de 2003 e de 2004,
40,9% e 35% de estudantes brancos, 41,8% e 46,1% de estudantes pardos e 13,6% e 15% de
estudantes pretos, respectivamente, foram aprovados no vestibular; sendo que no ano de 2005
foram aprovados 21,6 % de estudantes brancos, 57,5% de estudantes pardos e 17,1% de
estudantes negros.

74
O programa de cotas da UFBA foi implementado no ano de 2005. Portanto, nos anos de 2003 e 2004 o
programa ainda não estava em funcionamento.
134
Além de darem destaque para o aumento gradativo da participação de pretos e pardos
entre os estudantes aprovados nos vestibulares da UFBA, sobretudo após a implementação do
sistema de cotas no ano de 2005, os autores chamam a atenção para o aumento, também
progressivo, das notas de corte dos exames vestibulares nos três anos; o que, de certo modo,
contrariou as perspectivas catastróficas sobre a queda na qualidade do estudante ingressante.
De acordo com Santos e Queiroz (2007), as notas de corte na primeira fase do vestibular
variaram entre 5.018,7 no ano de 2003, 5.099,8 em 2004 e 5.117,4 no ano de 2005. Já as notas
referentes à segunda fase, variaram entre 5.009,3 no ano de 2003, 5.056,4 em 2004 e 5.089,5
no ano de 2005.
Em estudo publicado no ano de 2007, refletindo sobre o desempenho acadêmico de
estudantes cotistas e não-cotistas da UFBA após a criação do sistema de reserva de vagas no
ano de 2005, Santos e Queiroz afirmaram que dos 57 cursos de graduação da universidade,
em 32 os estudantes cotistas obtiveram notas iguais ou superiores aos estudantes não-cotistas.
Dos 18 cursos mais concorridos da universidade, em 11 os estudantes cotistas obtiveram notas
iguais ou superiores às notas obtidas pelos estudantes não-cotistas. Adicionalmente, afirmam
que, mesmo em cursos de acentuada concorrência e alto prestígio social, como Engenharia
Civil, Química, Geofísica, Ciências da Computação e Arquitetura, o percentual de estudantes
cotistas com coeficiente de rendimento na faixa de 7,6 a 10,00 pontos mostrou-se igual ou
superior ao coeficiente de rendimento obtido pelos não-cotistas. Por fim, concluiram:

Esses resultados confirmam a hipótese do bom desempenho de estudantes negros


oriundos da escola pública, apontados por Queiroz na análise do desempenho de
estudantes no vestibular da UFBA, em 200112, num momento em que a UFBA não
havia implantado o sistema de cotas. Naquele momento, detectava-se a existência de
um elevado contingente (576) de estudantes pretos e pardos, oriundos de escolas
públicas, que tiveram bom desempenho no vestibular, portanto, foram aprovados
para cursos considerados de alto prestígio social, mas não foram classificados “por
falta de vagas”. Os dados sobre o rendimento dos cotistas nos cursos, analisados
acima, demonstram que o sistema de cotas permitiu que estudantes de bom
desempenho acadêmico ingressassem na UFBA; tratava-se de uma demanda
reprimida das escolas públicas que, pelo sistema tradicional, classificatório, não
teriam nenhuma oportunidade na instituição (SANTOS; QUEIROZ, 2007, p. 19).

No ano de 2009, Velloso divulgou os resultados de outra pesquisa sobre desempenho


acadêmico entre estudantes cotistas e não-cotistas, agora entre estudantes da Universidade de
Brasília. Similarmente aos resultados encontrados por Santos e Queiroz (2009) entre os
estudantes da UFBA, Velloso (2009) ressaltou que as observações realizadas evidenciaram
que os desempenhos de estudantes cotistas era igual ou superior ao desempenho dos
estudantes não-cotistas.
135
Na área das Humanidades, a soma das diferenças expressivas que foram favoráveis
aos cotistas, com as diferenças inexpressivas, abrangeu entre 60% e 80% dos cursos
nas três turmas. Na área das Ciências, na turma que ingressou em 2004 a mesma
soma abarcou apenas 30% das carreiras, mas nas turmas dos anos seguintes
compreendeu entre 60% e mais de 80% das carreiras. Na área da Saúde, a soma
envolveu entre mais de 60% e 75% dos cursos. Nas Humanidades e nas Ciências, a
vantagem dos cotistas sobre os não-cotistas concentrou-se em cursos socialmente
menos valorizados, mas isso não ocorreu na área da Saúde. Tomados esses dados
em seu conjunto, em termos de diferenças substantivas no rendimento na
universidade – as que realmente importam – não houve uma sistemática
superioridade dos estudantes não-cotistas, embora assim previssem críticos do
sistema de reserva de vagas (VELLOSO, 2009, p. 641).

Apesar de reconhecer a importância da realização de estudos como os acima citados,


como forma de evidenciar a implausibilidade de argumentos que, de modo determinista,
correlacionam o ingresso de estudantes negros e oriundos de escolas públicas à queda
progressiva da qualidade acadêmica; há outros pontos que, acredito, merecem destaque.
Na minha perspectiva, tão importante quanto os resultados positivos das avaliações de
desempenho de estudantes cotistas, em comparação com o desempenho de estudantes não-
cotistas, é o “consenso relativo” que se construiu em torno da necessidade de realizar
medições quantitativas sobre a performance acadêmica dos estudantes, como meio de testar as
hipóteses sobre simetria ou assimetria da capacidade de desempenho intelectual (medido entre
estudantes negros e brancos e entre estudantes oriundos de escolas públicas e escolas
privadas.
Interessante observar que, ainda que evidenciado o desempenho acadêmico mais
promissor de estudantes cotistas, negros e de escolas públicas, tais avaliações de desempenho
correm o risco de insistir em julgamentos “essencializados”. Ao tomar os desempenhos
acadêmicos, de negros ou brancos, de ricos ou pobres, de moradores do sudeste ou do
nordeste, como medidas da capacidade intelectual dos estudantes (compreendidas como
essências cognitivas), algumas análises perdem uma grande oportunidade de compreender tais
desempenhos acadêmicos como processos social e historicamente construídos.
Em um dos volumes da coleção Educação para todos 75, que reuniu textos dedicados a
refletir o “Acesso e permanência da população negra no ensino superior”, Reis, D. (2007),
com base em entrevistas realizadas com estudantes cotistas da Universidade Federal da Bahia,

75
A coleção “Educação para Todos”, organizada pelo Ministério da Educação (MEC) e pela UNESCO -
Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura, reuniu, a partir do ano de 2009, um
conjunto significativo de estudos sobre a história da educação dos negros no Brasil, sobre a lei 10.639/03 e a
educação antirracista, sobre as Ações afirmativas e o combate ao racismo nas Américas, sobre o acesso e
permanência da população negra no ensino superior brasileiro.
136
revela alguns dos variados significados construídos e reconstruídos sobre o desempenho
acadêmico.

Os estudantes cotistas observam o score global (desempenho acadêmico) como


uma estratégia extremamente importante, pois, à medida que mantêm seus escores
altos estes estudantes têm a possibilidade de se matricular nos primeiros dias e
assim escolher matérias e concentrar os horários em apenas um turno e, deste
modo, conseguem trabalhar ou estagiar no turno oposto. Este é um dado importante
e interessante ao mesmo tempo, porque temos observado as pesquisas
desenvolvidas na UFBA afirmarem que: a média de desempenho dos estudantes
ingressos pelo sistema de reserva de vagas é superior a dos seus colegas ingressos
pelo sistema comum, e a análise realizada esteve sempre centrada em apenas dois
aspectos: I) o de que estes estudantes precisam provar, mais que os outros, a sua
capacidade; e II) que estes estudantes se agarram com todas as forças a esta
oportunidade (REIS, D., 2007, p.60).

A progressiva ampliação de estudos e análises sobre a nova realidade do ensino


superior brasileiro, considerando o novo grupo de estudantes incluídos por meio das políticas
de democratização ou ampliação do ensino superior, tem permitido a alguns pesquisadores (e
poderiam permitir ao campo científico de modo mais abrangente), conhecer um pouco mais
sobre as condições materiais destes novos estudantes, as estratégias utilizadas por eles no
enfrentamento de possíveis dificuldades e sobre as (novas) relações sociais no interior das
comunidades acadêmicas após a entrada deste novo público. Adicionalmente, o ingresso de
um novo “tipo” de estudante, marcado por diferentes experiências de vida, pode se configurar
em uma excelente oportunidade para, entre outras coisas, revisar e ampliar teorias e conteúdos
estabelecidos e naturalizados por inúmeras disciplinas e inúmeros cursos (Ex: Antropologia
dos grupos negros, Etnologia indígena, etc.).
Na sua radicalidade, os movimentos sociais contemporâneos que se mobilizam na
esfera pública e exigem do Estado uma nova postura governamental, que articule políticas de
distribuição com políticas de reconhecimento, tem provocado abalos em alguns dos mais
importantes elementos constitutivos da modernidade: o Estado-nação moderno, suas políticas
universais dirigidas ao homem universal e o conhecimento científico moderno baseado na
racionalidade do homem moderno. As conexões existentes entre estes elementos e as políticas
de ação afirmativa, bem como os impactos que tais políticas têm provocado nestes elementos
serão discutidos nos próximos capítulos.

137
CAPÍTULO 4

4 – Repercussões políticas e cientificas da “Revolução dos Micróbios”

Em 2002, a ascensão eleitoral do Partido dos Trabalhadores (PT) no governo federal


possibilitou a participação do Movimento Negro no plano administrativo e político da nação,
criando uma parceria (ideológico-militante) coerente com a história do partido que sempre
esteve comprometido com as lutas populares. Adicionalmente, essa parceria implicou no
fortalecimento das políticas de ações afirmativas que começaram a ser implementadas,
promovendo acentuada ascensão de intelectuais negros (como funcionários e professores) em
diversas esferas da gestão federal e, principalmente, em diferentes instituições de ensino
superior no Brasil, viabilizando tanto a institucionalização progressiva das mudanças internas
nas estruturas universitárias como a supervalorização da temática em questão.
Em decorrência da progressiva institucionalização do assunto foram inaugurados os
debates sobre relações raciais nas diversas instâncias do Estado. Entretanto, a banalização da
temática étnico-racial somada à implementação dos diferentes programas de Ações
afirmativas nas universidades públicas do Brasil e a criação da Secretaria Especial de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), em 2003, provocou certo refreamento
do ímpeto reivindicatório que, historicamente, havia marcado a atuação comunitária dos
movimentos sociais. Por causa disso, algumas bandeiras do movimento foram incorporadas
ao Estado, se tornando propostas de governo, embora, muitas destas tenham sido confrontadas
com interesses e representações diversas que disputavam legitimidade e prioridade político-
administrativa.
Nesse contexto, verifica-se que a transposição do debate racial do para o público vem
atendendo parte dos objetivos perseguidos pelo movimento antirracista, bem como uma série
de emergências das representações sociais pejorativas (sobre o povo brasileiro e sobre a
população negra) que, até então, estavam restritos aos interesses particulares.
Curiosamente, este período foi marcado pela relação direta entre “causas e
conseqüências.” Na medida em que se incorporavam os debates étnico-raciais na agenda
pública brasileira, as manifestações preconceituosas se tornaram mais freqüentes, registrando-
se casos explícitos de ostentação de preconceito racial quando as discussões se concentraram
nas políticas de reservas de vagas para estudantes negros em instituições de ensino superior.
Deste modo, nem sempre é possível perceber (de modo imediato) a força das representações

138
76
estereotipadas (sobre a população negra no Brasil e a democracia racial ) presentes nos
artigos, comentários e reflexões em torno das políticas de cotas raciais.
Considerando que boa parte das proposições apresentadas historicamente pelas
entidades negras brasileiras (incluindo as políticas de ações afirmativas) tem sido convertida
em políticas de cotas, o campo de debate sobre relações raciais tem se tornado um espaço
privilegiado para reforçar as representações e ações negativas (estereotipadas, depreciativas,
essencializadas, etc.) que giram em torno da população negra brasileira.
77
De acordo com Edna Roland , desde que o governo tornou público o relatório da
Conferência de Durban, no ano de 2001, tudo o que se pautava na mídia sobre a temática
étnico-racial estava correlacionado às cotas para negros nas universidades:

E aí, antes de ir para Durban (...) o pessoal da imprensa vinha falar comigo e só
queria falar sobre cotas. Aí eu falei: ‘Nós somos 45% da população brasileira;
enquanto não formos 45% de todos os espaços que tem nessa sociedade, estão nos
devendo’ (ALBERTI; PEREIRA, 2007, p.391).

Após o Relatório e o Plano de Ação de Durban, o debate que se seguiu, por vezes,
tendia a reduzir todas as demandas apresentadas pelo movimento negro às políticas de cotas;
chegando a desconsiderar o caráter histórico das demandas por educação apresentadas pelos
grupos e entidades negras antes da emergência do Movimento Negro Unificado nos anos
finais da década de 1970. É preciso considerar que tal reducionismo tem causado ampla
frustração em muitos militantes que esperavam uma postura mais enfática, tanto dos governos
quanto das universidades. Segundo Medeiros (2007), a redução do debate é um sintoma da
influência da direita norte-americana que, aos poucos, tem sido incorporada pelos setores
nacionais.

A direita americana botou um rótulo: “Ação afirmativa é cota”. Aí a discussão chega


aqui na periferia e as pessoas imaginam que a ação afirmativa se resuma a cota.
Quando lá, cota é a forma menos usada, até porque, para usar cota, você tem que
atender a uma série de requisitos. Então tudo é ação afirmativa: bolsas de estudos,
programas de formação e de treinamento, reforço escolar. E cada um faz do seu
jeito, não tem uma regra (idem, p.395).

76
Dentre os vários exemplos disponíveis na internet e nas redes sociais, selecionamos o link a seguir:
<http://www.orkut.com/CommMsgs?start=1&tid=5622271598815600789&cmm=883420&hl=pt-BR> Acessado
em 20 de Outubro de 2011.
77
Ver depoimento em Alberti; Pereira (2007).
139
Como estratégia política, reduzir as ações afirmativas às demandas por reparação ou
redistribuição de vagas em instituições de ensino superior ou no mercado de trabalho,
descaracteriza as bandeiras históricas do Movimento Negro. Conforme discutido no segundo
capítulo deste trabalho, desde o inicio do século XX, as demandas apresentadas pelas
organizações e entidades negras (em prol da igualdade de participação nos espaços sociais no
ensino superior, no mercado de trabalho, na mídia, etc.) sempre dialogaram com propostas de
combate à discriminação racial e o pleno reconhecimento humanitário desta parcela da
população que, outrora, foi brutalmente negado pelo sistema escravista e pelas políticas
republicanas se lançando em um terrível “processo coisificante”. Com isso, buscava-se a
confrontação direta do imaginário que vinculava tal população aos micróbios, como discutido
no capítulo anterior 78. Neste sentido, as atuais propostas de políticas de ações afirmativas e,
sobretudo, as políticas educacionais com recorte racial, não se justificariam apenas como
modo de redistribuição financeira na sociedade brasileira, mas, se orientariam,
fundamentalmente, pelo combate a depreciação da condição humana de indivíduos vinculados
a um determinado grupo racial ou vistos como pertencentes a uma determinada raça.
Neste capítulo discutiremos, portanto, alguns dos principais desdobramentos da
“revolução dos micróbios” no campo das políticas educacionais e no campo científico, que
recolocam na agenda de discussões (acadêmicas e políticas) o tema das relações raciais no
Brasil, contribuindo, assim, para atender as emergências do assunto correlacionando-as aos
questionamentos sobre a hegemonia e a exclusividade das políticas universais, bem como a
vitalidade hegemônica do principio de neutralidade axiológica; agonizante há décadas, mas
ainda ativo.

4.1 – Repercussões “da Revolução” no campo das políticas educacionais

No final da década de 1970, o mundo começa a apresentar as suas


modificações: os grandes movimentos sociais, as greves, et. E o MNU
aparece nesse bojo. Para mim, ele veio responder às minhas questões.
A época em que passei no Grupo Palmares, aqui em Porto Alegre, foi

78
De acordo com o Dicionário Caldas Aulete (2007), micróbio SM. Biol. é qualquer organismo unicelular
minúsculo ou um organismo minúsculo causador de doença infecciosa.

140
de constatação e conhecimento, basicamente. Aí quando surgiu o
MNU, quando li a carta de princípios do MNU, eu disse: “Mas é isso
que tem que ser feito no Brasil!”
Helena Machado. Depoimento Histórias do Movimento Negro no
Brasil: Depoimento ao CPDOC, 2007, p. 166-167.

Sem romper com os modelos privados de formação educacional e de conscientização


da população negra, herança da primeira metade do século, as entidades negras vinculadas ao
Movimento Negro Unificado assentaram, a partir a década de 1970, novas bases para a
militância negra no campo educacional. Como destaca Luiz Silva (Cuti)79, o fato de o
movimento ter sido constituído, sobretudo, por estudantes universitários que enfrentavam
sérias dificuldades no interior das universidades (situação também experimentada por
estudantes universitários de vários Estados brasileiros), marcou muito a identidade do
movimento.
Também por isso, o Grupo Negro de São Paulo, criado no interior da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, no ano de 1978, já destacava a necessidade de realizar
um censo com os estudantes da instituição, a fim de conhecer, estatisticamente, o número de
estudantes negros na universidade, os cursos e áreas que mais lhes apeteciam. Consoante, o
programa de Ação do Movimento Negro Unificado, aprovado durante a Convenção de 1982,
na cidade de Belo Horizonte/MG, ratificava a importância de se ampliar à escolarização
formal, reafirmando o compromisso do movimento no combate ao racismo no Brasil.

Entre as estratégias de luta, propunha-se uma mudança radical nos currículos, visando
à eliminação de preconceitos e estereótipos em relação aos negros e à cultura afro-
brasileira na formação de professores com o intuito de comprometê-los no combate ao
racismo na sala de aula. Enfatiza-se a necessidade de aumentar o acesso dos negros
em todos os níveis educacionais e de criar, sob a forma de bolsas, condições de
permanência das crianças e dos jovens negros no sistema de ensino (GONÇALVES;
SILVA, 2000, p.151).

Dada à abertura democrática e a emergência de fortalecimento de grupos sociais


organizados, a educação começou a ser encarada por uma nova óptica, pouco a pouco, “a

79
Luiz Silva, mais conhecido como Cuti, nasceu na cidade de Ourinhos em São Paulo no ano de 1951. Formado
em letras, português-francês, é poeta, ensaísta e escritor. Participou da Jornegro, publicado a partir de 1978,
além de ter contribuído para a fundação dos Cadernos Negros, publicação de contos e poesias, em 1978 e do
Quilombhoje, grupo paulistano de escritores, na década de 1980.

141
escola vai deixando de ser vista como uma dádiva da política clientelística e sendo exigida
como um direito” (Arroyo, 2003).
Nesta perspectiva, a expansão da escola de educação básica, que se observou neste
período e que mereceu um capítulo importante na nova Constituição nacional, não pode ser
compreendida como mero reflexo da exigência do mercado por qualificação, ou como
resultado das preocupações humanitárias das elites nacionais; mas como resultado, mesmo
que indireto, da intensificação das pressões populares e, sobretudo, das pressões dos
movimentos sociais organizados. Deste modo, as décadas de 1980 e 1990 se destacaram como
momento da guinada educacional no país, possibilitando a alteração das representações
hegemônicas acerca do acesso à escolarização formal, rompendo com um imaginário que
concebia a educação como privilégio de poucos, rumo a uma compreensão da educação como
um direito individual e coletivo.
Refletindo sobre as novas proposições apresentadas pelo movimento negro ao governo
brasileiro, no campo educacional e no trato das questões étnico-raciais, a partir da década de
1970, Consentino (2005) afirma que...

... essas problematizações trouxeram para a educação o questionamento do discurso e


da prática homogeneizadora que desprezaram as singularidades e as pluralidades
existentes entre os diferentes sujeitos presentes no cotidiano escolar. Ao exigir
reconhecimento e tentar dar visibilidade a uma identidade racial negra, o movimento
negro, a partir da década de 1970, colocou em discussão os fundamentos da
democracia racial elaborada e permanente reelaborada desde o inicio do século XX
pela elite brasileira (idem, p.113).

De acordo com a autora, o diagnóstico dos processos de elaboração da Constituição


Federal, de 1998, e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1996, levando em conta a
participação ativa do movimento negro na elaboração de seus conteúdos, possibilitaria o
surgimento de novos entendimentos sobre as referidas leis, geradas num contexto de acirradas
disputas entre antagônicos projetos de educação e de sociedade.
Do ponto de vista do movimento negro, no âmbito da “Subcomissão de negros,
populações indígenas, pessoas deficientes e minorias”, a educação foi eleita como temática
prioritária. Por isso, a reivindicação apresentada à Assembléia Nacional Constituinte (ANC)
exigia que...

... a proposta (do) texto da Constituição Federal de 1988 afirmasse o compromisso da


educação com o combate ao racismo e todas as formas de discriminação, com a
valorização e respeito à diversidade assegurando a obrigatoriedade do ensino de
142
história das populações negras do Brasil, como uma das condições para o resgate de
uma identidade étnico-racial e a construção de uma sociedade plurirracial e
pluricultural (idem, p.5).

Apesar das reivindicações apresentadas pelo movimento negro, o que evidencia o


empoderamento político dos membros das entidades negras, pelo menos se compararmos ao
período em que a população negra estava juridicamente colocada em uma situação análoga a
“micróbios”, a existência de grupos orientados por concepções divergentes (sobre a nação,
sobre as relações raciais e sobre o papel da educação na constituição da sociedade brasileira),
exerceram influências desproporcionais sobre a ANC, o que nos ajuda a compreender as
progressivas mudanças que a proposta inicialmente apresentada pelo movimento negro sofreu
até a edição do texto da Constituição de 1988 (CFB/88).
Os diferentes artigos discutidos nos distintos momentos da ANC, e expostos no
QUADRO 1, evidenciam as diferentes concepções em disputa e as progressivas mudanças na
redação.

QUADRO 1
Proposta inicial de inserção na Constituição da
“História das Populações Negras do Brasil” e alterações subseqüentes
Anteprojeto da Subcomissão dos negros, populações indígenas, pessoas deficientes e minorias.
Art. 4º A educação dará ênfase à igualdade dos sexos, à luta contra o racismo e todas as formas de
discriminação, afirmando as características multiculturais e pluriétnicas do povo brasileiro.
Art. 5º O ensino de “História das Populações Negras do Brasil” será obrigatório em todos os níveis da
educação brasileira, na forma que a lei dispuser.
Anteprojeto da Comissão Temática da Ordem Social
Art. 85 º O poder público reformulará, em todos os níveis, o ensino de história do Brasil, com o objetivo de
contemplar com igualdade a contribuição das diferentes etnias para a formação multicultural e pluriétnica do
povo brasileiro.
Comissão de Sistematização – Constituição Federal de 1988
Art. 242 º O ensino de história do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e étnicas
para a formação do povo brasileiro.

Fonte: CONSENTINO, 2005, p. 6.

Como se observa nas diferentes redações acima, o viés pedagógico e anti-racista da


proposta apresentada pelo movimento negro foi se esvaziando aos poucos. Apesar do caráter
inovador no campo das relações étnico-raciais, ao promover a criminalização do racismo e a
defesa da igualdade formal (sem fazer acepções de raça, gênero, etnia ou culto religioso), a
143
redação final do Artigo 242 conservou no texto da Constituição de 1988, a marca distintiva do
pensamento social brasileiro da década de 1930: “o desejo de construir uma nação sem
distinções raciais”. Vinte anos após a promulgação da Constituição, este paradoxal desejo: de
eliminar o racismo e as diferenciações raciais, traria sérias implicações, políticas e jurídicas,
para a sociedade brasileira, cujas reflexões faremos no quinto e no sexto capítulo.
Sobre o processo constituinte, Consentino (2006) afirmou que a justificativa
apresentada para retirar a proposta inicial do movimento negro do texto constitucional foi a de
que “se tratava de uma questão muito particular, e deveria ser abordada em legislação
complementar específica”. Entretanto, verifica-se que a legislação específica (Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional) levaria oito (longos) anos, entre a tramitação na
Câmara dos Deputados e no Senado Federal, para ser aprovada. Não há como negar que a
LDB representou avanços significativos no campo educacional, entretanto, no que se referem
à temática racial os avanços foram quase imperceptível.
É interessante observar que mesmas respostas utilizadas para justificar as resistência
às propostas apresentadas pelo movimento negro, no contexto da Constituinte, ressurgiram no
processo de elaboração da LDB. Deste modo, a redação final do artigo referente aos
conteúdos curriculares para a educação fundamental, explicitada no QUADRO 2, expressava
a necessidade de garantir uma base nacional comum para a educação, “sem particularismos”.

QUADRO 2
Artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação brasileira de 1996
Art. 26º. Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum, a ser
complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida
pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela.
§ 1º. Os currículos a que se refere o caput devem abranger, obrigatoriamente, o estudo da língua
portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e
política, especialmente do Brasil.
§ 2º. O ensino da arte constituirá componente curricular obrigatório, nos diversos níveis da educação
básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos.
§ 3º. A educação física, integrada à proposta pedagógica da escola, é componente curricular da
Educação Básica, ajustando-se às faixas etárias e às condições da população escolar, sendo
facultativa nos cursos noturnos.
§ 4º. O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias
para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e européia.
§ 5º. Na parte diversificada do currículo será incluído, obrigatoriamente, a partir da quinta série, o
ensino de pelo menos uma língua estrangeira moderna, cuja escolha ficará a cargo da comunidade
escolar, dentro das possibilidades da instituição.
Fonte: Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, 1996.

144
Ao manter, praticamente, a mesma redação do inciso 1º do art. 242 da Constituição
Federal, o inciso 4º do artigo 26 da LDB expressou a vitalidade das representações sociais em
torno do Mito Fundacional da Nação, baseado no “equilíbrio de antagonismos” das diferentes
culturas e etnias que formaram o povo brasileiro. Nem mesmo a pequena modificação que a
LDB apresentou em relação à redação presente no artigo 242 da Constituição, enfatizando as
contribuições das matrizes indígena, africana e européia, fez-na destoar da concepção
hegemônica sobre as relações raciais no Brasil. Ainda assim, Consentino (2006) considera
que a pequena alteração na redação do artigo 26 da LDB, fruto das pressões do movimento
social negro, deve ser vista como uma conquista (ainda que tímida) do movimento negro, na
medida em que representou o reconhecimento da contribuição da matriz africana para a
formação do povo brasileiro.
Como procurei mostrar nos capítulos anteriores, as preocupações com o
reconhecimento das contribuições da população negra para a formação do povo e do Estado
brasileiro não são recentes, sendo possível identificá-las entre as reivindicações da Frente
Negra Brasileira e de vários representantes negros no legislativo brasileiro, tais como:
Joaquim Beato, Abdias do Nascimento, Paulo Paim, Benedita da Silva e Ben-Hur Ferreira.
Entretanto, seria preciso aguardar o dia 9 de Janeiro do ano de 2003, quando o recém
empossado Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva, sancionaria a Lei 10.639, que
alteraria a LDB-9.394/03 determinando a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura
africana e afro-brasileira para que a ação civilizacional que o continente africano, e seus
descendentes na diáspora, exerceram sobre o Brasil passasse a ser reconhecida pelo Estado
brasileiro.
O depoimento concedido por Edison Cardoso no livro Histórias do Movimento Negro
no Brasil: depoimentos ao CPDOC é bastante esclarecedor sobre os bastidores da elaboração
e propositura do projeto que se transformaria na lei 10.639/03. Segundo o depoente, apesar de
ter ficado conhecido como propositura da deputada Esther Grossi, filiada ao PT/RS, e do
deputado Ben-Hur Ferreira, filiado ao PT/MT, o projeto teria sido entregue pelo Movimento
Negro de Pernambuco ao então deputado federal Humberto Sérgio Costa Lima, durante seu
mandato entre os anos de 1995 a 1999. Como o deputado Humberto Costa não se reelegeu, o
projeto foi arquivado. Atuando como chefe de gabinete do deputado federal Ben-Hur Ferreira,
Edison Cardoso teria aconselhado o político a retomar o referido projeto e reapresentá-lo a
Câmara. Após deliberarem sobre o assunto, Édison Cardoso teria procurado a deputada Esther
Grossi que havia apresentado uma emenda ao projeto na Comissão de Educação.

145
A emenda era o seguinte: o projeto chegou originalmente como “disciplina”, só que,
com a Lei de Diretrizes e Bases, a LDB, o Congresso não pode mais aprovar
disciplinas para introduzir currículos, aprovam-se “conteúdos”. Ela fez, então, a
modificação para “conteúdos”. (...) Então fui procurá-la – isso é trabalho do chefe do
gabinete. Ela estava andando e continuou andando. Eu falando para ela que íamos
apresentar o projeto e, como ela tinha apresentado a emenda, a gente ia apresentar
junto, Ben-Hur e Esther Grossi. Ela disse: “Tudo bem”. Foi andando e não deu a
mínima para o assunto. Assim fizemos: reapresentamos o projeto e é esse projeto, com
assinaturas, que vai tramitar e que vai virar a Lei 10.639, em 2003, que acabou vindo
como um projeto de lei dos deputados Esther Grossi e Ben-Hur Ferreira (CARDODO,
É. Apud ALBERTI; PEREIRA, 2007, p.431).

A partir da data da publicação da lei 10.639, a LDB de 1996 passou a vigorar


acrescida de três artigos, o 26-A, o 79-A e o 79-B, como mostra o QUADRO 3.

QUADRO 3
Artigos 26-A, 79-A e 79-B incluídos na LDB
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o
ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1° O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da
África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da
sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política
pertinentes à História do Brasil.
§ 2° Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo
o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.
§ 3° (VETADO)80
Art. 79-A. (VETADO)81
Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra.
Fonte: Lei de Diretrizes e Base da Educação (Brasil, 1996).

Apesar de seu caráter sucinto (com apenas três artigos), a Lei 10639/03 repercutiu de
modo significativo no campo das relações étnico-raciais no Brasil e, sobretudo, para o
contexto das práticas pedagógicas escolares. No entanto, aqui, importa não perder de vista o
fato de que, ao alterar a LDB, a lei 10639/03 passa a fazer parte das Diretrizes Brasileiras para
a educação fundamental, não se restringindo a uma lei específica como argumentavam os

80
A redação original que foi submetida a veto era “§ 3o As disciplinas "História do Brasil" e "Educação
Artística", no ensino médio, deverão dedicar, pelo menos, dez por cento de seu conteúdo programático anual ou
semestral à temática referida nesta Lei.”. Para ler a justificativa do veto, acessar:
http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/LEIS/Mensagem_Veto/2003/Mv07-03.htm
81
A redação original que foi submetida a veto era “Art. 79-A. Os cursos de capacitação para professores deverão
contar com a participação de entidades do movimento afro-brasileiro, das universidades e de outras instituições
de pesquisa pertinentes à matéria”. Para ler à justificativa do veto, acessar:
http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/LEIS/Mensagem_Veto/2003/Mv07-03.htm

146
legisladores no momento da Assembléia Constituinte de 1988 ou de preparação da LDB em
1996. De acordo com Hédio Silva, a inclusão da História da África nos currículos escolares
se conecta, enfim, a missão que a educação formal deveria perseguir.

A LDB descreve os objetivos da educação nos sistemas educacionais, e a lei 10.639


vai lá e altera dois artigos, uma parte de um conjunto de aproximadamente cem
artigos, que é o que a LDB tem. Então, você tem a impressão de que se trata de uma
reivindicação para que sejam incorporados os elementos da história da África e dos
afro-brasileiros na disciplina história, quando, na verdade, se trata da reivindicação
que o movimento negro sempre teve (...) preparar a escola pública e o ensino privado
no Brasil para dialogar com a diversidade, para estancar a hostilidade racial que
freqüentemente vitimiza adolescentes e crianças negras nas escolas (SILVA, H. Apud
ALBERTI; PEREIRA, 2007, p.432).

Em estudo recente sobre o processo de implementação da lei 10.639 no interior de


escolas públicas brasileiras, em cumprimento da LDB, Gomes, N. (2011) revelou que as
atividades pedagógicas para a instituição desta lei, têm sido desenvolvidas em meio a
inúmeras contradições, tanto de ordem administrativo-burocráticas quanto de ordem ético-
teórico-metodológica. A constatação de que boa parte dos trabalhos desenvolvidos nestas
instituições escolares fundamentava-se apenas, ou prioritariamente, no conteúdo da referida
lei (cujo caráter sucinto, não oferece orientações pedagógicas aos educadores) coloca em risco
a eficácia desta legislação no que se refere às modificações nos padrões de relações étnico-
raciais atualmente vigentes no país. É importante salientar, todavia, que tais distorções se
devem mais a permanência de representações sociais estereotipadas sobre o continente
africano e sobre os afro-brasileiros no interior da sociedade brasileira e dos currículos
escolares, do que à ausência de referenciais teóricos e didáticos sobre a temática.
Neste sentido, a elaboração das Diretrizes Nacionais de 2004 (a partir de consultas a
diversos intelectuais, ativistas e acadêmicos relacionados a esta temática), que trata da
educação das relações étnico-raciais, foi concebida como meio de contribuir, tanto na
alteração das representações sociais estereotipadas quanto na modificação dos padrões
vigentes de relações raciais.

A obrigatoriedade de inclusão de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nos


currículos da Educação Básica trata-se de decisão política, com fortes repercussões
pedagógicas, inclusive na formação de professores. Com esta medida, reconhece-se
que, além de garantir vagas para negros nos bancos escolares, é preciso valorizar
devidamente a história e cultura de seu povo, buscando reparar danos, que se repetem
há cinco séculos, à sua identidade e a seus direitos. A relevância do estudo de temas
decorrentes da história e cultura afro-brasileira e africana não se restringe à população
negra, ao contrário, dizem respeito a todos os brasileiros, uma vez que devem educar-
147
se enquanto cidadãos atuantes no seio de uma sociedade multicultural e pluriétnica,
capazes de construir uma nação democrática. É importante destacar que não se trata de
mudar um foco etnocêntrico marcadamente de raiz europeu por um africano, mas de
ampliar o foco dos currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social e
econômica brasileira (BRASIL, 2005).

Conforme salientou Gomes, N. (2010), por se tratar de uma política inscrita na LDB,
dirigida a todos os estudantes brasileiros, impactando diretamente em seus conhecimentos e
suas representações sociais sobre a África e sobre os afrodescendentes no Brasil, “a lei
10.639/03 deve ser compreendida como uma política universalista”. Entretanto, face ao seu
propósito pedagógico em afirmar positivamente uma determinada identidade coletiva
(historicamente depreciada), a lei pode ser compreendida como uma política afirmativa,
conforme se identifica no texto das Diretrizes: “pedagogias de combate ao racismo e a
discriminações elaboradas com o objetivo de educação das relações étnico/raciais positivas
têm como objetivo fortalecer entre os negros e despertar entre os brancos a consciência negra”
(Brasil, 2005, p. 16), ao oferecer para os estudantes negros, conhecimentos e segurança para
orgulharem-se da sua origem africana; e para os estudantes brancos, possibilidades de
identificar às influências, as contribuições, a participação e a importância da história e da
cultura dos negros no seu jeito de ser, viver, de se relacionar com as outras pessoas, sobretudo
as negras.
Trata-se, portanto, não de uma política dirigida exclusivamente à população
afrodescendente no Brasil; mas, de uma política que, reconhecendo as diferenças étnico-
culturais que constituem o povo e a nação brasileira, possibilite a superação do processo de
invisibilização destas diferenças, bem como do processo de reprodução das desigualdades
sociais e raciais entre os diferentes grupos étnico-raciais brasileiros. Em outras palavras, a
novidade política e epistemológica que a lei 10.639/03 e as políticas de reservas de vagas para
estudantes negros em instituições de ensino superior trazem para o debate e para a luta
política anti-racista no Brasil é, justamente, a articulação entre demandas por reparações,
reconhecimento e ações afirmativas em favor da população negra.
Como visto no primeiro capítulo deste trabalho, a guinada epistemológica
possibilitada por Gilberto Freyre, na década de 1930, impactou, visceralmente, as políticas
educacionais colocadas em prática, desde então. Naquela época, uma das características mais
marcantes das políticas educacionais (orientadas por uma preocupação comum de construir
e/ou fortalecer a unidade nacional) foi à negação da tradição intelectual e política precedente,
que utilizava o critério racial (de fundo biológico) como modo de explicar a sociedade
148
brasileira. Com a reorganização do movimento negro, no final da década de 1970, e a adoção
de um caráter mais propositivo no campo das políticas públicas, o discurso racial ressurge
confrontando-se com a resoluta negação do estatuto cientifico de raça.
82
Chamados de racialistas por aqueles que se intitulam antirracialistas , o movimento
negro, a partir de então, passou a demandar do Estado a implementação de políticas com
recorte racial, desestabilizando radicalmente os modos consagrados de pensar e construir,
tanto as políticas públicas quanto a própria nação. Com isso, a ampla rede de indivíduos e
entidades alinhadas a uma agenda antirracista, não reivindicam apenas justiça social, baseada
no principio de igualdade formal, mas incorporam em suas bandeiras de reivindicação
demandas por reparações, reconhecimento e ações afirmativas para a população negra.
Ao se opor visceralmente às demonstrações de racismo na sociedade brasileira e,
particularmente, nos sistemas educacionais, o movimento negro contemporâneo radicaliza sua
luta pelo reconhecimento da dignidade humana da população negra, que, de modo direto, se
vincula às lutas pelo reconhecimento da diversidade humana. Logo, reconhecer que a espécie
humana é diversa, não apenas em suas características fenotípicas, mas também nos modos
culturais, religiosos, econômicos, sexuais, etc. de ser e viver, implica em questionar o modelo
de humanidade universal que, estabelecido como a norma, designa – subrepticiamente – os
diversos como a-normais e/ou não-humanos.
Neste contexto, o progressivo estabelecimento de políticas com recorte racial em prol
da população negra (lei 10.639/03, políticas de reservas de vagas no ensino superior, políticas
de reservas de vagas nos veículos de comunicação, bolsas de estudos para candidatos a
carreira diplomática 83, etc.), tem radicalizado a noção liberal de justiça social, ao pressionar o
Estado brasileiro a reconhecer as características multi-étnicas e pluriculturais de seu povo.

82
O Blog Non-race é hoje o principal espaço aberto de discussões em torno não-racialização do Brasil. De
acordo com o moderador do Blog: “Este é um blog destinado à defesa de duas idéias inseparáveis”. A
primeira: o racismo é uma chaga intolerável, que diminui e desumaniza os seres humanos. A segunda: a doutrina
racialista, expressa no projeto de criação de leis raciais, degrada a democracia, oficializa o mito da raça e,
voluntariamente ou não, estimula o racismo. Nossas idéias estão expostas em dois documentos que inspiraram à
criação deste blog: a Carta Pública ao Congresso Nacional de 30 de maio de 2006 (veja aqui) e a carta ao STF
intitulada Cento e Treze Cidadãos Anti-racistas Contra as Leis Raciais, de 21 de abril de 2008(aqui). Esta carta
teve a adesão de mais de 4 mil pessoas, cuja lista nominal está disponível aqui.
83
Lançado em 2002, o Programa de Ação Afirmativa do Instituto Rio Branco – Bolsa Prêmio de Vocação para a
Diplomacia foi instituído com a finalidade de proporcionar maior igualdade de oportunidades de acesso à
carreira de diplomata e de acentuar a diversidade étnica nos quadros do Itamaraty. Trata-se de iniciativa pioneira
e original, que procura investir na capacitação de candidatos afro-descendentes à carreira de diplomata, por meio
de concessão de bolsas de estudos, com duração de dez meses, destinadas a custear cursos e aulas preparatórios
ao Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata, além da aquisição de livros e material didático. É
desenvolvido em parceria com o CNPq(Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e com
149
Neste sentido, as demandas contemporâneas apresentadas pelos movimentos sociais
por educação não podem ser reduzidas a demandas de acesso a uma escolarização
mercantilizada, tomada como investimento ou capital humano capaz de facilitar o ingresso ao
mercado de trabalho cada vez mais competitivo Arroyo (2003). Para ele, as demandas por
educação precisam ser vistas como reivindicações pelo acesso a uma pluralidade de direitos: a
saúde, a moradia, a terra, o teto, a segurança, a proteção da infância, a cidade. Creio que
devem ser vistas também como demandas por reconhecimento de sua existência e de sua
participação na história da humanidade. Não por acaso, o texto das Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana (2005), que orienta a regulamentação da alteração trazida
à Lei 9394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, pela Lei 10639/2003 que
estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana,
evidencia a importância e coloca as políticas de reparações (redistribuição socioeconômica) e
as políticas de reconhecimento no mesmo patamar de importância no propósito de alterar a
realidade das relações raciais no Brasil.
O parecer procura oferecer uma resposta, entre outras, na área da educação,
à demanda da população afrodescendente, no sentido de políticas de ações
afirmativas, isto é, de políticas de reparações, e de reconhecimento e
valorização de sua história, cultura, identidade. Trata, ele, de política
curricular, fundada em dimensões históricas, sociais, antropológicas
oriundas da realidade brasileira, e busca combater o racismo e as
discriminações que atingem particularmente os negros. Nesta perspectiva,
propõe à divulgação e produção de conhecimentos, a formação de atitudes,
posturas e valores que eduquem cidadãos orgulhosos de seu pertencimento
étnico-racial - descendentes de africanos, povos indígenas, descendentes de
europeus, de asiáticos – para interagirem na construção de uma nação
democrática, em que todos, igualmente, tenham seus direitos garantidos e
sua identidade valorizada (MEC, 2005, P. 10).

4.2 – Repercussões “da Revolução” no campo científico

A maior força política desse país ainda continua sendo o movimento


negro e de mulheres negras. Lutou adversamente vários séculos.
Nunca teve apoio da intelectualidade brasileira, no sentido de ajudar
a estruturar teoricamente a luta contra o racismo – foram muito
poucos. Não teve dinheiro de ninguém, nem da igreja, nem do estado.

a participação da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial e da Fundação Cultural Palmares.

150
O pouco recurso que tem, nós trabalhamos para poder arrancar.
Nunca vi nenhum intelectual de esquerda, exceto Florestan
Fernandes, dizer: “Eu sou contra o racismo e minha vida vai ser
dedicada à luta contra o racismo”.
Lúcia Xavier. Depoimento Histórias do Movimento Negro no
Brasil: Depoimento ao CPDOC, 2007, p. 419.

No início do século XX, as reivindicações por ingresso e permanência da população


negra nos sistemas educacionais ocupavam papel de destaque na agenda e nas ações políticas
das entidades negras. No caso do Teatro Experimental do Negro, por exemplo, as tentativas
de estabelecer alianças com pesquisadores e cientistas sociais da década de 1950 estavam
orientadas pela preocupação em encontrar formas de atuar no campo cultural e educacional,
vistos como espaços crivados por conflitos, mas repleto de possibilidades.
Os membros do TEN tinham consciência de que a empresa do teatro era utópica, posto
que fosse impossível efetivar a revisão profunda das teorias da cultura sem apoio das
instituições universitárias e dos centros de pesquisa. E inevitavelmente era a reflexão: Em
nome de que os intelectuais brasileiros colocariam em xeque seus saberes, construídos em
centros universitários de prestígio? Seria preciso, portanto, aguardar o alvorecer da década de
1980 e o ingresso, ainda que tímido, de alguns estudantes engajados com a bandeira da
igualdade racial e com as bandeiras de luta dos movimentos sociais de caráter identitário, para
que as estruturas educacionais públicas (especialmente as universitárias) fossem confrontadas
com as bandeiras e as reivindicações multiculturais visando atender as demandas específicas
de alguns grupos (mulheres, indígenas, gays, lésbicas, pessoas do campo, pessoas com
deficiência).
De maneira ainda muito marginal e sem representar forte ameaça às teorias
hegemônicas da cultura, estes intelectuais da primeira geração dos movimentos
reivindicatórios começaram a denunciar (no interior das instituições universitárias) as
dimensões políticas presentes nos processos de produção científica. De acordo com Gomes,
N. (2003), a explicitação das dimensões políticas do fazer científico, que se auto-proclama
neutro e, portanto, apolítico, ocorre porque “enquanto (os intelectuais negros) produzem
conhecimento eles também se inserem politicamente na luta anti-racista e desafiam a
universidade e os órgãos do Estado a implementarem políticas afirmativas. São, portanto,
intelectuais engajados”. Ao tematizarem as tensões e as ambigüidades das relações raciais
brasileiras no interior do ambiente acadêmico, estes intelectuais negros tensionam o campo
acadêmico, ao mesmo questionar, de modo direto e indireto, um dos pilares centrais da
ciência moderna: a neutralidade cientifica.
151
Assim, ao tematizarem as tensões e ambigüidades das relações raciais brasileiras no
interior do ambiente acadêmico, estes pensadores tensionam e provocam o campo acadêmico
a se repensar, na medida em que questionam, visceralmente, um dos pilares centrais da
ciência moderna: a pretensa a neutralidade científica. De acordo com Gomes, N. (2003),

a explicitação destas políticas sobre o fazer científico (que se autoproclama neutro e,


portanto, apolítico) ocorre, simultaneamente, a produção destes pensadores. Num
movimento harmônico, na medida em que os intelectuais negros produzem
conhecimento, os mesmos se inserem politicamente na luta antirracista e desafiam a
universidade e os órgãos do Estado à implementação das políticas afirmativas.
Concluindo-se, então, que se trata de “intelectuais engajados”.

De fato, não foram os intelectuais negros os primeiros, e nem mesmo os únicos, a


formularem críticas ao principio de neutralidade cientifica no interior do campo acadêmico.
Todavia, o fato de sua pesquisas serem desenvolvidas por sujeitos historicamente tratados
como o “outro antropológico”, confere às essas investigações um caráter ainda mais
emblemático.
Segundo Santos (2004), os movimentos por Ações Afirmativas, que ora presenciamos
no Brasil, estão no bojo de ações reivindicatórias mais abrangentes pela democratização do
acesso ao ensino superior no mundo inteiro. Eles colocam em questão a legitimidade das
estruturas constitutivas dos sistemas universitários, em seus sistemas de ingresso baseados na
meritocracia liberal e em seus currículos com forte acento racionalista e eurocêntrico. Do
mesmo modo, evidenciam o contexto delicado pelo qual passa a ciência ocidental moderna
que, contemporaneamente, se converteu na principal produtora e disseminadora de
conhecimento sobre nossa realidade. . Neste sentido, o ingresso de intelectuais negros em
diferentes instituições de ensino, resultado parcial das lutas pela conquista e afirmação do
direito básico de existir e de se expressar nos espaços públicos, ao mesmo tempo em que
explicita a existência de inovadoras demandas socioeconômicas, culturais e identitárias da
população negra, tensiona os modos hegemônicos de funcionamento da ciência moderna, ao
questionarem – agora do interior das estruturas acadêmicas – o lugar de “objetos de pesquisa”
(de micróbios) historicamente reservado a eles.
Referindo-se as disputas travadas no interior do campo científico, Santos (2004)
argumenta que os questionamentos acerca da legitimidade da ciência moderna só puderam
emergir, no final do século XX, em função das crises vivenciadas pelas instituições de ensino
superior em todo o mundo. Para ele, a dissociação crescente entre produção científica e a

152
produção da felicidade (ou do desenvolvimento das virtudes humanas) estaria na raiz das
84
crises enfrentadas pelas universidades, e em particular, da Crise de Legitimidade ; pois, ao
mesmo tempo em que observamos um notável avanço do conhecimento científico em várias
esferas da vida, também observamos uma notável concentração, tanto do conhecimento
quanto do usufruto destes conhecimentos nas mãos de poucos. Em função disso, cerca de
duzentos e cinqüenta anos depois de Jean Jacques Rosseau ter formulado questões essências
acerca das relações existentes entre ciência e felicidade, somos levados, pela pressão dos
fatos, a reatualizar suas idéias 85.

Estamos de novo regressados à necessidade de perguntar pelas relações entre a


ciência e a virtude, pelo valor do conhecimento dito ordinário ou vulgar que nós,
sujeitos individuais ou coletivos, criamos e usamos para dar sentido às nossas
práticas e que a ciência teima em considerar irrelevante, ilusório e falso; e temos
finalmente de perguntar pelo papel de todo o conhecimento científico
acumulado no enriquecimento ou no empobrecimento prático das nossas
vidas, ou seja, pelo contributo positivo ou negativo da ciência para a nossa
felicidade (SANTOS, 2004, p.18 – Grifo nosso).

Para Santos (op. cit.), o paradigma dominante da ciência ocidental moderna tem se
constituído como um espaço privilegiado de desperdício de experiências de muitos sujeitos
sociais e, principalmente, dos grupos sociais aos quais eles se vinculam. Segundo ele, todas
aquelas experiências, vivenciadas por indivíduos e grupos sociais, que não podem ser, ou
simplesmente não são, expressas através de caracteres matemáticos, se tornam indignas de
subsidiar a produção de conhecimentos. Em contraposição, a capacidade de quantificar torna-
se uma exigência da produção do conhecimento de excelência, já que tal conhecimento
possibilitaria, não apenas a compreensão, mas também a dominação e a transformação do

84
Segundo Santos, apesar do impacto das três crises (de hegemonia, de legitimidade e institucional) na
configuração atual das instituições de ensino superior, será a Crise de Legitimidade que nos ajudará a
compreender um pouco melhor a emergência dos debates sobre democratização do ensino superior em vários
países do mundo e, em particular, os debates sobre Ações Afirmativas no Brasil. “A segunda crise (vivida pela
universidade) era a de Legitimidade provocada pelo fato da universidade ter deixado de ser uma instituição
consensual, em face da contradição entre a hierarquização dos saberes especializados através das restrições de
acesso e da credenciação das competências, por um lado, e as exigências sociais e políticas da democratização da
universidade e da reivindicação da igualdade de oportunidades para os filhos das classes populares, por outro”
(SANTOS, 2004, p.5-6).
85
Em seu Discurso sobre as Ciências e as Artes, escrito em 1749 e que conquistou em 1750 o prêmio da
Academia de Dijon, Jean Jacques Rosseau se pergunta se o progresso das ciências e das artes contribuirá para
purificar ou para corromper os nossos costumes? A grande questão colocada é: o homem, ao deixar seu estado de
natureza, com toda a sua probidade, honradez, força e energia para se dedicar às ciências e às artes não teria se
corrompido no que possuía de mai puro?

153
real. O estabelecimento da ordem (aplicada ao pensamento e as sociedades) torna-se, ao
mesmo tempo, um pré-requisito e uma conseqüência do desenvolvimento deste modelo
hegemônico de ciência moderna que, de modo obsessivo, busca o estabelecimento de leis
gerais de funcionamento do mundo natural e social.
De acordo com Santos (2007), o fortalecimento progressivo de outros modos de
explicar o mundo, que por muito tempo foram tratados como inexistentes, por aqueles
vinculados à perspectiva cientifica descrita anteriormente, teria favorecido a emergência de
questionamentos da hegemonia do conhecimento científico moderno, por parte daqueles que
(impregnados de um tipo de conhecimento gestado no interior de processos sociais
cotidianos) se inserem lentamente no campo científico e se apropriam de teorias e métodos
científicos hegemônicos, contra-hegemônicos e não-hegemônicos. Paradoxalmente, a inserção
progressiva destes sujeitos no campo científico tende a confrontá-los com uma aparente
contradição; pois ao mesmo tempo em que questionam e criticam os discursos científicos
“desperdiçadores de experiências sociais” - as “Monoculturas do Saber”, o fazem (ou se
propõem a fazer) a partir de teorias e métodos científicos. Todavia, ante a esta contradição, os
sujeitos oriundos dos diferentes movimentos sociais questionadores da proeminência do atual
modelo científico de compreender e organizar o mundo, ao invés de se resignarem, têm se
dedicado a pressionar as estruturas e os produtores do conhecimento científico a
reconhecerem a existência e a legitimidade de outros saberes sobre o mundo.

Como o conhecimento científico não se encontra distribuído de uma forma


socialmente eqüitativa, as suas intervenções no mundo real tendem a ser as que
servem os grupos sociais que tem acesso a este conhecimento. Em ultima instancia,
a injustiça social assenta na injustiça cognitiva. No entanto, a luta por uma justiça
cognitiva não terá sucesso se basear apenas na idéia de uma distribuição mais
equitativa do conhecimento científico. Para além do facto de tal distribuição ser
impossível nas condições do capitalismo global, o capitalismo tem limites
intrínsecos em relação ao tipo de intervenção que promove no mundo real. (...) Na
ecologia de saberes, a busca de credibilidade para os conhecimentos científicos não
implica o descrédito do conhecimento científico. Implica simplesmente, a sua
utilização contra-hegemônica. Trata-se, por um lado, de explorar praticas cientificas
alternativas que se tem tornado visíveis através das epistemologias pluralistas das
praticas cientificas e, por outro lado, de promover a interdependência entre os
saberes científicos, produzidos pela modernidade ocidental, e outros saberes, não
científicos (SANTOS, 2007, p.87-88).

Vale ressaltar que tais questionamentos e às tentativas de utilização contra-


hegemônica destes “saberes científicos” não têm tido boa recepção no cenário acadêmico.
Questionamentos como os apresentados por Souza (2006) (ou aqueles realizados de modo

154
não-verbal e explicitados no decorrer das práticas de pesquisa pouco ortodoxas) têm sido
rotulados, de modo recorrente, como não-científicos (derivados de interesses políticos).
De acordo com Amilcar Baiardi (professor da Universidade Federal do Recôncavo
Baiano), Boaventura de Souza Santos seria um dos representantes do movimento que tem
acusado à Ciência e a Tecnologia de serem obscurantistas, intolerantes em termos religiosos e
políticos, e de não apresentar soluções para determinados problemas contemporâneos. Além
disto, Boaventura de Souza Santos, juntamente com outros intelectuais e membros de grupos
sociais, é acusado de utilizar a ciência como uma espécie de “bode expiatório” para “as crises
de fim e de início de século, potencializadas pela angústia e o sentimento de tédio nas
sociedades mais abastadas”.

Curiosamente, estas tendências recentes são: a manifestação do velho (e não tem


acolhida nos países líderes da produção científica) e nem menos nas universidades
que mais se destacam no mundo. São, de fato, manifestações marginais que
terminam por ser acolhidas por quem também não se destaca na ciência,
encontrando aí um pretexto para sua inexpressividade. (...) Não se trata de uma
crítica como as feitas por Karl Popper ou Ilya Prigogine contra a arrogância do
positivismo e em favor do racionalismo crítico. Trata-se sim de um pronunciamento
de quem tem inveja e despeito da notoriedade dos verdadeiros cientistas. (...)
Malgrado o domínio que tem da retórica, BSS foi desacreditado por um conterrâneo
seu, Antonio Manuel Baptista em dois dos seus livros (Crítica da Razão Ausente,
2004 e O Discurso Pós-Moderno Contra a Ciência: Obscuridade e
Irresponsabilidade). Nestas obras, Baptista condena à retórica defendendo a teoria e
a experiência, mostra que a ciência não é uma convenção social, ridiculariza a
curiosa “ciência” de BSS, classifica seus trabalhos como um deserto de argumentos
salpicados de insultos e por fim define e diferencia a impostura e a fraude na
ciência, colocando BSS no meio delas 86.

De acordo com Blood (2009), uma das formas possíveis de fugir de armadilhas
maniqueístas, que tendem a opor conhecimentos verdadeiros (científicos) aos conhecimentos
falsos (senso-comum), como se depreende do argumento de Baiardi, “seria a dessacralização
da própria ciência, evidenciando seu caráter cultural, sujeito, portanto, a determinações sociais
de um determinado tempo histórico e de um determinado espaço geográfico”. Todavia, o
autor adverte que:

definir tal conhecimento como um conjunto de convenções coletivas não implica


atribuir-lhe um caráter arbitrário, posto que as assertivas científicas, mais do que

86
Baiardi, Amílcar. Crítica a Ecologia dos Saberes. Disponível em
<http://www.ufrb.edu.br/pdi/index2.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=37&Itemid=90> Acessado
em 10 de Agosto de 2011.

155
outras assertivas sobre o mundo em que vivemos, estão constantemente submetidas
ao julgamento de validade de seus pares. O fato de serem, constantemente,
submetidos às criticas de seus pares dá ao conhecimento cientifico uma
dinamicidade sui generis se comparado aos demais tipos de conhecimento. Apesar
de toda esta dinamicidade, podemos observar que historicamente os confrontos
travados em torno de concepções teóricas e metodológicas tem sido travados no
interior do cânone cientifico, e por meio de instrumentos teóricos legitimados pela
própria ciência (BLOOR, 2009, p. 57).

Segundo Santos (2004), o surgimento de perspectivas científicas “não-hegemônicas”


fora do campo científico, e o posterior ingresso e fortalecimento destas no interior do campo
acadêmico, tem contribuído para radicalizar os questionamentos acerca da hegemonia e da
exclusividade do cânone científico moderno. Como destaca Gomes, N. (2009), a emergência
de tais questionamentos no interior das estruturas acadêmicas, só foi possíveL a partir do
terceiro quartel do século XX, com o acirramento das crises enfrentadas pelas instituições de
ensino superior ao redor do mundo e com o ingresso gradual de sujeitos engajados nos
coletivos e movimentos sociais.

Aos poucos, pesquisadores e pesquisadoras oriundos de diferentes grupos sociais e


étnico-raciais e/ou comprometidos com esses setores sociais começam a se inserir
de maneira mais significativa nas diferentes universidades do país, sobretudo as
públicas e desencadeiam outro tipo de produção do conhecimento. Um
conhecimento realizado “por” esses sujeitos que, ao desenvolverem suas pesquisas,
privilegiam a parceria “com” os movimentos sociais e extrapolam a tendência ainda
hegemônica no campo das ciências humanas e sociais de produzir conhecimento
“sobre” os movimentos e seus sujeitos (...) Eles produzem conhecimento e
localizam-se no campo científico. São intelectuais, mas outro tipo de intelectual,
pois produzem um conhecimento que tem como objetivo dar visibilidade a
subjetividades, desigualdades, silenciamentos e omissões em relação a
determinados grupos sócio-raciais e suas vivências (GOMES, N., 2009b, p.421).

Analisando especificamente o campo temático das relações étnico-raciais no cenário


científico do Brasil, a mesma autora destaca o fato de que a emergência de um conjunto de
intelectuais negros, tematizando as questões étnico-raciais no Brasil, ajudou a pressionar as
instituições universitárias a explicitar as dimensões políticas presentes nos processos de
produção científica. Aos poucos, o espaço acadêmico, ainda hegemonizado pelos discursos
em defesa da neutralidade científica, começou a se revelar também um campo político, onde
se disputa e se negocia questões epistemológicas (em torno da existência ou não e raças, por
exemplo) e questões marcadamente políticas (como as formas mais adequadas de resolver as
desigualdades raciais). Portanto, o surgimento de temas como a desigualdade racial histórica

156
em torno do acesso ao ensino superior brasileiro, assim como a democratização desse acesso,
a permanência neste nível de ensino e o acesso desigual à informação e ao conhecimento no
Brasil, ao mesmo tempo em que gera demandas por compreensão, também gera demandas por
modificação ou perpetuação destas realidades.
Apesar de reconhecer os consideráveis impactos no interior das instituições
universitárias provocados pela ascensão gradual de intelectuais negros, a partir da década de
1980, Santos, S. (2007) destaca que tal crescimento ainda não foi capaz de superar as
múltiplas dificuldades e barreiras que “a visualização ou divulgação da produção do
conhecimento dos negros intelectuais sob o ponto de vista dos próprios negros ainda enfrenta
no meio acadêmico” (idem, p.233). Neste sentido, a fundação da Associação Brasileira de
Pesquisadores Negros (ABPN), no ano de 2002, foi uma das formas encontradas por este
grupo para enfrentar algumas destas dificuldades, sobretudo aquelas relacionadas à produção
e divulgação de conhecimentos. Por um lado, a ABPN pode ser compreendida como um
esforço de possibilitar a um número, cada vez maior, de pesquisadores, sobretudo os negros,
contatos aprofundados com temáticas relacionadas à população negra na África e na diáspora.
De outra parte, tem se constituído como um esforço de pressionar o campo acadêmico, em
especial os pesquisadores não-negros, a reelaborar o discurso científico produzido sobre os
costumes, os saberes, e outros aspectos culturais, econômicos e sociais relacionados à referida
população.
Constituída durante a realização do II Congresso Nacional de Pesquisadores Negros
(COPENE), ocorrido na cidade de São Carlos, entre os dias 25 e 29 de Agosto, a ABPN, ao
mesmo tempo em que ecoava reflexões e reivindicações dos militantes e intelectuais negros
que se destacaram na transição dos séculos XIX e XX, procurava evidenciar a força, a
vitalidade e a originalidade da produção acadêmica da nova geração de intelectuais negros. A
potencialidade desta nova leva de intelectuais militantes foi evidenciada quando da realização
do I Congresso Nacional de Pesquisadores Negros, ocorrido entre os dias 22 a 25 de
Novembro de 2000, na cidade de Recife. De acordo com o site da ABPN,

O I COPENE (...), inaugurou um novo procedimento ao efetuar um balanço da


produção recente dos pesquisadores negros e negras e de estudos que lidam com
temáticas relacionadas com a situação dos afro-descendentes, especialmente no
Brasil. O congresso de Recife contou com a presença de aproximadamente 320
pesquisadores nacionais de diversas regiões do país e estrangeiros. A grande
concentração de pesquisadores se deu nas seguintes áreas de conhecimento:
educação, saúde, história, sociologia e antropologia. Dois pontos ganham
relevância ao se analisar o I COPENE. Em primeiro lugar, chamaram a nossa
atenção a diversidade, o crescimento numérico e a qualidade da produção. Em
segundo lugar, a persistência de barreiras e a ausência dos meios materiais de
157
suporte ao desenvolvimento de pesquisas pretendidas pelos pesquisadores negros.
O que sugere haver divergências no interesse e na agenda de pesquisadores brancos
e afro-descendentes. 87.

Se por um lado, a gradual ampliação do número de participantes e de eixos temáticos


ao longo das seis edições do Congresso de Pesquisadores Negros, de 2000 a 2010, permitiu
que os encontros bianuais se convertessem em importante espaço de articulação e avaliação
política, além dos propósitos já explicitados de divulgação científica e de formação de novos
pesquisadores no campo das relações étnico-raciais, por outro, o crescimento e a consolidação
da ABPN no cenário científico nacional, indicada pelo volume crescente de artigos, livros e
pesquisas produzidas por seus associados, foram acompanhados de duras críticas ao caráter
racializado da associação que, indiretamente, colocavam em dúvida o caráter científico de tais
produções 88.
Como nos encontramos em um campo de acirradas disputas em torno de interesses
culturais, econômicos, políticos e de manutenção de status; boa parte das investidas contra-
hegemônicas no campo científico e/ou político é acompanhada, e às vezes precedida, de
intervenções hegemônicas com vistas a garantir a perpetuação da própria hegemonia. Neste
sentido, as polêmicas em torno das políticas de ações afirmativas e políticas de cotas raciais
podem ser compreendidas como resultado, ainda que parcial, da gradual politização do
discurso científico que, ao pressionar pesquisadores, professores universitários e demais
representantes das Instituições de Ensino Superior (e de outras instituições cientificas) a se
posicionarem sobre um campo de conhecimento que, ainda não se tinham convertido em
campo de reflexão, geram inúmeras ações de resistência às eminentes mudanças.
Neste sentido, tanto a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, quanto à aprovação
de Política de Cotas para estudantes negros ou oriundos de escolas públicas e da Política de
Bônus na nota dos vestibulandos negros e/ou oriundo de escolas públicas, bem como as
conseqüentes reações provocadas, explicitam a existência de diferentes e, por vezes,

87
Disponível em: <www.abpn.org.br> . Acessado em 10 de agosto de 2011.

88
Ao reproduzir notícia sobre a transferência provisória da sede da ABPN para a Universidade de Brasília no
ano de 2010, o editor do blog Noracer – Contra a racialização do Brasil escreveu: “UNB: Universidade mais
racializada do Brasil. Caros: como se não bastasse a implementação de um Tribunal Racial no Campus da UnB,
agora teremos também de conviver, em pleno regime Republicano, com uma Universidade que segrega os
pesquisadores por conta da cor... É demais!” Os comentários à notícia também merecem destaque. Disponível
em <http://noracebr.blogspot.com/2010/02/unb-universidade-mais-racializada-do.html>. Acessado em 10 de
Outubro de 2011.

158
contraditórios interesses e concepções em jogo nos processos de construção das agendas
públicas.
À exemplo das discussões que marcaram as últimas décadas do século XIX, as
vésperas da Abolição da Escravatura e da Proclamação da República, e que passou em revista
a herança cultural, política, econômica e “genética” da população brasileira visando constituir
uma nova nação, os debates em torno das Ações Afirmativas têm pressionado a ciência, os
elaboradores e executores de políticas públicas, e os brasileiros de modo geral, a repensarem o
Brasil e as relações étnico-raciais “à brasileira”. Por outro lado, na medida em que as Ações
afirmativas se institucionalizam, elas provocam uma série de deslocamentos epistemológicos
e políticos que resultam no reaparecimento (com força inversamente proporcional) de
variadas reações, verbalizadas, em geral, por aqueles que se autointitulam “cidadãos
antirracistas”. As duas Ações de descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF’s)
impetradas no ano de 2009 junto ao Supremo Tribunal Federal contra as políticas de cotas na
Universidade Federal de Brasília e Universidade Federal do Rio Grande do Sul são exemplos
concretos das reações geradas.
No dia 10 de Fevereiro do ano de 2009, o estudante Giovane Pasqualito Fialho
interpôs um Recurso Extraordinário (597.285/RS) no STF contra acórdão que julgou
constitucional o sistema de reserva de vagas (Sistema de "Cotas") como meio de ingresso aos
cursos de ensino superior da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). No dia 20
de julho do ano de 2009, o partido Democratas (DEM) também ingressou, junto ao STF, com
uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental impugnando a constitucionalidade
de atos do Poder Público que resultaram na instituição de cotas raciais na Universidade de
Brasília (UnB), a partir do ano de 2003. A tese central de Inconstitucionalidade defendida
pelo Partido Democratas, e que apenas de maneira tangencial se observa na ação movida pelo
estudante Giovane Pasqualito contra o sistema implementado na UFRGS, está baseada na
interpretação de que as políticas de ações afirmativas implementadas na UnB, “produzidas por
um descabido mimetismo do modelo adotado nos Estados Unidos para enfrentamento da
injustiça racial”, feririam vários preceitos fundamentais da Constituição Brasileira. De acordo
com a vice-procuradora da República, Deborah Macedo Duprat de Brito Pereira, os artigos
citados na peça inicial apresentada pelo Partido Democratas foram os seguintes:

(i) art. 1º, caput (princípio republicano) e inciso III (dignidade da pessoa humana);
(ii) art. 3º, inciso IV (veda o preconceito de cor e a discriminação); (iii) art. 4º,
inciso III (repúdio ao racismo); (iv) art. 5º, incisos I (igualdade), II (legalidade),
XXXIII (direito à informação dos órgãos públicos), XLII (combate ao racismo) e

159
LIV (devido processo legal – princípio da proporcionalidade); (v) art. 37, caput
(princípios da legalidade, da impessoalidade, da razoabilidade, da publicidade e da
moralidade, corolários do princípio republicano); (vi) art. 205 (direito universal á
educação); (vii) art. 206, caput e inciso I (igualdade nas condições de acesso ao
ensino); (viii) art. 207, caput (autonomia universitária; e (ix) art. 208, inciso V
(princípio meritocrático – acesso ao ensino segundo a capacidade de cada um) 89.

No dia 31 de Julho de 2009, o Presidente do Supremo Tribunal federal, Gilmar


Mendes, emitiu um parecer indeferindo as medidas legais solicitadas na ADPF 186 90, entre as
quais constava o pedido de suspensão da matrícula dos estudantes aprovados no último
vestibular da UnB mediante a reserva de vagas por critérios raciais. No dia 05 de Abril de
2009, a Procuradoria Geral da República já havia decidido pelo não provimento do Recurso
Extraordinário 597.295/RS impetrado pelo estudante Giovane Fialho. Apesar das decisões
tomadas pelo presidente do STF e da Procuradoria Geral da República em favor da
manutenção das políticas de ações afirmativas na UNB e UFRGS, os ministros do STF, em
plenária realizada no dia 18 de Setembro de 2009, reconheceram a existência de repercussão
geral das Ações de Inconstitucionalidade das Políticas de Cotas, ou seja, reconheceram a
relevância jurídica, política, social e política das questões constitucionais apresentadas, tanto
na ADPF, quanto no Recurso Extraordinário 91.
Em decorrência do reconhecimento da existência de repercussão geral, o Ministro
Ricardo Lewandowiski, relator da ADPF e do Recurso Extraordinário no STF, divulgou edital
de convocação de audiência pública no intuito de ouvir o depoimento de pessoas com
experiência e autoridade em matéria de políticas de ação afirmativa no ensino superior. Em
uma parte do edital de convocação da Audiência, o Ministro afirmou que:

O debate em questão consubstancia-se na constitucionalidade do sistema de reserva


de vagas, baseado em critérios raciais, como forma de ação afirmativa de inclusão
no ensino superior. A questão constitucional apresenta relevância do ponto de vista
jurídico, uma vez que a interpretação a ser firmada por esta Corte poderá autorizar,

89
Ministério Público Federal, Petição 93215/2009. Disponível em
http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobj
etoincidente=2691269 Acessado em 07 de Julho de 2011.

90
Supremo Tribunal Federal. Decisão 31/07/2009, liminar indeferida. Disponível em
http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobj
etoincidente=2691269 Acessado em 10 de Julho de 2011.
91
Supremo Tribunal Federal, Despacho 15/09/2009, convocação para Audiência Pública. Disponível em
http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobj
etoincidente=2691269 Acessado em 07 de Julho de 2011.
160
ou não, o uso de critérios raciais nos programas de admissão das universidades
brasileiras. Além disso, evidencia-se a repercussão social, porquanto a solução da
controvérsia em análise poderá ensejar relevante impacto sobre políticas públicas
que objetivam, por meio de ações afirmativas, a redução de desigualdades para o
acesso ao ensino superior. Ficam, assim, designados os dias de três a cinco de
março de 2010, das 9h às 12h, para a realização da audiência pública, nas
dependências do Supremo Tribunal Federal. (...) Os interessados deverão requerer
sua participação na audiência pública no período de 1º/10/2009 a 30/10/2009, pelo
endereço eletrônico [email protected]. Para tanto, deverão consignar os
pontos que pretendem defender e indicar o nome de seu representante 92.

É interessante observar que, apenas um ano após a elaboração do último Manifesto


93
Contrário às Cotas , as recentes contestações às políticas de ações afirmativas sejam Ações
de Inconstitucionalidade, procurando evidenciar a “suposta” incompatibilidade entre as
práticas levadas a cabo com essas políticas e os ideários fundamentais da Constituição
Brasileira de 1988. Entretanto, não é menos interessante o reconhecimento por parte do STF
da pertinência de convocar uma Audiência Pública para discutir o objeto de discussão da
ADPF, o que salienta a importância da temática racial para a nação brasileira e futuros
modelos de organização social.
Em consonância com o que venho procurando expor ao longo deste trabalho, o
despacho de convocação da Audiência Pública, proferido pelo ministro Ricardo
Lewandowiski, parece ratificar a relevância do debate em torno das políticas de Ações
Afirmativas, da educação e das relações raciais para “pensar o Brasil”. A própria realização
da audiência pública do STF, os discursos nela proferidos, as representações sobre quem é
negro e quem é branco no Brasil, o que significa ser uma nação miscigenada e passível de
desigualdades raciais e racismo, bem como o lugar da ciência nesse contexto se apresentaram
como momentos importantes para analisar o que esta pesquisa vem discutindo desde o início:
a tensão entre ações afirmativas, relações raciais e educação e os discursos em prol da
conservação, atualização ou reinvenção da nação. Portanto, a realização da referida
audiência, o seu contexto político, social e jurídico se apresentou como um importante campo
para a presente pesquisa.
Notadamente, se trata da explicitação e materialização pública do debate tenso que
vem ocorrendo nos fóruns da militância, na universidade, na produção teórica por autores,

92
Supremo Tribunal Federal, Edital - convocação para Audiência Pública. Disponível em
http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobj
etoincidente=2691269 Acessado em 07 de Julho de 2011.
93
Manifesto centro e treze cidadãos anti-racistas contra as Cotas Raciais. Brasília, 30 de Abril de 2008.

161
negros e brancos, nacionais e internacionais e que dar-se dentro do contexto de diferentes
concepções de ciência e de direito, bem como de quem é considerado legítimo ou não para
produzir conhecimento sobre o tema ou reivindicá-lo como direito ou não e a concretização
de uma sociedade igualitária e, ao mesmo tempo, diversa.
Assim, tomando a Audiência Pública como o nosso “campo de pesquisa”, os capítulos
5 e 6 desta teses se dedicarão à análise do assunto. Neste processo, através da análise do
evento, dialogaremos com as discussões e autores apresentados nos capítulos anteriores. Neste
sentido, o Quinto Capítulo visa contextualizar os leitores do clima da Audiência Pública e no
teor dos discursos proferidos pelos expositores habilitados e, deste modo, prepará-los para o
capítulo dedicado à análise dos discursos dos 16 expositores selecionados, apresentando um
panorama do clima anterior à realização da Audiência, além de um breve sumário, com os
argumentos mobilizados pelos expositores presentes na Audiência Pública. Nele, ainda, serão
apresentadas as escolhas metodológicas realizadas, para a compreensão da audiência como
campo de pesquisa e assim proceder à análise dos discursos.
As análises aprofundadas do conteúdo explicito e dos significados implícitos de alguns
discursos proferidos durante a Audiência Pública, que alternam e contrapõe visões sobre o
papel, não apenas das Ações Afirmativas e das políticas de cotas, como também das relações
raciais, das políticas públicas, da educação e da ciência em nossa sociedade será realizada
posteriormente, no Sexto Capítulo desta tese.

162
CAPÍTULO 5

5 – Os caminhos percorridos: o campo da pesquisa e a metodologia adotada

O presente capítulo está dividido e organizado em duas partes, sendo que na primeira,
busco (de forma sucinta) apresentar o clima preparatório e os argumentos dos expositores
favoráveis e/ou contrários às Políticas Afirmativas e de cotas raciais, durante Audiência
Pública, bem como algumas considerações sobre o clima durante a realização da mesma, bem
como de algumas repercussões que geraram tais discursos. Na segunda parte, explanaremos
sobre as escolhas metodológicas feitas neste trabalho e que servirão como orientação para a
análise os discursos no Sexto Capítulo.
Desse modo, na próxima seção deste Quinto Capítulo, além da descrição da
Audiência Pública, serão apresentados de forma sintética os principais pontos citados pelos
expositores que tiveram voz dada durante o evento. Notadamente, 16 expositores, que
participaram da referida audiência, terão seus discursos analisados, de forma mais detalhada,
no Capítulo 6 e, por isso, seus nomes encontram-se grifados, em negrito.

5.1 – Breve sumário da Audiência Pública

As cotas passaram a ser, para a comunidade negra, um instrumento


para provocar essa reparação de maneira indireta. E, portanto,
alguns intelectuais em nossa sociedade têm consciência de aonde nós
queremos chegar. Nós queremos chegar a uma sociedade justa,
igualitária e fraterna, onde o negro tenha sido reparado de todo o
sofrimento que ele teve ao longo desta história. Bom, e aí esse pessoal
tem medo desse processo. Mas esse medo é um medo que vem a partir
da cabeça do exterior. Eles não avaliam a partir da cabeça dos
brasileiros. (...) Ora, no entanto, esses intelectuais de direita, ou
intelectuais preocupados de esquerda – e boa parte dos intelectuais
de esquerda não tem nenhuma leitura sobre a questão racial, são
ingênuos na questão racial – estão com medos que não se provam.
Frei Davi. Depoimento Histórias do Movimento Negro no Brasil:
Depoimento ao CPDOC, 2007, p. 418.

Após a divulgação do edital de convocação da Audiência Pública sobre Políticas de


Ação Afirmativa de Reserva de Vagas no Ensino Superior, um grande número de entidades,
163
militantes e intelectuais se inscreveu para participar da sessão na qualidade de amicus curiae
94
. Além destes, várias entidades (governamentais e não-governamentais) foram convidadas
pelo ministro Ricardo Lewandowiski a participarem do evento. No dia 17 de Dezembro de
2010, o Ministro divulgou o despacho de habilitação para a participação na Audiência Pública
na qualidade de expositores (ANEXO I).
As semanas que antecederam a realização da Audiência Pública foram marcadas por
uma intensa mobilização, sobretudo por meio da internet, de entidades, militantes e
intelectuais que se posicionavam contrariamente ou em defesa das políticas de cotas raciais e
das políticas de Ações Afirmativas. Apesar de apenas 40 expositores estarem habilitados,
entre representantes da sociedade civil e do Estado, a inscrição prévia de 252 candidatos com
o intuito de participar do evento, pode ser tomada como um importante indicador da
importância da temática dentro do contexto brasileiro e da repercussão alcançada pelo evento.
No dia 25 de fevereiro de 2010, a equipe de comunicação interna da SEPPIR –
Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – divulgou nota informando
sobre a realização de uma videoconferência discutindo as políticas de cotas raciais que viria a
ser debatida pelos advogados: Indira Quaresma e Paulo Gustavo M. Carvalho, responsáveis
pela defesa da UNB na ADPF, além do ministro da Igualdade Racial, Edson Santos e do
secretário-adjunto, Elói Ferreira Araújo. A videoconferência foi transmitida online e para os
escritórios regionais do SERPRO (Serviço Federal de Processamento de Dados), em vinte e
sete cidades brasileiras. Durante a videoconferência, o então ministro da SEPPIR afirmou
que:

entre os participantes da videoconferência, muitos já estão mobilizando a sociedade


para a audiência pública em defesa do sistema de cotas da UNB. Gestores públicos
e representantes da sociedade civil de todo o país estarão em Brasília durante o
evento, que será transmitido ao vivo pela TV Justiça (http://www.tvjustica.jus.br).
A equipe da SEPPIR e os procuradores federais acreditam que a organização da
sociedade civil em favor das cotas em cada estado brasileiro também servirá de
subsídio para a decisão do STF, que ocorrerá em julgamento com data ainda não
marcada 95.

94
Oriundo do direito norte-americano, o "Amicus Curiae" (amigo da corte) identifica terceiros que solicitam a
entrada em um processo do qual não é parte, mas cujo resultado pode influir em sua vida ou nos rumos da
sociedade em geral. Nos julgamentos de grande repercussão no Supremo Tribunal Federal, é cada dia mais
comum a permissão do uso desse instrumento como forma de dar voz à sociedade nas decisões do mais alto
tribunal do país.

95
Disponível em http://www.portaldaigualdade.gov.br/noticias/ultimas_noticias/2010/02/
videoconferencia_cotasnaUnBstf/?searchterm=audiência pública cotas Acessado em 18 de Agosto de 2011.

164
Pela realização deste evento preparatório, e pela convocação da população para a
defesa das políticas de cotas na Audiência Públicas, o então Ministro da Secretaria Especial
de Políticas de Promoção da Igualdade Racial foi duramente criticado. De acordo com os
críticos, o ministro estaria utilizando recursos públicos para convocar pessoas e entidades
favoráveis às políticas de cotas.
A conduta do Ministro Ricardo Lewandowiski, relator da ADPF no STF, também foi
colocada em suspeita nas semanas que antecederam a audiência pública. Por meio de uma
contestação formal apresentada pelo Partido Democratas ao STF, a isonomia do conjunto de
expositores habilitados para se pronunciarem durante a Audiência Pública foi contestada, já
que, segundo os críticos, do conjunto de 40 expositores habilitados para a Audiência Pública,
28 eram favoráveis às políticas de ações afirmativas. A acusação de parcialidade na
convocação dos expositores para a Audiência foi tema, nas semanas que sucederam a entrega
do documento do Partido Democratas ao STF, de diversas matérias jornalísticas, na mídia
96
impressa e televisiva . Em resposta às acusações de ameaça à isonomia, o Ministro
Lewandowski emitiu, no dia 02 de Março de 2010, um despacho respondendo as acusações.

A preservação da isonomia tem pautado a história desta Corte Constitucional.


Fundado neste princípio constitucional organizei audiência pública para ouvir as
diferentes perspectivas conformadoras da sociedade brasileira sobre a utilização do
critério étnico-racial na seleção de candidatos para o ingresso no ensino superior.
(...) Isso posto, indefiro o pedido de reconsideração97.

A “Audiência Pública sobre Políticas de Ação Afirmativa de Reserva de Vagas no


Ensino Superior” se realizou no período de três a cinco de Março (03/03/2010 a 05/03/2010).
Em cada uma das seções, estavam presentes no auditório principal, os Ministros do STF que
compareceram à Audiência, a Vice-Procuradora Geral da União, os expositores e três
convidados a que cada um dos expositores teve direito. Durante os três dias de realização do
evento, apesar do pequeno número de expositores declaradamente negros, a proeminência da

96
http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/o-debate-nas-cotas-do-supremo-e-a-estranha-matematica/,
97
Supremo Tribunal Federal. Despacho 02/03/2010. Disponível em
http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobj
etoincidente=2691269 Acessado em 20 de Junho de 2011.

165
população negra na audiência era notável. Devido ao grande número de presentes, o que
extrapolou a capacidade do auditório principal do STF, um segundo auditório foi
disponibilizado para a participação popular, de onde as exposições puderam ser
acompanhadas por meio de um telão 98.
Os pronunciamentos foram divididos em três dias, conforme apresentados a seguir. Na
manhã do primeiro dia, representantes de instituições brasileiras, governamentais e não-
governamentais, além dos arguentes da ADPF 186 e do Recurso Extraordinário 597.285, bem
como os respectivos argüidos, se pronunciaram. Ainda na manhã de quarta-feira, o presidente
da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal, senador Demóstenes Torres,
pronunciou-se. A manhã do segundo dia teve início com o pronunciamento do senador Paulo
Paim, autor do estatuto da Igualdade Racial, que apesar de não ter seu nome previamente
habilitado, foi autorizado a fazer uso da palavra. Ainda durante a manhã do segundo dia,
diferentes intelectuais, membros de diferentes instituições de ensino superior no Brasil, se
pronunciaram em defesa ou contrariamente às políticas de Ações Afirmativas. O terceiro e
último dia de Audiências foi iniciado com a exposição dos representantes de diversas
organizações não-governamentais. O período da tarde do terceiro dia foi reservado aos
reitores e pró - reitores de Instituições de Ensino Superior no Brasil, e aos relatos de
experiências de aplicação das políticas de Ações Afirmativas. Ao final da tarde do terceiro
dia, alguns estudantes que vivenciaram as políticas de cotas, em diferentes universidades,
foram convidados a se pronunciar.

1º DIA DA AUDIÊNCIA

Às oito horas e trinta e quatro minutos do dia três de Março de 2010, o Ministro do
STF, Ricardo Lewandowski deu início aos trabalhos na Audiência Pública referente às
Políticas de Ações Afirmativas e de cotas raciais, compondo a mesa de abertura juntamente

98
Apesar do protocolo oficial do STF não permitir manifestações dos presentes, expressas por palmas, gritos ou
similares; a participação da platéia na segunda plenária não sofreu este tipo de constrangimento. Neste sentido,
minha presença enquanto expectador no segundo auditório possibilitou-me, não só acompanhar os discursos dos
expositores, mas acompanhar também os efeitos e reações que as exposições provocavam na platéia, composta,
majoritariamente, por ativistas de movimentos sociais, professores universitários, estudantes e correspondentes
de jornais e revistas. Além de gravar em áudio todos os pronunciamentos, ao longo dos três dias, tive a
oportunidade de registrar em meu caderno de campo alguns das considerações e análises feitas pelos
participantes do segundo plenário durante as exposições.

166
como os ministros Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa Gomes e a Vice-procuradora da
República Deborah Duprat, fazendo breves considerações sobre a importância das Audiências
Públicas no contexto democrático. Segundo o ministro Lewandowiski, a Constituição de
1988, ao criar instrumentos para efetivar a democracia participativa, superou a noção de
democracia representativa vigente até então. Neste contexto, a convocação das audiências
públicas, entendidas como meios de exercício da democracia participativa se justificariam no
caso de questões que mobilizam a sociedade e requerem a participação da mesma para
auxiliar nas decisões do STF.
Após as considerações iniciais do ministro Ricardo Lewandowski, o ministro Gilmar
Mendes fez uso da palavra e ressaltou a importância e excepcionalidade das Audiências
Públicas para a efetivação da participação plural dos diversos setores da sociedade civil.
A exposição do Ministro Joaquim Barbosa Gomes também foi breve e limitou-se á
ressaltar a importância da realização da audiência e da oportunidade que a sociedade brasileira
teria de discutir “sobre um tema sobre o qual ela nem sempre quis discutir com a devida
abertura”.
Após desfazer a mesa de abertura, a vice-procuradora da República, Deborah Duprat
tomou a palavra, afirmando, inicialmente, que sua manifestação naquele momento deveria ser
tomada como uma abordagem complementar ao posicionamento já expresso pelo Ministério
Público em decisão expressa em Abril de 2009. 99 Segundo a vice- procuradora, o objetivo de
sua fala era inserir as “cotas” dentro da constituição, e salientar que toda constituição
representa uma ruptura com uma ordem pré-estabelecida, além da estruturação de um plano
futuro. A ruptura que a Constituição brasileira de 1988 havia estabelecido, segundo ela, foi
com o sujeito kantiano, desprovido de características identitárias, baseado na revolução
francesa e fundador da idéia de nação. O fato de que, a partir da década de 1970, os
movimentos sociais começaram a denunciar a farsa da igualdade formal, afirmando que o
campo do direito nunca ficou alheio as diferenças, pressionaram a Assembléia Constituinte
pré - 1998 a reconhecer uma sociedade diferente em vários de seus artigos, explicitando o fato
de que o sujeito de direitos deve ser reconhecido como possuidor de idade, sexo, cor,
condição financeira. Nesse sentido, as políticas de cotas citadas no texto constitucional, como
no caso de reservas de vagas para mulheres no parlamento, não contrariam o princípio da
igualdade, mas contribuem para a realização do ideal de igualdade material, além de ser um

99
Ministério Público Federal, Petição 93215/2009. Disponível em
http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobj
etoincidente=2691269 Acessado em 07 de Julho de 2011.
167
princípio pluralizador das instituições que a adotam. Para a vice-procuradora, a grande
questão que estas políticas inauguram e exigem respostas teóricas e concretas é: como passar
de uma sociedade hegemônica para uma sociedade plural?
O Presidente Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Ophir Cavalcante, ao fazer
uso da palavra, enalteceu a realização de Audiências Públicas como meio de viabilizar a
participação popular na definição dos rumos do país. Segundo ele, o Conselho Federal da
OAB-Brasil ainda não havia se posicionado em relação ao mérito da ADPF impetrada no
Supremo Tribunal Federal, no entanto, não questionava a importância histórica das Ações
Afirmativas em curso no Brasil desde o ano de 2002. No intuito de exemplificar o
posicionamento da Ordem dos Advogados em relação à matéria em debate, Cavalcante citou a
criação do curso de direito para moradores de assentamentos rurais na Universidade Federal
de Goiás. Além de ter julgado importante e relevante, afirmou, ainda, que a Seccional da
OAB em Goiás também julgou constitucional a criação daquele curso. Para finalizar, o
presidente da OAB afirmou que para realizar um julgamento adequado da presente matéria
seria preciso abolir a lógica maniqueísta que dicotomizaria “os do lado do bem e os do lado
do mal”. Sem posicionar-se sobre a constitucionalidade das políticas de cotas em questão,
Ophir Cavalcante encerrou seu pronunciamento reiterando a confiança na decisão do STF
sobre a matéria.
O advogado Geral da União, Luís Inácio Lucena Adams, iniciou seu pronunciamento
ressaltando que a discussão sobre Ações Afirmativas se constitui como um dos mais delicados
temas públicos brasileiros. Para Luís Adams, a constituição de 1988 teria definido a igualdade
formal, a fraternidade, o pluralismo e a justiça como princípios fundamentais, além de
evidenciar a indignação com o contexto social de extrema desigualdade social que marcava o
período anterior. Ainda segundo Adams, para lograr a realização do propósito que se
imaginava no contexto da constituinte - a igualdade material - não bastava a adoção de
políticas repressivas, mas seria necessária também a aplicação de políticas afirmativas. Neste
sentido, a adoção de políticas de cotas pelas universidades brasileiras estaria em sintonia com
a vocação crítica e de autonomia política expressa na Constituinte e como à discriminação
racial no Brasil opera por vias diretas e indiretas, as políticas governamentais precisam ser
construídas com o intuito de combater, exatamente, a discriminação indireta. Encerrou seu
pronunciamento afirmando que, ao invés de se proporem a ratificar a existência de raças, as
políticas de Ações Afirmativas foram concebidas com o intuito de contribuir para a
erradicação das discriminações raciais.

168
O Ministro Edson Santos de Souza, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção
de Igualdade Racial (SEPPIR), se pronunciou em seguida, ressaltando a importância de
discutir uma temática central para, pelo menos, (50%) cinquenta por cento da população
brasileira que se autodeclara negra. Segundo o ministro, o debate sobre Ações Afirmativas no
Brasil recupera o momento do debate abolicionista, colocando agora a educação como
centralidade, ao passo que naquele momento a grande questão era a terra. A divulgação de
dados educacionais que explicitam as desigualdades entre negros e brancos no Brasil, só
reforçaria a necessidade de tratar de maneira desigual os desiguais, e de forma igual os iguais.
Entretanto, a despeito dos vários tratados de combate às desigualdades em que o Brasil é
signatário, a situação (de desigualdade) que aflige a população negra no Brasil ainda é
gritante. Por fim, o ministro afirmou que a breve história, de uma década, das políticas de
cotas na UnB e na UERJ não tem nos mostrado nenhum tipo de conflitos raciais e, portanto,
as Ciências Sociais devem estar apoiadas em fatos e não em previsões catastróficas para
analisar a realidade brasileira.
Em seguida, o representante da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Erasto
Fortes de Mendonça, se dirigiu à tribuna para iniciar seu pronunciamento. Primeiramente,
referiu-se aos valores de igualdade, fraternidade e liberdade, derivados da declaração
universal dos direitos humanos, e também fez referência à filósofa Hannah Arendt, para a
qual os homens não nascem iguais, mas conquistam a igualdade. Para Arendt, ao considerar a
igualdade como uma característica inata, caberia ao direito apenas declarar a igualdade, e ao
Estado caberia apenas zelar por tal igualdade. Para o referido representante, foi justamente o
reconhecimento de que a declaração de igualdade formal, inserida na Constituição de 1988,
não tem sido suficiente para erradicar as desigualdades entre os diferentes grupos étnico-
raciais brasileiros o que influenciou o posicionamento público do Estado Brasileiro durante a
Conferência em Durban, tornando-se signatário dos acordos para implementar políticas de
Ações Afirmativas. Ao inserir a população negra nas universidades, estas Ações Afirmativas
contribuiriam, não só para diversificar o sistema universitário, mas também para melhorar a
qualidade acadêmica.
O pronunciamento da Secretária Adjunta de Ensino Superior do Ministério da
Educação, Maria Paula Dallari Bucci, se iniciou com referências à histórica perpetuação das
distâncias entre negros e brancos no que se refere à escolaridade, que se mantêm apesar das
recentes melhorias na oferta de educação nos seus variados níveis. Segundo ela, os
indicadores educacionais de jovens negros e brancos com idade entre 15 e 17 anos, bem como
aqueles que fazem referência ao acesso e a permanência no ensino superior de jovens negros e
169
brancos com idade entre 18 e 24 anos, evidenciam a perpetuação da gritante desigualdade
racial existente no Brasil. Ao afirmar que a simples passagem do tempo, não foi suficiente
para erradicar as desigualdades entre negros e brancos, a secretária defendeu a urgência em
olhar para o futuro e não mais para o passado. Antes de finalizar, Bucci discutiu os resultados
de uma recente pesquisa sobre o desempenho de estudantes universitários ingressantes por
meio de Ações Afirmativas. De acordo com o resultado da pesquisa, no primeiro ano do
curso, o desempenho acadêmico dos estudantes foi menor entre os cotistas, mas após o
primeiro ano de curso, o desempenho destes estudantes superou o dos não-cotistas.
Notadamente, em oito dos dez cursos pesquisados, as oportunidades de entrada permitiram
aos estudantes superarem as deficiências iniciais e mudarem o desempenho final.
O representante da Fundação Nacional do Índio, Carlos Frederico de Souza Mares, se
pronunciou em seguida, reafirmando que a igualdade não é um dado da natureza, pois, sem a
existência das leis seria impossível existir igualdade. Para que haja igualdade é preciso que
haja leis que permitam aos desiguais serem vistos como iguais. No caso dos povos indígenas,
o ingresso em algumas universidades tem se dado através de cursos específicos permitidos
pela constituição nacional. De acordo com o representante da FUNAI, a especificidade dos
povos indígenas, além das possibilidades abertas pela própria constituição, abre uma
facilidade relativa para o ingresso diferenciado; o que não ocorre com a população negra, que
necessitaria, portanto, de políticas de cotas para o ingresso igualitário no ensino superior.
Mário Lisboa Theodoro, Diretor de Cooperação e Desenvolvimento do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada, iniciou sua exposição lamentando a escassez de dados
estatísticos sobre a questão racial no Brasil, mesmo sendo este um tema tão importante à
formação nacional. Destacou, ainda, que apesar da pluralidade teórica entre os mais de 300
pesquisadores do IPEA (Instituo de Pesquisas e Estatísticas), há um relativo consenso interno
em torno da questão racial e, sobretudo, em relação à pujança estatística das técnicas de
consulta e de resposta relativas à classificação racial. Theodoro ainda destacou a persistência
da discriminação racial no interior das escolas e das salas de aula. Destacaram também a
sobre-representação da mortalidade infantil de crianças negras e as altas taxas de mortalidade
da juventude negra. Na sua avaliação, a única forma de mudar a situação de desigualdade
racial, e de naturalização destas desigualdades, seria a utilização de políticas complementares
às políticas universais. Uma das mais importantes contribuições das políticas
complementares, portanto -que não excluiriam as políticas universais- seria a de romper o
marcante traço de naturalização das desigualdades brasileiras.

170
Em seguida, Roberta Fragoso Menezes Kaufman100; advogada do Partido
Democratas, arguente na ADPF 186, fez seu pronunciamento. Começou afirmando que a ação
impetrada pelo Partido Democratas não pretendia discutir as cotas para índios nas
universidades, e nem as políticas para mulheres, deficientes e outras minorias. Não se discutia
também, naquela ação, a existência de racismo na sociedade brasileira, fato amplamente
reconhecido pelo Partido. De acordo com Kaufman, o ponto central de discussão da ADPF
impetrada pelo Partido Democratas se relacionava ao fato de que o Estado não deveria impor
regras de identificação racial ou de definição de direitos com base na cor da pele. Concluiu
afirmando que, caso o Brasil importasse as políticas de segregação que foram colocadas em
prática nos EUA, desconsiderando todas as diferenças existentes entre os dois países,
cometeria o mesmo erro cometido pelos norte-americanos, ao criar indivíduos iguais, embora
separados.
O professor José Jorge de Carvalho, representante da Universidade de Brasília,
argüida na Ação de Descumprimento de Preceito Constitucional 186, expôs em seguida.
Relatou aos presentes que havia sido um incidente de reprovação de um estudante negro no
Programa de Pós-graduação na UnB que revelou o fato de que, durante todos os anos de
existência do programa aquele era o primeiro estudante negro matriculado. A partir desta
constatação, os professores organizaram uma pesquisa de perfil entre o corpo docente da
UNB, que verificou que entre 1500 professores da universidade, haviam apenas 15
professores negros. Ter encontrado pouquíssimos estudantes negros na moradia estudantil da
UnB também motivou a implementação de cotas. Hoje, depois das cotas, a UnB conta com
12% de estudantes negros e já diplomou 480 estudantes cotistas negros. Afirmou ainda que a
média de rendimentos negros cotistas é praticamente idêntica, e a tragédia acadêmica
inicialmente projetada não se cumpriu. Antes de concluir, Carvalho fez uma referência a
própria Audiência e ao fato de que das 43 pessoas convidadas a falar, 30 são professores e
apenas 2 deles negros. Essa desproporção chama a atenção para a urgência em implementar
Ações Afirmativas nas universidades, e em compreender as razões pelas quais as cotas,
numericamente restritas, causam tanta polêmica no espaço público brasileiro. Arriscando uma
conclusão, afirmou que apesar das cotas incidirem em apenas 3,5% dos ingressantes no ensino
superior, elas incidem diretamente nas estruturas hierárquicas de poder. Por isso despertam
tantas críticas.

100
Como já foi dito, os expositores grifados em negrito nesta seção terão seus discursos analisados no capítulo 6.
No total serão 16 expositores.

171
O advogado Caetano Curvo Lo Pumo, representante do estudante Giovane Pasqualito
Fialho, autor do Recurso Extraordinário 597.285/RS, também se pronunciou por quinze
minutos. Começou, afirmando que as políticas de cotas implementadas nas universidades
brasileiras e, sobretudo, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul não foi precedida por
debates públicos, o que explicaria alguns dos problemas do sistema. Afirmou, em seguida,
que considerava fundamental programar as políticas de Ações Afirmativas em um Estado de
Direito, mas naquele momento o que estava sendo discutido era o modelo de políticas de
cotas raciais adotado na UFRGS. Discutia, primordialmente, o critério de hipossuficiência
adotado pela universidade e baseado na presunção, pois, ao definir que os beneficiários
deveriam ser estudantes de escolas públicas, o sistema presume que todos estes estudantes
seriam pobres; o que não é fato. O sistema de cotas da UFRGS ao incluir estudantes do
Colégio Militar de Porto Alegre, um colégio de elite, mostra que é cego e equivocado:
“Sessenta e um alunos, que receberam o melhor ensino do Estado do Rio Grande do Sul de
forma gratuita; ingressaram, não obstante tenham sido mais mal classificados pelo critério de
mérito.”.
A Professora Denise Fagundes Jardim, representante da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS), recorrida no Recurso Extraordinário 597.285/RS, se pronunciou em
seguida e em resposta ao advogado Caetano Curvo Lo Pumo, iniciou fazendo referências aos
debates e interlocuções calorosas e cheias de controvérsias que antecederam a instituição da
política de cotas raciais na UFRGS. Neste sentido, afirmou que a implementação de políticas
de Ações Afirmativas na UFRGS foi um encaminhamento coerente das discussões que
tomaram lugar na universidade. Apesar destas fazerem parte da UFRGS desde o ano de 2004,
considerou curto o prazo para que avaliações definitivas ou previsões catastróficas fossem
feitas a respeito de tais políticas. Destacou, por fim, a importância das universidades
brasileiras no movimento de superação das desigualdades e a importância dos grupos
excluídos no processo de democratização do Ensino Superior e da construção de novas
universidades.
Apesar de não estar inscrito para participar como expositor na Audiência Pública, o
Senador da República pelo Partido Democratas, Demóstenes Torres, o único representante
do Senado Federal presente à Audiência naquele dia, foi autorizado pelo ministro Ricardo
Lewandowski a se pronunciar e a encerrar o primeiro dia de Audiência no Supremo Tribunal
Federal. O senador iniciou seu pronunciamento identificando-se como ex-membro do
movimento social pela anistia e afirmou que, já naquele período, havia resolvido ficar no lado
certo. Referiu-se ao tema da Audiência como algo apaixonante e que leva os envolvidos a
172
criar certa animosidade entre as partes. Se posicionou contra tal animosidade, já que quando
tal tema é discutido, o que está em discussão é o futuro do Brasil, e por isso seria preciso
julgar a questão de forma racional. Ao longo de sua exposição, fez referência ao reitor da
UFPE, segundo o qual, se um percentual superior a 20% fosse reservados para estudantes
cotistas a autonomia universitária e o mérito acadêmico seriam mortos. Neste sentido, o
chamado da audiência pública pelo Democratas seria uma tentativa de dividir a
responsabilidade da escolha por cotas com toda a sociedade, pois no Brasil todas as leis
criadas a partir de 1800 tinham a intencionalidade de minimizar os efeitos da escravidão.
“Além do mais, todos os brasileiros, inclusive eu, tem sangue negro correndo nas veias.
Todos têm sangue branco e sangue indígena.” Antes de concluir, o senador Demóstenes
Torres fez uma referência “controversa” à Gilberto Freyre, ao afirmar que o autor
pernambucano dizia que o processo de miscigenação que se deu no Brasil não havia sido
produto de estupro, mas de relações consensuais. Algumas das inúmeras controvérsias que tal
declaração gerou serão discutidas, de modo mais detalhado, no sexto capítulo.

2º DIA DA AUDIÊNCIA

O segundo dia de audiência teve início com o pronunciamento da advogada Wanda


Siqueira, representante do Movimento contra o Desvirtuamento do Espírito da Reserva das
Cotas Sociais. Wanda Siqueira iniciou sua exposição intitulada "Flagrante
ilegalidade na seleção dos cotistas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul desvirtua o
espírito do Programa de Ações Afirmativas pela falta de averiguação da situação sócio-
econômica dos candidatos beneficiados pelo sistema de reserva de vagas", afirmando que o
movimento que representa é favorável a utilização de critério de hipossuficiência (critério de
renda). Todavia, fez sérias críticas ao sistema de cotas adotado pela UFRGS, o qual, segundo
ela, tem sido desvirtuado ao utilizar a trajetória em escolas públicas como Proxy de renda
familiar. Segundo Siqueira, o processo de comprovação da trajetória escolar tem sido obscuro,
e um dos efeitos deste viés de seletividade seria o favorecimento de estudantes já favorecidos.
As denúncias dos estudantes não-cotistas em relação aos critérios de avaliação do sistema têm
caído no vazio, uma vez que o poder judiciário não tem acatado as liminares impetradas. A
advogada encerrou seu pronunciamento afirmando que seus clientes estariam dispostos a
173
cederem suas vagas á outros estudantes pobres, sejam eles brancos ou negros. “O que eles se
indignam é pelo fato de serem privados do ensino superior por jovens que freqüentaram os
melhores cursos pré-vestibulares” e que por isso ingressaram na universidade, “não pelo
princípio do mérito, mas pelo princípio do desvio de poder, pelo odioso princípio do
apaziguamento”.
Em seguida, o Ministro Ricardo Lewandowski concedeu a palavra ao senador da
República pelo Partido dos Trabalhadores, Paulo Paim, que a exemplo do senador
Demóstenes Torres, também não estava previamente inscrito. O senador Paulo Paim iniciou
seu pronunciamento afirmando que “qualquer homem de bem neste país sabe que o
preconceito racial contra os negros no Brasil é muito grande. Todos os negros e negras que
afirmarem não haver sentido preconceito na sua vida, estará faltando com a verdade”. Relatou
alguns episódios preconceituosos que já havia presenciado durante sua participação no longo
debate sobre cotas raciais no Brasil. Destacou uma em que seu interlocutor compartilhava
com ele uma das dificuldade das cotas: “como definir cotas para negros na mídia se eu for
fazer um filme sobre anjos?” Em seguida, mesmo sem revelar nomes, fez uma dura critica ao
senador Demóstenes Torres e sua declaração sobre o suposto consentimento das mulheres
negras em relação ao abuso sexual. O senador revelou que no momento da Audiência tinha a
sensação de acompanhar a marcha dos cem mil com Martin Luter King e voltar no tempo, e
em 1888 se enxergar entre abolicionistas e escravocratas que se perguntavam: os negros terão
direito a deixar de ser escravos? Depois de referir-se a participação do falecido senador
Antônio Carlos Magalhães e da bancada do DEM no processo de aprovação do Estatuto da
Igualdade Racial, procurando destacar o fato de que o debate sobre políticas de igualdade
racial não se trata de um debate partidarizado, Paulo Paim encerrou seu discurso nitidamente
emocionado.
A professora Yvonne Maggie, antropóloga da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, inscrita como próxima a se pronunciar, enviou um comunicado sobre sua ausência
motivada por questões de saúde. O artigo intitulado “A construção do mito da democracia
racial na sociedade brasileira. Aspectos positivos. Sobre as conseqüências sociais da
imposição de uma ideologia importada que objetiva entronizar a idéia de ‘raça’, tanto no que
tange a distribuição da justiça, quanto na formação de jovens e crianças nas escolas
brasileiras” foi lido por George Cerqueira Zarur, professor de Antropologia da Faculdade
Latino-Americana de Ciências Sociais. Em sua missiva, Maggie afirmava que, de acordo com
seus estudos realizados com estudantes de escolas públicas do Rio de Janeiro mostraram que
eles não levam em conta a cor na escolha de amigos e namorados. Este fato, bem como o
174
aumento dos índices de casamentos mistos no Brasil seriam provas do sentimento de
igualdade forjado no dia a dia dos brasileiros, que se recusariam a definir-se a partir da cor da
pele. Em razão disto, a antropóloga defendia que uma política voltada aos pobres, que evitaria
o constrangimento de uns se classificarem e serem classificados racialmente seria muito mais
pertinente. Segundo ela, no entanto, o primeiro passo para a racialização do Brasil já havia
sido dado com a inserção da disciplina história da áfrica nos currículos das escolas brasileiras.
Salientou que ninguém poderia ser contra ensinar a história dos negros, mas disse que isto
estaria envolto “em uma trama maquiavélica”, pois poderia gerar sentimentos de orgulho
étnico e de revanchismo. Muito melhor, portanto, seria optar por cotas raciais, portanto, seria
conceder cotas sociais aos pobres, pois assim se beneficiaria majoritariamente os pretos (pois
são pobres) e se evitaria estigmatizar estes com a cor da pele.
Ao final da leitura do texto de Yvonne Maggie, o professor George Cerqueira Zarur
permaneceu na tribuna e também contou com mais quinze minutos para expor. Iniciou sua
exposição, intitulada “Tragédia étnica”, afirmando que a entronização de políticas étnicas tem
causado, em vários países do mundo, as piores tragédias da humanidade e por isso assistia
com apreensão a introdução de leis raciais no Brasil. Em seguida, citou Darcy Ribeiro e fez
referência a tradição da “Antropologia ética” que recusa todo modo de distinguir indivíduos
com base na cor da pele ou em raças. Para Zarur, em uma democracia “as pessoas têm o
direito de assumir as identidades étnicas, de gênero, políticas ou religiosas e outras que
escolherem - forçar uma identidade é uma violência contra a democracia”. Segundo Zarur, sua
experiência de vida e de pesquisas nos Estados Unidos da América, onde viveu durante a
realização de seu PhD, o possibilitou perceber as diferenças existentes entre as relações
raciais norte-americanas e as brasileiras, e perceber a positividade de nosso sistema baseado
na mestiçagem, que não favorece a emergência de conflitos, massacres e segregação racial.
Finalizou afirmando que os ministros do STF não estavam, naquele momento, julgando
apenas o sistema de cotas da UnB, “mas a racialização que despreza a mestiçagem que forjou
o povo brasileiro, afronta à dignidade do cidadão e fere a unidade nacional!”.
O médico geneticista Sérgio Danilo Pena, professor da Universidade Federal de
Minas Gerais, subiu à bancada em seguida. Sua exposição foi intitulada de "Da inexistência
de raças do ponto de vista genético. Da formação e estrutura genética do povo brasileiro, com
ênfase na demonstração experimental de uma correlação tênue entre cor e ancestralidade
genômica no Brasil”. Iniciou seu discurso fazendo uma longa apresentação de seus títulos e de
sua experiência acadêmica e afirmando que estava presente na audiência em razão de ser
geneticista. Como homem de ciência - desveladora de mitos - afirmou que iria “direto aos
175
fatos”. O primeiro fato mostrado foi o de que “somos todos africanos, morando na África ou
em recente exílio”. Mostrou ainda que, de acordo com vários estudos, não existem variações
genéticas suficientes para diferenciação racial, portanto, os argumentos dos racistas não tem
nenhuma fundamentação biológica. Citou o caso dos gêmeos classificados diferentemente
pela UNB como forma de mostrar que a classificação racial é puramente subjetiva. Citou
também o estudo realizado por sua equipe na UFMG, utilizando o DNA e suas características
ancestrais, que o ajudaram a concluir que a miscigenação brasileira é histórica e que,
cientificamente, seria impossível classificar os brasileiros racialmente, pois a variabilidade
genômica entre os indivíduos é enorme.
A antropóloga Eunice Durham, professora do departamento de Antropologia da USP,
também não compareceu à Audiência. O texto enviado por ela, intitulado “Desigualdade
educacional e quotas para negros nas universidades”, foi lido por Roberta Fragoso Kaufman.
No texto, a antropóloga afirmava que a criação das políticas de cotas para facilitar a entrada
de negros na universidade contribuiu para expor as chagas do racismo e das desigualdades
que envergonham todos os brasileiros. De acordo com Durham, o racismo existe quando as
pessoas não são avaliadas por suas competências, mas por características visíveis, como a cor
da pele. Para ela, apesar do preconceito racial existir no Brasil, ele não atinge todo o tecido
social brasileiro e, neste sentido, a escola poderia desempenhar um papel de combate deste
racismo que ocorre no seu corpo formador (entre professores, alunos e funcionários). Nos
exames vestibulares, por exemplo, este preconceito já teria sido extirpado, pois a exclusão de
negros e outros seria causada por deficiência na sua formação anterior, e não na prova em si.
Seria necessário, portanto, melhorar o ensino básico como forma de equilibrar as
oportunidades. Para Durham, Gilberto Freyre estava certo ao afirmar que o fortalecimento da
identidade brasileira deveria passar pela valorização da identidade mestiça. Para finalizar, a
antropóloga afirmou que apesar de não existir no Brasil uma verdadeira democracia racial, “o
fundamento para sua construção reside nos preceitos constitucionais que tornam, perante a lei,
irrelevante a autoclassificação racial das pessoas e criminaliza a discriminação”.
Após a leitura do texto de Eunice Durham, Ibsen Noronha, professor de História do
Direito do Instituto superior de Ensino de Brasília, fez seu pronunciamento intitulado
“Problemas jurídico-históricos relativos à escravidão: miscigenação em terras brasileiras”. Ele
iniciou sua exposição afirmando que havia se inspirado, para aquele momento, em uma
especulação da filosofia grega: “dar a cada um sem prejudicar ninguém”. Afirmou ainda que
na condição de historiador estava presente na audiência orientado também pelo conselho do
antropólogo Gilberto Freyre, segundo o qual o papel da História não era criar ódios, mas sim
176
produzir alegrias e evitar as ideologias. Segundo Ibsen Noronha, os debates em curso
carregam um grupo grande de falácias e uma delas seria referente a dívida social com relação
à escravidão no Brasil. O grande problema deste argumento seria suas conseqüências, ou seja,
a necessidade de indenizar os descendentes de escravizados. No entanto, para o expositor, o
grande número de libertos no período da escravidão, somado ao alto índice de miscigenação
entre homens brancos e mulheres negras possibilitou, por exemplo, a ascensão de negros
livres durante a escravidão. Neste sentido, estabelecendo cotas raciais apenas para estudantes
negros correr-se-ia o risco de beneficiar um descendente de escravocrata, ao passo que um
filho de imigrante recente não teria a mesma possibilidade.
Logo em seguida, Luiz Felipe Alencastro, professor da Cátedra de História do Brasil
da Universidade de Paris-Sorbonne e representante da Fundação Cultural Palmares, fez sua
exposição intitulada “As vicissitudes do racismo na formação da população brasileira e as
desvantagens sociais para a população negra alvo de discriminação racial no acesso aos bens
materiais e imateriais produzidos em nossa sociedade. Inclusão Racial no Ensino Superior”.
Estabeleceu um dialogo não declarado com outros expositores da Audiência ao afirmar que
nenhum país praticou a escravidão como no Brasil. Afirmou ainda que entre os navios
negreiros não havia nenhum barco africano, pois todos eles eram europeus ou genuinamente
brasileiros. No período, não eram apenas os negros escravos que pagavam pelos males da
injustiça da escravidão, pois pesava sobre todos os negros libertos a suspeição de serem
negros fugidos. Referindo-se à temática central da Audiência, Alencastro afirmou que as cotas
no Brasil deviam ser discutidas com base naquilo que já existia (no PROUNI e nos cerca de
52.000 cotistas) e com base nas experiências em curso. Concluiu sua exposição afirmando que
o ingresso nas universidades representa o ponto de estrangulamento das desigualdades no
Brasil e, portanto, as alianças em favor da superação das desigualdades deveriam superar as
questões ideológicas.
A exposição do professor Kabengele Munanga, professor de Antropologia da USP e
diretor do Centro de Estudos Africanos da mesma universidade, apresentou a exposição
“Constitucionalidade das políticas de ação afirmativa nas Universidades Públicas brasileiras
na modalidade de cotas”. Iniciou sua exposição retomando parte de sua trajetória acadêmica, e
afirmando que além de ter sido o primeiro doutor negro formado na USP, foi o primeiro e
único professor negro da instituição. Com certo pesar, afirmou que em três anos se
aposentaria e não vislumbrava a possibilidade de ver um segundo professor negro na
instituição. Também por isso, achava que a situação racial no Brasil é pior do que nos EUA e
na África do Sul, e tal situação reforçava a constatação a que chegara durante seu doutorado:
177
que “algo está errado no país da Democracia Racial”. Referindo-se às políticas de cotas
implementadas no Brasil, Kabengele afirmou que, contrariando as previsões escatológicas, as
experiências brasileiras dos últimos anos mostraram que as mudanças em processo estão
sendo bem compreendidas pela população brasileira.
O professor de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Oscar
Vilhena Vieira, apresentou-se em seguida. Sua exposição intitulada “A obrigação do Estado
em eliminar as desigualdades historicamente acumuladas, garantindo a igualdade de
oportunidade e tratamento, bem como compensar perdas provocadas pela discriminação e
marginalização por motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero e outros” foi iniciada com a
afirmação de que políticas de Ações Afirmativas não haviam sido inventadas nos Estados
101
Unidos da América, pois haviam sido propostas por Gandhi para a constituição da Índia.
Em seguida, Vieira fez uma pergunta provocativa à audiência: A utilização do critério de raça
viola a constituição? E ele mesmo respondeu: não. Segundo ele, a utilização deste critério,
não só não é contraditória, como é um critério exigido para a consecução dos princípios da
constituição, pois todo o tipo de política requer discriminação. No intuito de exemplificar o
caráter discriminatório dos exames vestibulares, Vieira exemplifica que Martin Luther King
102
, um dos maiores oradores do século XX, foi reprovado no exame vestibular da
universidade de Boston em expressão oral. Luther King falava a língua dos guetos. “Se o
vestibular não é feito por estes, (...) a língua que se fala nos guetos não será suficiente para
atingir os critérios universais, meritocráticos e igualitários, que se exige no vestibular”. Nessa
perspectiva, Vieira considera o vestibular uma forma de premiação do investimento que os

101
Mohandas Karamchand Gandhi, nascido em 1869 e mais conhecido como Mahatma Ghandi foi um líder
pacifista indiano. Principal personalidade da independência da Índia, se formou em Direito em Londres e, em
1891, voltou à Índia para praticar advocacia. Dois anos depois, foi para a África do Sul, também colônia
britânica, onde iniciou um movimento pacifista, lutando pelos direitos dos hindus. Negando a colaboração
britânica e pregando a não-violência como forma de luta, organizou uma greve contra o aumento de impostos, na
qual uma multidão queima um posto policial. Detido, declara-se culpado e é condenado a seis anos, mas sai da
prisão em 1924. Têm atuação decisiva na proclamação da independência da Índia em 1947. No ano seguinte foi
assassinado.

102
Martin Luther King nasceu em Atlanta Georgia, em 15 de janeiro de 1929 em uma família de negros
americanos de classe média. Seu pai era pastor batista e sua mãe era professora. Aos 19 anos King foi ordenado
pastor batista. Mais tarde, formou-se no Seminário Teológico de Crozer e então cursou seus estudos de pós-
graduação na Universidade de Boston.Seus estudos o levaram a explorar as idéias do nacionalista hindu
Mohandas K. Gandhi, que se tornaram o centro de sua filosofia de protesto não violento. Em 1963 liderou um
movimento massivo pelos direitos civis no Alabama, organizando campanhas por eleitores negros, contra a
segregação, melhores condições de moradia e educação por todo o sul. A não-violência tornou-se sua maneira de
demonstrar resistência. Foi novamente preso diversas vezes. Neste mesmo ano liderou a histórica passeata em
Washington onde proferiu seu famoso discurso "I have a dream"("Eu tenho um sonho"). Em 1964 foi premiado
com o Nobel da Paz. Em 4 de abril de 1968 King foi baleado e morto em Memphis, Tenessee, por um branco
que foi preso e condenado a 99 anos de prisão.

178
pais foram capazes de fazer durante a vida escolar de seus filhos e por isso, as Ações
Afirmativas não têm relação necessária com raças, mas com formas de regularizar processos
desiguais. Conclui, afirmando que Ações Afirmativas seriam levemente aceitáveis pela
Constituição brasileira como forma de aliviar a inconstitucionalidade de processos seletivos
altamente excludentes.
Em exposição intitulada “Compatibilidade entre excelência acadêmica e ação
afirmativa”, Leonardo Avritzer, professor de Ciência Política da Universidade Federal de
Minas Gerais, destacou a importância da diversidade no processo de produção de
conhecimentos científicos. Segundo ele, as Ações Afirmativas poderiam ser vistas como um
importante meio de concretizar um princípio de produção acadêmica diversificada pois, ao
longo de sua existência histórica, as universidades têm se adaptado às diferentes mudanças
sem perder sua marca: os processos autônomos de produção do conhecimento. No entanto, as
universidades só seriam capazes de gerar conhecimento se conseguissem expressar
diversidade de saberes, não só nas áreas das ciências humanas, mas também nas áreas exatas e
econômicas. Como o conceito de comunidade acadêmica abrange as relações humanas, não
somente a educação, as instituições universitárias precisam mesclar diferentes talentos e
competência com outros critérios para produzir qualidade acadêmica. Segundo Avritzer, não
se trata, em absoluto, de racialização, mas de diversificação da universidade e em
consequência do mercado de trabalho.
O representante da Sociedade Afro-Brasileira de Desenvolvimento Sócio-cultural
(AFROBRAS) e Reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, José Vicente, foi o último
expositor da manhã de quinta-feira. Expôs durante quinze minutos sobre o “Papel das Ações
Afirmativas” e iniciou sua apresentação fazendo um breve histórico da Afrobras e dos
cursinhos pré-vestibulares para viabilizar a entrada de estudantes negros no Ensino Superior
brasileiro, nos setores públicos e privados. Segundo José Vicente, a iniciativa dos cursinhos
pré-vestibulares foi o embrião da posteriormente inaugurada, Universidade Zumbi dos
Palmares, que desde sua fundação desenvolve ações de inserção no mercado em parceria com
bancos que recebem os estudantes da universidade. Durante sua exposição, José Vicente
aludiu ainda à gênese das desigualdades histórias que afetaram os negros no Brasil, com
complacência do Estado, e que ao final do período escravocrata não foram alvos de nenhuma
reparação, em comparação, com as reparações colocadas em prática nos Estados Unidos. Para
José Vicente, o papel fundamental das cotas nas universidades brasileiras seria o de
“refundar” a República e “reescrever os cânones da nossa particular democracia, promovendo
e garantindo, de forma efetiva e objetiva, a coesão, a justiça, a igualdade e a diversidade como
179
valores intrínsecos à nação”. Ao final, José Vicente, solicitou ao ministro Ricardo
Lewandowski permissão para exibição de um vídeo sobre a Faculdade Zumbi dos Palmares, o
que foi prontamente autorizado. A exibição do vídeo gerou algumas controvérsias no plenário
e rendeu um comentário do Ministro Ricardo Lewandowski.

Agradeço a intervenção do Professor José Vicente, Presidente da Afrobras e Reitor


da Universidade Zumbi dos Palmares. Agradeço também a exibição do vídeo. Fico
tranqüilizado que o vídeo é pluripartidário, apareceram líderes de todos os partidos,
não apenas o Presidente Lula, o Presidente Fernando Henrique Cardoso, os
Governadores Alckmin e Serra. Portanto, a mensagem é universal (SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL, 2010, p. 258-259).

3º DIA DA AUDIÊNCIA

A plenária da manhã de sexta-feira, último dia da Audiência Pública, teve início com a
exposição de Fábio Konder Comparato, professor titular da Universidade de São Paulo e
representante da EDUCAFRO - Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes.
Iniciou sua exposição afirmando que a Constituição de 1988 (sobretudo o artigo 3°, inciso 3 e
4) é de natureza teleológica, pois procura induzir um rumo ao país e trata-se de um objetivo
não-facultativo. Segundo ele, o objeto do artigo 4° da Constituição - “promover o bem de
todos” (principio republicano por natureza) - tem sido mal compreendido, pois a
discriminação pode ser de duas espécies: ativa e omissiva. A segunda é anti-republicana, pois
implica na omissão do Estado em fazer cessar as desigualdades sociais. Afirmar que a
constituição é sexista por advogar que é preciso proteger as mulheres das desigualdades do
mercado de trabalho é um equivoco. Mas isto tem sido feito em relação aos negros. Se há
reserva de vagas, os candidatos não são dispensados do concurso e, portanto, não se ameaça o
principio do mérito. O professor Fábio Comparato concluiu sua exposição afirmando que até
hoje a constituição tem sido descumprida por omissão em relação às desigualdades, pois
depois de um século da Abolição ainda estamos discutindo uma política de relativa igualdade
para os negros em relação aos demais brasileiros.
A segunda expositora da sexta-feira foi a representante da Fundação Cultural
Palmares, Flávia Piovesan, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da
Pontifícia Universidade Católica do Paraná. A professora iniciou sua exposição intitulada “A
Compatibilidade das cotas com o sistema constitucional brasileiro” com uma pergunta: como

180
compreender as cotas e as Ações Afirmativas na ótica dos Direitos Humanos? De acordo com
a expositora, o respeito ao direito das diferenças é fundamental, sobretudo se levarmos em
conta que, por muito tempo, a diversidade foi considerada como característica para
aniquilação das diferenças, ainda que o temor à diferença continue com vitalidade, e tem
marcado a maioria das defesas da igualdade formal. Todavia, à medida que os diferentes
requisitam o direito à diferença, somos incitados a romper com a indiferença à diferença.
Após tais afirmações, Piovesan faz outra pergunta: as cotas raciais são compatíveis com a
Constituição de 1988? Segundo a expositora, a decisão tomada em Dezembro de 2008 pelo
Supremo Tribunal Federal, ratificou a legalidade das cotas no plano nacional. Já no plano
internacional, as cotas refletem o alinhamento do Estado brasileiro com vários documentos de
combate ao racismo, rompendo assim, mesmo que em parte, com o silêncio e a negligência do
Estado Brasileiro.
Denise Carreira, representante da organização não-governamental Ação Educativa e
relatora nacional para o direito humano à educação apresentou o texto intitulado “Resultados
parciais da missão sobre Racismo na Educação brasileira, em desenvolvimento pela Relatora
Nacional, da qual resultará relatório a ser encaminhado às instâncias da ONU em 2010”. De
acordo com Carreira, no Brasil, a idéia de raça vem sendo usada como uma construção social
que possibilita a estruturação de desigualdades e discriminações com base na fenotípica dos
indivíduos. Neste sentido, as políticas universais que desconsideram a efetividade das
distinções raciais nas relações sociais brasileiras, tornam-se ineficientes no combate às
desigualdades raciais, sobretudo naquelas relacionadas ao acesso e permanência de crianças e
jovens negros na educação brasileira. Nas escolas infantis, o racismo, apesar de ser inviável
por meio do discurso da Democracia racial, faz-se presente às crianças e jovens negros que
continuam sendo as principais vítimas do bullying racial nas escolas. A adoção e o
aprofundamento de políticas específicas para o combate do racismo, como a lei 10639/03,
possibilitaria conjugar políticas pontuais e políticas estruturais de modo a não ferir, por
omissão, mais três gerações. Por fim, salientou que afirmar que as Ações Afirmativas são
meras adaptações de outras experiências, é negar a capacidade inventiva e mesmo
“reinventiva” para solucionar problemas das instituições e dos indivíduos.
O coordenador nacional de entidades negras (CONEN), Marcos Antonio Cardoso, se
dirigiu à plenária logo em seguida e apresentou o texto intitulado “Defesa das Políticas de
Ação Afirmativa”. Iniciou afirmando que o racismo no Brasil é uma instituição histórica, pois
retroalimenta-se no cotidiano e forja as desigualdades raciais que foram, e continuam sendo, o
que possibilitou a formação de elites econômicas, intelectuais e culturais no Brasil. Deste
181
modo, denunciar o racismo é revelar os diferentes quadros de violência a que a população
negra tem sido submetidas. Afirmou ainda que as alegações contrárias às cotas tem sido
sempre repetitivas, baseadas em alegações freyrianos de seus seguidores, inconformados com
a emancipação dos sujeitos antes subalternizados. De acordo com Marcos Cardoso, no Brasil
não é preciso instrumentos legais para discriminar racialmente, pois o racismo aqui é sui
generis: negros e negras são cotidianamente colocados à prova, tendo que demonstrar
genialidade em coisas que bastaria realizar ações simples. Por fim, afirmou que, no Brasil,
somente a nomeacão das diferenças é o que possibilita a superação da manutenção da ditadura
da igualdade.
Sueli Carneiro, coordenadora do Geledés - Instituto da mulher negra de São Paulo -
apresentou em seguida o texto “Políticas de cotas como um dos instrumentos de construção da
igualdade mediante o reconhecimento da desigualdade historicamente acumulada pelos
afrodescendentes em função das práticas discricionárias de base racial vigentes em nossa
sociedade”. De acordo com Sueli Carneiro, a pluralidade de vozes a favor das Ações
Afirmativas na audiência, não estão representadas no debate público apresentado pela mídia
brasileira. Durante sua exposição, citou uma série de declarações de Joaquim Nabuco e do
vice-presidente Marco Maciel (DEM), para mostrar como a Abolição não foi capaz de romper
as amarras da escravidão. Segundo ela, seria preciso superar a concepção abstrata de
igualdade formal em prol de uma noção de igualdade substantiva. Concluiu dizendo que o que
estava em jogo no debate sobre políticas de cotas no Brasil eram perspectivas distintas de
país, que agregavam negros e brancos em uma e em outra perspectiva.
O tema da exposição do Juiz Federal da 2ª Vara Federal de Florianópolis, Carlos
Alberto da Costa Dias, foi a “Proporcionalidade e razoabilidade do fator de ‘discrimen’.
Impossibilidade de identificação do negro”. Segundo Dias, e este foi o ponto central de sua
fala, o grande problema das políticas de cotas se assentaria na impossibilidade de definir raça
como fator de discriminem. Apesar da existência de discriminações positivas na Constituição
Brasileira, raça não poderia ser usada como fator de discriminação, pois não possui relação
causal com as desigualdades. O fato das desigualdades serem baseadas na trajetória escolar e,
ainda, o fato do estudante egresso da escola pública ter tido acesso a uma escolarização de
baixa qualidade seria o que explicaria as dificuldades de acesso ao ensino superior.
José Roberto Ferreira Militão, Conselheiro do Conselho Estadual de Desenvolvimento
da Comunidade Negra do Governo do Estado de São Paulo, fez a exposição intitulada “A
‘raça estatal’ e o racismo”. Sua apresentação serviu como delimitação de seu posicionamento
teórico e político dentro da Audiência. Começou dizendo que era um ativista histórico contra
182
o racismo, em prol de ações afirmativas e a favor do investimento público em cotas sociais.
Também afirmou ser favorável a criação nas universidades de critérios de seleção, reservando
pelo menos 50% das vagas para acesso pelo critério de rendas, mas que era radicalmente
contra o racismo estatal. Segundo Militão, o Estado não poderia, sob pena de violar a
dignidade humana, outorgar aos indivíduos uma identidade racial. Entretanto, seria isto o que
estaria ocorrendo; e a chancela do STF poderia abrir um perigoso precedente para a criação de
um Estado legalmente racializado.
Serge Goulart, Coordenador da Esquerda Marxista – Corrente do PT, não compareceu
à Audiência Pública e nem enviou um texto para ser lido na plenária. Sua ausência, motivada
pelo cancelamento de um vôo, foi justificada por José Carlos Miranda.
José Carlos Miranda, do Movimento Negro Socialista, intitulou sua exposição de “A
racialização das relações sociais no âmbito das periferias das grandes cidades”. Expôs durante
quinze minutos e iniciou seu discurso apresentando uma foto de duas crianças quilombolas,
uma negra e uma branca, como forma de mostrar a integração racial no Brasil. De acordo com
ele, a verdadeira versão sobre os culpados pela escravidão não tem nada haver com
cores/raças, pois a história seria movimentada pela luta de classes. Toda a escravidão, de
negros e indígenas, teve o objetivo de acumulação primitiva de capitais e, portanto, o racismo
e o capitalismo são faces da mesma moeda. Neste sentido, qualquer defesa acerca de uma
divida histórica para com o povo negro, só seria possível a partir de uma dissimulação da
verdade da exploração capitalista.
A representante do Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro (MPMB) e da Associação
dos Caboclos e Ribeirinhos da Amazônia (ACRA), a senhora Helderli Fideliz Castro de Sá
Leão Alves apresentou o texto “Políticas públicas de eliminação da identidade mestiça e
sistemas classificatórios de cor, raça e etnia”. Helderli iniciou sua exposição afirmando que as
políticas de cotas raciais implementadas na UNB não podem ser consideradas Ações
Afirmativas, pois não visam reparar desigualdades, mas sim criar uma identidade negra que
suprimiria a identidade mestiça e mulata. Segundo ela, tal política, orientada pelo que chamou
de Ideologia da Mestiçofobia é, exatamente, o inverso do que propôs Darcy Ribeiro, o
fundador da UNB. De acordo com a expositora, um dos graves problemas da política
implementada na UNB é o fato de excluir dos potenciais usufruidores das cotas aqueles pretos
e pardos que não se auto-declarem negros. Esta tentativa de enquadrar todos os pretos, pardos
e mulatos na categoria negro seria derivada da visão negativa que se construiu sobre o mestiço
e a mestiçagem que, no Brasil, havia se dado de modo muito mais harmônico do que em
outras partes do mundo.
183
A tarde do último dia de Audiência foi reservada à exposição de experiências de
implementação de Ações Afirmativas em instituições de ensino superior brasileiras. O
professor Alan Kardec Martins Barbiero, representante da Associação Nacional dos
Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES) foi o primeiro a expor.
Relatou a realização de um levantamento recente entre as instituições de ensino superior, onde
foram diagnosticadas várias experiências de Ações Afirmativas. Nestas instituições, entre os
aspectos positivos do processo de implementação das Ações Afirmativas e das cotas raciais,
estaria o aumento das populações historicamente discriminadas, ampliação de debates no
interior das universidades sobre relações raciais e a criação de comissões específicas nas
universidades responsáveis por organizar debates públicos e subsidiar as decisões dos
conselhos universitários. Entre os aspectos negativos, Alan Kardec destacou as dificuldades,
enfrentadas pelas comissões internas de instituições que adotaram as Ações Afirmativas, de
definição de critérios de seleção dos estudantes cotistas, além das dificuldades percebidas
entre alguns estudantes e professores de reconhecerem a legitimidade da problemática racial.
Parte desta dificuldade, segundo Alan Kardec, derivaria da permanência de um imaginário
dominante, não apenas entre estudantes e professores universitários, que enfatizaria a
convivência social harmônica entre negros, brancos, indígenas, pobres, ricos. No
encerramento de sua exposição, Kardec ressaltou que a ANDIFES defende:

o princípio da autonomia, que cada conselho universitário tenha a condição, a


capacidade de fazer uma reflexão, interagindo com a sociedade, interagindo com os
movimentos sociais, observando a legislação de implantar a sua ação afirmativa, ou
não, da forma mais adequada, segundo a sua história, segundo a sua maturidade,
segundo o debate que se faz no dia-a-dia das nossas comunidades. Algo diferente
disso estaria ferindo um princípio constitucional (idem, p.349).

O segundo expositor da tarde foi Augusto Canizzela Chagas, Presidente da União


Nacional dos Estudantes (UNE) 103, iniciou sua exposição posicionando-se favoravelmente às
cotas raciais, face ao reconhecimento da situação de exclusão da população jovem e negra do
ensino superior brasileiro. Segundo Chagas, os resultados do censo étnico-racial realizado na
USP no ano de 2001 revelaram que apenas 1% dos estudantes da instituição são pretos e cerca
de 8% são pardos. Fica evidente, portanto, que há então uma sobre-representação de

103
Apesar de estar presente na Audiência Pública, o estudante negro Cledisson Geraldo dos Santos Junior –
Diretor da União Nacional dos Estudantes, previamente habilitado para se pronunciar, foi substituído, momentos
antes da exposição, pelo presidente da entidade.

184
estudantes brancos nos cursos desta universidade, principalmente nos mais concorridos.
Analisando as características do sistema universitário brasileiro atual, a despeito dos recentes
aumentos nos números de vagas, a UNE têm percebido a perpetuação de um cenário
universitário branco e de elite. Os dados sobre matrículas e aprovação de estudantes brancos e
de alta renda no curso de Medicina da FUVEST são ainda mais reveladores da segregação
social e racial do vestibular. Nesta perspectiva, o vestibular não pode ser tomado como
sinônimo de mérito, pois segundo Chagas, a UNE entende que a implementação de políticas
de Ações Afirmativas em instituições de ensino superior não implica em risco de queda da
qualidade acadêmica e tampouco implica no surgimento de uma cisão racial no Brasil. Ao
contrário, poderia favorecer, por meio da inclusão de grupos historicamente excluídos, a
verdadeira união nacional.
Representando o Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), o
professor João Feres fez uma exposição de quinze minutos de duração, centrada na discussão
dos argumentos que, segundo ele, apesar de cruciais, nem sempre aparecem claramente no
debate público sobre Ações Afirmativas. Para o professor, o primeiro tópico do debate atual
seria: 1) Justificação das políticas de Ações Afirmativas. Segundo Feres, a cada tipo de
justificação (reparação, justiça social e diversidade), se associa um tipo de beneficiários. No
caso da reparação em relação ao passado escravagista, por exemplo, os beneficiários seriam
os descendentes de escravos, por exemplo. Ainda segundo ele, as três justificações não seriam
mutuamente excludentes, mas “uma política de ação afirmativa para a inclusão de negros e
pardos na universidade cumpriria o objetivo de reparar (em parte) as consequências nefastas
da escravidão e de promover a justiça social e a diversidade”. O segundo tópico seria: 2)
Estado, cidadania e ação afirmativa. Feres, afirma que tais políticas de Ações Afirmativas, em
geral, são acusadas de ameaçar a igualdade formal do Estado Republicano, mas segundo ele
todas as políticas promovidas por um Estado de bem-estar social precisam ser
discriminatórias, na medida em que utilizam um recurso pertencente a todos de modo
desigual, no intuito de promover o bem geral da nação. O terceiro tópico seria: 3) A
racialização da nação promovida pela políticas de Ações Afirmativas. Segundo Feres, este
seria um pilar frágil, pois na medida em que tal argumento é descritivo e empírico, ele pode
ser comprovado ou falseado por meio das evidências empíricas; e o que se vê é que as
políticas de Ações Afirmativas já estão funcionando no Brasil há quase uma década sem ter
provocado nenhum tipo de conflito racial, nas universidades ou fora dela.
Logo após a exposição do Professor João Feres, o professor Renato Hyuda de Luna
Pedrosa, coordenador da Comissão de Vestibulares da Universidade Estadual de Campinas –
185
UNICAMP - foi convidado a fazer sua exposição. Começou afirmando que a autonomia
universitária, a defesa da excelência acadêmica e a preocupação com a inclusão de grupos
historicamente excluídos da universidade motivaram a implementação das Ações Afirmativas
na Unicamp. De acordo com Hyuda, a UNICAMP sempre levou os preceitos constitucionais
relativos ao ensino superior brasileiro em consideração: “o acesso à qualificação acadêmica
será dada a partir da capacidade de cada um”. Por isso, a universidade colocou em prática seu
compromisso de incluir grupos discriminados, mas sem colocar em risco a qualidade
acadêmica. A solução encontrada pela comissão de vestibulares da Unicamp para equacionar
estas duas necessidades foi à instituição da política de bônus, pela qual estudantes que
cursaram o ensino fundamental em escolas públicas receberiam 30 pontos de bônus na
pontuação do exame vestibular, e todos aqueles que se declarassem pretos, pardos oru
indígenas (e fossem oriundos de escolas públicas) receberiam mais 10 pontos. Segundo ele, as
análises do desempenho dos estudantes que ingressaram na universidade por meio da política
de bônus indicaram um desempenho de saída melhor do que o de entrada, o que indica que a
Unicamp conseguiu alcançar seu objetivos. Questionado pelo Ministro Ricardo Lewandowski
sobre os critérios de autodeclaração racial utilizados pela Unicamp, e sobre os motivos pelos
quais a universidade não instituiu nenhuma forma de averiguação destas declarações, o
professor Renato Hyuda respondeu que a comissão de vestibulares da universidade levou em
consideração especialistas da área de Antropologia da instituição, que argumentavam sobre as
dificuldades de estabelecer uma comissão que avaliasse isto.
O pró-reitor de graduação da Universidade Federal de Juiz de Fora, professor Eduardo
Magrone, se apresentou logo em seguida. De acordo com o reitor, a política de cotas da UFJF,
aprovada pelo conselho superior da universidade no ano de 2004, faz parte de um projeto de
inclusão global, que conta com cursinhos pré-vestibulares comunitários e de um Núcleo de
estudos Afro-Brasileiros (NEAB), para estudar as características da população negra da
região. Segundo o pró-reitor, na UFJF, 50% das vagas de todos os cursos de graduação estão
reservadas para estudantes cotistas, sendo 25% para egressos de escolas públicas e 25% para
aqueles que se declaram negros. Desse modo, três grupos de estudantes podem prestar
vestibular na universidade federal de Juiz de Fora, sendo a) os estudantes de escolas públicas
que se declaram negros, b) estudantes de escolas públicas que não se declaram negros e c)
estudantes que não optaram pelas cotas. As informações apresentadas por Magrone, em um
gráfico sobre as notas dos vestibulandos, sinalizavam que caso não houvesse esta política de
cotas na UFJF, o quadro de exclusão e sobre-representação de filhos de elite se perpetuaria,
principalmente nos cursos de maior prestígio. No entanto, por meio do gráfico também se
186
percebe que as vagas destinadas para os grupos cotistas, ainda não estão sendo preenchidas de
maneira adequada. Um dos fatores apontados pelo Pró-reitor seria a desinformação acerca do
processo seletivo da universidade, e mesmo da existência de reserva de vagas. Em análise
sobre o rendimento acadêmico dos estudantes da UFJF, apesar dos dados evidenciarem um
significativo índice de reprovação por notas dos estudantes dos três grupos (A, B, C), de
forma especial nos cursos das áreas de Ciências e Tecnologia, a situação de reprovação por
notas era maior no grupo de estudantes negros cotistas. Em face desta situação, o pró-reitor
defendeu a necessidade de um apoio pedagógico da instituição para manutenção do
desempenho de todos os estudantes, com ênfase especial nos estudantes ingressantes por
cotas. Ele destacou, por fim, as dificuldades relativas à utilização do critério “escola pública”
como meio de seleção, em razão da existência, na região da Zona da Mata mineira, de cerca
de dez colégios federais que acabam desequilibrando a disputa entre estudantes egressos de
instituições públicas de ensino.
Ao final da exposição de Eduardo Magrone, o Ministro Ricardo Lewandowski fez
uma pequena intervenção, que merece ser transcrita na integra:

Obrigado Professor Eduardo Magrone da Universidade Federal de Juiz de Fora. O


pronunciamento que o Senhor acaba de fazer rebate as críticas que nós sofremos
inicialmente que teria havido um desequilíbrio entre aqueles que falam a favor e
contra as cotas, porque quando nós convidamos, na última parte das audiências, que
as universidades públicas viessem até o Supremo Tribunal Federal e oferecessem os
seus testemunhos, então, imaginou-se, inicialmente, por parte de alguns que tinham
uma visão mais crítica desse processo desencadeado aqui no Supremo Tribunal
Federal que seriam depoimentos totalmente favoráveis à política de quotas, de ação
afirmativa, mas, como eu esperava, as universidades estão trazendo pontos
negativos e pontos positivos e fazendo uma avaliação crítica, como é próprio do
espírito universitário da experiência que tiveram com relação a esse assunto.
Obrigado pela sua participação, Professor Eduardo Magrone (idem, p.392).

Logo após a breve intervenção, o Ministro Lewandowski concedeu a palavra à


professora Jânia Maria Lopes Saldanha, da Universidade Federal de Santa Maria; que iniciou
sua exposição destacando a importância da Audiência Pública como prática de uma
democracia representativa alargada. Por meio da leitura de um poema escrito por uma
estudante universitária, a professora denunciou as desigualdades educacionais e a privação de
direitos vivenciada pelos jovens brasileiros. De acordo com a docente, a adoção de políticas
de cotas na Universidade Federal de Santa Maria visava superar algumas das conseqüências
que a divisão desigual de saberes produz, entre estabelecidos e outsiders. Neste processo de
divisão desigual de poderes e saberes, que estão diretamente correlacionados, as universidades
187
se tornam espaços privilegiados. De acordo com a expositora, o estabelecimento de Ações
Afirmativas na UFSM não foi um processo simples e tampouco está concluído, pois a
universidade passou por um processo de longos debates, mediados por dois seminários
internacionais sobre a temática, até a adoção das atuais medidas no ano de 2008. Atualmente a
UFSM reserva vagas para diversos grupos historicamente discriminados: afro-brasileiros,
pessoas com necessidades especiais, estudantes de escolas públicas e estudantes indígenas.
Carlos Eduardo de Souza Gonçalves, vice-reitor da Universidade do Estado do
Amazonas, se pronunciou logo em seguida e iniciou seu pronunciamento contextualizando a
situação do Estado do Amazonas e a concentração populacional na cidade de Manaus.
Segundo ele, até o ano de 1987 só existia uma instituição de ensino superior no estado, e a
questão universitária no Amazonas era tratada com muito descaso. A criação da Universidade
do Estado do Amazonas foi uma tentativa de enfrentar o desafio de interiorização do ensino
superior no Estado, e a criação de variadas modalidades de cotas no ano de 2004, que apenas
três anos após sua criação, visava possibilitar o ingresso de estudantes oriundos de escolas
públicas do estado, e estudantes que ainda não tinham curso superior concluído, como
também dos estudantes indígenas. O aumento do debate nacional em torno das políticas de
cotas nos anos de 2006 e 2008 implicou em um aumento das liminares questionando a
constitucionalidade das cotas na universidade do Estado do Amazonas, o que gerou a
necessidade de matricular mais estudantes do que a universidade tinha capacidade. De acordo
com Carlos Eduardo, uma das consequências positivas das políticas de cotas na universidade
foi à universalização do ensino superior no Estado, além de ter criado para a universidade a
possibilidade de distribuir melhor o seu potencial no Estado e eliminar o desequilíbrio entre
Manaus, que tem hoje dois milhões de habitantes, e o interior do Estado, que tem apenas um
milhão e setecentos mil, muitos deles vivendo à beira dos rios e nas matas. Através da
tecnologia, a UEMA está chegando a lugares que antes não estava e as cotas têm ajudado
muito na correção destas distorções.
O professor Marcelo Tratemberg, da Universidade Federal de Santa Catarina, dedicou
sua apresentação a Martin Luther King, defensor dos direitos civis para negros norte-
americanos e ações reparatórias para a população negra de modo geral. O professor fez uma
reflexão sobre as desigualdades de renda no Brasil que, por serem indiscutíveis, exigiriam
uma política de ações afirmativas com recorte sócio-econômico, como forma de possibilitar a
diversidade e a convivência das diferenças. Segundo Tratemberg, tanto o IPEA, quanto o
IBGE, tem sido muito eficientes em demonstrar que no Brasil as desigualdades sócio-
econômicas se somam as desigualdades de fundo étnico-racial, e por isso, as críticas feitas
188
durante a Audiência aos dados produzidos pelo IBGE e IPEA, acerca das relações e
desigualdades raciais no Brasil, são muito graves. Segundo Tratemberg, a simples reserva de
vagas para estudantes de escolas públicas, não seria capaz de incluir, de modo automático,
estudantes negros. A inclusão de negros necessitaria de outra linha de intervenção:

O nosso Programa de Ação Afirmativa da Universidade Federal de Santa Catarina é


um programa que pretende atingir vários níveis de inclusão. O primeiro é a
ampliação do pré-vestibular gratuito. O segundo se dá, com relação às cotas de 20%
pra estudantes do Ensino Fundamental e Médio público, 10% para negros
prioritariamente do Ensino Fundamental e Médio público e vagas suplementares
para indígenas (idem, p.416).

Ao final da exposição do Professor Marcelo Tratemberg, a ministra Carmen Lúcia fez


uma breve intervenção, questionando o palestrante sobre a existência de dados produzidos
pela equipe da Universidade Federal de Santa Catarina sobre as dificuldades enfrentadas pelas
mulheres negras no processo de ingresso ao ensino superior. Ao responder, o professor
afirmou que sua equipe não realizou o cruzamento de informações entre gênero e
pertencimento racial, sendo impossível responder a ministra com base em seus levantamentos.
Fernanda Duarte Lopes Lucas da Silva, juíza federal da seção judiciária do Rio de
Janeiro e representante da Associação dos Juízes Federais foi à última expositora habilitada, e
também teve direito a quinze minutos de pronunciamento. A juíza iniciou seu pronunciamento
reconhecendo a existência e persistência das injustiças e desigualdades, tanto no que se refere
à cor e raça quanto no que se refere à classe social. Refletiu sobre como estas injustiças e
desigualdades interferem no usufruto dos direitos fundamentais de cidadania. Ressaltou, no
entanto, o forte dissenso em torno das proposições sobre o combate destas situações e a
importância do exercício democrático de livre convencimento por meio de argumentos
contraditórios. Ainda que a tendência recente dos Tribunais da 1ª e 4ª Regiões venha sendo no
sentido de referendar o sistema de cotas raciais, a Associação de Juízes Federais não se
apresentou na Audiência Pública com uma posição fechada sobre a matéria, do contrário,
trouxe para a plenária uma série de questionamentos provocadores. Ainda de acordo com a
juíza federal, as respostas às questões jurídicas levantadas têm por pressupostos questões de
natureza política, que trazem à tona questões que nem sempre estamos dispostos a enfrentar.
Finalizou afirmando que os dissensos em torno da temática derivariam de diferentes
concepções de mundo que expressam visões distintas do que seja a igualdade e a justiça e,
além disso, do que seja a própria nação brasileira.

189
Findo a exposição da representante da Associação dos Juízes Federais do Brasil, o
Ministro Ricardo Lewandowski concedeu a palavra a dois estudantes que participaram de
experiências de implementação de políticas de cotas em suas universidades. Por não estarem
previamente inscritos, o ministro justificou a quebra do protocolo anteriormente estabelecido:

Eu abrirei uma exceção saindo um pouco do programa inicial, porque tive um


pedido por parte de estudantes que ingressaram pelas cotas raciais na Universidade
Estadual do Rio de Janeiro e pediram para fazer um breve pronunciamento,
relatando a sua experiência, mas, tendo em conta exatamente essa necessidade de
preservarmos a isonomia, a igualdade, eu convidei para que se manifestasse,
também, um estudante da Universidade Federal do Rio Grande do Sul que
manifestará, veiculará um ponto de vista contrário (idem, p.425).

O primeiro estudante a se pronunciar foi Davi Cura Aminuzo, estudante do curso de


Museologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Iniciou seu pronunciamento se
apresentando e dizendo que seu avó chegou ao Brasil, e se tornou agricultor, após ter fugido
da Europa, onde possuía uma excelente condição financeira, na época da Primeira Guerra
Mundial. Segundo Davi Cura, ele era o primeiro da geração de seu avó a chegar nos bancos
universitários, pois nenhum de seus familiares, e nem ele próprio - antes de ter se aposentado
- tiveram condições de fazer um curso superior. Ainda segundo ele, a instauração de cotas na
UFRGS possibilitou que muitos que, como ele, estudaram em escolas públicas, independente
da condição financeira, pudessem se candidatar a uma vaga de cotista na universidade. O
problema é que a falta de critérios transparentes e sérios de seleção de cotistas na UFRGS
estatiam favorecendo uma série de estudantes de classe alta, na sua maioria brancos, que
viajam para a Europa todos os anos e que, por terem estudado nos melhores colégios públicos
de Porto Alegre durante o ensino médio, acabam ficando com as vagas que deveriam ser
daqueles estudantes que, por mérito, teriam direito a ingressar na universidade.
O segundo estudante a se pronunciar foi Moacir Carlos da Silva, estudante da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro e membro do coletivo DENEGRIR da mesma
universidade. Segundo Moacir, partiu do coletivo a problematização, na Audiência, acerca da
não-fala de estudantes que vivenciaram políticas de cotas no Brasil. Segundo ele, as
experiências vivenciadas pelos estudantes na UERJ, por exemplo, poderiam se contrapor aos
argumentos daqueles que se opunham às cotas, mas as tratam como se ainda não existissem.
Segundo ele, as políticas de cotas são também uma questão ética, pois as pessoas não têm
problemas em falar do Holocausto dos judeus e pensar em reparações, mas quando isso é
proposto pela população negra em relação aos 400 anos de escravidão, é como se os negros é
que fossem os racistas. Conclui sua exposição falando de alguns jovens, incluindo ele mesmo
190
que, graças às políticas de cotas conseguiram ingressar no ensino superior e começar a mudar
sua história de vida e de suas famílias.
Ao final dos pronunciamentos dos expositores habilitados para participar da Audiência
pública, o Ministro Ricardo Lewandowski realizou suas considerações finais reforçando a
importância das Audiências públicas no processo de fortalecimento da participação da
sociedade civil. Em seguida, afirmou que tais Audiências representavam uma importante
quebra de paradigma, sobretudo, em se tratando de um tema eminentemente jurídico como a
constitucionalidade ou inconstitucionalidade das cotas. O ministro enalteceu a qualidade das
intervenções realizadas durante os três dias de audiência e a variabilidade de abordagens
apresentadas que contemplaram aspectos históricos, jurídicos, filosóficos, sociológicos,
econômicos, políticos e biológicos. Por fim, salientou que a variabilidade e qualidade das
intervenções realizadas ao longo dos três dias serviriam para subsidiar os julgamentos dos
Ministros nos dois processos que motivaram a realização da Audiência.

5.2 – Os expositores e seus “discursos de verdade”

Acho que a situação que está acontecendo, o debate, para além de


qualquer coisa que a ação afirmativa possa conseguir, ela já teve uma
vitória muito grande que é a discussão de raça. É fazer o brasileiro
discutir raça, porque o brasileiro não gosta, é desconfortável,
incômodo, causa urticária. E estamos tendo que discutir: está todo
dia no jornal, questão de raça. E se a gente considera que você não
pode resolver um problema antes que você reconheça a existência
dele, então nós estamos caminhando num sentido positivo, de estudar
os problemas, que não vão ser resolvidos com ação afirmativa.
Carlos Alberto Medeiros. Depoimentos Histórias do Movimento
Negro no Brasil: Depoimento ao CPDOC, 2007, p. 406.

Do conjunto de 45 expositores que se apresentou durante a Audiência Pública, como


foi dito anteriormente, 16 foram selecionados para terem seus discursos analisados no sexto
capítulo deste trabalho. Ao selecionar os expositores e seus discursos, procuramos garantir
equilíbrio entre aqueles que se posicionaram negativamente e aqueles que se posicionaram em
defesa da constitucionalidade das políticas de cotas para estudantes negros em instituições
públicas de ensino superior. Ao mesmo tempo, selecionamos discursos que, em função do
envolvimento teórico e/ou militante com a temática das relações raciais, ou com a temática
das Ações Afirmativas, pudessem contribuir para uma melhor compreensão das articulações
191
existentes entre os posicionamentos dos expositores, os projetos de nação defendidos por cada
um e as alternativas políticas definidas para solucionar os problemas identificados no país.
Apesar dos esforços em controlar os possíveis vícios na seleção dos expositores,
amenizando assim possíveis vieses de classe, de pertencimento étnico-racial e de gênero, a
própria estrutura assimétrica do campo acadêmico brasileiro, materializada no conjunto de
expositores na Audiência, dificultou uma isonomia completa. No curso de sua exposição, o
professor José Jorge de Carvalho chamou a atenção para este aspecto.

Foram convocadas quarenta e três pessoas para este três dias de audiência. Como se
trata de discutir o ensino superior, é compreensível que o número de professores
seja majoritário na composição dos palestrantes. Das quarenta e três pessoas
convocadas a falar, trinta são professores - alguns evidentemente assumiram o
cargo de administração do Estado e outros espaços especializados. O problema é
que desses trinta professores, vinte e oito deles são brancos e apenas dois são
negros: o Professor Kabengele Munanga e Mário Theodoro. Ou seja, reproduzimos
aqui, de um modo absolutamente não intencional, essa profunda segregação racial
que é a marca do nosso sistema acadêmico. Temos aqui 93% de professores
brancos decidindo se devemos ou não consolidar ações afirmativas para negros nas
universidades (JOSÉ JORGE DE CARVALHO IN SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL, 2010, p. 93).

A exposição do professor José Jorge de Carvalho, reproduzida acima, chama a atenção


para um aspecto fundamental dos discursos: o de que todos os discursos estão vinculados a
determinadas condições de produção e são sustentados por relações sociais determinadas.
Seria, portanto, inadequado abstrair dos discursos, os sujeitos que os enunciam e as práticas
sociais que fundamentam sua produção e sua disseminação. Nesse sentido, apresento, no
QUADRO 4, uma breve caracterização dos expositores que tiveram seus discursos analisados
neste trabalho, procurando sumarizar algumas das características dos mesmos, tais como
formação acadêmica, vinculação profissional e aproximação com o campo temático das
relações étnico-raciais no Brasil e/ou com o tema específico da Audiência Pública104. Além
das características já citadas, inclui no quadro de caracterização dos expositores informações
sobre os posicionamentos políticos dos mesmos em relação à temática da Audiência,
evidenciados na subscrição, ou não subscrição, dos Manifestos contrários ou os Manifestos
favoráveis às cotas, produzidos nos anos de 2006 e 2008.

104
As informações contidas na coluna “Livro(s) publicado(s) /organizado(s) ou edições sobre relações étnico-
raciais” foram retiradas do tópico Livro publicado/organizado nos respectivos currículos Lattes. Disponível em
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/busca.do?metodo=apresentar. Para aqueles que não possuíam currículos
disponíveis na Plataforma Lattes foram consultados sites da internet e blogs pessoais.
192
Quadro 4 - Breve Caracterização dos expositores da Audiência Pública

Nome do Expositor Área de Área de Instituição ao qual Livro(s) publicado(s) /organizado(s) ou Posição Posição em
Formação Atuação pertence edições sobre relações étnico-raciais defendida na relação aos
Audiência Manifestos
Davi Cura Aminuzo Graduando em Estudante e Universidade Federal do Nenhuma obra sobre a temática Contrária as Não Subscreveu
Museologia funcionário Rio Grande do Sul - Cotas e as Ações nenhuma versão
público UFRGS Afirmativas dos Manifestos.
aposentado
Demóstenes Torres Graduação em Senador da Senado Federal Um dos propositores da ADPF 186 Contrária as Não Subscreveu
Direito Republica impetrada pelo Partido Democratas Cotas e as Ações nenhuma versão
Afirmativas dos Manifestos.
Hederli Fideliz Graduação em (Informação Movimento Pardo- Nenhuma obra sobre a temática Contrário as Subscreveu o
Serviço Social não Mestiço Brasileiro - Cotas e as Ações Manifesto
encontrada) MPMB e Associação Afirmativas contrário as
dos Caboclos e Cotas em 2008.
Ribeirinhos da
Amazônia - ACRA
José Carlos Miranda (Informação não Membro da Movimento Negro Nenhuma obra sobre a temática Contrário as Subscreveu o
encontrada) Executiva Socialista - MNS Cotas e as Ações Manifesto
Estadual do Afirmativas contrario as
Partido dos Cotas em 2006 e
trabalhadores o Manifesto
em São Paulo contrario as
Cotas em 2008.
Ibsen Noronha Graduação em Professor Instituto de Educação Nenhuma obra sobre a temática Contrário as Não Subscreveu
Direito; Mestrado Superior de Brasília – Cotas e as Ações nenhuma versão
em Direito. IESB Afirmativas dos Manifestos.
Roberta Fragoso Graduação em Professora Escola Superior do 1) Ações Afirmativas à Brasileira: Contrário as Subscreveu o
Menezes Kaufman Ciências Ministério Público do Necessidade ou Mito? Uma análise histórico- Cotas e as Ações Manifesto
Jurídicas; Distrito Federal e Escola jurídico-comparativa do negro nos Estados Afirmativas contrario as
Mestrado em da Magistratura do Unidos da América e no Brasil. Porto Cotas em 2008.
Direito. Distrito Federal Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
Sérgio Danilo Pena Graduação em Professor Universidade Federal de 1) Igualmente Diferentes. 1. ed. Belo Contrário as Subscreveu o
Medicina; Minas Gerais - UFMG Horizonte: Editora UFMG, 2009. v. 1. p.116; Cotas e as Ações Manifesto
Doutorado em 2) Humanidade sem raças? São Paulo: Afirmativas contrario as

193
Genética Publifolha, 2008. v. 1. 67 p.; 3) À Flor da Cotas em 2006 e
Humana. Pele. Rio de janeiro: Vieira & Lentz, 2007. v. o Manifesto
1. 130 p. contrario as
Cotas em 2008.
Yvonne Maggie Graduação em Professora Universidade Federal do 1) Divisões perigosas: Políticas raciais no Contrário as Subscreveu o
Ciências Sociais; Rio de Janeiro-UFRJ. Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Cotas e as Ações Manifesto
Doutorado em Civilização Brasileira, 2007. v. 1. 363 p.; 2) Afirmativas contrario as
Antropologia O animismo fetichista dos negros baianos. 1. Cotas em 2006 e
Social ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ e BN, o Manifesto
2006. v. 01. 239 p.; 3) Raça Como Retórica: contrario as
A Construção da Diferença. Rio de Janeiro: Cotas em 2008.
Civilização Brasileira, 2002. 459 p.; 4)
Guerra de Orixá: um estudo de ritual de
conflito. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2001. 180 p.

Fábio Konder Graduação em Professor Universidade de São Nenhuma obra sobre a temática Favorável as Subscreveu o
Comparato Direito; Paulo - USP Cotas e as Ações Manifesto
Doutorado em Afirmativas favorável as
Direito Cotas em 2006 e
o Manifesto
favorável as
Cotas em 2008.
José Jorge de Graduação em Professor Universidade de Brasília 1) Racismo Isntitucional. O caso do Favorável as Subscreveu o
Carvalho Composição e - UnB Ministério Público Federal. 01. ed. Brasília: Cotas e as Ações Manifesto
Regência; Editora da ESMPU / Procuradoria Federal Afirmativas favorável as
Doutorado em dos Direitos do Cidadão/SinJus, 2009. v. 1. Cotas em 2006 e
Antropologia 116 p.; 2) Inclusão Étnica e Racial no Brasil. o Manifesto
2. ed. São Paulo: Attar Editorial, 2006. v. 1. favorável as
211 p.; 3) Las Culturas Afroamericanas en Cotas em 2008.
Iberoamérica: Lo Negociable y lo
Innegociable. 1. ed. Bogotá: Universidad
Nacional de Colombia, 2005. v. 1; 4)
Inclusão Étnica e Racial no Brasil. São
Paulo: Attar Editorial, 2005. v. 1; 5) O
Quilombo do Rio das Rãs. 1. ed. Salvador:

194
CEAO-EDUFBA, 1996. v.; 6) Cantos
Sagrados do Xangô do Recife. 1. ed.
Brasília: Fundação Cultural Palmares, 1993.
v. 1; 7) Shango Cult in Recife, Brazil. 1. ed.
Caracas: Fundación de Etnomusicología y
Folklore / CONAC/OAS, 1992. v. 1
Kabengele Munanga Graduação em Professor Universidade de São 1) Origens africanas do Brasil conteporâneo: Favorável as Subscreveu o
Antropologia Paulo - USP Histórias, línguas, culturas e civilizações. 1ª Cotas e as Ações Manifesto
Cultural; ed. São Paulo: Global, 2009. 109 p.; 2) Afirmativas favorável as
Doutorado em Negritude - Usos e sentidos. 1a. Ed. Belo Cotas em 2006 e
Antropologia Horizonte: Autêntica Editora, 2009. 93 p.; 3) o Manifesto
Social Superando o racismo na escola. Brasília: favorável as
Ministério da Educação, 2005.; 4) Para Cotas em 2008.
entender o negro no Brasil de hoje: história,
realidades, problemas e caminhos. São
Paulo: Global: Ação Educativa, Assessoria,
Pesquisa e Informação, 2004. v. 1. 254 p.; 5)
O negro na sociedade brasileira: resistência,
participação, contribuição. 1. ed. Brasília:
Fundação Cultural Palmares, 2004.; 6)
Rediscutindo a mestiçagem no Brasil.
Identidade Nacional versus Identidade
Negra. 2. ed. Belo Horizonte: Editora
Autêntica, 2004. 150 p.; 7) Cem anos e mais
de bibliografia sobre o negro no Brasil. 1. ed.
Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2003.
v. 1.; 8) Estratégias e Políticas de Combate à
Discriminação Racial. 1. ed. EDUSP/Estação
Ciência, 1996.; 9) A Revolta dos
Colonizados. O Processo de Descolonização
e As Independências da África e da Ásia.
SÃO PAULO: ATUAL, 1995. 83 p.; 10) Os
Basanga de Shaba, Um Grupo Étnico do
Zaire. SAO PAULO: FFLCH/USP, 1986.
334 p

195
Luiz Felipe Graduação em Professor Universidade de Paris- 1) O trato dos viventes. Formação do Brasil Favorável as Não Subscreveu
Alencastro Historia e Sorbonne no Cotas e as Ações nenhuma versão
Ciências Atlântico Sul. Séculos XVI e XVII, São Afirmativas dos Manifestos.
Políticas; Paulo, Companhia das Letras,
Doutorado em 2000, 525 pp.
Historia
Marcos Antonio Graduação em Coordenador Coordenação Nacional 1) Contando a história do samba:caderno de Favorável as Não Subscreveu
Cardoso Historia e das Entidades Negras – textos. 2.ed. Belo Horizonte: Mazza, 2003. Cotas e as Ações nenhuma versão
Mestrado em CONEN 60 p.; 2) Zumbi dos Palmares. Belo Afirmativas dos Manifestos.
História Horizonte: Mazza, 1995. 27 p.; 3) O
movimento negro em Belo Horizonte: 1978-
1998. Belo Horizonte: Maza Ed., 2002. 232
p.
Moacir Carlos da Graduando em Estudante Coletivo de Estudantes Nenhuma obra sobre a temática Favorável as Subscreveu o
Silva Negros e Negras – Cotas e as Ações Manifesto
DENEGRIR e Afirmativas favorável as
Universidade Estadual Cotas em 2006.
do Rio de Janeiro –
UERJ
Paulo Paim Ensino Técnico Senador Senado da República Autor do Estatuto da Igualdade Racial Favorável as Subscreveu o
Profissionalizante Cotas e as Ações Manifesto
- SENAI Afirmativas favorável as
Cotas em 2008.
Sueli Carneiro Graduação em Coordenadora Geledes – Instituto da 1) Carneiro Sueli (Org.) . A cor do Favorável as Subscreveu o
Ciências Sociais; Mulher Negra Preconceito. 1. ed. São Paulo: Ática, 2006. Cotas e as Ações Manifesto
Doutorado em 135 p.; 2) A mulher negra brasileira na Afirmativas favorável as
Filosofia década da mulher. São Paulo: Nobel, 1985. Cotas em 2006 e
55 p. o Manifesto
favorável as
Cotas em 2008.
Fonte: Elaborado pelo autor.

196
Dada a natureza qualitativa da presente pesquisa e considerando a heterogeneidade
daqueles que se pronunciaram durante a audiência, um conjunto de procedimentos foi
adotado, com o intuito de organizar os discursos e, assim, possibilitar a compreensão dos
modos pelos quais os expositores percebem e se posicionam acerca das políticas de cotas e de
temas que tangenciam esta temática central. Adicionalmente, os procedimentos
metodológicos adotados neste trabalho visam contribuir na compreensão das estratégias
discursivas utilizadas pelos expositores para tornarem coerentes seus discursos.
O primeiro procedimento adotado, neste trabalho, foi a leitura atenciosa das notas
taquigráficas da Audiência Pública (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2010).
Posteriormente, dedicamo-nos a construção de categorias descritivas que se reportassem
analiticamente às questões de pesquisa. As categorias analíticas, construídas por meio da
analise dos discursos dos expositores, foram organizadas em quatro dimensões temáticas,
interdependentes e correlacionadas entre si. Interdependentes porque guardam entre si,
grandes coerências internas, e correlacionadas porque os argumentos organizados em uma
dada categoria ajudam a explicar, apesar de não determinar, os argumentos que compõem as
outras categorias analíticas.
No QUADRO 5, as principais categorias analíticas utilizadas neste capítulo estão
organizadas a partir das dimensões temáticas em que foram inseridas.

197
QUADRO 5
Dimensões temáticas e Categorias analíticas

1ª Dimensão:
Cotas e Ações Afirmativas
Constitucionalidade/Inconstitucionalidade das Cotas
Este indicador refere-se à posição assumida pelos expositores, durante a Audiência Pública, sobre a
constitucionalidade ou inconstitucionalidade das políticas de cotas para estudantes negros em Instituições de
Ensino Superior. Para além de referir-se às posições jurídicas dos expositores, este indicador pode ser
compreendido como síntese dos posicionamentos dos expositores nas diferentes categorias e dimensões aqui
consideradas.
2ª Dimensão:
Representações sobre o Brasil
Estratificação social Raízes da desigualdade
Este indicador refere-se ás representações sociais Este indicador refere-se às percepções dos expositores
que os expositores mantêm acerca da acerca dos fatores que explicam os padrões de desigualdade
estratificação social brasileira, entendida como o da sociedade brasileira.
processo social através do qual vantagens e
recursos tais como riqueza, poder e prestígio são
distribuídos sistemática e desigualmente.

Panorama da educação Conceitos de Raça, Etnia e Aspectos das relações étnico-raciais


básica Miscigenação.
Este indicador refere-se às Este indicador refere-se às Este indicador se refere às
representações que os representações expressas pelos representações dos expositores sobre os
expositores sustentam sobre expositores em torno dos conceitos de padrões de relações sociais entre os
a situação da educação no Raça, Etnia, Mestiçagem e Racismo diferentes grupos étnico-raciais que
Brasil, considerando no Brasil. compõe o Brasil, incluindo avaliações
aspectos como infraestrutura sobre a existência ou inexistência de
das escolas, qualidade do relações sociais marcadas por
ensino e padrões de discriminação, preconceito, tolerância
interações interpessoais no às diferenças, respeito mútuo, etc.
interior das escolas.
3ª Dimensão:
Alternativas Políticas
Papel do Estado e a Papel das Ciências e das Modelo de Políticas Públicas
garantia da Constituição Universidades
Este indicador refere-se às Este indicador refere-se às Este indicador se refere às
expectativas que os representações expressas pelos representações dos expositores sobre os
expositores têm sobre a expositores acerca da Ciência melhores ou mais adequados modelos e
atuação do Estado brasileiro Moderna e das Universidades, e o desenhos de políticas públicas a serem
no cumprimento e garantia papel de uma e outra na sociedade implementados pelo Estado brasileiro.
da Constituição Federal de brasileira.
1988.
4ª Dimensão:
Projetos para a Nação Brasileira
Modelos idealizados para a Nação
Este indicador refere-se às representações defendidas pelos expositores sobre o melhor, ou mais adequado,
modelo de Estado Nação a ser conservado, atualizado ou inaugurado no Brasil, incluindo neste indicador
aspectos sobre os padrões de estratificação social, de educação, de relações étnico-raciais, expectativas sobre a
atuação do Estado, das ciências, das Universidades e das políticas públicas.
Fonte: Elaborado pelo autor.

198
Conforme observou Sueli Carneiro, durante sua exposição na Audiência Pública, sob o
pretexto de debater a constitucionalidade/inconstitucionalidade das políticas de cotas para
estudantes negros em instituições de ensino superior no Brasil, duas representações distintas
sobre o país e dois projetos distintos de nação, cada qual vinculadas a distintas alternativas
políticas, se confrontaram no Auditório do Supremo Tribunal Federal. A cada uma das
perspectivas, se alinhavam negros e brancos de diferentes extrações sociais e de campos
políticos e ideológicos, semelhantes ou concorrentes.

O primeiro desses projetos está ancorado no passado. Sobre esse projeto passadista,
o psicanalista Contardo Calligaris empreende a seguinte reflexão: "De onde surge,
em tantos brasileiros brancos bem intencionados, a convicção de viver em uma
democracia racial? Qual é a origem desse mito?” A resposta não é difícil, diz ele, o
mito da democracia racial é fundado em uma sensação unilateral e branca de
conforto nas relações inter-raciais. Esse conforto não é uma invenção, ele existe de
fato, ele é efeito de uma posição dominante incontestada. (...) O segundo projeto de
nação dialoga com o futuro, como já foi dito. O que nele apostam, acreditam que o
País que foi capaz de construir a mais bela fábula de relações raciais é capaz de
transformar este mito numa realidade de conforto nas relações raciais para todos e
para todas (CARNEIRO, 2010 apud SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2010, p.
303).

A professora Yvonne Maggie, que diferentemente da expositora Sueli Carneiro


defendeu uma posição de inconstitucionalidade das políticas de cotas, concordou com ela no
fato de que, durante a Audiência, dois grupos distintos - filiados a perspectivas e projetos
distintos sobre a nação brasileira - se confrontavam no desenrolar do debate sobre Ações
Afirmativas e políticas de cotas. Nas palavras de Yvonne Maggie, a Audiência Pública
representou um marco fundamental nos destinos da Nação Brasileira.

Os ministros do Supremo Tribunal Federal ao analisarem constitucionalidade das


leis raciais e das cotas na UnB terão de decidir agora o caminho a seguir. Há apenas
dois: ou seguem os princípios expressos pelas Diretrizes acima citadas e decidem
que o Brasil deve trilhar o caminho da separação dos cidadãos e dos jovens,
legalmente, em “raças”, ou, ao contrário, seguem os princípios expressos na
Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Constituição Brasileira que
afirma a igualdade dos cidadãos.

Assim, a hipótese de trabalho que procurarei testar, por meio da análise dos discursos
dos expositores na Audiência, é que os divergentes posicionamentos em defesa da
constitucionalidade ou da inconstitucionalidade das Ações Afirmativas e das políticas de cotas
199
derivariam das distintas representações sobre a nação, de distintos projetos nacionais e das
distintas alternativas políticas. O ESQUEMA 1, apresentado a seguir, pretende ser um modelo
analítico desta hipótese de trabalho. Nele, procuro indicar que os posicionamentos pessoais
expressos pelos expositores sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade das ações
afirmativas e das políticas de cotas foram influenciados, tanto pelas representações que os
mesmos mantinham sobre o Brasil (referentes às representações sobre a estratificação social,
sobre as raízes das desigualdades, sobre o panorama da educação pública no Brasil, sobre os
conceitos de raça, etnia e miscigenação e sobre os aspectos das relações raciais prevalecentes
no Brasil), quanto pelos projetos que defendiam para a nação (referentes aos modelos
idealizados de nação); que seriam viabilizados por meio de diferentes alternativas políticas
(pelo papel das universidades e da ciência, pela atuação do Estado na garantia da Constituição
Federal e por diferentes modelos de políticas públicas). Ao mesmo tempo em que as
representações sobre o Brasil impactariam os posicionamentos políticos em relação às Ações
Afirmativas e às cotas raciais, influenciariam a formação, tanto dos diferentes projetos para a
nação quanto das diferentes alternativas políticas defendidas para a resolução dos problemas
identificados. Por sua vez, os diferentes projetos para a nação, ao mesmo tempo em que
influenciariam os diferentes posicionamentos políticos em relativos ao tema das Assembléias,
impactariam na escolha das mais adequadas alternativas políticas para a nação. As alternativas
políticas, por sua vez, ao mesmo tempo em que influenciariam os posicionamentos políticos
dos expositores, também seriam influenciadas por eles, na medida em que ao se posicionarem
favoravelmente ou contrariamente às políticas, os expositores estiveram impelidos a
apresentar soluções teóricas ou práticas para conservar, atualizar ou reinventar a nação
brasileira.

200
Esquema 1 – Modelo Analítico dos Discursos

PANORAMA DA
EDUCAÇÃO
ASPECTOS DAS BÁSICA ESTRATIFICAÇÃO
RELAÇÕES SOCIAL
ÉTNICO-RACIAIS

REPRESENTAÇÕES
SOBRE
CONCEITOS DE
RAÍZES DA O BRASIL RAÇA, ETNIA E
DESIGUALDADE MISCIGENAÇÃO

COTAS E AÇÕES PROJETO


AFIRMATIVAS PARA A
NAÇÃO
POSIONAMENTO
SOBRE A ALTERNATIVAS MODELOS
CONSTITUCIONALIDADE PAPEL DAS
DAS COTAS MODELOS
POLÍTICAS CIÊNCIAS E DAS
IDEALIZADOS
DE POLÍTICAS PARA A NAÇÃO
UNIVERSIDADES
PÚBLICAS
PAPEL DO ESTADO
E A GARANTIA DA
CONSTITUIÇÃO

Fonte: Elaborado pelo autor.

201
Para testar a hipótese de trabalho, explicitada no diagrama acima, procurarmos
analisar os dados oriundos dos discursos dos expositores por meio de dois procedimentos
metodológicos: a) a codificação dos dados via análise de conteúdo e b) a construção de
sumários etnográficos, baseados em pressupostos teóricos da análise do discurso. Ao passo
que, o primeiro enfatiza a descrição numérica de como determinadas categorias explicativas
aparecem ou estão ausentes das discussões, e em quais contextos isto ocorre, o segundo vai
repousar nas citações textuais dos participantes do grupo que vão assim ilustrar os achados
principais da análise. Apesar de distintos, estes dois meios de análises não são excludentes
entre si, sendo possível combiná-los em um só relatório de análise.
Se por um lado, a análise de conteúdo enfatiza a descrição numérica de como
determinadas categorias explicativas aparecem ou estão ausentes das discussões,
relacionando-se assim com construções teórico-abstratas, o que pode favorecer uma maior
padronização da leitura e a realização de comparações de idéias dentro de um mesmo texto e
entre textos; por outro lado, em razão da ênfase na descrição numérica dos dados qualitativos
de pesquisa, a Análise de Conteúdo tem sido o alvo preferencial, ao longo das últimas
décadas, de muitos críticos vinculados à perspectiva conhecida como Análise do Discurso.
De acordo com Rocha e Deusdara (2005), as fortes influências iluministas e
positivistas que pesavam sobre a Análise de Conteúdo faziam com que a utilização de meios
quantificadores dos discursos fosse tomada como meio de obter e garantir a objetividade das
análises realizadas. “Na verdade, a principal pretensão da Análise de Conteúdo é vislumbrada
na possibilidade de fornecer técnicas precisas e objetivas que sejam suficientes para garantir a
descoberta do verdadeiro significado” (Idem, p. 310).
Entretanto, neste trabalho, a quantificação numérica das categorias analíticas e a
explicitação dos percentuais que cada categoria representa no conjunto dos discursos dos
expositores favoráveis e contrários às políticas com recorte racial, não será utilizada como
meio de desvendar os significados verdadeiros contidos no texto. Tampouco, o objetivo desta
organização numérica será o de reduzir os significados dos discursos a uma mera comparação
quantitativa da freqüência com que foram mencionadas pelos expositores. Na perspectiva
adotada no presente trabalho, a análise de conteúdo não será tomada como O MÉTODO; mas
como um método complementar, utilizado na expectativa de gerar uma espécie de cartografia
das categorias discursivas mobilizadas nos diferentes discursos.
Por outro lado, os sumários etnográficos se baseiam em citações textuais dos
participantes do grupo, que vão assim ilustrar os achados principais da análise. As citações
não serão tomadas como simples enunciados, mas antes como discursos e serão submetidas à
202
análise dos mesmos. De acordo com Rocha e Deusdara (idem), o surgimento da Análise do
Discurso, no final dos anos de 1960, seria decorrência das insuficiências teóricas e
metodológicas observadas nas práticas de leitura que vinham sendo utilizadas até então,
fortemente baseadas em uma visão conteudista que não davam conta de apreender os
significados implícitos nas formulações discursivas.
Para o fundador da Análise do Discurso, Michel Pêcheux (1995), um ponto de vista
verdadeiramente científico sobre as práticas “linguageiras” só poderia emergir por meio da
transformação dos discursos em objeto de investigação, o que exigiria que o investigador
levasse em consideração as condições sociais em que foram produzidos os discursos, bem
como as diferentes forças que, ao se confrontarem na realidade social, influenciam a produção
de tais discursos. Nesta perspectiva, tomar os enunciados (conjuntos de palavras que forma
uma frase, ou um parágrafo) como objetos de investigação capazes de revelar os significados
subjacentes, seria uma incoerência, na medida em que tal orientação teórica não reconheceria
o fato, denunciado pelos teóricos da Análise do Discurso, de que tais enunciados só fazem
sentido se analisados em consonância com suas condições de produção e de enunciação. Isto
implica dizer que os sentidos não se encontram pré-fixados no enunciado, o que significa que
os enunciados só se tornam discursos por meio do ato de enunciação. Antes da enunciação, os
discursos são meros enunciados.
105
Denise Jodelet , afirma que na análise dos discursos é preciso considerar que o
sujeito que se expressa está assujeitado pelo próprio discurso, pois seu discurso sempre estará
submetido às relações concretas do cotidiano, ao inconsciente e à estrutura da própria língua.
Todavia, no momento em que se expressa, o sujeito tem a capacidade de deixar a sua marca.
Mesmo na condição de assujeitado, o sujeito que enuncia pode, portanto, assumir um papel
ativo. Ao partir do principio de que o sujeito, construtor de representações sociais sobre
diversas esferas da realidade, é um sujeito social, somos levados a reconhecer que nas análises
dos discursos o que se analisa não são indivíduos isolados, “mas sim as respostas individuais
enquanto manifestações das tendências do grupo de pertença ou de afiliação na quais os
indivíduos participam” (JODELET, 1984 apud SPINK, 2000, p. 120). Nesta perspectiva, os
sumários etnográficos, ao invés de serem abordados como meios de desvelar as “dimensões
ocultas” do real, serão apresentados como meios para evidenciar as relações de poder no
plano discursivo. Não se trata, portanto, de analisar guerras de palavras ou de enunciados;

105
JODELET, Denise. La representación social: fenómenos, concepto y teoria. In: MOSCOVICI, Serge.
(Org). Pensamiento y vida social. Barcelona/Buenos Aires/México: Paidós, Psicologia Social, 2, 1984.
203
trata-se, de analisar confrontos que, por meio de embates discursivos, procuram definir a
legitimidade ou ilegitimidade de determinada ordem social.
Da perspectiva adotada neste trabalho, tão importante como observar os
posicionamentos de cada um dos expositores acerca da constitucionalidade ou
inconstitucionalidade das cotas raciais e das demais políticas com recorte racial (vide
QUADRO 4), seria identificar as conexões existentes entre tais posicionamentos, os meios
sociais de produção destes discursos e os argumentos apresentados para sustentar
teoricamente tais posicionamentos. Em outras palavras, para reconhecer as estratégias
discursivas utilizadas pelos expositores, no intuito de legitimar suas posições políticas sobre a
constitucionalidade ou inconstitucionalidade das políticas de cotas raciais, seria preciso
identificar as representações sociais que tais expositores mantêm sobre a nação brasileira,
sobre as alternativas políticas adequadas para resolver os problemas identificados e sobre os
projetos formulados para a nação brasileira, que funcionam, em conjunto, como sustentadores
teóricos de seus posicionamentos políticos.
No âmbito deste trabalho, os trechos dos discursos dos expositores que serão
apresentados no capítulo 6, serão tomados como meios pelos quais os expositores procuram
conservar, atualizar ou reinventar a realidade social brasileira, mobilizando e articulando
argumentos em torno das relações raciais, da educação superior, da ciência, das políticas
públicas e do próprio Estado Nacional.

204
Capítulo 6

6 - A “Constituição” da nação brasileira em disputa

De acordo com Lassale (2001), na maioria dos Estados Modernos regidos por
“Constituições escritas em folhas de papel” a missão das Constituições Nacionais é
estabelecer documentalmente todas as instituições e princípios vigentes em uma determinada
época. Deste modo, uma Constituição não se resume a um conjunto de regras escritas em um
pedaço de papel, mas, se vincula aos elementos reais de poder, chamados pelo autor de “força
ativa e eficaz que informa as leis e as instituições jurídicas vigentes, determinando que não
possa ser, em substância, a não ser tal como elas são” (idem, p.11).
Nessa perspectiva, em um Estado Moderno, as instituições tornadas legítimas por uma
Constituição Nacional se referem aos hábitos sociais, às práticas culturais e as representações
coletivas vigentes em um determinado tempo e espaço; logo, não se resumem às instituições
físicas como igrejas, escolas ou tribunais. Conforme alerta o autor, as relações existentes entre
os elementos reais de poder e a Constituição jurídica nem sempre são evidentes e
autorreferentes. No caso da primeira Constituição Brasileira, promulgada dois anos após a
Declaração da Independência em 1822, por exemplo, alguns dos mais importantes elementos
reais de poder vigentes no país (os proprietários de escravos e os latifundiários), não tinham
poderes expressos pela constituinte, contudo, o exerciam de modo diplomático. Por outro
lado, ao consagrar o Estado unitário, a monarquia constitucional, o Poder Moderador, o
sufrágio censitário e o catolicismo como religião oficial do Império, a Constituição de 1824
fundou novas bases de legitimidade para a nação, ao mesmo tempo em que transformou os
elementos reais de poder vigentes em verdadeiras instituições jurídicas.

(Uma constituição escrita) [...] Somente pode ter origem, evidentemente, no fato de
que nos elementos reais do poder imperantes dentro do país se tenha operado uma
transformação. Se não se tivesse operado transformações nesse conjunto de fatores
da sociedade em questão, se esses fatores do poder continuassem sendo os mesmos,
não teria cabimento que essa mesma sociedade desejasse uma Constituição para si.
Acolheria tranqüilamente a antiga, ou, quando muito, juntaria os elementos
dispersos num único documento, numa única Carta constitucional (idem, p.28).

Portanto, todos os tipos de contestações ou defesas de uma Constituição, ou de uma


parte dela, representam (ainda que de modo indireto) posições de contestação ou de defesa aos
205
elementos reais de poder vigentes em uma sociedade e não apenas às normas juridicamente
estabelecidas e transcritas na Carta Magna.
Historicamente, sete Constituições já foram promulgadas no Brasil (da Declaração da
Independência até a data de hoje), tendo sido seis destas revogadas. Cada qual continham os
princípios fundamentais que deveriam reger as instituições nacionais no período de vigência,
visto que eram relacionadas aos elementos reais de poder que se pretendia instituir ou manter.
No caso da Carta promulgada em 1967, por exemplo, no auge do Governo Militar, o texto
constitucional procurou legitimar e legalizar os elementos de poder vinculados ao regime
militar, aumentando a influência do Poder Executivo sobre o Legislativo e Judiciário; além de
estabelecer uma hierarquia constitucional centralizadora. Das principais medidas adotadas
pela “Constituição de 67” se destacam: a concentração de poder nas mãos do chefe do
Executivo, a definição do Executivo Legislador (em matéria de segurança e orçamento), o
estabelecimento de eleições indiretas para presidente com mandato de cinco anos, o
estabelecimento de pena de morte em caso de crimes de segurança nacional, a restrição do
direito de greve e a abertura de espaço para a decretação posterior de leis de censura e
banimentos.
Em oposição às Constituições anteriormente promulgadas no Brasil, a Constituição de
1988, também conhecida como “Constituição Cidadã”, representou uma verdadeira ruptura
com a tradição autoritária e elitista do establishment jurídico precedente. De acordo com
Castro e Ribeiro (2009, p.7),

A nova carta proclamava o estabelecimento de um Estado democrático reconhecedor


de direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. Alcançava-se um novo
patamar de cidadania, comparável à concepção clássica de Marshall106: direitos
civis, políticos e sociais.

Tais autores salientam ainda que, embora essa Constituição tenha sido menos
avançada e progressista do que se pretendia (ou ao menos se indicava tal pretensão), ela foi o
resultado do avanço possível naquele contexto; isto é, se converteu em reflexo do embate de
forças concorrentes, ideologicamente, diversas e antagônicas. É provável que mesmo os
representantes das forças ideologicamente diversas e antagônicas que atuaram no processo
Constituinte, e que contribuíram para o refreamento do ímpeto progressista das propostas

106
MARSHALL, T.H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1967.

206
apresentadas durante o processo, não se intitulem, hoje, conservadores como modo de
justificar seus posicionamentos. Também aqueles que se opuseram à inclusão destes “ideais
progressistas”107 na Constituição de 1988 se apresentaram à nação, ou à uma parte
identificável desta nação, como defensores de ideais nobres e defensáveis (como a
nacionalidade, os bons costumes e a coesão social); colocando em prática o discurso
diplomático como artifício recorrente para garantir a manutenção do status quo.
Interessante observar que, também hoje, no embate que se desenrola em torno das
políticas de cotas e de ações afirmativas dirigidas à população negra no Brasil, a denúncia de
inconstitucionalidade impetrada pelo Partido Democratas contra o sistema de cotas
implementado na Universidade de Brasília está ancorada em posicionamentos e ideais
reconhecidamente nobres e defensáveis (tais como: dignidade humana, repúdio ao racismo,
igualdade de todos os cidadãos perante a lei e direito universal à educação). Nesse caso,
tomemos como exemplo os dispositivos constitucionais tidos por afrontados e citados na
petição inicial do Partido Democratas (QUADRO 6).

QUADRO 6
Dispositivos constitucionais tidos por afrontados pelo sistema de cotas raciais da UNB,
sob o crivo do Partido Democratas e intelectuais contrários às Ações Afirmativas.
Art. 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III - a dignidade da pessoa humana;
Art. 3º - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
de discriminação.
Art. 4º - A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes
princípios:
VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;
Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e
à propriedade, nos termos seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de
interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas
aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;
XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos
termos da lei;
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
Art. 37º - A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
Art. 205º - A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a

107
A utilização da expressão “ideais progressitas”, com nítido teor valorativo, é uma referência direta ao texto de
Castro, Ribeiro (2009, p. 8).
207
colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Art. 206º - O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I- igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
Art. 207º - As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira
e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
Art. 208º - O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:
V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de
cada um.
Fonte: Elaborado pelo autor.

O parecer formulado pelo Ministro Gilmar Mendes, apesar de indeferir o pedido de


impugnação das matrículas dos estudantes aprovados pelo sistema de cotas na UNB, definiu
como relevantes às inúmeras questões mencionadas na ADPF - Ação de Descumprimento de
Preceito Fundamental apresentada pelo Partido Democratas, o que a tornava merecedora de
uma discussão em âmbito nacional.

O questionamento feito pelo Partido Democratas (DEM) é de suma importância para


o fortalecimento da democracia no Brasil. As questões e dúvidas levantadas são
muito sérias, estão ligadas à identidade nacional, envolvem o próprio conceito que o
brasileiro tem de si mesmo e demonstram a necessidade de promovermos a justiça
social. Somos ou não um país racista? Qual a forma mais adequada de combatermos
o preconceito e a discriminação no Brasil? Desistimos da “Democracia Racial” ou
podemos lutar para, por meio da eliminação do preconceito, torná-la uma realidade?
Precisamos nos tornar uma “nação bicolor” para vencermos as “chagas” da
escravidão? Até que ponto a exclusão social gera preconceito? O preconceito em
razão da cor da pele está ligado ou não ao preconceito em razão da renda? Como
tornar a Universidade Pública um espaço aberto a todos os brasileiros? Será a
educação básica o verdadeiro instrumento apto a realizar a inclusão social que
queremos: um país livre e igual, no qual as pessoas não sejam discriminadas pela cor
de sua pele, pelo dinheiro em sua conta bancária, pelo seu gênero, pela sua opção
sexual, pela sua idade, pela sua opção política, pela sua orientação religiosa, pela
região do país onde moram etc.? 108

Como bem observado pelo ministro em seu despacho, ainda que a tese central
sustentada na ADPF, apresentada pelo Partido Democratas, trate da inconstitucionalidade das
políticas com recorte racial (elaboradas e executadas pelo Estado – Universidade Pública
Federal), questões mais profundas e abrangentes do que a compatibilidade jurídica entre as
políticas e a Constituição escrita, estão sendo discutidas na petição de inconstitucionalidade.

108
Supremo Tribunal Federal. Decisão 31/07/2009, liminar indeferida. Disponível em
<http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqo
bjetoincidente=2691269>. Acessado em 10 de Julho de 2011.

208
Também por esta razão, a Audiência Pública, convocada pelo Ministro Ricardo
Lewandowiski, se transformou em um momento de reflexão coletiva sobre a nacionalidade
brasileira, tendo evidenciado a vitalidade incômoda de alguns questionamentos que muitos
acreditavam que já tivessem sido respondidos de modo definitivo: Somos ou não um país
racista? Qual a forma mais adequada de combatermos o preconceito e a discriminação no
Brasil? Até que ponto a exclusão social gera preconceito? O preconceito em razão da cor da
pele está ligado ou não ao preconceito em razão da renda? Etc.
Uma análise minuciosa dos discursos proferidos na Audiência, tanto daqueles
preocupados em sustentar a tese da constitucionalidade quanto daqueles preocupados em
denunciar a inconstitucionalidade das políticas de cotas raciais e de Ações Afirmativas,
poderá nos ajudar a identificar os fundamentos teóricos, políticos e ideológicos que sustentam
as perspectivas individuais dos expositores sobre estas e outras questões.
Dessa forma, compreender os fundamentos que sustentam esses discursos e as
políticas de cotas no Brasil, não implica em conhecer apenas as perspectivas isoladas de
determinados indivíduos. Entende-los, de fato, possibilitar-nos-ia, compreender mais e melhor
as disputas materiais e simbólicas que giram em torno das representações sobre o Brasil, os
diferentes projetos defendidos para a nação; bem como as alternativas políticas defendidas no
intuito de conservar, atualizar ou reinventar a nação.

6.1 – Discutindo a nação

Eu não gosto de encarar a discussão de cotas: “Ou nós entramos na


universidade em determinado número agora, ou não tem mais saída
para nós.” Não gosto de ver uma coisa só. Discutir cotas de forma
isolada, só vendo a entrada do negro na universidade, acho perigoso.
Acho que é deixar de fora discussões seriíssimas. “Ah, mas uma não
invalidada a outra.” Sim, não invalida, mas por que não se está
discutindo então ao mesmo tempo? Se agora resolveram nos ouvir,
por que nós não falamos de todas as nossas misérias, de todas as
nossas carências, de tudo o que nos deixa à margem?
Mundinha Araújo. Depoimento Histórias do Movimento Negro no
Brasil: Depoimento ao CPDOC, 2007, p. 426.

Nesta primeira seção, os discursos dos expositores serão submetidos à análise do


conteúdo, enfatizando uma descrição numérica de como as categorias explicativas aparecem

209
ou estão ausentes das discussões. Deste modo, a descrição numérica das categorias analíticas,
visível no QUADRO 7, será utilizada como meio de observar a importância relativa de cada
um dos argumentos no interior dos discursos, levando em conta a importância destaque de
cada uma das categorias no interior dos discursos.

210
QUADRO 7
Descrições numéricas das categorias analíticas
EXPOSITORES (AS) E COTAS E REPRESENTAÇÕES SOBRE O BRASIL ALTERNATIVAS POLÍTICAS PROJET
DURAÇÃO DOS DISCURSOS A.A O DE
NAÇÃO

Nome do Expositor Número Posicionamento Estratificação Raízes da Panorama Aspectos das Conceitos de Papel do Papel da Modelo de
total de político sobre Social desigualdad da relações Raça, Etnia e Estado e na Ciência e Políticas Ideal de
linhas do Políticas de e brasileira educação étnico-raciais Miscigenação. garantia da das Públicas Nação
Discurso Cotas básica Constituiçã Universidad
o es
Davi Cura Aminuzo 130 0 4 0 16 0 0 0 0 35 0
Demóstenes Torres 409 27 85 6 19 97 57 25 11 0 17
Hederli Fideliz 241 62 0 0 0 36 78 24 17 0 5
Ibsen Noronha 240 27 0 46 0 32 0 17 55 6 6
José Carlos Miranda 209 43 26 38 0 20 14 26 0 6 18
Roberta Kaufman 263 44 0 14 0 47 67 20 0 0 25
Sérgio Danilo Pena 231 0 0 0 0 15 80 9 51 0 0
Yvonne Maggie 325 19 16 10 19 65 37 41 0 46 25
TOTAIS 2.048 222 131 114 54 312 333 243 134 94 96
CONTRÁRIOS 100% 10,8% 6,4% 5,6% 2,6% 15,2% 16,2% 11,9% 6,5% 4,6% 4,7%
Fábio K. Comparato 124 6 20 0 0 8 0 74 0 16 0
José Jorge Carvalho 269 70 64 18 17 13 0 0 36 8 16
Kabengele Munanga 423 63 35 9 4 21 15 39 25 70 97
Luiz Fel. Alencastro 218 15 0 27 10 17 9 89 0 0 6
Marcos Cardoso 193 36 3 21 0 60 21 12 5 22 12
Moacir Carlos Silva 122 34 13 12 0 0 0 0 15 0 0
Paulo Paim 194 18 6 9 0 28 0 9 9 0 35
Sueli Carneiro 219 9 0 12 11 17 34 25 16 10 73
TOTAIS 1.762 245 142 99 42 164 79 238 106 126 239
FAVORÁVEIS 100% 13,9% 8,5% 5,6% 2,4% 9,3% 4,5% 14,1% 6,0% 7,1% 13,6%

3.810 467 273 213 96 476 412 481 240 220 335
TOTAL GERAL 100% 12,3% 7,2% 5,6% 2,5% 12,5% 10,8% 12,6% 6,3% 5,8% 8,8%

Fonte: Elaborado pelo autor.

211
Sem negligenciar os aspectos qualitativos dos discursos, que serão apresentados
na seção 6.2, as informações quantitativas contidas no QUADRO 7 evidenciam alguns
aspectos interessantes abordados durante a Audiência Pública. Além disso, o quadro
apresentado acima nos permite comparar as categorias discursivas mais utilizadas pelos
participantes, como por exemplo, o geneticista Sérgio Danilo Pena (que se vale de
“Conceitos de Raça, Etnia e Miscigenação” e “Papel da Ciência e da Universidade”) e o
jurista Fábio K. Comparato (que discursa sobre o “Papel do Estado na garantia da
Constituição”). Tais comparações nos permitem também depreender algumas
semelhanças e distinções entre os discursos do conjunto de expositores que se
posicionaram em favor da constitucionalidade das cotas para estudantes negros e
aqueles que se posicionarem pela inconstitucionalidade destas políticas.
Além das questões citadas acima, podemos observar ainda que, do conjunto de
exposições realizadas na Audiência, totalizando 3.810 linhas de discursos, as reflexões
em torno dos “Conceitos de Raça, Etnia e Miscigenação”, “Relações étnico-raciais no
Brasil” e o “Papel do Estado na garantia da Constituição Federal”, tiveram destaque na
construção dos argumentos. Nesta perspectiva, é interessante analisar que 12,5% do
número total de linhas de discurso, que representam 476 unidades de contexto, fizeram
referência à categoria “aspectos das relações étnico-raciais”; 10,8% das linhas de
discurso, que representam 412 unidades fizeram menção à categoria “conceitos de raça,
etnia e miscigenação” e 12,3% destas linhas de discurso, representando 467 unidades,
fizeram menção à categoria “Papel do Estado na garantia da Constituição”.
No que tange a 1ª Dimensão, intitulada Ações Afirmativas e Cotas, nos chama a
atenção, o fato de que, do conjunto de 16 expositores que terão seus discursos
analisados neste trabalho, apenas o estudante Davi Cura Aminuzo e o geneticista Sérgio
Danilo Pena não assumiram, de modo explícito, um “posicionamento político sobre
cotas e ações afirmativas”. No caso do professor Sérgio Danilo Pena, a opção foi
restringir seu discurso à apresentação de “informações científicas”, conforme notificado
por ele mesmo. Os demais expositores se posicionaram contrária ou favoravelmente às
ações afirmativas e às cotas raciais.
Outro ponto que chama atenção: o fato de que nos discursos daqueles que se
posicionaram pela inconstitucionalidade das políticas de cotas raciais, um terço (35%)
das unidades de registro referentes à 2ª Dimensão, chamada Representações sobre o
Brasil, fazia alusão à categoria “conceitos de raça, etnia e miscigenação”, evidenciando
o destaque dado a tal categoria na construção dos discursos daqueles que se opunham as

212
políticas com recorte racial. Entre aqueles que se posicionaram favoravelmente á
constitucionalidade das políticas de cotas para estudantes negros, apenas 15% das
unidades de registro referentes à 2ª dimensão se referiam à categoria “conceitos de
raça, etnia e miscigenação”; sendo que entre estes, as categorias “estratificação social” e
“raízes da desigualdade” foram comparativamente mais lembradas, representando 27%
e 18,8%, respectivamente dos discursos.
No que se refere à 3ª Dimensão, chamada de Alternativas Políticas, podemos
observar que as referências feitas à categoria “Papel da Ciência e das Universidades”
foram proporcionalmente mais utilizadas entre aqueles expositores que se posicionaram
contra a constitucionalidade das políticas de cotas raciais; 28,4% das unidades de
registro em comparação com 22,1% entre os favoráveis. Ainda sobre a 3ª dimensão, foi
possível verificar que as referências feitas à categoria “Papel do Estado na garantia da
Constituição Federal” pelos defensores e pelos contrários às políticas com recorte racial,
foram praticamente similares: 51,7% e 51,6%, respectivamente.
No que se refere a 4ª Dimensão, nomeada Projetos para a Nação, podemos
depreender que as referências feitas à categoria “Ideal de Nação,” foram
proporcionalmente mais utilizadas entre os expositores que se posicionaram em favor da
constitucionalidade das políticas de cotas raciais, 13,6% de unidades de registro em
comparação com 4,7% entre os contrários.

6.2 – O que discursar quer dizer?

A primeira contestação que costuma aparecer em relação às


ações afirmativas para negros é a constitucionalidade. Quem
faz isso baseia-se no artigo 5° da Constituição, que diz que
todos são iguais perante a lei, independentemente de raça,
sexo... E que, portanto, seria inconstitucional você fazer
qualquer coisa privilegiando um grupo racial. Agora, quem
defende a ação afirmativa se baseia em um outro artigo, o 3°,
que reconhece implicitamente que a igualdade não é algo que
já exista, e que cabe ao estado promover igualmente,
igualitariamente, o bem-estar.
Carlos Alberto Medeiros. Depoimento Histórias do
Movimento Negro no Brasil: Depoimento ao CPDOC, 2007,
p. 397-398.

213
Embora os posicionamentos políticos adotados pelos expositores (sobre a
constitucionalidade ou inconstitucionalidade das políticas de cotas raciais) não sejam
entendidos, aqui, como meros produtos de seus posicionamentos nas demais dimensões,
é possível perceber que ao fazer alusão às políticas de cotas raciais, eles,
inevitavelmente, mobilizam argumentos referentes às categorias analíticas das outras
três dimensões (Representações sobre o Brasil, Alternativas políticas e Projetos para a
Nação) para sustentar suas posições (favoráveis ou contrárias) sobre o assunto.
No intuito de evidenciar que os posicionamentos defendidos durante a Audiência
não se reduziram a defesa da constitucionalidade ou inconstitucionalidade destas
políticas, apresentaremos e analisaremos, no item 6.2, quatro subitens, sendo cada qual
referente a uma das dimensões temáticas do trabalho.

6.2.1 - “Cotas Raciais: Você é a favor ou contra”? 109

A primeira dimensão a ser analisada, nesta seção, será justamente aquela


referente aos divergentes posicionamentos dos expositores com relação às políticas de
cotas e as Ações Afirmativas. Ainda que tenha funcionado como eixo articulador de
todos os discursos apresentados durante a Audiência Pública, nem todos os expositores
expressaram abertamente seu posicionamento sobre a Constitucionalidade e/ou
inconstitucionalidade das Cotas, como os casos, já citados, do estudante Davi Cura
Aminuzo e do geneticista Sérgio Pena. Por outro lado, os argumentos apresentados por
Demóstenes Torres e Roberta Fragoso Kaufmann, membro e advogada do Partido
Democratas, respectivamente, são bastante esclarecedores sobre o objeto em disputa na
Audiência Pública e do campo em que os embates foram travados.

109
No intuito de conhecer a opinião pública sobre a implementação de políticas de cotas raciais,
perguntas como estas foram, amplamente, difundidas por diversos veículos de comunicação (programas
de televisão, jornais impressos, blogs na internet) no período de 2002 a 2010. No ano de 2008, o site Uol
Educação propôs aos leitores a elaboração de redações dissertativas considerando o tema: cotas na
universidade: você é a favor ou contra? Disponível em
http://educacao.uol.com.br/bancoderedacoes/cotas-nas-universidades-voce-e-a-favor-ou-contra.jhtm
Acessado em 11 de Outubro de 2011.

214
Não são verdades que, em algum momento, foram questionadas as ações
afirmativas no Brasil em favor de quem quer que seja. Não é verdade, ao
contrário. O que o Senado, hoje, tenta descobrir, com a ajuda importante do
Supremo Tribunal Federal, é qual caminho nós devemos seguir no Brasil: se
nós devemos acudir os negros ou devemos acudir todos os pobres brasileiros,
inclusive os negros? (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2010, p.132 -
Grifo nosso).

Vamos iniciar nossa exposição acerca das cotas raciais, infelizmente, a partir
de uma série de negativas para que não haja qualquer dúvida acerca dos
verdadeiros propósitos desta ação. Inicialmente, não se discute nesta ação
sobre a constitucionalidade de ações afirmativas como gênero para
proteção de minorias. (...) Faço essa constatação e essa observação porque
nós não discutimos nesta ação as cotas para índios. É importante identificar
esse fato, porque no plano de metas da Universidade de Brasília há
previsão de cotas para índios, mas nós fizemos questão de não atacá-las,
porque a discussão que se trata neste tema é apenas relativa a cotas para
negros, cotas raciais (idem, p.76 - Grifo nosso).

Em estreito diálogo com aqueles que o haviam precedido na exposição, o


professor José Jorge de Carvalho provocou os presentes a refletirem sobre os impactos
das políticas de cotas no ensino superior e as desproporcionais reações que a
implementação destas tem provocado. Com isto, buscou evidenciar alguns dos motivos
pelos quais tais políticas vêm enfrentando tanta resistência.

O que representam as cotas em sessenta e oito universidades hoje – ações


afirmativas - no ensino superior brasileiro como um todo? Lembremos
em primeiro lugar que 80% dos universitários brasileiros estão cursando
instituições privadas de ensino; apenas 20% são alunos de instituições
públicas. O total de ingresso no ensino superior brasileiro já alcança mais de
um milhão e setecentos mil estudantes, dos quais - lembremos - um milhão
trezentos e sessenta mil estudam em instituições privadas. O novo
contingente de trezentos e quarenta mil estudantes que acabaram de ingressar
nas instituições públicas deverá incluir uma parcela de aproximadamente
doze mil cotistas negros - é a simulação que fizemos. Se somarmos esses
novos cotistas ao contingente de cinquenta e dois mil cotistas atualmente
matriculados nas sessenta e oito instituições públicas, teremos uma
dimensão do baixo alcance quantitativo do nosso sistema de cotas. Eles
incidirão sobre apenas 3,5% do total de ingressos no nosso sistema de
ensino superior. Por que a garantia de uma porcentagem tão pequena de
estudantes negros na graduação causa tamanha reação? Porque essas
são cotas de acesso ao grande poder acadêmico (SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL, 2010, p. 95 - Grifo nosso).

Ao passo que José Jorge de Carvalho procurava legitimar a implementação das


políticas de cotas raciais, vinculando-as a um esforço concreto de combate às

215
desigualdades entre negros e brancos no Brasil; os opositores a tais políticas
identificavam no processo de implementação de políticas com recorte racial a
concordância do Estado com uma nova era de desigualdades: marcada pelas distinções
raciais, antes inexistentes no Brasil. De acordo com Helderli Fideliz,

o Sistema de Cotas para Negros, na UnB, não é, a rigor, medida de ação


afirmativa. Ele não visa combater discriminação racial, de cor, de origem,
nem corrigir efeitos de discriminações passadas, nem de assegurar os
direitos e as liberdades fundamentais de grupos étnicos e raciais, como exige
a Convenção Internacional Sobre Todas as Formas de Discriminação Racial
para distinguir uma medida especial de uma medida de discriminação racial.
O Sistema de Cotas para Negros na Universidade de Brasília,
inversamente ao que defendia Darcy Ribeiro, idealizador, fundador e
primeiro reitor da UnB, tem por base uma elaborada ideologia de
supremacismo racial que visa à eliminação política e ideológica da
identidade mestiça brasileira e à absorção dos mulatos, dos caboclos,
dos cafuzos e de outros pardos pela identidade negra, a fim de produzir
uma população composta exclusivamente por negros, brancos e
indígenas (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2010, p.328 - Grifo nosso).

Após refletir brevemente sobre os principais argumentos apresentados em


110
oposição às políticas com recorte racial no Brasil e apresentar réplicas aos
participantes, Kabengele Munanga retomou o debate com aqueles que denunciavam a
capacidade, e o perigo, das políticas de ações afirmativas de suprimir as diferentes
identidades étnicas e institucionalizar no Brasil uma ordem social dividida entre brancos
e negros.

Não creio que haja lei capaz de suprimir a mestiçagem ou de instituir a


raça na sociedade brasileira, até porque não é isso que a lei busca. As
ações afirmativas nos Estados Unidos e na Índia não foram para criar raças
ou castas que já existiam antes naquelas sociedades. As leis que proibiram
os intercursos sexuais entre brancos e negros nos Estados Unidos e na África
do Sul em busca da pureza racial, não tiveram o êxito que delas se
esperavam. A constituição da Índia de 1950 aboliu o sistema de castas
naquele país, embora, passados 60 anos, ele continue a vigorar na prática,
prova de que as leis sozinhas não resolvem todos os problemas de uma
sociedade. As políticas de ação afirmativa foram implementadas nesses
países para corrigir os efeitos negativos acumulados e presentes

110
Segundo Kabengele Munanga, os principais obstáculos colocados sob as chances de sucesso das
políticas de cotas foram: a) é impossível dizer quem é negro ou afrodescendente em função da grande
miscigenação ocorrida no país desde seu descobrimento; b) essa política de cotas é uma solução
importada, e não uma solução que reflete as particularidades nacionais; c) as políticas de cotas violariam
o principio do mérito segundo o qual na luta pela vida os melhores devem vencer; d) a política de cotas
prejudicaria a excelência acadêmica tão importante para nossas universidades e e) a inconstitucionalidade
da política de ação afirmativa para indígenas e afrodescendentes.

216
causados pelas discriminações e, sobretudo, pelo racismo institucional.
Creio que isso é também a lógica dessa política no Brasil que
defendemos (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2010, p.237).

No entanto, para os opositores das políticas com recorte racial, o combate às


desigualdades não seria o verdadeiro objetivo do estabelecimento destas leis. Nesse
caso, o objetivo não declarado de tais leis seria racializar a nação, conforme advogam
Yvonne Maggie, Demóstenes Torres e José Carlos de Miranda, respectivamente,

Quero, nos limites desta comunicação, afirmar que a proposta de instituir


leis raciais não tem o objetivo de combater desigualdades. Quem pagará a
conta de uma política pública de alto risco como esta? A proposta que se
apresenta hoje, a política de cotas raciais, colocará o peso e a
responsabilidade das mudanças nos ombros dos já tão sofridos e tão
‘despossuídos’ em nossa sociedade (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL,
2010, p.166 - Grifo nosso).

A idéia de colocar as cotas raciais será que não vai reavivar o sentimento
racista? Será que aquele que perdeu a sua vaga na universidade não vai dizer
amanhã: perdi porque ele tem uma cor diferente da minha. E começar a tomar
ódio dessa cor. Será que é a melhor maneira que temos no Brasil de enfrentar
as desigualdades, Ministros? (idem, p.128 - Grifo nosso).

Mas, aqui, temos de ir um pouco mais adiante, porque as cotas raciais nas
universidades são: a ponta do iceberg de um profundo significado e mudança
da sociedade brasileira. Por quê? Porque a partir da educação, desde a
infância, é que estaremos ensinando às crianças - iguais a esses
quilombolas do Recife que vemos na foto - que elas terão direitos
diferentes, que elas terão adversários de cor diferente para conseguir ter
os mesmos direitos e a mesma oportunidade na vida (idem, p.324 - Grifo
nosso).

Aqui, importa-nos observar que todos os argumentos contrários às cotas que


foram apresentados acima (assim como boa parte dos argumentos contrários
apresentados durante a Audiência) se referem às políticas de cotas como um devir
catastrófico, inevitável caso o Estado legitimasse a definição de identidades étnico-
raciais. É contra esta ampliação do futuro, e ocultação da realidade - que impossibilitava
a percepção da realidade das políticas de cotas já implementadas em diferentes
universidades públicas no momento atual, que o estudante Moacir Carlos se pronunciou.

217
Achamos que os argumentos que têm sustentado, aqueles que são
contrários ao sistema de cotas, são anacrônicos, pois eles tratam de
coisas que poderiam acontecer. Nós aqui estamos como uma prova viva do
que está acontecendo dentro da UERJ. Todos que acompanham a mídia
sabem que, desde 2003, quando instituída a cota na UERJ, não teve nenhum
tipo de morte de alunos pretos ou brancos devido à questão por ter entrado
pelo sistema de cotas, porque isso é alegado na questão do acirramento racial.
(...) E outra importante questão é que se perde no discurso dos que são
contrários, é como se ainda fosse algo que fosse ser implementado: as
cotas vão ser implementadas, vai acontecer morte, vai baixar
rendimento! Não, nós somos prova. Teve uma estudante que teve que ir
embora, mas ela é já formada, advogada, passou há pouco tempo para, ela é
residente da Procuradoria do Rio de Janeiro, e única mulher negra lá, e a
gente sabe que, se não tivesse as cotas, ela não estaria disputando essa vaga
(SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2010, p.443 - Grifo nosso).

De acordo com o estudante, transcorridos mais de dez anos do início das


políticas de cotas raciais nas universidades estaduais do Rio de Janeiro (UERJ e UENF),
e em mais de 70 universidades espalhadas pelo Brasil, os expositores contrários às
políticas de cotas continuavam a temer as possíveis catástrofes decorrentes da
implementação de políticas com recorte racial. Mais de um século depois da Abolição
da Escravidão e dos debates que a antecederam, “o medo da onda negra, imagem vívida
e forjada, no calor da luta, por elites racistas” (AZEVEDO, 2004), parece estar
ressurgindo.

6.2.2 - Representações dissonantes sobre o Brasil

Dentre as representações que tratam das contradições socioeconômicas do


Brasil, e que atualmente, têm sido difundidas no exterior (sem negligenciar àquelas,
nitidamente, estereotipadas relacionadas à famosa tríade: “mulheres, futebol e
carnaval”) àquelas que se referem à coexistência da riqueza e da opulência com a
pobreza e a carência material da população têm se tornado bastante consensuais.
Certamente, são inúmeros os motivos que possibilitaram a construção deste consenso
relativo, entretanto, têm papel de destaque: as imagens fartamente divulgadas sobre o
Brasil, e em especial sobre a (internacionalmente) conhecida cidade do Rio de Janeiro,
na qual luxuosos edifícios à beira-mar coexistem com as grandes favelas urbanas.

218
Notadamente, essas contradições dizem respeito à realidade da maioria dos
países da América Latina (se agravando quando se tratam dos países que constituem o
continente africano e alguns países da Ásia), não se tratando, portanto, de exclusividade
brasileira. No entanto, muitos autores, em especial Scalon (2004) e Merklen (2005) têm
chamado a atenção para a recente tendência de associar tais contradições a sinais de
pobreza e/ou riqueza, dissociando-as das gritantes desigualdades que marcam o Brasil e
outros países da América Latina. De modo geral, esta leitura distorcida da realidade
resulta da tentativa das camadas econômica e politicamente elitizadas em converter
trabalhadores em pobres e, em consequência disso, eleger as políticas de erradicação da
pobreza como as soluções mais eficientes para resolver tais problemas. No caso
brasileiro, onde a desigualdade social “está presente em qualquer área sobre a qual o
observador se detenha: renda, educação, emprego e até mesmo cidadania são
estratificados, o que denota sua natureza multifacetada” Scalon (2004, p.10), este
exercício apresentado acima transforma a desigualdade em um fenômeno ainda mais
difícil de ser combatido.
Do conjunto de expositores que se apresentaram na Audiência Pública no STF
(2010) e, sobretudo, entre aqueles que tiveram seus discursos selecionados para serem
analisados neste trabalho, é possível depreender que as referências às desigualdades
sociais e raciais, em alusão a nossa Estratificação Social, foram mais recorrentes entre
os defensores das políticas com recorte racial. Entre estes, as referências aos padrões de
desigualdade brasileira foram sempre acompanhadas de reflexões que denunciavam o
fato de que, no Brasil, as desigualdades sociais sempre estiveram articuladas com
elementos étnico-raciais, conforme salientam os discursos de Moacir Carlos, Fábio
Konder Comparato e José Jorge de Carvalho, respectivamente:

O Brasil ocupa hoje a quinta potência econômica no mundo, mas em questão


de desigualdade somos comparados aos países africanos (SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL, 2010, p.446).

Quero assinalar fato que se procura, desde sempre, esconder no Brasil, do


total da população estatisticamente considerada pobre, 14,5% (quatorze e
meio por cento) são brancos e 33,2% (trinta e três vírgula dois por cento) são
negros, grosso modo, o dobro. Mas no grupo dos 10% (dez por cento) mais
pobres da população, mais de dois terços, ou seja, 70% (setenta por
cento) são negros e pardos. No mercado de trabalho, com a mesma
qualificação e escolaridade, negros e pardos recebem, em média, quase a
metade dos salários pagos aos brancos. Em nossas cidades, mais de dois

219
terços dos jovens assassinados entre quinze e dezoito anos são negros (idem,
p.268 - Grifo nosso).

Não conheço nenhum país praticamente que tenha dois grupos étnicos,
grupos raciais dominantes em que um dos grupos étnicos ou raciais tenha
confinado outro, apenas 1%, num grupo de professores universitários. Vocês
me digam se conhecem algum país parecido com esse (idem, p.94).

Apesar de admitirem a existência de padrões assimétricos de distribuição de


recursos na sociedade brasileira, as réplicas apresentadas por Yvonne Maggie e
Demóstenes Torres tenderam a identificar certa “igualdade” na distribuição da pobreza
entre negros e brancos.

O Brasil, como todos nós sabemos, é um país desigual e injusto, onde os mais
desafortunados têm, desgraçadamente, muito menos oportunidades do que os
mais aquinhoados pela riqueza e pela herança educacional (idem, p.166).

A realidade é que somos mestiços. Nosso grande problema é a pobreza que,


aí sim, é estrutural. O racismo no Brasil não é estrutural, nem
institucional. A pobreza, essa marginaliza, essa tira o cidadão de
qualquer tipo de benefício (idem, p.131 - Grifo nosso).

Apesar do relativo consenso em torno da existência, e da gravidade, da pobreza


e/ou da desigualdade social no Brasil, os trechos dos discursos acima apresentados
também evidenciam representações dissonantes sobre a estratificação brasileira, que se
relacionam, de modo muito estreito, às Raízes das Desigualdades identificadas. De
modo geral, os defensores das cotas e das Ações Afirmativas procuraram demonstrar,
por meio de seus discursos, que a desigualdade brasileira tem raízes históricas que
remetem ao período colonial e escravocrata. Essa premissa constituiu à tônica do
discurso de Sueli Carneiro.

A desigualdade no Brasil é a expressão material de uma organização


hierárquica, ou seja, é a continuação da escravatura. Corrigir a desigualdade
que é herdeira direta, ou melhor, continuação da escravatura diz Calligaris,
não significa corrigir os restos da escravatura, significa também começar,
finalmente, a aboli-la (idem, p.304).

220
Em consonância com o posicionamento que tende a identificar características
“democráticas” na pobreza brasileira, o historiador Ibsen Noronha, afirmou que seria
inadequado utilizar a instituição escravocrata para explicar os padrões de desigualdade
vigentes hoje no Brasil, em função do tipo sui generis de relações sociais estabelecidas
entre indivíduos (escravos e não-escravos) durante o período escravocrata no Brasil.

Vejamos duas proposições que eu retiro de documentos pró-cotas: a


desigualdade racial vigente hoje no Brasil tem fortes raízes históricas.
Segunda: as raízes do problema estão vinculadas ao escravismo. O perigo de
tomar essas proposições como premissa de raciocínio válido e verdadeiro
é manifesto nas consequências possíveis. Estamos perante falácias de
causalidade. A causa das mazelas é a escravidão, afirma-se.
Consequência: compensemos com as quotas. (...) Documentos históricos
provam que, no século XVI, já temos negros livres no Brasil. Nos nossos
dias, como já disse, já está relativamente bem estudada a condição do
liberto e podemos afirmar que muitos prosperaram econômica e
socialmente. Os números de libertos aumentaram sensivelmente nos séculos
XVII, XVIII e XIX, ao ponto de, em 1888, ano da célebre lei assinada pela
Princesa Isabel, contar o império com apenas 5% da população de escravos.
Estudos apresentam a dinâmica natural dos libertos vinculada à miscigenação
e, naturalmente, à aquisição de escravos (SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL, 2010, p.200-201 - Grifo nosso).

Por outro lado, na mesma Audiência, o historiador Luiz Felipe de Alencastro,


identifica na instituição escravista, a gênese, não apenas, das desigualdades raciais entre
brancos e negros na sociedade brasileira; mas, também, de outros problemas referentes
às relações étnico-raciais no país.

Outra deformidade gerada pelos "males que a escravidão criou", na expressão


de Joaquim Nabuco, refere-se à violência policial. (...) Depois da
independência, no Brasil, como no sul dos Estados Unidos, o escravismo
passou a ser consubstancial a organização das instituições nacionais.
Entre as múltiplas contradições engendradas por essa situação, uma
relevava à do Código Penal: como punir o escravo sem encarcerá-lo, sem
privar o senhor do usufruto do trabalho do cativo que cumpria pena de
prisão? Para solucionar o problema, o quadro legal foi definido em dois
temas. Primeiro, a Constituição de 1824 garantiu, em seu artigo 179, a
extinção das punições físicas: "Desde já, ficam abolidos os açoites, a tortura,
a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis". E ainda: "As cadeias
serão seguras, limpas e bem arejadas." Conforme o princípio do Iluminismo
ficavam assim preservadas as liberdades e a dignidade dos homens livres.
Num segundo tempo, o Código Criminal tratou especificamente da prisão dos
escravos. E, aqui, eu quero aludir ao fato de que pesava sobre toda a
população negra livre a suspeita de ser escravos em fuga. Essa é a
síndrome da escrava Isaura, como eu poderia chamar, que pesava
enquanto o princípio jurídico da propriedade escrava perdurava no país.
As cadeias do Rio de Janeiro e das grandes cidades, no Século XIX, estavam
cheias de indivíduos que, alegadamente, eram livres, mas que eram retidos na

221
cadeia sob a suspeição de serem escravos de fuga de lugares longínquos
(idem, p.207-208 - Grifo nosso).

É interessante observar que, apesar da distância teórica entre os discursos


vinculados a perspectiva liberal (que identifica na pobreza, ou melhor, em níveis
elevados de pobreza, o principal problema dos Estados modernos) e aqueles associados
à perspectiva classista (que identifica no próprio sistema capitalista e sua vocação para
produzir desigualdades) evidenciam o cerne dos problemas da humanidade, os
argumentos utilizados por dois expositores vinculados a cada uma destas perspectivas,
Demóstenes Torres e José Carlos de Miranda, respectivamente, se aproximam e se
complementam na refutação das políticas de cotas e ações afirmativas, conforme se
observa nos excertos abaixo.

Surge aí outro problema. O problema do Brasil: quem é discriminado no


Brasil é apenas o negro? O negro é que é o alvo de toda discriminação
que nós temos, ou será que o nosso problema é em relação ao pobre? Ou
será que o nosso problema é em relação àquele que nada possui
independentemente da sua cor? Nós temos hoje no Brasil dezenove milhões
de brancos pobres, segundo o IBGE, qual tratamento nós vamos dar para
esses brancos pobres no Brasil? (idem, p.122 - Grifo nosso).

Em primeiro lugar, aqui nós ouvimos duas versões da história, Senhor


Ministro, Senhoras e Senhores. Uma: a de que os brancos são os culpados
pela escravidão e a outra, a de que os negros são culpados pela escravidão.
Obviamente que são duas versões falsas. São falsas porque a história não foi
feita pela luta de homens de cor contra homens de outras cores. A história se
movimenta pelo conflito das classes sociais. E quem é o culpado pela
exploração, pela opressão, pela colonização, pela espoliação do continente
africano e do continente americano não são os homens de cor branca,
indistintamente. Insistir nessa espécie de romantismo histórico é distorcer os
fatos e buscar caminhos diferentes dos ensinamentos da História. (...) Em
outras palavras, toda escravidão, tanto de negros africanos como de
índios teve um objetivo: a acumulação primitiva do capital, o
desenvolvimento do capitalismo (idem, p.320 - Grifo nosso).

Já a advogada do Partido Democrata, Roberta F. Kaufman, apresentou


argumentos mais incisivos que os de seus colegas que compartilhavam do mesmo
posicionamento.

Também importa destacar - digo isso em relação às estatísticas que foram


apresentadas - que muitos desses índices são manipulados quando é
conveniente. Primeiro, porque, quando você faz a apresentação dos dados
relacionados aos negros, ninguém discorda que o negro está numa

222
situação pior e numa situação de base da pirâmide social. No entanto, a
interpretação possível para isso ora pode ser o racismo, ora pode ser o
fato de que, infelizmente, no Brasil, os negros são a maiorias dos pobres.
Então, quando você diz, por exemplo, que 90% dos negros não têm acesso a
esgoto e que 90% dos brancos têm acesso a esgoto, será que por trás desse
dado estatístico não está uma condição de renda? (idem, p.85).

Registra-se ainda que o Senador Demóstenes Torres, adotando posição


convergente à expressa por Roberta Fragoso Kaufman, destilou críticas contundentes às
estatísticas oficiais.

Pegando os dados últimos do IBGE nós verificamos o seguinte, Ministro, e


aqui nós podemos atentar para um fato interessante: como as estatísticas
podem às vezes ser manipuladas para sustentar um ponto de vista. Então, o
que fez o IBGE? O IBGE – vou usar a terminologia do IBGE - nós temos
no Brasil 5,9% de pretos, nós temos 42% de pardos, que são isso os
autodeclarados, o IBGE faz nesse sentido. (...) Se nós somarmos esses
dois números, pretos e pardos viraram negros no Brasil, Ministro. É por
isso que temos um grande número de negros no Brasil, porque, segundo
o IBGE, o pardo também é negro. (...) No mapa da violência, portanto,
segundo apregoam, morreram 65% mais negros adultos e 74% mais negros
jovens que os brancos. Eu mesmo fiz questão de pegar, porque aí vem a
divisão, e mais: a UNESCO usou do mesmo golpe estatístico e disse que o
fazia por uma questão de metodologia (idem, p.124 - Grifo nosso).

Ao questionar a legitimidade das estatísticas produzidas pelos institutos de


pesquisa vinculados ao governo federal e ao Estado brasileiro, que evidenciavam a
perpetuação das desigualdades raciais no Brasil, tanto a advogada quanto o senador
causaram perplexidade e revolta entre alguns expositores. Sobre o ocorrido Marcos
Cardoso (membro da Coordenação Nacional das Entidades Negras) afirmou que:

(...) antigamente, dizia-se para o movimento negro, vocês não têm dados,
vocês não conseguem provar e agora vêm os institutos de pesquisa, os
centros de pesquisa do Brasil, produzem uma série de dados para provar a
existência do racismo e vem às pessoas aqui dizer que esses dados estão
sendo manipulados. Como é que pode? Que loucura é essa? (idem, p.293).

Todavia, ao se referir ao pretenso aspecto “igualitário” da desigualdade


educacional brasileira, é em fontes estatísticas oficiais que o senador Demóstenes Torres
se baseia para construir seus argumentos.

223
De acordo com o INEP, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais, que fez o último Índice de Desenvolvimento da Educação
Básica, o IDEB, de uma escala de zero a dez, os alunos do primeiro ciclo
do ensino fundamental obtiveram a pontuação de 4,2; já os alunos do
segundo ciclo do ensino fundamental conseguiram em média 3,8; enquanto
os alunos do ensino médio conseguiram 3,5 pontos. Então os alunos
brasileiros, infelizmente, são analfabetos. Independentemente da cor que ele
tenha ao estudar, ao frequentar uma escola pública, ele não consegue
aprender. O ENEM 2008, numa escala de zero a cem, a média nacional foi
de 41,69 pontos. Os alunos da escola pública conseguiram alcançar a média
de 37,27 pontos e os estudantes da rede privada de ensino obtiveram a média
de 56,12 pontos; nota inferior: 11,3 pontos em relação a 2007. Então, ineficaz
e discriminatória é a nossa escola pública, Ministro (idem, p.122 - Grifo
nosso).

Ao se referir ao Panorama da Educação Básica no Brasil, a professora Yvonne


Maggie, além de concordar parcialmente com o senador acerca do aspecto democrático
das escolas públicas, ratificou que as transformações em curso na política educacional
brasileira são resultados das reivindicações daqueles que querem “racializar” a nação, o
que coloca em risco aquilo que, segundo ela e o escritor pernambucano Gilberto Freyre,
o Brasil teria de mais rico: a falta de orgulho étnico-racial.

Tenho observado ao longo dos últimos anos as escolas públicas do Rio de


Janeiro onde estão os mais pobres estudantes do estado. Estas escolas
formam a maior parte da pequena parcela de jovens brasileiros que termina
o ensino médio e são, portanto, candidatos às cotas raciais e estão repletas de
crianças e jovens de todas as cores, majoritariamente pretas e pardas
conforme a definição do IBGE. (...) (Nestas escolas) o primeiro passo já
foi dado (rumo a racialização do Brasil) com a criação da lei que
instituiu o ensino da história da África e da cultura afro-brasileira em
todas as escolas públicas e privadas do ensino básico do País. Quem seria
contra ensinar a história dos "negros" no Brasil e a história da África? Quem
se oporia a contar a história da cultura afro-brasileira? A iniciativa de
introduzir esta disciplina é em si importante, porém está envolta em
uma trama maquiavélica. Regulamentada pelas Diretrizes Nacionais
Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino
da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana orienta os professores sobre
como ensinar as relações étnico-raciais e infundir nos estudantes o que é
chamado de "orgulho étnico" (idem, p. 166-167 - Grifo nosso).

Como se observa no discurso citado acima, as referências explícitas aos


Conceitos de Raça, Etnia e Miscigenação podem ser encontradas nos discursos de
quase todos os expositores; em quase todas as dimensões observadas; bem como, em
quase todas as categorias analíticas. Isso evidencia o fato de que os debates em torno da
“cientificidade” e/ou validade dos conceitos de raça, etnia e miscigenação se

224
transformaram no ponto alto da Audiência Pública, possibilitando a visualização das
nítidas oposições entre os expositores.
Considerando essas questões, o geneticista Sérgio Pena retoma tais conceitos em
seu posicionamento:

Há um trabalho fundamental, com quase quarenta anos, feito por Richard


Lewontin, nos Estados Unidos. Na época, ele estudou a variabilidade
genética de várias regiões genéticas e separou, usando técnicas estatísticas, a
variabilidade dentro das populações, dentro das chamadas raças entre
populações e entre as raças. O que ele observou? 85,4% da variação
genética humana estavam contidas dentro das populações. Apenas 6,3%
da variação genética ocorriam entre as chamadas raças. Este e muitos
outros estudos mostram que do ponto de vista biológico não ocorreu
diferenciação significativa de grupos humanos, ou seja, as chamadas
raças. Podemos, assim, afirmar que do ponto de vista científico raças
humanas não existem. Alguém poderia perguntar: Se raças não existem,
como então é possível inferir com alta probabilidade que essa bela jovem é
africana e não escandinava. Não é apropriado falar aqui de raça e sim de
variações de pigmentação da pele e de característica morfológicas que
representam adaptações evolucionárias às condições locais. Raças não
existem, cores de pele existem, mas são coisas diferentes e não devem ser
confundidas e nem misturadas em nenhum tipo de discurso (idem, 158-
159 - Grifo nosso).

Fica evidente no discurso do geneticista que: os argumentos apresentados pelos


expositores pró-cotas - procurando explicitar o caráter socialmente construído das
identidades raciais e da identidade negra -, foram recorrentemente confrontados com
argumentos advogando a inexistência biológica das raças. Isso levou os expositores
Kabengele Munanga e Sueli Carneiro, entre outros, a reelaborar suas respectivas
argumentações visando refletir acerca dos significados sociais dos conceitos de raças e
de miscigenação no Brasil.

Dizia-se no início que era difícil definir quem é negro ou afro-descendente


no Brasil por causa da intensa miscigenação ocorrida no país desde o seu
descobrimento. Falsa dificuldade, porque a própria existência da
discriminação racial antinegro é prova de que não é impossível identificá-lo
(idem, p.232).

Aqueles que a condenam ou atacam as cotas utilizam-se ainda da retórica da


diversidade, da miscigenação, para destituir as racialidades socialmente
instituídas. No entanto - e mais uma vez recorrendo ao Senador Marco
Maciel -, afirmo com ele que ‘a riqueza da diversidade cultural brasileira
não serviu, em termos sociais, senão para deleite intelectual de alguns e
para demonstração de ufanismo de muitos’ (idem, p.301 - Grifo nosso).

225
No discurso de Helderli Fideliz, presidente da organização Nação Mestiça e
coordenadora da Associação dos Caboclos e Ribeirinhos da Amazônia, o processo
histórico de miscigenação brasileira, abordado por quase todos os expositores contrários
às cotas, foi analisado mediante uma perspectiva inovadora, evidenciando a
complexidade e ambiguidade dos conceitos estruturantes do campo e das próprias
relações raciais no Brasil.

A própria mestiçagem, que em regra ocorreu e ocorre no Brasil de


forma harmoniosa, também passou a ser apresentada de forma
equivocada e negativa. (...) O antropólogo Kabengele Munanga, da USP,
sobre o mesmo tema, assim se expressou: "Se no plano biológico, a
ambiguidade dos 'mulatos' é uma fatalidade da qual não podem escapar, no
plano social e político-ideológico, eles não podem permanecer 'um' e 'outro';
'branco' e 'negro', e acrescentou; ‘construir a identidade 'mestiça' ou 'mulata'
que incluiria 'um' e 'outro' ou excluiria um e outro é considerado, por
mestiços conscientes e politicamente mobilizados, como uma aberração,
tanto política como ideológica; pois supõe uma atitude de indiferença e de
neutralidade perante o processo de construção de uma sociedade
democrática’. Este modo de ver o mestiço, porém, não é apenas
marginalizador e moralmente ofensivo; ele também leva a um
preconceito de caráter biológico: seria normal o branco ter identidade
branca, o negro identidade negra, o índio identidade indígena, mas não
o mestiço ter identidade mestiça; ele seria um ser incompleto,
necessitado da identidade negra (idem, p.333-334 - Grifo nosso).

Uma leitura precipitada do discurso de Helderli Fideliz nos levaria a crer que
seus argumentos não se distinguem em nada dos demais argumentos contrários às cotas
e as ações afirmativas apresentados na Audiência. Todavia, orientada por uma
perspectiva culturalista, a presidente da Nação Mestiça, ao mesmo tempo em ratifica o
imaginário de que o processo de miscigenação no Brasil ocorreu de maneira harmônica
no Brasil, parece discordar de uma visão sintetizadora das identidades étnico-raciais
oriundas da miscigenação. Ao mesmo tempo em que reconhece a legitimidade de
reivindicações em torno de identidades especificas, derivadas de uma cultura comum e
de um esforço político em forjar uma identidade coletiva, Helderli procura demarcar as
diferenças identitárias entre pardos e pretos, possuidores de referenciais identitários
distintos. Ao invés de defender a máxima Freyriana de que “todos somos iguais, porque
somos mestiços”, Helderli, em nome dos mestiços e caboclos, parece reivindicar o
reconhecimento de uma identidade autonomamente parda e mestiça.

226
Do ponto de vista conceitual, ao mesmo tempo em que problematiza a noção
binária que opõem negros a brancos, Helderli problematiza a síntese homogeneizadora
de uma identidade brasileira única. Contudo, do ponto de vista político, ela adota uma
posição contraditória, ao se filiar a “Santa Aliança” contra as cotas raciais, grupo que
por diversas vezes explicitou sua preocupação com a defesa de uma identidade nacional
única, virtualmente ameaça pela racialização da Nação e pela adoção de identidades
particulares 111.
As réplicas apresentadas pelos defensores das políticas com recorte racial, tanto
em relação às críticas feitas por Demostenes Torres, por Roberta kauffman e por
Helderli Fideliz, procuraram mostrar como as distinções raciais vigentes no Brasil,
independente de sua inoperância genética, são resultado de uma sofisticada construção
social e política, que tem possibilitado uma alquimia naturalizante de características
fenotípicas em comportamentos morais e cognitivos (como o imaginário popular que
sustenta a teoria de que todo negro é suspeito ou ladrão). Estabelecendo um estreito
diálogo com o discurso de Helderli Fideliz, Sueli Carneiro e Marcos Cardoso, em
particular, argumentaram que o imaginário complexo acerca da miscigenação no Brasil,
é um elemento fundamental do quadro sui generis das Relações raciais no Brasil.

O caso Siegfried Ellwanger, condenado pelo crime de racismo por


edição de obre anti-semita, é emblemático nessa direção. Ele ofereceu a
oportunidade para que o STF debatesse e examinasse o sentido da
noção de raça. Na ementa do acórdão dessa ação, o STF explicita que:
"A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de
conteúdo meramente político-social. Deste pressuposto origina-se o
racismo, que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito
segregacionista". As diversas manifestações dos Ministros nesse caso
reafirmaram com absoluta pertinência que a racialidade não está assentada
em determinações biológicas. Excelentíssimo Ministro Gilmar Mendes
defendeu que a Constituição compartilha o sentido de que “o racismo
configura conceito histórico e cultural assente em referências supostamente
raciais, incluído aí o antissemitismo.” Em consonância, o então Ministro do
STF Nelson Jobim recusou o argumento da defesa de Ellwanger segundo a
qual judeus seria povo e não raça, portanto não estariam ao abrigo do crime
de racismo conforme a Constituição. Por sua vez, a Ministra Ellen Gracie
cunhou uma interpretação da maior importância para o entendimento
das relações raciais no Brasil. Disse ela: “é impossível, assim me parece,
admitir-se a argumentação segundo a qual se não há raças, não é
possível o delito de racismo” (idem, p.301-302 - Grifo nosso).

111
Dada à complexidade desta problemática, o reconhecimento identitário de pardos e mestiços numa
sociedade que, ao mesmo tempo em que exalta a miscigenação, perpetua e atualiza o Mito do
Branqueamento Racial (Munanga, 2004), creio que pesquisas de caráter qualitativo poderiam possibilitar
uma compreensão mais aprofundada deste fenômeno.

227
Marcada pela hierarquização racial, a nossa sociedade moldou-se como
um modelo racista sui géneris. Aqui, não se precisa de um instrumento
legal para excluir, objetivamente, a população negra das possibilidades
efetivas de emancipação econômica, política, acadêmica e social. A partir
do discurso da sociedade harmônica e pacífica articularam-se fórmulas
objetivas e eficazes que geram barreiras para a ascensão social negra, de
forma que, cotidianamente, negras e negros são postos à prova tendo que
demonstrar genialidade para aquilo que, em verdade, bastaria algum esforço.
É o racismo institucionalizado pela imprensa, pelo judiciário, pelo senso
comum, pela escola e, sobretudo pela Academia. A legitimação simbólica e
política se da pela reprodução de que somos todos iguais, que vivemos
numa sociedade multicultural e de que o cruzamento racial se deu a
partir de bases integradoras. (idem, p.291 Grifo nosso).

De outra parte, a resoluta negação da existência de raças, produzia (como


consequência teórica) a negação da existência do próprio racismo, levando alguns dos
expositores contrários às cotas, como Yvonne Maggie e Demóstenes Torres, a definir as
relações raciais brasileiras como algo próximo daquilo que Gilberto Freire chamou de
“equilíbrio de antagonismos”.

(Nas escolas públicas brasileiras) existe entre os estudantes um sentimento


de igualdade forjado no dia a dia da vida escolar e um desprezo em definir
as pessoas a partir da cor da sua pele. Ao longo de minha vida de pesquisa
nessas escolas do Rio de Janeiro, perguntei aos jovens estudantes se na
escolha de seus namorados ou amigos levava em conta a cor. A maioria
esmagadora respondeu que isso era irrelevante. A observação de campo
ao longo dos últimos cinco anos do cotidiano dessas escolas mostra, além
disso, que os estudantes, como a maioria dos brasileiros, preferem não levar
em consideração a cor na hora de escolher os amigos ou parceiros. São
estudantes misturados na cor, fruto do que já foi detectado ao longo dos
últimos censos, o aumento dos casamentos mistos em relação ao total de
casamentos (idem, p.166-167 - Grifo nosso).

Como dizia Darcy Ribeiro, temos uma história tão bonita de miscigenação...,
Darcy Ribeiro que hoje também é excomungado pelo movimento, porque
diz que aqui é um caldeirão maravilhoso de cores e raças, como é que nós
podemos tratar, portanto, dessa questão do africano escravizado. É tão
equivocada essa visão, que, por exemplo, Paul E. Lovejoy, que escreveu um
livro acerca especificamente do tema, mostra lamentavelmente que, até o
início do século XX, o escravo era o principal item de exportação da pauta
econômica africana. As negras foram estupradas no Brasil. A
miscigenação se deu pelo estupro. Foi algo absolutamente forçado.
Gilberto Freire, que hoje é completamente renegado, mostra que isso se
deu de uma forma muito mais consensual e que, felizmente, isso levou o
Brasil a ter hoje essa magnífica configuração racial (idem, p.129 - Grifo
nosso).

228
Ao referir-se ao processo de miscigenação no Brasil, baseando-se na obra de
Gilberto Freyre, o senador Demóstenes Torres voltou a provocar a indignação de muitos
expositores presentes e também da audiência que acompanhava o debate no segundo
andar do STF. Na oportunidade, o também senador da República Paulo Paim, que não
estivera presente no primeiro dia da Audiência quando do pronunciamento do senador
Demóstenes (e tão pouco estava inscrito para se pronunciar) provocou o colega de casa,
fazendo referências “indiretas” ao mesmo.

Eu confesso que, quando vim pra cá, eu sabia que Vossa Excelência ia me
dar a palavra. Eu pedi, pedi mesmo, do fundo do meu coração, que o espírito
de Zumbi, com a liderança de Mandela, que a história de Gandhi me
iluminasse nesse momento (...) Eu queria também dizer a vocês que nos
debates que já participei dessa questão do preconceito e do racismo, eu
ouvi de tudo já. Ouvi, por exemplo, (...) de pessoas dizerem para mim em
audiências públicas, não é bem assim essa história de que as mulheres
negras foram violentadas. Elas consentiam e até gostavam. E a pergunta
que eu fiz a esse cidadão e ele ficou sem resposta: você acha que se a tua
mãe, a tua irmã, se a tua filha fosse violentada, você gostaria? Ele ficou
mudo, não teve resposta. Então, este é um tema que eu não quero nem trazer
para o debate (idem, 148-149).

Apesar da indisposição do senador Paulo Paim em aprofundar tal debate, muitos


foram os artigos publicados em jornais e revistas eletrônicas, em sites e blogs da
internet empenhados em dialogar as declarações do senador Demóstenes Torres
proferidas na Audiência Pública. Se por um lado, parte destes artigos denunciou o
suposto equívoco do senador ao citar o escritor pernambucano; outros foram mais
enfáticos e denunciaram o racismo, no sentido lato da palavra, levando em conta a
insensibilidade do senador em relação ao sofrimento das mulheres negras tornadas
mercadorias sexuais no cativeiro. Formada a polêmica, houve também quem saísse em
defesa do senador, como foi o caso do sociólogo Demétrio Magnoli 112.

112
No dia 04 de Março de 2010, o jornalista Élio Gaspari publicou no Jornal Folha de São Paulo um
artigo intitulado “A teoria negreira do DEM saiu do armário”. Disponível em
<http://www.news.afrobras.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=284:elio-gaspari-a-
teoria-negreira-do-dem-saiu-do-armario&catid=35:artigos&Itemid=56> Acessado em 10 de Setembro de
2011.

Também no dia 04 de Março de 2010, os jornalistas Laura Capriglione e Lucas Ferraz publicaram no
Jornal Folha de São Paulo o artigo intitulado “DEM corresponsabiliza negros pela escravidão”.
Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u702198.shtml>. Acessado em 10
de Setembro de 2010.

229
Controvérsias à parte, vale à ressalva que: de fato, Gilberto Freyre fez várias
referências, em suas obras, às relações sexuais entre senhores de escravos e suas
escravas. Entretanto, não encontramos em nenhuma, embasamentos teóricos que
legitimem a afirmação do senador. No terceiro capítulo de sua obra maior, Casa Grande
e Senzala (1993), Freyre afirma que:

Nenhuma casa-grande do tempo da escravidão quis para si a glória de


conservar filhos 'maricas' ou 'donzelões'. O folclore da nossa antiga zona de
engenhos de cana e de fazendas de café, quando se refere a rapaz donzelo, é
sempre em tom de debique: para levar o maricas ao ridículo. O que sempre
se apreciou foi o menino que cedo estivesse metido com raparigas.
Raparigueiro, como ainda hoje se diz. Femeeiro. Deflorador de mocinhas. E
que não tardasse a emprenhar negras, aumentando o rebanho e o capital
paterno (p.356). Se esse foi sempre o ponto de vista da casa-grande, como
responsabilizar-se a negra da senzala pela depravação precoce do menino
nos tempos patriarcais? O que a negra da senzala fez foi facilitar a
depravação com a sua docilidade de escrava; abrindo as pernas ao primeiro
desejo do sinhô-moço. Desejo, não: ordem (idem, p.356).

Neste trecho (como nas demais obras de sua autoria), a descrição da dinâmica
das relações sexuais entre membros da casa Grande e da Senzala, que mesclam aspectos
de violência e benevolência, parece coadunar com a perspectiva adotada pelo autor
sobre as demais esferas das relações sociais no Brasil, marcadas, não pelo conflito
aberto, mas pelo equilíbrio de antagonismos. A adesão a esta perspectiva “freyrriana”,
que reconhecia o Brasil como paraíso racial (se comparado a outras nações), não se
limitou ao senador Demóstenes Torres. O jurista Ibsen Noronha também fez referências
elogiosas ao autor pernambucano ao discorrer sobre o risco “em potencial” de
acirramento dos conflitos raciais no Brasil.

Gilberto Freyre na sua tese de mestrado, pouco lida, intitulada "Vida


Social no Brasil nos Meados do Século XIX", defendeu essa tese na
Faculdade de Ciências Políticas Jurídicas e Sociais, na Universidade de
Columbia, afirmou: "A História deve produzir alegria pela
compreensão do passado." Estou seguro de que essa afirmação surgiu
na medida em que procurava obviar uma corrente que já então se fazia
presente nos meios da História, que produzia ódios e revanchismo na
interpretação da História. E criava justiceiros de toda a espécie. Aqui
temos um flagrante perigo: a História refém da ideologia, a História que
produziu o dogma da luta de classes, por exemplo, gerou milhões de
assassinatos através dos totalitarismos comunista, nazista e fascista,

Em resposta ao artigo de Capriglione e Ferraz, o sociólogo Demétrio Magnoli publicou, também no


Jornal Folha de São Paulo, na edição do dia 09 de Março de 2010, o artigo intitulado “Jornalismo
delinqüente” Disponível em: <http://antiforodesaopaulo.blogspot.com/2010/03/o-jornalismo-
delinquente.html>. Acessado em 10 de Setembro de 2011.

230
pretenderam-se justiceiros da História (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL,
2010, p. 196-197 - Grifo nosso).

“Expurgar todo tipo de ideologia das análises históricas e sociais”, este seria o
modo mais adequado, na opinião do jurista de garantir análises que produzissem
alegrias e não tristezas ou magoas. É curioso observar que: ao mesmo tempo em que se
filia a um modelo normativo capaz de produzir conhecimento histórico e felicidades, o
expositor reafirma seu posicionamento desprovido de ideologia. Ora, tanto os
indivíduos que abraçam concepções que atribuem à história (e/ou às demais ciências) o
papel de viabilizar a emancipação dos oprimidos por meio de denúncias das relações
sociais assimétricas (de classe, gênero ou raça); quanto àquele que se filiam as
concepções científicas “aparentemente” neutras (mas, que estão empenhadas em
produzir ordem e conformação social) são movidos por ideologias. No entanto, ao
referir-se a uma aula que havia preparado sobre as ações legislativas voltadas para a
libertação dos escravos no período do Brasil Imperial, Ibsen Noronha recomendou aos
ministros do STF a leitura do material, salientando a capacidade elucidativa do texto
(produzido a partir de fontes primárias), que evitando histórias de segunda ou terceira
mão - cheias de ideologia.
Todavia, Ibsen Noronha e os demais expositores contrários às políticas com
recorte racial ignoraram abertamente os relatos de “primeira mão” compartilhados pelos
poucos representantes da população negra que se expressaram na tribuna. Ao ignorarem
os relatos dos expositores negros presentes na Audiência, seus dilemas, desafios e
expectativas em relação as relações raciais no Brasil, alguns dos expositores contrários
às políticas de cotas, discursavam como se estivessem sozinhos no STF. Nas exposições
de Demóstenes Torres e Roberta Fragoso Kauffman, por exemplo, ambos pareciam
dialogar consigo, decidindo, por vezes, com base em abstrações sobre a vida da
população negra, o futuro mais adequado e digno para os “objetos” de suas ações
políticas ou investigações científicas.

A pergunta que faço é se nós, realmente, devemos criar uma legislação


brasileira para os negros no Brasil? Temos que criar uma legislação para os
negros no Brasil? Os negros merecem esse tratamento? E no caso do merecer
o tratamento é até pensando num futuro em que essa discriminação positiva
pode lhe ser totalmente contrária? (idem, p.120).

231
Na dimensão objetiva dos Direitos Fundamentais, cabe ao Estado proteger a
dignidade dos negros, ainda que esses não a queiram protegida, porque isso é
uma ofensa demasiada a qualquer pessoa, especialmente em relação à sua
auto-identificação (idem, p.84).

Como visto, as nítidas diferenças entre as representações sobre o Brasil foram


expressas pelos representantes dos dois grupos que se confrontaram na Audiência
Pública. Ter acesso a esse rico material estimula reflexões profundas sobre o fato de
que, apesar dos esforços empreendidos pelo Ministro Ricardo Lewandowiski, em
debater as políticas de cotas, em variados momentos, a Audiência Pública foi convertida
em monólogos, em que cada parte procurava defender seus projetos de nação e as
alternativas políticas que julgavam mais adequadas para conservar, atualizar ou
reinventar o Brasil. As divergentes representações sociais em disputa na Audiência
evidenciariam a perpetuação de uma tendência das relações raciais no Brasil a qual já
nos referimos: ao mesmo tempo em que expressavam uma benevolente preocupação
com o destino da população negra, os expositores contrários às cotas e às ações
afirmativas deslegitimavam os argumentos e as escolhas políticas da população negra
(representada por alguns expositores) e, ao procurarem negar sua existência enquanto
sujeitos políticos, procuravam devolver-lhes a posição de “micróbios”.

6.2.3 - As alternativas políticas: modos de compreender e intervir

Como procurado evidenciar no ESQUEMA 1, apresentado na seção 5.2, as


representações sobre a realidade brasileira, explicitadas pelos expositores durante a
Audiência Pública no STF nos ajudam a compreender, não somente os Projetos de
Nação defendidos por cada um dos expositores, mas também as alternativas políticas
que cada um elege para conservar, atualizar ou reinventar a Nação. Neste sentido, a
coerência interna entre estes elementos (representações sobre a Nação e as alternativas
políticas) não resulta do simples exercício de retórica discursiva, mas do fato de que
ambas que ambas, as representações e as alternativas políticas, são produzidas em um
mesmo contexto, e por isso estão vinculadas a lugares de classe, de pertencimento
étnico-racial e de posicionamento político. Em conseqüência, estes lugares de produção
informam tanto a visão de mundo, quanto os posicionamentos políticos dos expositores.

232
Os trechos dos discursos de Demóstenes Torres e Ibsen Noronha, abaixo
relacionados, ilustram esta afirmação:

Lembrando a tradição que nós temos no Brasil, desde 1831 toda e


qualquer lei feita no Brasil foi numa única direção: ou minimizar os
efeitos da escravatura ou combater o racismo no País. A primeira lei de
1831, que era uma lei tentando enganar a Inglaterra, uma lei que proibia o
tráfico de escravos, por exigência da Inglaterra que era a maior potência e
senhora dos mares, ficou conhecida como "lei para inglês ver". Por quê?
Porque foi uma lei para enganar os ingleses que queriam o fim do tráfico
obrigatoriamente (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2010, p.120 - Grifo
nosso)

Desde a independência até a lei de 13 de maio de 1888, vemos as ações


legislativas do Império do Brasil voltadas para libertação de todos os que
estivessem no Brasil. Note-se: nascidos no Brasil ou em África (idem,
p.197).

Ao compararmos a percepção de ambos os expositores (o senador e o jurista)


sobre a “tradição” do Estado Brasileiro, no trato das questões étnico-raciais, com os
modos pelos quais os expositores favoráveis às políticas de cotas, e em particular o
historiador Luis Felipe de Alencastro, concebem a história de intervenções do Estado na
dinâmica das relações raciais, alguns pontos divergentes destacam-se.

No Século XIX, o Império do Brasil aparece, ainda, como a única nação


independente que praticava o tráfico negreiro em grande escala. Alvo da
pressão diplomática britânica o comércio oceânico de escravo passou a ser
proscrito na seqüência do Tratado Anglo-Brasileiro de 1826, a Lei de 1831
proibiu a totalidade do comércio de africanos no Atlântico. (...) Ora, a Lei de
1831 assegurava plena liberdade aos africanos introduzidos no País
desde que pisassem numa praia brasileira. Isso é explicitado na lei. Em
conseqüência, os alegados proprietários desses indivíduos livres eram
considerados sequestradores, incorrendo nas sanções do artigo 179 do
Código Criminal, de 1830, que puniu o ato de "reduzir à escravidão à pessoa
livre que se achar em posse de sua liberdade". Tais sanções são reiteradas
pela Lei Eusébio de Queirós, de 1850. Porém o governo imperial anistiou,
na prática, os senhores culpados do crime de seqüestro, mas deixou livre
curso ao crime correlato, a escravização de pessoas livres (idem, p.206 -
Grifo nosso).

Neste ponto específico, os distintos discursos acerca do papel histórico do


Estado brasileiro no campo das relações étnico-raciais são informados, não somente
pelos diferentes lugares sociais de onde provem tais vozes, mas pelas distintas

233
evidências empíricas mobilizadas para sustentar tais argumentos. Nota-se, portanto, nos
diferentes posicionamentos daqueles que se opuseram às políticas de cotas, que as
diferentes evidências empíricas indicando o papel ativo do Estado brasileiro na
perpetuação das assimetrias raciais, resultados de pesquisas levadas a cabo por
intelectuais negros (Medeiros, 2004; Silva Júnior, 1988), continuam a ser tratadas como
inexistentes.
Para aqueles que enxergam de modo positivo a história de intervenções do
Estado brasileiro no campo das relações étnico-raciais do Brasil, identificando nas
intervenções estatais um propósito de harmonizar as diferenças étnico-raciais e
promover o “equilíbrio de antagonismos”, a promulgação da Constituição Federal de
1988, é vista, em geral, como o auge democrático, expressão acabada da vocação
harmonizadora da sociedade e do Estado nacional. Para aqueles que, por outro lado,
enxergam de modo negativo a história de intervenções do Estado brasileiro no campo
das relações étnico-raciais, identificando nelas uma série de esforços não declarados
para promover o silenciamento e a invizibilização das camadas subalternas (e em
especial das populações negras e indígenas), a promulgação da Constituição Federal de
1988 é vista como uma ruptura com o establishment autoritário e elitista que marcaram
as constituições anteriores.
Como conseqüência dos diferentes diagnósticos acerca da atuação do Estado
brasileiro ao longo de nossa história imperial e republicana e das diferentes expectativas
relacionadas à Constituição de 88, os expositores expressaram diferentes perspectivas
sobre o Papel do Estado na garantia da Constituição. Tanto no discurso do professor
Fábio Konder Comparato, apresentado a seguir, quanto em boa parte dos trechos de
discursos referentes ao papel do Estado na garantia da Constituição, é possível
depreender a existência de uma forte coerência interna entre os significados atribuídos a
Constituição Nacional (à essência da Constituição) e as expectativas expressas em
relação à atuação do Estado.

A Constituição de 1988 criou – ou tentou criar - no Brasil um estado


social. Estado social é aquele que se rege por princípios finalísticos ou
teleológicos. Não se trata, para o Estado, simplesmente de promulgar leis
e deixar que cada membro da sociedade civil escolha o destino de suas
vidas. Trata-se de dar um rumo ao país. E esse rumo é indicado,
sobretudo, pelo disposto no artigo 3º da Constituição: "Art. 3º Constituem
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: III - erradicar a
pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV
- promover o bem de todos, sem discriminação de qualquer espécie..." Trata-
se de normas cogentes e não simplesmente de disposições facultativas. O

234
inciso III mostra que o objetivo final é a eliminação das desigualdades sócio-
econômicas. E aponta, esse dispositivo, em especial, para a erradicação da
pobreza e da marginalização social. E o inciso IV, repito, tem sido mal
interpretado, porque não se percebe o conteúdo ativo que está dentro dessa
norma constitucional: "promover o bem de todos". Não se trata
simplesmente de deixar o Estado se mover de acordo com os movimentos
ou com as pressões. Promover é indicar um rumo. E esse rumo é
republicano, o bem comum de todos. E acrescenta o dispositivo:
proibidas as discriminações (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2010, p.
266-267 - Grifo nosso).

Contrapondo-se ao posicionamento de Fábio Konder Comparato, Hederli Fideliz


argumentou que as recentes intervenções do Estado Brasileiro no campo das relações
raciais, sobretudo em relação à posição adotada durante a Conferência de Durban,
contradizem os princípios definidos na Constituição de 1988.

Nossa Constituição assegura a valorização da diversidade étnica e regional e


a proteção de todos os grupos participantes do processo civilizatório
nacional. O mestiço brasileiro, organizando-se em associações para a defesa
de sua identidade, tem esta reconhecida oficialmente por leis como as que
instituíram o Dia do Mestiço nos Estados do Amazonas, de Roraima e da
Paraíba, e também o Dia do Caboclo. Contradizendo sua política interna, o
Brasil tornou-se signatário dos documentos finais da Conferência
Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e
Intolerância Correlatas, e de sua Conferência de Revisão, promovidas
pela ONU em 2001 e 2009 (idem, p.335-336 - Grifo nosso).

Em estreito diálogo com a exposição de Helderli Fideliz, Marcos Cardoso


afirmou que as políticas compensatórias induzidas e/ou implementadas pelo Estado, em
prol da superação das desigualdades raciais, não derivam, necessariamente, de uma
leitura jurídica da Constituição escrita, mas de uma leitura sobre a constituição real (ou
do estado de coisas) das relações raciais no Brasil.

Nós defendemos as políticas compensatórias, as políticas focadas com o


objetivo de que essas políticas públicas consigam chegar à ponta. É nessa
perspectiva que nós defendemos a necessidade de que o Estado
implemente as políticas focadas. Isso não significa de maneira alguma
que nós estamos excluindo as políticas de caráter mais universal, porque,
para o Movimento negro, embora, há décadas, nós propomos políticas para
superar a desigualdade racial, no Brasil, acreditamos também que somente
uma política articulada, capaz de reduzir essa tremenda dívida histórica, na
medida em que nossa população é considerada, segundo esses mesmos dados,
os mais pobres entre os pobres, é necessário que o Estado, de fato, tenha uma
política com orçatura. E para tornar eficazes esses direitos, tanto
individuais como coletivos, os direitos sociais, os direitos culturais e,
sobretudo, os direitos educacionais, o Estado tem que redefinir o seu

235
papel no que se refere à prestação de serviços públicos, de forma a
ampliar sua intervenção nos domínios das relações tanto subjetivas e
privadas, buscando reduzir a igualdade formal em igualdade de
oportunidade e tratamento. Entre essas políticas, defendemos a
implementação das Ações Afirmativas e política por Cotas Raciais como
medida capaz de efetivar com mais equidade o acesso da juventude negra, da
juventude pobre e dos povos indígenas, nas instituições federais e estaduais
públicas do ensino superior e do ensino de tecnológica (SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL, 2010, p.294 - Grifo nosso).

Da perspectiva de Marcos Cardoso, consoante a José Jorge de Carvalho, a


superação da oposição entre políticas focalizadas e universais, que dominaria o
imaginário dos formuladores de políticas públicas no Estado moderno, seria uma das
medidas fundamentais para possibilitar ao Estado adotar um novo Modelo de Políticas
Públicas. Para ambos os expositores, somente a adoção deste novo modelo possibilitaria
o enfrentamento das desigualdades raciais (que marcam a sociedade brasileira e faria
justiça à vocação democrática da Constituição de 1988) da parte do Estado.

Se a questão fundamental é como combinar a semelhança com a


diferença para podermos viver harmoniosamente, sendo iguais e
diferentes, por que não podemos também combinar as políticas
universalistas com as políticas diferencialistas? Diante do abismo em
matéria de educação superior, entre brancos e negros, brancos e índios, e
levando-se em conta outros indicadores sócio-econômicos provenientes dos
estudos estatísticos do IBGE e do IPEA, os demais índices do
desenvolvimento humano provenientes dos estudos do PNUD, as políticas de
ação afirmativa se impõem com urgência, sem que se abra mão das políticas
macrossociais. Não conheço nenhum defensor das cotas que se oponha à
melhoria do ensino público. Pelo contrário, os que criticam as cotas e as
políticas diferencialistas se opõem categoricamente a qualquer política de
diferenciação por considerá-las a favor da racialização do Brasil (idem, p.
237-238 - Grifo nosso).

O pensamento das cotas é um pensamento complexo na sua origem, na


sua concepção. Há uma polarização também desnecessária do debate das
cotas que gostaria de acrescentar. A UnB adotou cotas para negros porque
necessitou enfrentar a sua exclusão racial crônica. Isso feito, nada
impede, por exemplo, que ela possa adotar cotas para estudantes de
baixa renda e cotas para egressos de escolas públicas também. O que não
é construtivo é a polarização entre um tipo de ação, como se fosse uma
ação afirmativa ou outra. Acredito que o modelo possível da UnB, e que
devemos avançar para isso, seria 20% de cotas para negros, 20% de cotas
para o estudante de baixa renda e 30% de cotas para a escola pública. Isso
não daria 70%; isso daria aproximadamente 32%, entre 30 e 33%, porque
evidentemente há uma superposição. Ou seja, deveríamos pensar em três
recortes autônomos e superpostos, melhor que um recorte único que
determine todos os outros (idem, p.96-97 - Grifo nosso).

236
Enquanto, os defensores das políticas com recorte racial reivindicavam um
modelo de Estado capaz de implementar políticas públicas que articulem ações
universalistas e ações focalizadas no combate às desigualdades, reconhecendo tanto as
especificidades geracionais, de gênero e étnico-raciais; seus opositores (como os definiu
Sueli Carneiro) reivindicavam a necessidade e, sobretudo, a premência de um Estado
implementador de políticas universalistas. Para este segundo grupo, ao passo que as
políticas reivindicadas pelos defensores das cotas carregavam consigo o perigo de
provocar a fragmentação da nação e gerar felicidade apenas para um grupo (a elite
negra); as políticas universalistas seriam àquelas redentoras, capazes de promover a
“felicidade geral da nação”. Segundo Yvonne Maggie,

... A partir dos anos 1990, alguns setores do governo brasileiro e grupos
organizados em Ongs, ansiosos por um atalho que conduzisse a maior justiça,
propuseram a criação de leis raciais que nos levassem mais rápido ao fim das
desigualdades. Tal atalho foi construído sobre o argumento de que o racismo
é um dos fatores mais importantes na produção das desigualdades da nossa
sociedade. O Brasil, nunca tendo apartado legalmente cidadãos em nome de
identidades étnicas ou raciais, tem muito a fazer para aperfeiçoar o nosso
ideal de não racismo. Porém o governo brasileiro, infelizmente, não está
cumprindo sua obrigação e tenta impor uma lei que separa os cidadãos
uns dos outros em nome da “raça”. O que hoje está sendo proposto é o
caminho inverso feito pela África do Sul de Nelson Mandela (SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL, 2010, p.167 - Grifo nosso).

Consoante, José Carlos Miranda ratifica:

(...) por isso, eu diria: é possível diminuir essas imensas desigualdades


sociais? É claro que é possível. E isso só pode começar oferecendo educação
de qualidade gratuita para todos no ensino básico, fundamental, e
aumentando, radicalmente, o número de vagas nas universidades públicas
(idem, p.322).

Na perspectiva de Yvonne Maggie, as principais vantagens das políticas


universais situam-se na capacidade de solucionar o principal problema da sociedade
brasileira: a pobreza. Adicionalmente, a opção por política universalistas evitaria a
racialização da nação brasileira, promovendo, de modo, concomitante, a conservação da
nossa tradição de harmonização das diferenças étnicas e raciais.

237
Bastaria oferecer cotas para estudantes pobres porque eles são
majoritariamente pretos e pardos, com a vantagem de não carimbar em
suas testas a marca da cor e o estigma que certamente lhes será imposto.
Dados elaborados a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilio
(PNAD) indicam que se fizermos esta escolha o número de pretos e pardos
beneficiados será muito maior do que se escolhermos o caminho de separar
os estudantes em brancos e “negros” legalmente (idem, p.169 - Grifo nosso).

Interessante observar como a idéia defendida pela antropóloga Yvonne Maggie


guarda estreita relação com aquilo que Ibsen Noronha procurou sustentar em sua
exposição, de que o papel da História (e das demais ciências?) “seria o de produzir
alegria pela compreensão do passado”. Mas, e quando a compreensão do passado não
nos permite produzir alegria? O que se deve fazer? Alterar o passado, por meio dos
discursos, para continuar produzindo alegrias? Ou reconhecer os “fatos”, ainda que eles
causem dor e sofrimento? O próprio jurista, ao justificar sua participação na audiência,
nos oferece resposta a alguns destes questionamentos, e acaba por evidenciar algumas
das contradições de seu discurso: “a vida do professor tem este imperativo: a
honestidade na busca da verdade. O meu contributo nesta audiência há de ser no campo
da História. A apresentação será, evidentemente, panorâmica, mas é fruto de longa
reflexão” (idem, p. 194).
Apesar da impossibilidade de afirmarmos que o posicionamento adotado pelo
geneticista Sérgio Danilo Pena se opôs frontalmente ao adotado por Ibsen Noronha, em
suas contraditórias afirmações sobre o Papel das Ciências e das Universidades, é
possível afirmar que, há entre eles, uma importante distinção em, pelo menos, um dos
pontos. Ao referir-se ao papel da ciência e dos cientistas, ambos expositores concordam
que o conhecimento científico deve recusar toda forma de ideologias e ressentimentos.
Entretanto, Sérgio Pena defende de modo enfático e reiterado, e por isso destoa de Ibsen
Noronha, que o principal dever do conhecimento científico seria o de buscar
incansavelmente a verdade. Por isso, registra-se:

Ora, pois, por que estou aqui? Cumpro o meu dever cívico de colaborar
como cientista e geneticista, que faz pesquisa ativa sobre a formação e
estrutura da população brasileira. Vale lembrar que em questões morais
e políticas o papel da ciência seria informativa e nunca prescritiva. Em
outras palavras, a ciência nunca pode dizer o que deve ser, mas a ciência
pode dizer o que não é. Assim, a ciência serve para afastar falácias e
preconceitos e desempenha um papel libertador no exercício das escolhas
morais. E a ciência possui uma única ferramenta para cumprir o seu
papel, a das evidências empíricas, ou seja, dos fatos experimentais. Nada
mais conta. A ciência nunca acredita só em palavras, ela é sempre

238
questionadora e busca a realidade por trás das aparências, das opiniões e dos
apelos emocionais que, infelizmente, são muitos (SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL, 2010, p.157 - Grifo nosso).

Dos oito expositores favoráveis a política de cotas, que tiveram seus discursos
analisados neste capítulo, nenhum deles fez referência direta ao papel que o
conhecimento científico deveria desempenhar no mundo moderno. Contudo, as críticas
apresentadas ao modo como esses conhecimentos científicos foram produzidos e
utilizados politicamente nas últimas décadas, permite visualizar algumas das reflexões
implícitas ao modelo de ciência moderna, e aos seus pressupostos internos. Em um
movimento simultâneo, estas vozes denunciam o processo de estigmatização racial
(produzido e/ou chancelado pelo conhecimento Científico dos séculos XIX e XX), bem
como verbalizam as expectativas dos grupos “invisibilizados” em relação aos novos
compromissos epistemológicos e políticos demandados do Estado, da Ciência e das
universidades. Os expositores José Jorge de Carvalho e Marcos Cardoso ilustram a
questão:

A produção de conhecimento se amplia nas universidades com as ações


afirmativas. O eurocentrismo foi à marca e todos os saberes africanos e
indígenas foram desprezado e eliminados do nosso sistema universitário.
O confinamento racial e étnico da nossa universidade significou também
uma limitação do nosso horizonte. No ano 2000, a UnB era uma
universidade monorracial, monológica, monoepistêmica, eurocêntrica.
Esperamos que a partir desse ano ela passe a ser uma universidade
multirracial, multiétnica, pluriepistêmica, descolonizada
definitivamente. Gostaria de enfatizar que a necessidade das cotas raciais
toma outro sentido se olharmos para o topo da pirâmide do mundo acadêmico
e não apenas para sua base. Intervir na base é necessário, porém, diante de
um quadro de exclusão tão dramático, temos que pensar imediatamente em
ações afirmativas no mestrado, no doutorado, nos concursos para docentes e
na carreira de pesquisador para acelerar o processo de inclusão racial. (...)
Caso contrário, a política de quotas acabará reproduzindo a nossa crônica
hierarquia racial agora e o novo patamar (idem, p.92-93 - Grifo nosso).

O racismo se realimenta, se retroalimenta cotidianamente, pois se


reforça no apoio incondicional das elites econômicas, movidas que
são pelos seus privilégios e pelo que o eurocentrismo legou à
Ciência e ao Mercado. As doutrinas eurocêntricas influenciaram,
além de formar parte significativa dos intelectuais brasileiros,
influenciaram, sim, as instituições do Estado e as instituições privadas
e, sobretudo, as instituições educacionais (idem, p.289 - Grifo nosso).

239
Segundo Paulo Paim, os debates ocorridos ao longo dos três dias de Audiência
Pública, abordando temas como a composição da população brasileira, suas condições
de vida, as relações raciais no Brasil, etc., os fazia lembrar-se de outro momento recente
da história brasileira: os debates que precederam à Abolição da Escravatura. Referindo-
se aos debates travados entre abolicionistas e escravocratas na ocasião Paulo Paim
afirma que:

se eu viajo no tempo, eu volto a 1888, qual o debate na época? Será


correto os negros deixarem de ser escravos e o prejuízo que o país
poderia ter no campo econômico? Foi um debate duro entre os
abolicionistas e os escravocratas. Lembrando àquela época, claro, e, para
mim, lembro-me do nome dos abolicionistas, não consigo lembrar o nome de
nenhum dos escravocratas. Esse debate, com todo o respeito aos que pensam
diferente e não estou fazendo comparações, eu queria dizer que nós
estamos debatendo aqui se os negros terão direito ou não de ter acesso à
universidade pública e gratuita; na época, o debate era com o poder
econômico; agora também é. Porque, para mim, a educação liberta é a
educação que vai assegurar, efetivamente, mudarmos essa situação onde os
negros estão, sem sombra de dúvida, na base da pirâmide (idem, p.150 -
Grifo nosso).

6.2.4 – Os projetos para a Nação: conservar, atualizar ou reinventar a Nação?

Atualmente, não são raras as análises de conjuntura que têm procurado sustentar
a “preocupante” ausência de projetos de nação, consistentes e duradouros, gestados e
levados a cabo pelas classes políticas brasileiras. Embora não seja unânime, esta
constatação é ainda mais enfatizada quando se refere ao período de gestão de Luís
Inácio Lula da Silva, e do Partido dos Trabalhadores, à frente da presidência da
República.
No âmbito deste trabalho, todavia, entre os expositores que tiveram seus
discursos analisados, não seria adequado corroborar com este diagnóstico sobre a
ausência de projetos de nação. De modo geral, os discursos revelam uma estreita relação
entre projetos de nação, o posicionamento em relação às políticas de cotas raciais, às
representações que mantêm sobre o Brasil e as alternativas políticas consideradas mais
adequadas para conservar, atualizar ou reinventar a nação brasileira. Apesar de extenso,
o trecho do discurso do antropólogo Kabengele Munanga procura desvelar a existência
de, pelo menos, dois projetos distintos de nação, ambos orientados por representações
distintas acerca das imagens do Brasil.

240
Para concluir, penso que existe um debate na sociedade que envolve
pensamentos, filosofias, representações do mundo, ideologias e
formações diferentes. Esse pluralismo é socialmente saudável, na medida
em que pode contribuir para a conscientização de seus membros sobre
seus problemas e auxiliar a quem de direito, na tomada de decisões
esclarecidas. Este debate se resume a duas abordagens dualistas. A primeira
compreende todos aqueles que se inscrevem na ótica essencialista,
segundo a qual existe uma natureza comum a todos os seres humanos em
virtude da qual todos têm os mesmos direitos, independentemente de
suas diferenças de idade, sexo, raça, etnia, cultura, religião, etc. (...) As
melhores políticas públicas, capazes de resolver as mazelas e as
desigualdades da sociedade brasileira, deveriam ser somente macrossociais
ou universalistas. (...) Nesse sentido, a política de cotas é uma ameaça à
mistura racial, ao ideal da paz consolidada pelo mito de democracia racial. A
segunda abordagem reúne todos aqueles que se inscrevem na postura
nominalista ou construcionista, ou seja, os que se contrapõem ao
humanismo abstrato e ao universalismo, rejeitando uma única visão do
mundo em que não se integram às diferenças. Eles entendem o racismo
como produção do imaginário destinado a funcionar como uma
realidade a partir de uma dupla visão do outro diferente, isto é, do seu
corpo mistificado e de sua cultura também mistificada. O outro existe
primeiramente por seu corpo antes de se tornar uma realidade social. Neste
sentido, se a raça não existe biologicamente, histórica e socialmente ela é
dada, pois no passado e no presente ela produz e produziu vítimas. Apesar do
racismo não ter mais fundamento científico, tal como no século XIX, e não se
amparar hoje em nenhuma legitimidade racional, essa realidade social da raça
que continua a passar pelos corpos das pessoas não pode ser ignorada.
Grosso modo, eis as duas abordagens essenciais que nos dividem:
intelectuais, estudiosos, midiáticos, ativistas e políticos, não apenas no
Brasil, mas no mundo todo (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, p.235-
236 - Grifo nosso).

Consoante, Sueli Carneiro argumenta: o debate em torno das políticas


afirmativas (em especial, aquele travado nas tribunas daquele auditório) se encontra
bipolarizado entre dois modos de olhar para o passado brasileiro e, em conseqüência,
visualizar o futuro da nação.

Sonhar com a continuação da pretensa democracia racial brasileira é


aqui a expressão da nostalgia de uma estrutura social que assegura, a tal
ponto, o conforto de uma posição branca dominante, que o branco e só
ele pode se dar ao luxo de afirmar que a raça não importa". O segundo
projeto de nação dialoga com o futuro, como já foi dito. O que dele apostam
os que nele acreditam, é que o País que foi capaz de construir a mais bela
fábula de relações raciais é capaz de transformar este mito numa realidade de
conforto nas relações raciais para todos e para todas (...) Os que vislumbram
o futuro acreditam que se as condições históricas nos conduziram a um
País em que a cor da pele ou a racialidade das pessoas tornou-se fator
gerador de desigualdades, essas condições não estão inscritas no DNA
nacional, pois é produto da ação ou inação de seres humanos e, por isso
mesmo, podem ser transformadas, intencionalmente, pela ação dos seres
humanos de hoje (idem, p.304 - Grifo nosso).

241
Apesar da evidente polarização em torno do debate sobre cotas raciais, relações
raciais e sobre as imagens da nação brasileira, os expositores que se opuseram as
políticas com recorte racial, em especial Yvonne Maggie, Roberta Fragoso Kaufman e
José Carlos Miranda, demonstraram que interpretavam de modo distinto as razões que
moviam os grupos divergentes. Além disso, os juízos de valor atribuídos aos distintos
posicionamentos adotados na Audiência levaram os expositores contrários a inverter os
julgamentos realizados pelos defensores das políticas de cotas raciais.

Os ministros do Supremo Tribunal Federal ao analisarem a


constitucionalidade das leis raciais e das cotas na UnB terão de decidir agora
o caminho a seguir. Há apenas dois: ou seguem os princípios expressos
pelas Diretrizes acima citadas e decidem que o Brasil deve trilhar o
caminho da separação dos cidadãos e dos jovens, legalmente, em
“raças”, ou, ao contrário, seguem os princípios expressos na Declaração
Universal dos Direitos Humanos e na Constituição Brasileira que afirma
a igualdade dos cidadãos. (...) A justiça que os brasileiros desejam não se
baseia na separação entre afrodescendentes e eurodescendentes. Os
brasileiros não querem abandonar o ideal de uma nação arco-íris, que se
expressa há tantos anos a ponto de sermos um país de 43% de autodeclarados
pardos, ou seja, misturados, nem brancos e nem pretos, "negros", um
gradiente de cor que aproxima em vez de separar (idem, p.169 - Grifo nosso).

Outro tipo de problema relacionado à implementação das cotas raciais vem a


ser a questão do mito da democracia racial. Sabemos que o mito é
obviamente um mito porque ele não é implementado na sua totalidade.
No entanto, o mito pode ser analisado como uma mentira, ou ele pode ser
analisado como um ideal a ser perseguido. Nesse sentido dizemos que é
revelador o fato de que, em recente pesquisa publicada pela Fundação Perseu
Abramo, 96% dos brasileiros se declaram não preconceituosos e não racistas
(idem, p.84 - Grifo nosso).

De nossa parte, continuamos confiantes na força do povo trabalhador


brasileiro, essa brava gente que tantas lutas travaram por liberdade e
igualdade; temos a convicção de que é através dessa força e energia que as
imensas desigualdades serão superadas. As defesas dessas políticas raciais
só são possíveis para aqueles que desistiram da verdadeira luta por
igualdade. Nós queremos viver numa sociedade onde a palavra felicidade
não seja de um futuro distante e sim do cotidiano do povo trabalhador
brasileiro e onde as pessoas sejam avaliadas pela força de seu caráter
(idem, p. 327 - Grifo nosso).

Após analisar os 16 discursos selecionados, dos 45 expositores que se


apresentaram na Audiência Pública, fica evidente que as divergências teóricas e
políticas entre expositores contrários e favoráveis às políticas de cotas e as Ações

242
Afirmativas não podem ser reduzidas às dicotomias maniqueístas que opõem: brancos a
negros, ricos a pobres, racistas a não-racistas. De fato, as alternativas políticas eleitas
pelos expositores para superar os problemas brasileiros - que não são reconhecidos
como problemas por todos -, parecem estar intimamente associadas às formas como
estes concebem a própria nação (representações internas sobre a nação). No sentido
oposto, embora correlacionado, os projetos para a nação brasileira (entendidos como
projeções idealizadas) ajudam a definir aquelas que são consideradas como as mais
adequadas alternativas políticas capazes de garantir tal futuro. Na referida Audiência,
enquanto um dos grupos defendia que as políticas com recorte racial não seriam, em
definitivo, as mais recomendadas para favorecer o alcance do “Brasil do futuro”; outro
grupo, se dedicava a explicitar as bases modernas nas quais se fundam as desigualdades
e a defender a implementação de políticas específicas capazes de combatê-las.
a complexidade do julgamento complexidade do julgamento sob
responsabilidade dos ministros do STF que, naquele ano, julgariam a Argüição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186 e do Recurso Extraordinário
(RE) 597.285/RS.
Sem negligenciar o inestimável auxílio que a explicitação dos posicionamentos
divergentes pode representar para os ministros do STF que, terão sob sua
responsabilidade o julgamento da Argüição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) 186 e do Recurso Extraordinário (RE) 597.285/RS, é preciso
considerar que tamanha divergência implicará, possivelmente, em um maior (e porque
não, melhor) esforço analítico sobre a matéria. A entrevista concedida pelo Ministro
Ricardo Lewandowiski, no final do terceiro dia de Audiência Pública foi um indicativo
dos possíveis impactos da Audiência sobre a decisão do STF. Embora, extremamente
relevante para a nação brasileira, ela poderia demorar mais do que os representantes dos
diferentes grupos gostariam.

Eu espero trazer isso [os processos para julgamento no Plenário] ainda neste
ano, mas claro que é um ano difícil, é um ano eleitoral, eu participo do
Tribunal Superior Eleitoral, devo ser indicado presidente, vou participar da
preparação, da organização das eleições. Dado o interesse da sociedade, o
impacto que isso tem na nação brasileira, eu vou tentar trazer isso o mais
rápido, o quanto antes possível 113.

113
Disponível em http://supremoemdebate.blogspot.com/2010/03/audiencias-publicas-e-as-quotas.html
Acessado em 12 de Outubro de 2011.

243
Ao término da audiência, o ministro admitiu que a decisão a ser tomada pelo
STF, certamente, interferiria nas políticas a serem adotadas em todas as instâncias do
governo e, sobretudo, nas Instituições de Ensino Superior federais e estaduais do país;
embora o que o STF tenha que decidir na presente ação é a legitimidade constitucional
dos sistemas de cotas adotados pela Universidade de Brasília e pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Considerando estas questões, o ministro avaliou que os
debates realizados no auditório do STF cumpriram o objetivo esperado para a ocasião:
1) possibilitar o contraditório e 2) possibilitar a abordagem dos aspectos jurídicos,
históricos, sociológicos, antropológicos, econômicos, filosóficos, biológicos,
demográficos.
Contudo, apesar da riqueza e da diversidade de abordagens e representações
sociais em jogo (ou, talvez, em função desta diversidade), o Supremo Tribunal Federal,
até a presente data (início do mês de Dezembro de 2011) ainda não se pronunciou
definitivamente sobre a matéria.

244
Considerações finais

No dia 09 de Novembro de 2011 a Lei Estadual nº 370, que instituiu cotas de até
40% (quarenta por cento) para as populações negras e pardas no acesso à Universidade
do Estado do Rio de Janeiro e à Universidade Estadual do Norte Fluminense, completou
10 anos de promulgação e de efetividade no Brasil. De 2001 a 2011, várias iniciativas
de ações afirmativas já foram implementadas em diferentes instituições de ensino
superior brasileiro, e muitos estudantes que ingressaram na graduação já concluíram
seus cursos, alguns tendo ingressado na pós-graduação e outros no mercado de trabalho.
Neste contexto, o julgamento sobre a constitucionalidade ou
inconstitucionalidade das cotas raciais na Universidade de Brasília e da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, pelo Supremo Tribunal Federal deverá incidir, não
apenas nas possibilidades futuras de promover políticas públicas educacionais levando
em consideração aspectos étnico-raciais, mas nas experiências colocadas em curso ao
longo da última década. De acordo com Hazin (2010), o deferimento pelo STF da
ADPF 186 impetrada pelo Partido Democratas e do Recurso Extraordinário,
considerando inconstitucional as políticas de cotas implementadas na UNB e na
UFRGS, pode representar a ilegitimidade de quaisquer projetos, já existentes e por
existir; de políticas públicas orientadas por recortes raciais. Por outro lado, uma decisão
favorável à constitucionalidade das políticas de cotas implementadas na UNB e na
UFRGS, pode representar a emergência de um novo e importante paradigma no Direito
Brasileiro, capaz de abalizar as novas, e as já existentes, políticas com recorte racial.
Todavia, independentemente da decisão a ser tomada pelos ministros do STF, o
debate em curso ao longo dos últimos dez anos, no interior das universidades, na mídia,
nas casas legislativas e nas conversas cotidianas, já têm provocado efeitos significativos
nas esferas política, acadêmica e cultural do Brasil, ao possibilitar à sociedade brasileira
passar em revista sua identidade nacional, as bases constitutivas de sua estrutura social
e, sobretudo, o caráter das relações étnico-raciais vivenciadas pelos brasileiros
diuturnamente. Como afirmou o ministro Joaquim Barbosa Gomes no início da
Audiência Pública promovida pelo Supremo Tribunal Federal, o debate em curso sobre
ações afirmativas no Brasil possibilitou a sociedade brasileira um encontro com um
tema “sobre o qual ela nem sempre quis discutir com a devida abertura”.

245
A grande mobilização nacional gerada pelo debate em torno das políticas de
ações Afirmativas, talvez comparável apenas às mobilizações observadas nos momentos
que precederam a Abolição da Escravidão no ano de 1888, nos indica que, de fato,
estamos vivendo em um tempo de perguntas fortes. De acordo com Santos (2008, p.
13), “as perguntas fortes são as que se dirigem não apenas às nossas opções de vida
individual e coletiva, mas, sobretudo às raízes, aos fundamentos que criaram o horizonte
das possibilidades entre o que é possível optar”.
No debate em que estamos envolvidos acerca das ações afirmativas e das cotas,
podemos afirmar que algumas das perguntas fortes apresentadas à sociedade brasileira,
e que caberão ao Supremo Tribunal Federal responder, são: como é a sociedade que
temos, e qual a sociedade que queremos conservar, atualizar ou reinventar? Qual é o
papel da escola e da universidade, e dos conhecimentos produzidos por estas
instituições, na conservação, atualização ou reinvenção da sociedade brasileira? Quais
os brasileiros estão autorizados/legitimados a acessar e produzir estes conhecimentos
escolares e acadêmicos/científicos? Por fim, quais os brasileiros estão
autorizados/legitimados a acessar os recursos socialmente valorizados, bem como os
direitos de cidadania, existentes em nossa sociedade?
Como procurei mostrar ao longo deste trabalho, as respostas dadas pelo Estado
Brasileiro às demandas apresentadas pelas entidades negras e seus membros, de meados
da década de 1930 até meados da década de 1990, estiveram, geralmente, associadas a
uma perspectiva universalista, orientada por uma noção abstrata de sujeito universal
moderno – racional, centrado e unitário.
A emergência e fortalecimento, no decurso das décadas de 1980 e 1990, de
diferentes movimentos sociais, e em particular do movimento negro contemporâneo,
possibilitou o questionamento dos modos consagrados de o Estado formular e
implementar políticas públicas dirigidas aos grupos subalternizados. Possibilitou
também o fortalecimento de propostas de políticas multiculturais, empenhadas em
evidenciar e afirmar, de modo positivo, as diferentes identidades até então
negligenciadas. Adicionalmente, as intervenções políticas do movimento negro
contemporâneo nas últimas três décadas e as contribuições teóricas e políticas dos
intelectuais negros e da ampla rede anti-racista que se fortaleceu no interior das
instituições de ensino superior, têm possibilitado evidenciar as contraditórias relações
entre um país representado como racialmente democrático e as situações que favorecem

246
a perpetuação de discriminações raciais e de altas taxas de desigualdade entre negros e
brancos.
Ao denunciar tais contradições, os atores sociais envolvidos com a pauta anti-
racista têm logrado inserir na agenda pública, não apenas um debate sobre políticas de
redistribuição socioeconômica, mas também um debate em torno das representações
sobre a sociedade brasileira (sobre a educação formal, sobre a estratificação social e as
raízes da desigualdade e sobre a dinâmica das relações raciais no Brasil). Tem logrado
também confrontar os modos convencionados de representar e lidar com os indivíduos
oriundos de grupos subalternizados. Ao mesmo tempo em que questionan as
representações sociais que os vinculavam à “micróbios” e a objetos de pesquisas, tais
atores reivindicam, para si, novos papeis sociais: no campo educacional,
socioeconômico, da política e da ciências.
Para aqueles que desconheciam a historia de mobilização e de lutas das
entidades e das associações negras do inicio do século XX, do movimento negro
contemporâneo fundado na segunda metade da década de 1970, e das pautas
reivindicatórias (sobretudo no campo educacional) que o movimento negro
contemporâneo herdou de entidades como a Frente Negra Brasileira e o Teatro
Experimental do Negro, as demandas por políticas de Ações Afirmativas aplicadas ao
ensino superior brasileiro foram tratadas como modismos e/ou importação de modelos
norte-americanos. Também por isso, tais demandas foram fortemente criticadas e
combatidas, principalmente pelo grupo de intelectuais, artistas e ativistas de
movimentos sociais que, rapidamente, se organizou e se auto-intitulou “movimento
contra a racialização do Brasil”. A partir de então, passaram a imputar às políticas de
cotas raciais e ações afirmativas uma série de capacidades catastróficas. Dentre as
críticas mais recorrentes, figuravam aquelas que atribuíam às cotas e as ações
afirmativas a de criar identidades raciais estanques, de criar e/ou acirrar conflitos raciais
na sociedade brasileira, de provocar a queda da qualidade acadêmica, de incentivar o
desprezo pelo mérito individual e de provocar a desagregação da unidade nacional.
Referindo-se a alguns dos possíveis impactos negativos das políticas de cotas
raciais, os signatários do Manifesto “113 cidadãos anti-racistas contra as leis raciais”,
produzido no ano de 2008, afirmavam que as “leis raciais não ameaçam uma “elite
branca”, (...) mas passa(vam) uma fronteira brutal no meio da maioria absoluta dos
brasileiros. Essa linha divisória atravessaria as salas de aula das escolas públicas, os

247
ônibus (...), as ruas e as casas dos bairros pobres”114. Como alternativa política às cotas
raciais, e seus potenciais efeitos nefastos, os signatários do mesmo Manifesto exigiam
do Estado brasileiro a implementação de políticas universalistas, capazes de “elevar o
padrão geral do ensino mas, sobretudo, romper o abismo entre as escolas de qualidade,
quase sempre situadas em bairros de classe média, e as escolas devastadas das periferias
urbanas, das favelas e do meio rural”.
Da perspectiva adotada por Santos (1999), a de que estaríamos vivendo em um
tempo de perguntas fortes e de respostas fracas, a resposta política apresentada pelos
signatários do Manifesto contrário às cotas pode ser considerada uma resposta fraca, na
medida em que. não dá conta de reduzir a perplexidade que as perguntas fortes
explicitam; e pelo contrário, possibilita a ampliação desta perplexidade. Ao optar por
alternativas políticas que tendem a adiar a solução dos problemas a serem enfrentados,
(ex: “é preciso melhorar o ensino fundamental, gerando oportunidades iguais para todos
ingressarem no ensino superior”), os detratores das políticas de cotas raciais tendem a
transferir para um “futuro incerto” o horizonte das possibilidades em que seria possível
atuar, esvaziando o presente de possibilidades de atuação. De acordo com Santos
(2002), a indolente racionalidade hegemônica, ao contrair o presente e expandir o
futuro, tende a transformar o presente em experiência fugaz e passageira, tornando-se
responsável pelo extraordinário desperdício das inúmeras experiências sociais existentes
no mundo. Em oposição à esta razão indolente, responsável pelo aumento progressivo
deste desperdício, Souza (idem) propõe a emergência de uma razão cosmopolita que,
numa fase de transição, deveria “expandir o presente e contrair o futuro. Só assim seria
possível criar o espaço-tempo necessário para conhecer e valorizar a inesgotável
experiência social em curso no mundo de hoje”.
Para expandir o presente, Santos (idem) propõe a realização de uma Sociologia
das ausências; e para contrair o futuro, propõe uma sociologia das emergências.
Segundo ele, a sociologia das ausências consistiria numa investigação visando
demonstrar que o que não existe é, na realidade, ativamente produzido como não-
existente, isto é, como uma alternativa não credível ao que existe. O objetivo da
sociologia das ausências seria transformar as ausências em presenças. A sociologia das
emergências, por sua vez, consistiria na substituição do vazio do futuro por um futuro
de possibilidades plurais, concretas, simultaneamente utópicas e realistas, que se

114
Disponível no site: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR83466-6014,00.html.
Acessado no dia 15 de Outubro de 2011.

248
começaria a construir no presente. Segundo Santos (idem), o conceito que orientaria tal
sociologia seria o ainda-não, proposto por Ernst Bloch (1995)115. O ainda-não seria, por
um lado, a capacidade (potência) e, por outro, a possibilidade (potencialidade),
representando o movimento do mundo. Deste modo, a sociologia das emergências
consistiria numa investigação das alternativas possíveis no horizonte das possibilidades
concretas, o que possibilitaria uma ampliação do presente, juntando ao real as
possibilidades e as expectativas futuras que ele comporta.
Conforme procurei mostrar ao longo deste trabalho, as reivindicações e
mobilizações políticas realizadas em prol de políticas de redistribuição, reparação e
reconhecimento dirigidas à população negra no Brasil, que tem gerado posicionamentos
apaixonados de lado a lado, não podem ser tomadas como invenções de nosso tempo
presente. Ao resgatarem as demandas e as proposições políticas formuladas pelos
militantes e pelas entidades negras que atuaram no país desde o final do século XIX, os
intelectuais negros e a ampla rede anti-racista que se articulou no Brasil e no mundo têm
exercitado, na práxis, uma sociologia das ausências, ao evidenciar que aquilo que não
existe (a história da África e dos africanos no Brasil, por exemplo) foi ativamente
produzido como não existente. Adicionalmente, ao se organizarem, teórica e
politicamente, as entidades anti-racistas e os intelectuais negros têm pressionado as
diferentes instâncias do Estado brasileiro a repensar os modos convencionados de
pensar a educação formal, a ciência moderna, a política e o Estado. Com este
movimento, que de modo inovador e contraditório têm articulado ações de contestação,
de reivindicação e de proposição política, os atores sociais alinhados a uma perspectiva
anti-racista têm contribuído, tanto para a desestabilização de algumas representações
sociais historicamente construídas e socialmente legitimadas, quanto para a
desestabilização dos modos convencionados de intervir na esfera política brasileira,
colocando em prática uma verdadeira sociologia das emergências.

De acordo com Gomes (2011) Na defesa que fazem das políticas de ações
afirmativas, a ampla rede anti-racista que se articulou no Brasil e no mundo, ao mesmo
tempo em que se vincula à um novo projeto utópico para o Brasil, evidencia sua
preocupação em fortalecer os lastros com as experiências sociais vivenciadas no tempo
presente, procurando, assim, expandir o presente e contrair o futuro. Ao trazem para o
debate político e educacional os saberes identitários, políticos e corpóreos construídos

115
Bloch, Ernst. The principle of hope. Cambridge, Mass. MIT Press, 1995.

249
pela comunidade negra e sistematizados pelo movimento negro brasileiro ao longo da
história, os debates em torno das ações afirmativas trazem à tona (tiram da ausência),
um conjunto de saberes e experiências sociais capazes de favorecer a utópica reinvenção
da nação brasileira.

Para os membros desta ampla rede anti-racista, (SANTOS, 1999),


(NASCIMENTO, 1982), (MUNANGA, 2003), (MEDEIROS, 2004), (CARNEIRO, S,
2002), (GOMES, J., 1999), (GOMES, N., 2002), (GONÇALVES E SILVA, 2000),
(SILVÉRIO, 2002), (SISS, 2009) (SILVA JR,1998), (SILVA, P., 2008), (FERES
JÚNIOR E ZONINSEIN, 2008), (ALENCASTRO, 2000), (CARVALHO, J.J., 2006),
(CARDOSO, 2002) e tantos outros , o debate sobre as experiências de ações
afirmativas e políticas de cotas já implementadas não deveria se restringir às
considerações sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de tais políticas,
critérios necessários para abalizar ou não a sua existência. Na perspectiva destes
sujeitos, os debates em torno destas experiências deveriam levar em consideração as
lições aprendidas com a implementação das ações afirmativas e de cotas raciais para re-
pensar as representações vigentes sobre o Brasil, para repensar o projeto de nação que
se quer e pretende construir, e repensar, sobretudo, as alternativas políticas que,
implementadas no presente, possibilitassem a efetivação deste projeto nacional.

O ESQUEMA 2, apresentado a seguir, pretende ser um modelo analítico desta


nova racionalidade sustentada pela rede anti-racista em defesa das ações afirmativas e
das cotas raciais. Nele, procuro indicar que, para os componentes da ampla rede anti-
racista que se constituiu no Brasil, as lições aprendidas com a implementação de
políticas de cotas e ações afirmativas nos últimos dez anos poderia e deveria ser
utilizada como fonte teórica e prática para a sociedade brasileira repensar, tanto as
representações sociais sobre o Brasil (referentes às imagens sobre a estratificação social,
as raízes das desigualdades, o panorama da educação pública no Brasil, os conceitos de
raça, etnia e miscigenação e sobre os aspectos das relações raciais prevalecentes no
Brasil), quanto os projetos construídos para a nação brasileira. Adicionalmente, tais
experiências deveriam servir de balizadores para o Estado brasileiro reformular as
alternativas políticas de intervenção na sociedade, sobretudo, no que se refere ao papel
das universidades e da ciência, à atuação do Estado na garantia da Constituição Federal
e nos diferentes modelos de políticas públicas concebidas e implementadas.

250
Diferentemente do ESQUEMA 1, apresentado e discutido no capítulo 5, o que se
observa nesta nova racionalidade orientada pelas experiências de ações afirmativas e de
cotas é a possibilidade de construção de um outro projeto de nação no qual as relações
étnico-raciais, vistas como estruturais e estruturantes da nossa constituição social e não
somente como mero epifenômeno da classe, sejam reconhecidas como um componente
importante na construção de uma sociedade democrática. Ao incorporar a dinâmica das
relações étnico-raciais no debate sobre o Brasil, estes novos atores políticos colocam em
relevo não só a miscigenação ou intensa diversidade cultural brasileira, mas, sobretudo,
a presença do racismo como mecanismo gerador de situações de distanciamento social,
político, econômico e educacional de negros e brancos. Abordam temas do presente,
como a perpetuação da desigualdade educacional entre negros e brancos, e revisitam
temas do passado, como o drama da escravidão, não como exercício de retórica, mas
com o objetivo declarado de não repetir os erros do passado e superar os obstáculos do
presente. Procuram com isto, não apenas reinventarem discursos sobre a nação
brasileira, mas reinventar modos políticos de intervir e viver no Brasil.

251
Esquema 2 – Nova racionalidade sustentada pela rede anti-racista

EXPERIÊNCIAS DE
IMPLEMENTAÇÃO DE COTAS
E AÇÕES AFIRMATIVAS

COTAS E AÇÕES
AFIRMATIVAS MODELOS
ESTRATIFICAÇÃO
PANORAMA DE POLÍTICAS
SOCIAL
DA EDUCAÇÃO PÚBLICAS
BÁSICA

REPRESENTAÇÕES ALTERNATIVAS
SOBRE POLÍTICAS
RAÍZES DA
DESIGUALDADE O BRASIL ASPECTOS DAS PAPEL DAS
RELAÇÕES CIÊNCIAS E DAS PAPEL DO ESTADO
ÉTNICO-RACIAIS UNIVERSIDADES E A GARANTIA DA
CONCEITOS DE CONSTITUIÇÃO
RAÇA, ETNIA E
MISCIGENAÇÃO
PROJETO
PARA A
NAÇÃO
MODELOS
IDEALIZADOS
PARA A NAÇÃO

Fonte: Elaborado pelo autor.

252
Além das inúmeras experiências de ações afirmativas que têm sido colocadas em
práticas nos últimos anos em diferentes instituições de ensino superior, a crescente
produção bibliográfica sobre tais experiências também pode nos ajudar a compreender
as dimensões concretas da implementação destas ações, bem como dos impactos
pedagógicos, políticos e administrativos que o ingresso de um novo perfil de estudantes
tem provocado no interior destas instituições. São impactos externos e internos às
universidades, principalmente, as públicas. Um deles, e que merece ser mencionado, diz
respeito à necessidade de se repensar as políticas de permanência adotadas por essas
instituições, exigindo um redimensionamento das tradicionais políticas de assistência
estudantil já adotadas. Estas últimas têm sido alvo de discussões no interior do
Ministério da Educação e de várias críticas e demandas de aperfeiçoamento oriundas,
sobretudo, dos estudantes e do movimento estudantil. A política de cotas traz para a
universidade a necessidade de se redemocratizar por dentro, na medida em que amplia o
acesso a um público que antes quase não se via representado nos seus quadros
estudantis e acadêmicos.
Da perspectiva dos intelectuais negros, do movimento negro e da rede anti-
racista envolvida nos debates, estas experiências podem nos ajudar a construir respostas
fortes capazes de superar a perplexidade causada pelas perguntas fortes.
Wanderley (2008), refletindo sobre a história de introdução das cotas nos cursos
de graduação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, afirma que, apesar das
polêmicas e dos desafios enfrentados pela UERJ para assegurar a permanência dos
estudantes cotistas (o que a obrigou a reinventar suas políticas de permanência), a
reserva de vagas para estudantes negros e oriundos de escolas públicas provocou uma
necessidade interna de compreender melhor a dinâmica das ações afirmativas,
impelindo a universidade a se organizar para participar criticamente do processo de
convivência democrática com as diferenças. Já a equipe de Coordenação do Programa
Afrouneb, refletindo sobre os impactos da adoção de políticas de ações afirmativas na
Universidade Estadual da Bahia no ano de 2003, afirmou que as ações desenvolvidas no
programa têm repercutido positivamente no fortalecimento dos vínculos existentes entre
a universidade e os sistemas educacionais públicos da Bahia, na disponibilização de
material didático produzido, nas propostas metodológicas e nos processos de formação
continuada de professores, no auxilio acadêmico aos estudantes cotistas e na prática de
pesquisa na graduação e na pós-graduação. “Enfim, influem na qualidade do ensino
fundamental e na construção estrutural (...), daquilo que no título deste programa,

253
nomeamos como ‘uma nova cultura universitária’” (Machado; Mattos; et. all, 2008, p.
8).
Adicionalmente, e não menos importante, as políticas de cotas raciais e ações
afirmativas têm provocado impactos significativos nas histórias de vidas de milhares de
estudantes negros e suas famílias. Tais impactos não são mais apenas promessas
projetadas no futuro. São realidades observáveis no presente. Como afirmam alguns
estudantes negros(as) participantes de programas de ações afirmativas, de diferentes
instituições de ensino superior, que tiveram seus depoimentos reunidos no livro “Acesso
e Permanência da População Negra no Ensino Superior116”, o ingresso e/ou a
permanência em instituições de ensino superior, por meio de ações afirmativas, não
significou apenas a alteração de horizontes econômicos individuais. Não significou,
tampouco, a alteração apenas dos horizontes econômicos familiares. No plano
individual, o ingresso e a participação em programas de ações afirmativas significaram
alterações, tanto nas representações sobre a sociedade brasileira e sobre as relações
raciais, quanto nas identidades étnico-raciais e na auto-estima. No plano familiar,
significou a disseminação (para irmãos, primos, tios, etc.) de expectativas em relação à
educação formal, e de uma ética anti-racista questionadora das hierarquias raciais. No
plano acadêmico e profissional, as atividades de fortalecimento acadêmico
desenvolvidas no interior de diversos programas de ações afirmativas possibilitaram, de
modo direto e indireto, que os estudantes se tornassem referências, tanto fora, quanto
dentro de suas universidades.
O depoimento de uma estudante negra da Universidade Federal Fluminense,
participante de um grupo de estudos formados por estudantes negros, pode ser
ilustrativo das dificuldades, dilemas e potencialidades enfrentados pelos estudantes e
pelas políticas de ações afirmativas aplicadas ao ensino superior brasileiro. Ao
analisarmos a fala da depoente é possível perceber algumas das diferentes forças em
confronto no sentido de conservar, atualizar ou reinventar a dinâmica das relações
raciais no Brasil e, além disto, conservar, atualizar ou reinventar a própria nação
brasileira.
Há que se perguntar por que passado séculos de superação da escravidão (1888),
com o advento da república (1889), com os avanços políticos expressos por meio da

116
LOPES, Maria Auxiliadora; BRAGA, Maria Lúcia de Santana. (Org.). Acesso e permanência da
população negra no ensino superior. 1a. ed. Brasília: SECAD- Unesco, 2007.

254
Constituição Federal de 1988 na qual no artigo V, inciso XLII, o racismo passa a ser
considerado crime inafiançável e imprescritível, ainda temos que lidar com depoimentos
e sentimentos como os transcritos logo abaixo e que fazem parte da trajetória de
estudantes negros que ingressaram no ensino superior público brasileiro por meio das
cotas. Até quando ainda veremos o sentimento de que “tudo é mais difícil” para
determinados coletivos considerados diversos? O que há no “ambiente da universidade”
que interpõe tantos desafios para esses estudantes e que vão além do acadêmico? O que
a estudante do depoimento abaixo sinaliza ao dizer que, no seu processo de
permanência, ter encontrado um grupo de interlocução e de identidade lhe renovou os
ânimos emocionais e acadêmicos? Estamos falando só de mérito? Ao que tudo parece,
estamos diante de algo mais complexo, algo forte, que exige medidas fortes,
democráticas e coletivas, as quais poderão ser construídas por meio de uma nova
racionalidade que está em curso – em um processo de tensão – e que com avanços e
limites tem sido sustentada por ações que visam a construção de uma política
educacional democrática, afirmativa e anti-racista:

Existem horas que dá vontade de desistir de tudo... por que tudo pra
gente é mais difícil? Minha sorte é esse grupo. Aqui a gente chora a
nossa dor, respira fundo e os companheiros nos reanimam... é o que
me sustenta e me mantém ainda nesse ambiente de universidade...
não é mole não... é matar um leão por dia... desculpa (choro) mas se
desisto... qual é meu mérito? Vou até o fim. (Depoimento de uma
aluna negra da UFF) (Rocha, 2007, p. 257-258).

As experiências de ações afirmativas voltadas para a população negra em curso,


no Brasil, principalmente na modalidade de cotas raciais, têm possibilitado o
questionamento dos conteúdos e das intencionalidades políticas do discurso contrário
que se produziu sobre elas e que procura interferir na decisão do STF. Juntamente com
as cotas, as experiências de permanência desenvolvidas no contexto dessas políticas, a
partir do ano 2000, têm possibilitado um espaço de reflexão identitária dos próprios
sujeitos aos quais estas políticas se destinam. Aos poucos, os próprios estudantes
negros começam a questionar o discurso do mérito acadêmico entendido como
capacidade inata, alicerçado em uma perspectiva abstrata, neutra e universal. Começam
a perceber que a idéia moderna de mérito não se forjou naturalmente, é antes, fruto de
uma construção social, política e acadêmica, produzida no contexto de uma determinada
racionalidade e forma hegemônica de ver o mundo. As cotas e demais medidas de ação

255
afirmativas colocam em xeque a nossa capacidade democrática de incluir os ocupantes
de patamares críticos de desigualdade e os diferentes, historicamente tratados como
inferiores.
Não se trata, aqui, de enalter as cotas e demais medidas de ação afirmativas de
maneira acrítica, mas, pelo contrário de construir e publicizar acadêmica e politicamente
outra forma de interpretá-las e trazer a emergência todo o processo histórico de lutas do
qual são herdeiras e fazem parte - um processo ainda feito invisível em muitos fóruns
onde esse debate acontece. Procurei nesse trabalho, entendê-las criticamente, e
contextualizá-las em meio a dois principais e tensos projetos de Brasil formulados desde
a abolição: o da conservação e o da reinvenção da nação à luz da questão racial. Para
tal, esse debate passa por um processo tenso de atualização, formulado por grupos
distintos e com lugares diferenciados na hegemonia política, econômica e acadêmica. É
o que vivemos nesse momento.
No caso da universidade, as ações afirmativas são entendidas, aqui, como
oportunidades acadêmicas coletivas e mais democráticas para incluir em patamar de
igualdade os sujeitos sociais considerados diversos, produzindo uma nova cultura e uma
outra política de ensino superior. As cotas raciais e demais iniciativas de Ações
Afirmativas que visam à permanência de estudantes negros na universidade, a despeito
de toda a polêmica e opiniões contrárias e favoráveis, têm possibilitado aos próprios
jovens negros rever conceitos e lógicas internalizadas sobre si mesmos, sobre suas
capacidades e seus desempenhos. Jovens negros mais afirmativos. Mais do que mérito,
trata-se da oportunidade de, por meio de experiências acadêmicas mais justas,
possibilitar o direito ao ensino superior como um fato, uma trajetória possível a todos, e
não somente para alguns. Enfim, trata-se de possibilitar a esses jovens o direito a uma
trajetória acadêmica forte que permita, ao longo desta, fazer uma revisão de si e de seu
potencial humano contestador, dinâmico e criativo.
Como é mágico compreender que somos capazes; não sei se é explícita
a magnitude que esta palavra assume: Capacidade. Serei professor,
médico ou artista, não importa isso agora; o que importa é que digo aos
meus primos que somos capazes, e que, se algo deu errado, é porque
lutamos “ainda contra a corrente”. Mas o mais importante é que
sabemos que somos capazes, agora sabemos (Morais,2004, p. 247).

Teófilo Otoni, 20 de Novembro de 2011.

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271
ANEXO I

DESPACHO DE HABILITAÇÃO DE PARTICIPANTES DA AUDIÊNCIA


PÚBLICA

O MINISTRO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL RICARDO LEWANDOWSKI,


Relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 186 e do
Recurso Extraordinário 597.285/RS, no uso das atribuições que lhe confere o art. 21,
inciso XVII do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, e nos termos do
Despacho Convocatório de 15 de setembro de 2009, torna pública a relação dos
habilitados a participar da Audiência Pública sobre políticas de ação afirmativa de
acesso ao ensino superior:

I. Alan Kardec Martins Barbiero - Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições
Federais de Ensino Superior (ANDIFES).

II. Antônio Sergio Alfredo Guimarães (Sociólogo e Professor Titular da Universidade


de São Paulo) ou José Jorge de Carvalho (Professor da Universidade de Brasília - UnB.
Pesquisador 1-A do CNPq. Coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia
de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa - INCT) - Universidade de Brasília
(UnB).

III. Carlos Alberto da Costa Dias - Juiz Federal da 2ª Vara Federal de Florianópolis.

IV. Carlos Eduardo de Souza Gonçalves - Vice-Reitor da Universidade do Estado do


Amazonas (UEA).

V. Carlos Frederico de Souza Mares. Professor Titular da Pontifícia Universidade


Católica do Paraná/PR - Fundação Nacional do Índio (FUNAI).

VI. Marcelo Tragtenberg - Professor da Universidade Federal de Santa Catarina


(UFSC).

VII. Cledisson Geraldo dos Santos Junior – Diretor da União Nacional dos Estudantes
(UNE) - União Nacional dos Estudantes (UNE).

VIII. Denise Fagundes Jardim. Professora do Departamento de Antropologia e


Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

IX. Ministro Edson Santos de Souza - Ministro da Secretaria Especial de Políticas de


Promoção de Igualdade Racial (SEPPIR).

X. Eduardo Magrone – Pró-reitor de Graduação da Universidade Federal de Juiz de


Fora (UFJF).

XI. Erasto Fortes de Mendonça. Doutor em Educação pela UNICAMP e Coordenador


Geral de Educação em Direitos Humanos da SEDH - Secretaria Especial de Direitos
Humanos (SEDH).

272
XII. Eunice Ribeiro Durham – Doutora em Antropologia Social pela Universidade de
São Paulo (USP), Professora Titular do Departamento de Antropologia da USP e
atualmente Professora Emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
USP.

XIII. Fábio Konder Comparato/Frei David Santos - Educação e Cidadania de


Afrodescendentes e Carentes (EDUCAFRO).

XIV. Fernanda Duarte Lopes Lucas da Silva - Juíza Federal da Seção Judiciária do Rio
de Janeiro - Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE).

XV. Flávia Piovesan. Professora Doutora da Pontifícia Universidade Católica de São


Paulo (PUC/SP) e da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR) - Fundação
Cultural Palmares.

XVI. George de Cerqueira Leite Zahur – Antropólogo e Professor da Faculdade Latino-


Americana de Ciências Sociais.

XVII. Giovane Pasqualito Fialho - Recorrente do Recurso Extraordinário 597.285/RS –


Representado por seu Advogado.

XVIII. Helderli Fideliz Castro de Sá Leão Alves - Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro


(MPMB) e Associação dos Caboclos e Ribeirinhos da Amazônia (ACRA).

XIX. Ibsen Noronha. Professor de História do Direito do IESB - Instituto de Ensino


Superior Brasília – Associação de Procuradores de Estado (ANAPE).

XX. João Feres. Mestre em Filosofia Política pela UNICAMP. Mestre e Doutor em
ciência política pela City University of New York (CUNY) - Instituto Universitário de
Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ).

XXI. Jorge Luiz da Cunha - Pró-Reitor de Graduação da Universidade Federal de Santa


Maria (UFSM).

XXII. José Carlos Miranda - Movimento Negro Socialista.

XXIII. José Roberto Ferreira Militão – Conselheiro do Conselho Estadual de


Desenvolvimento da Comunidade Negra do Governo do Estado de São Paulo (1987-
1995).

XXIV. José Vicente ou representante - Sociedade Afro-Brasileira de Desenvolvimento


Sócio Cultural (AFROBRAS).

XXV. Kabengele Munanga. Professor da Universidade de São Paulo (USP) - Centro de


Estudos Africanos da Universidade de São Paulo (USP).

XXVI. Leonardo Avritzer. Foi Pesquisador Visitante no Massachusetts Institute of


Technology (MIT). Participou como amicus curiae do caso Grutter v. Bollinger –
Professor de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

273
XXVII. Luiz Felipe de Alencastro. Professor Titular da Cátedra de História do Brasil da
Universidade de Paris-Sorbonne - Fundação Cultural Palmares.

XXVIII. Marcos Antonio Cardoso - Coordenação Nacional de Entidades Negras


(CONEN).

XXIX. Maria Paula Dallari Bucci – Doutora em Políticas Públicas pela Universidade de
São Paulo (USP). Professora da Fundação Getúlio Vargas. Secretária de Ensino
Superior do Ministério da Educação (MEC).

XXX. Mário Lisboa Theodoro. Diretor de Cooperação e Desenvolvimento do Instituto


de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).

XXXI. Oscar Vilhena Vieira. Doutor e Mestre em Ciência Política pela Universidade de
São Paulo (USP) e Mestre em Direito pela Universidade de Columbia. Pós-doutor pela
Oxford University. Professor de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC/SP) e da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV/SP) - Conectas
Direitos Humanos (CDH).

XXXII. Renato Hyuda de Luna Pedrosa/Professor Leandro Tessler - Coordenador da


Comissão de Vestibulares da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

XXXIII. Roberta Fragoso Menezes Kaufmann. Mestre em Direito pela Universidade de


Brasília (UnB) - Democratas (DEM).

XXXIV. Serge Goulart - autor do livro “Racismo e Luta de Classes”, Coordenador da


Esquerda Marxista – Corrente do PT, editor do jornal Luta de Classes e da Revista
teórica América Socialista.

XXXV. Sérgio Danilo Pena – Médico Geneticista formado pela Universidade de


Manitoba, Canadá. Professor da UFMG e ex-professor da Universidade McGill de
Montreal, Canadá.

XXXVI. Sérgio Haddad. Mestre e Doutor em História e Sociologia da Educação pela


Universidade de São Paulo. Diretor Presidente do Fundo Brasil de Direitos Humanos –
Coordenador da Ação Educativa.

XXXVII. Sueli Carneiro. Doutora em Filosofia da Educação pela Faculdade de


Educação da Universidade de São Paulo. Fellow da Ashoka Empreendedores Sociais.
Foi Conselheira e Secretária Geral do Conselho Estadual da Condição Feminina de São
Paulo - Geledés Instituto da Mulher Negra de São Paulo.

XXXVIII. Yvonne Maggie – Antropóloga, Mestre e Doutora em Antropologia Social


pela UFRJ - Professora de Antropologia da UFRJ.

Tendo em vista o grande número de requerimentos recebidos (252 pedidos), foi


necessário circunscrever a participação da audiência a reduzido número de
representantes e especialistas. Os critérios adotados para a seleção dos habilitados
tiveram como objetivos garantir, ao máximo, (i) a participação dos diversos segmentos

274
da sociedade, bem como (ii) a mais ampla variação de abordagens sobre a temática das
políticas de ação afirmativa de acesso ao ensino superior.

Ressalto, no entanto, que todos os requerentes, habilitados ou não, poderão enviar


documentos com a tese defendida para o endereço eletrônico [email protected].
O material enviado será disponibilizado no portal eletrônico do Supremo Tribunal
Federal.
Ficam, assim, designados os dias de 3 a 5 de março de 2010 para a realização da
audiência pública. Nos dias 3 e 4 de março, das 8h30 às 12h, e, no dia 5 de março, das
8h30 às 12h e das 14h às 18h.

O cronograma para a realização da audiência pública será publicado no dia 5 de


fevereiro de 2010.

O funcionamento da audiência pública seguirá o disposto no art. 154, III,


parágrafo único, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.

Cada participante disporá de 15 minutos para a sua intervenção, devendo observar


o disposto no art. 154, parágrafo único, inciso IV, do Regimento Interno do Supremo
Tribunal Federal.

Os participantes que desejarem utilizar recursos áudio-visuais deverão enviar os


arquivos da apresentação em meio digital (CD ou DVD) para a Assessoria de
Cerimonial do Tribunal até o dia 10 de fevereiro de 2010.

Quaisquer documentos referentes à audiência pública poderão ser encaminhados


pela via eletrônica para o endereço [email protected].

A audiência pública será transmitida pela TV Justiça e pela Rádio Justiça (art.
154, parágrafo único, V, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal), assim
como pelas demais emissoras que o requererem. Tais pedidos deverão ser encaminhados
à Secretaria de Comunicação Social.

Ao Diretor-Geral, à Secretaria Judiciária, à Secretaria de Administração e


Finanças, à Secretaria de Segurança, à Secretaria de Documentação, à Secretaria de
Comunicação Social, à Secretaria de Tecnologia da Informação e à Assessoria de
Cerimonial, para que providenciem os equipamentos e o pessoal de informática,
taquigrafia, som, imagem, segurança e demais suportes necessários para a realização do
evento.

Publique-se.

Brasília, 17 de dezembro de 2009.

Ministro RICARDO LEWANDOWSKI

275
ANEXO II

“INTERPELAÇÃO À UNESCO” – GUERREIRO RAMOS

Fonte: O Jornal – 03/01/1954

276
ANEXO II

“INTERPELAÇÃO À UNESCO” – GUERREIRO RAMOS


(Continuação)

Fonte: O Jornal – 03/01/1954

277
ANEXO III

“CIÊNCIA SOCIAL E IDEOLOGIA RACIAL” – LUIZ ANTÔNIO COSTA


PINTO (RESPOSTA À GUERREIRO RAMOS)

Fonte: O Jornal – 10/01/1954

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