O Futebol No Brasil - Reflexões Sociólogicas - Mauricío Murad
O Futebol No Brasil - Reflexões Sociólogicas - Mauricío Murad
Murad Mauricio. O futebol no Brasil: reflexões sociológicas. In: Caravelle, n°89, 2007. pp. 109-128;
doi : 10.3406/carav.2007.3162
http://www.persee.fr/doc/carav_1147-6753_2007_num_89_1_3162
Mauricio MURAD
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
I) Prólogo
O objetivo do presente trabalho é fazer uma reflexão em torno de
algumas questões históricas e sociológicas, que possam ajudar à
comprensão do futebol, como importante fenômeno da cultura
brasileira. É evidente que não temos a pretensão de esgotar todas as
análises sobre essa problemática. O futebol é um dos maiores eventos da
cultura da massa (e não somente de massa) no Brasil, mobiliza paixões
coletivas, expressa os fundamentos antropológica de nossa formação e
representa o nosso sistema simbólico, como poucos acontecimentos da
estrutura social.
Por isso, não se pode dar conta de toda a importância do futebol para
o Brasil, num só texto. Vamos, então, tentar expor um quadro de
reflexões, sobre alguns elementos, que julgamos relevantes, para o
entendimento do futebol brasileiro. Muitas das informações, aqui
relatadas, têm a finalidade de esclarecer o leitor estrangeiro, podendo
parecer óbvias, para aqueles mais familiarizados com o tema.
O futebol é o mais significativo fenômeno da «cultura das multidões»
no Brasil, estimulando corações e mentes, em regiões diversas, em
classes sociais distintas, em diferentes faixas etárias, níveis de
escolaridade e relações de gênero. Mais até do que o carnaval (de imensa
importância para uma análise do Brasil), o futebol se espalha por todo o
país e se manisfesta o ano inteiro. Costuma-se dizer, que o «reinado do
Rei Momo» dura 4 dias e que o «reinado do Rei Pelé» dura o ano todo. O
Núcleo de Sociologia do Futebol, da Universidade do Estado do Rio de
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1 Para uma consulta mais ampla de experiências bem sucedidas, no âmbito da pedagogia
esportiva, consultar Murad (2004). Uma grande listagem de experimentos é apresentada e
como parte dos fundamentos teórico-metodológicos da tese de doutorado defendida, em
03 de fevereiro de 2004, na Faculdade de Desporto, da Universidade do Porto/Portugal.
O modelo de tese inédito na época elaborado pelo autor, sob a orientação do Professor
Catedrático Rui Proença Garcia, do Gabinete de Sociologia, da Fade/UP e co-orientação
da Professora Catedrática Maria Jose Mosquera, do INEF, de La Coruña/Espanha,
cruzou os dados de dois levantamentos que foram feitos, no transcorrer dos trabalhos. O
primeiro, das práticas de violência na história da humanidade e dos estudos sobre a
violência feitos pelo saber humano através da Mitologia, da Filosofia, das Ciências e das
Artes. O outro, sobre as inúmeras experiências que utilizam os esportes (especialmente o
futebol), como instituições educacionais e contrapontos (atenuantes) a realidades sociais
violentas.
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deve ser sempre coletiva, mas sem excluir o brilho da iniciativa pessoal.
E isto é um valor que o futebol procura dentro e fora dos campos.
Dentro, pela estrutura e dinâmica próprias do jogo. Fora, no
estabelecimento dos laços de inserção e no sentimento de pertença a
uma coletividade. A identidade individual é ritualisticamente socializada
na liturgia antropológica do futebol, sem se eliminar, contudo, a delicada
e necessária idiossincrasia. Um bom e didático exemplo é a equação a
seguir: EU = individualidade SOU = identidade EQUIPE = coletividade
Por um ângulo sociológico, o futebol possibilita a vivência concreta
das categorias de totalidade e de interação, entre o indivíduo e seus
contextos, suas mediações e intercâmbios. Por um ângulo psicológico,
também, possibilita o mesmo e necessário exercício da vivência concreta
entre o racional e o emocional, bem como de suas mediações e
intercâmbios. E igualmente por um ângulo ontológico, o futebol permite
a mesma e necessária experimentação global e dinâmica, entre o real e o
simbólico.
Na estratégia de juntar esporte e socialização, nesta cidade-símbolo
do Brasil, que é o Rio de Janeiro, a mais importante das experiências
recentes é a Vila Olímpica da Mangueira, que serve de modelo para
centenas de experimentos semelhantes na cidade e no Brasil.
Desenvolvendo trabalhos comunitários, através de diversas modalidades
esportivas, concentra seus esforços principalmente no futebol, a
modalidade mais popular, motivadora e atraente. Nos dias de hoje há
alguns milhares de pequenos, médios e grandes projetos no campo da
Pedagogia Desportiva, em todos os estados brasileiros, que têm a Vila
Olímpica da Mangueira como referência. Esta, embora não tenha sido
uma idéia totalmente original, teve o mérito de integrar atividade
esportiva e cultura local, valorizando-a e dando-lhe uma dimensão
sociológica mais abrangente.
Considerado pela ONU o projeto social mais importante do mundo,
em 2001, a Vila Olímpica iniciou seus trabalhos em 1986. A emblemática
Escola de Samba resgatou a idéia do desporto pedagógico comunitário,
cujas origens remontam às primeiras décadas do século XX, com as
ações pioneiras do sociólogo e educador Fernando de Azevedo, no Rio
de Janeiro e em São Paulo. Desta maneira, várias modalidades,
especialmente o futebol, recuperaram jovens do morro, há muito tempo
expostos à marginalidade do tráfico de drogas e da violência, que toma
conta das áreas pobres do Rio de Janeiro e da grande maioria das cidades
brasileiras.
Isto fez cair a zero o envolvimento dos adolescentes da Mangueira
com o chamado «crime organizado», de acordo com as estatísticas do
Juizado de Menores, a ponto dos traficantes terem que recrutar jovens
em outras favelas da cidade. Claro está que isto não resolveu a enorme
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2 Este diploma jurídico sugere uma firmeza política, não desprezível para a complexa e
conflituosa conjuntura em questão: final do século XIX, desagregação do Império
(1822/1889) e implantação da República (Proclamação, em 1889, e Primeira
Constituição, em 1891). Contém apenas dois artigos e um parágrafo único: no primeiro
declara abolida a escravidão no Brasil e no último revoga quaisquer disposições em
contrário.
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3 São oficiais e suas fontes de consulta, além da ONU, são os órgãos governamentais:
IBGE − Indicadores Sociais; IPEA (Ministério do Planejamento): Desenvolvimento
Humano e Condições de Vida: Indicadores Brasileiros e FGV (Centro de Políticas
Sociais): Mapa do Fim da Fome.
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Oscar Cox, filho de ingleses que estudou na Suíça, trouxe deste país
as da marca Dupont9. Igualmente pioneiro, em particular na «cidade
maravilhosa», organizou, em 1901, o primeiro jogo entre Cariocas e
Paulistas – célebre derby do futebol brasileiro, e fundou o Fluminense
Futebol Clube, em 1902. Já as bolas que foram manufaturadas dentro do
país, a 1ª artesanal foi confeccionada em Petrópolis, cidade da serra do
Rio de Janeiro (a antiga fazenda do Córrego Seco da Mata Acima,
estância de fim-de-semana da Família Real Portuguesa, deu origem à bela
aldeia, homenagem a D. Pedro I), pelo padre Manuel Gonzales, no início
do século XX. Chamada de «peluda», porque era de couro cru, com
depilação imperfeita, ou seja, o couro ainda apresenta alguns pelos. O
padre Gonzales foi um dos difusores do futebol no Estado do Rio,
destacadamente na Região Serrana, chegando mesmo próximo a Magé,
localidade onde se situa o distrito de Pau Grande, no qual nasceu e
apareceu para o futebol, um dos maiores jogadores de todos os tempos:
Garrincha. A relevante participação do Padre Manuel Gonzales
simboliza um elemento que deve ser sublinhado na história social do
futebol brasileiro: a atuação dos colégios religiosos, principalmente os
católicos, como o de Itu, no Estado de São Paulo, tido como pioneiro.
V) Do elitismo à democratização
No Brasil, o futebol começou extremamente elitista e racista.
Aristocrático, branco, elegante, rico, falando inglês. Dos atletas e
praticantes oficiais eram exigidos riqueza e escolaridade, além da
tradição. Uma tradição expressa no sobrenome duplo ou na linhagem
familiar. A exemplo da Cavalaria Medieval – guardadas as devidas
diferenças – que exigia a comprovação de nobreza por 3 ou 4 gerações,
os primeiros clubes de futebol no Brasil impuseram critérios de cor e
classe. «O futebol era jogado no final das manhãs de domingo, naquele
momento gostoso, logo depois da missa, quando as famílias dirigiam-se
com a melhor das roupas para apreciar seus jovens de estirpe, os bons
partidos para as raparigas ricas» (Filho, 1947)10.
Então, nessa primeira fase da história social do futebol brasileiro, que
vai de sua implantação, em 1894, até meados dos anos de 1920, quando
começa a configurar-se um processo de popularização e democratização,
foram erguidas barreiras sociais rígidas, quase intransponíveis, verdadeira
violência contra negros, mulatos e brancos pobres. «Assim, as primeiras
notícias de caráter esportivo que realmente atiçaram a curiosidade do
público, foram aquelas que mostravam a discriminação social e racial nos
clubes e nos times»11.
Esta, sim, como já foi dito, a primeira forma de violência no futebol
brasileiro e contra as nossas «camadas populares», as mesmas que, mais
adiante, farão uma verdadeira revolução no estilo de jogo, que resulta
por encantar o planeta e transformar nossa equipe nacional na única que
participou de todas as Copas, desde a primeira em 1930, no Uruguai, e a
única pentacampeã do mundo. Essa exclusão social estava enquadrada
no zeitgeist da época, na conjuntura pós-abolição e não é mais do que a
expressão, num dado momento histórico, das constantes estruturais
discriminatórias, concentradoras da riqueza, do poder e das
oportunidades, de nossa formação social.
Mas todo lado tem dois lados e paralelamente ao elitismo racista,
vinha sendo criado, no seio das «camadas populares», um processo
subterrâneo, clandestino, de difusão futebolística. Driblando com
engenho e arte essas interdições, pretos, mulatos e brancos pobres
engendraram uma posição firme e marcante historicamente: a
apropriação e inversão do código vigente, (segundo a conceituação de
Mikhail Bakthine), ou seja, popularizaram e democratizaram o futebol no
Brasil.
10 Mário Filho é considerado o fundador do jornalismo esportivo brasileiro e tem
importância decisiva na história de nosso futebol. Para Gilberto Freyre ele era, em
verdade, o «sociólogo do futebol brasileiro». Foram 40 anos de militância nos desportos
em geral e no futebol em particular, desde a histórica entrevista com Marcos Carneiro de
Mendonça (o primeiro goleiro do selecionado nacional), em 1927, até sua morte em
1966, de ataque cardíaco, ao que parece motivada pela derrota do Brasil, no mundial da
Inglaterra. Criou e assinou colunas desportivas nos jornais A Manhã, Crítica, O Globo,
Jornal dos Sports (foi fundador e editor chefe) e na revista Manchete. Oficialmente, o mítico
Maracanã (nome de um pássaro que havia no local) chama-se «Estádio Mário Filho», em
virtude da incansável luta que capitaneou para a construção daquela praça esportiva.
Portanto, quando em 1947 publicou O Negro no Futebol Brasileiro, 20 anos de estudos e
pesquisas já haviam se passado. «Florestan Fernandes, um dos maiores nomes da
Sociologia Brasileira, elogia Mário e aponta para a sua qualidade de investigador
obsessivo, em conferir tudo aos mínimos pormenores, antes de escrever» (Murad, 1999
b: 433). Considerada como «clássica», esta obra mereceu o prefácio de Gilberto Freyre e a
sua indicação de livro indispensável para se conhecer o Brasil, não apenas o futebol
brasileiro.
11 «Almanaque Esportivo Olimpicus», São Paulo, 1945-46, p. 291.
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13 «Onde a ARENA (partido político da ditadura – grifo nosso) vai mal, mais um time
no (campeonato) nacional», Almirante Heleno Nunes, Presidente (nomeado pelo regime)
da Confederação Brasileira de Futebol.
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VI) Conclusões
Eis aqui, à guisa de conclusão e de modo bem resumido, uma
proposta (didática) de periodização para a História Social do Futebol
Brasileiro: a) 1894/1923- «pré-história»: elitismo, racismo e exclusão; b)
1923/1933- clandestinidade: fase inicial mais definida do ingresso de
pobres, negros e mestiços; c) 1933/1950- transição: popularização,
democratização; d) 1950/1970- revolução: consolidação e conquista do
tricampeonato mundial; e) 1970/1990- retrocesso: reelitização?; f)
1990/2006- uma nova era: modernização e crise nas federações e clubes.
Toda periodização corre riscos de simplificar e, por isso, nunca deve ser
taxativa.. Nesta proposta, tomamos como critério teórico a tensão
estrutural e histórica da vida brasileira, aquela existente entre
exclusão/inclusão das «camadas populares».
A partir dos anos 50, o futebol consolidou-se no Brasil como um
espetáculo de massas, com os setores populares encontrando nele um
espaço de afirmação social, o que não solucionou os estigmas da
exclusão, mas questionou-os, denunciou-os e neutralizou-os, mesmo que
parcial e provisoriamente. O chamado estilo brasileiro de jogar fez escola
e é a expressão da cultura musical e corporal brasileira, de nossas raízes
negras, principalmente, mas também índias e portuguesas do Norte de
Portugal. Todas essas origens e nessa ordem são musicais e corporais, o
que ajuda a entender o nosso modo de jogar o futebol, cheio de
habilidade, criatividade e drible, este que talvez seja a marca mais
distintiva do nosso estilo.
BIBLIOGRAFIA
Antonil, João António Andreoni (1967), Cultura e opulência do Brasil por
suas drogas e minas. São Paulo, Companhia Editora Nacional.
Azevedo, Fernando de (1930), A evolução dos esportes no Brasil: 1822-1922.
São Paulo, Melhoramentos.
Carneiro, Edson (1968), O Quilombo dos Palmares. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira.
DaMatta, Roberto (1982), O universo do futebol. Rio de Janeiro,
Pinakotheke.
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