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SAÚDE DA FAMÍLIA
Mariana da Silva Castro Vianna

SAÚDE DA FAMÍLIA
1ª edição

Londrina
Editora e Distribuidora Educacional S.A.
2020

2
© 2020 por Editora e Distribuidora Educacional S.A.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser


reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio,
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Editorial
Alessandra Cristina Fahl
Beatriz Meloni Montefusco
Gilvânia Honório dos Santos
Mariana de Campos Barroso
Paola Andressa Machado Leal

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


__________________________________________________________________________________________
Vianna, Mariana da Silva Castro
V617 Saúde da família/ Mariana da Silva Castro Vianna, –
Londrina: Editora e Distribuidora Educacional S.A. 2020.
49 p.

ISBN 978-65-87806-83-9

1. Atenção Básica 2. Saúde da família 3. Saúde Coletiva I. Título.

CDD 610
____________________________________________________________________________________________
Raquel Torres – CRB 6/278

2020
Editora e Distribuidora Educacional S.A.
Avenida Paris, 675 – Parque Residencial João Piza
CEP: 86041-100 — Londrina — PR
e-mail: [email protected]
Homepage: http://www.kroton.com.br/

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SAÚDE DA FAMÍLIA

SUMÁRIO
Política Nacional de Atenção Básica__________________________________ 05

Doenças Crônicas Não Transmissíveis _______________________________ 22

Território na Atenção Básica_________________________________________ 40

Vigilância na Atenção Básica _________________________________________ 57

4
Política Nacional de Atenção
Básica
Autoria: Mariana S. C. Vianna
Leitura crítica: Marcia Cristina A. Thomaz

Objetivos
• Entender a trajetória histórica da Atenção Básica no
Brasil.

• Compreender as principais diretrizes da Política


Nacional de Atenção Básica.

• Identificar as responsabilidades, a composição e a


atuação das equipes de Saúde da Família.

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1. A Reforma Sanitária Brasileira e o Sistema
Único de Saúde

A Reforma Sanitária Brasileira foi um movimento social que ganhou


força na década de 1970 e reivindicava o direito universal à saúde, a
atenção integral à saúde e a participação popular, entre outras questões.
Esse movimento acompanhou discussões e mudanças que também
ocorreram em outros países e que culminaram na Conferência de Alma-
Ata, realizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 1978, com a
meta de “Saúde para todos no ano 2000” e no fortalecimento da Atenção
Primária como o principal eixo de um sistema de saúde (PAHO, 2017).

No Brasil, esse período também foi marcado pelo lento processo de


redemocratização e pelo fim da ditadura militar, quando movimentos
sociais começaram a surgir exigindo melhores condições de vida e maior
liberdade de expressão. Nesse contexto, a Reforma Sanitária Brasileira
pode ser definida como uma “trajetória de constituição e reformulação
de um campo de saber, uma estratégia política e um processo de
transformação institucional”, contribuindo para a construção do Sistema
Único de Saúde (SUS) e para a garantia do direito universal à saúde
(FLEURY, 2009, p. 746).

A situação sanitária e epidemiológica no País nesse período foi marcada


por altas taxas de mortalidade materna e infantil, prevalência de
doenças infecciosas e parasitárias e um modelo assistencial de caráter
curativo, fortemente influenciado pela assistência privada à saúde.
O acesso aos serviços de saúde ocorria principalmente por meio dos
fundos de pensão e das aposentadorias, para os que trabalhavam com
carteira assinada e tinham direito a esse benefício, ou por meio de
entidades filantrópicas, como as Santas Casas de Misericórdia.

Diante desse cenário, a Reforma Sanitária Brasileira trazia reivindicações


legítimas, orientadas para um melhor cuidado à saúde da população. Em

6
1986, foi realizada a 8ª Conferência Nacional de Saúde, que teve como
temas principais “o dever do Estado e direito do cidadão no tocante à
saúde; a reformulação do sistema nacional de saúde; e o financiamento
do setor” (PAIVA; TEIXEIRA, 2014, p. 25). As discussões realizadas na
Conferência, com ampla participação e protagonismo dos atores da
Reforma Sanitária Brasileira, ajudaram a delinear a nova Constituição,
promulgada em 1988.

A Constituição Federal Brasileira de 1988 define, em seu artigo 196, que


“saúde é um direito de todos e um dever do Estado” (BRASIL, 1988).
Assim, o SUS foi criado e organizado a partir dela, a fim de responder às
necessidades de saúde da população sob a responsabilidade do Estado.

De 1988 para os dias de hoje, muitas foram as transformações sociais,


econômicas e políticas que o País apresentou, e na área da Saúde não
foi diferente. Para que se consolidassem os princípios e as diretrizes
do SUS, era necessário um modelo assistencial que convergisse com
os conceitos de Integralidade, Equidade e Universalidade. A Atenção
Básica (AB), tida como o modelo assistencial preferencial para atender às
reivindicações do movimento da Reforma Sanitária Brasileira, começou
a ser priorizada a partir do final da década de 1990, com incentivos
financeiros para sua implantação e operacionalização, representando
uma mudança de modelo assistencial e subsídio para a consolidação do
SUS (GIOVANELLA, 2009).

1.1 A Estratégia de Saúde da Família

No início dos anos 1990, algumas cidades, como Campinas/SP, Betim/


MG e Sobral/CE, desenvolveram iniciativas que incentivaram o Ministério
da Saúde a criar o Programa de Agentes Comunitários (PACS), que
poucos anos depois, em 1994, seria ampliado para o Programa de Saúde
da Família (PSF). Tanto o PACS quanto o PSF já traziam a intenção de um
modelo assistencial baseado na integralidade, no cuidado individual e

7
no contexto familiar, atuando no território de cada equipe ou serviço
por meio de uma equipe multiprofissional. Os agentes comunitários de
saúde, principal elemento inovador que os dois programas trouxeram,
deveriam ser preferencialmente moradores desses territórios de
atuação e conhecedores dos costumes e das tradições daquela
comunidade, facilitando, assim, a criação de vínculo com a equipe de
saúde.

Em 2006, com a publicação da Política Nacional de Atenção Básica


(PNAB), o PSF passou a ser considerado a “estratégia prioritária para a
reorganização da Atenção Básica no Brasil” (BRASIL, 2006), deixando de
ser um programa apenas e passando a ser uma Estratégia de Saúde da
Família (ESF). A ESF trouxe consigo o desafio de reorganizar o sistema
de saúde, sendo a porta de entrada preferencial para esse sistema e
assumindo o papel de coordenadora e organizadora do cuidado entre
os demais pontos de atenção à saúde. Assim, ela passou a garantir a
integralidade e a ser a estratégia prioritária para a garantia da AB no
Brasil (BRASIL, 2017). Campos et al. (2018) consideram-na uma estratégia
indutora de um modelo de atenção à saúde baseado na AB, voltada para
o núcleo familiar e organizada a partir de uma equipe multiprofissional
(e não baseada apenas no cuidado médico), o que confere à ESF um
caráter único entre os demais sistemas de saúde ao redor do mundo.

Por que uma equipe multiprofissional é importante? Ao introduzir o


agente comunitário de saúde nas equipes de AB, em conjunto com o
médico generalista ou médico de família e comunidade, o enfermeiro, o
técnico ou auxiliar de enfermagem e, em algumas realidades, o dentista
e o auxiliar de saúde bucal, espera-se romper com o cuidado focado na
doença e ampliá-lo para a prevenção e promoção da saúde, por meio de
múltiplos olhares e saberes.

Ao longo dos últimos anos, houve mudanças nos parâmetros de


composição de equipe de Saúde da Família e população adscrita, bem
como nos critérios de financiamento. Além da PNAB de 2006, outras

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duas versões foram instituídas: uma em 2011 e, mais recentemente, em
2017. Porém, os princípios de organização se mantiveram, apesar de
novos incrementos e dos recursos financeiros cada vez mais escassos.

2. A Política Nacional de Atenção Básica

Como podemos perceber, existem muitas leis, portarias e decretos


para organizar o SUS e, consequentemente, a AB. Porém, isso não deve
ser motivo de preocupação, pois o mais importante é conseguirmos
entender o conceito geral que cada legislação traz.

A PNAB vigente segue às orientações e determinações da Portaria MS


n. 2.436, de 21 de setembro de 2017 (BRASIL, 2017). Uma das principais
alterações que essa portaria trouxe, em comparação com as anteriores,
é a flexibilização das equipes de AB, que não necessariamente devem
seguir a composição de uma equipe de Saúde da Família tradicional.
Embora a estratégia prioritária continue sendo a ESF, o Ministério da
Saúde passa a reconhecer outros arranjos de equipes, ampliando o
financiamento para essas novas modelagens de assistência.

Com o início da ESF em 2006, havia uma pressão financeira para


que os municípios priorizassem a criação de equipes de Saúde da
Família (eSF), dentro dos parâmetros e critérios estabelecidos nessa
edição da PNAB. Porém, os municípios que optassem por equipes de
Atenção Básica (eAB) tradicionais, ou seja, com outras composições
de profissionais (como médico pediatra, ginecologista e clínico geral),
além do cumprimento de carga horária de trabalho inferior a 40 horas
semanais, recebiam um incentivo financeiro menor em comparação ao
valor recebido pelas eSF. Dessa maneira, esperava-se uma ampliação da
cobertura de Saúde da Família nos municípios brasileiros, o que de fato
ocorreu, sobretudo em municípios de pequeno porte.

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Nas últimas duas décadas, novas estratégias foram adicionadas à AB,
como a ampliação das equipes de Saúde Bucal, a criação dos Núcleos de
Apoio à Saúde da Família (NASF) e apoio matricial, Consultórios de Rua,
eSF Ribeirinhas e Unidades de Saúde Fluviais, que contribuíram para o
aumento de cobertura de Saúde da Família (SF) no País. O financiamento
por desempenho também contribuiu para o aumento de cobertura,
com o Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade (PMAQ), que
remunerava as equipes que cumprissem os critérios de qualidade
definidos pelo programa. Por último, o Programa Mais Médicos
(PMM), com incremento financeiro para provimento de profissionais,
o que possibilitou aumentar o número de eSF em muitos municípios.
Atualmente esse programa é o Mais Médicos pelo Brasil e apresenta
algumas mudanças em relação à seleção e fixação de profissionais
médicos.

No entanto, alguns obstáculos continuaram presentes: dificuldade em


fixar médicos nas equipes, principalmente na carga horária de trabalho
preconizada; escassez de médicos com formação em medicina de família
e comunidade; e dificuldade de expandir a cobertura de SF em grandes
centros urbanos. Além da dificuldade na composição das equipes,
somam-se a precariedade na infraestrutura de muitas unidades de
saúde, o financiamento insuficiente e o modelo assistencial incipiente
(MELO et al., 2018). Em outras palavras, o aumento da cobertura de SF
não foi necessariamente suficiente para alcançar a mudança no modelo
assistencial preconizada pelo SUS e pelas PNABs, como o cuidado em
rede, articulado pela AB e individualizado (GIOVANELLA, 2009).

Assim, o desafio de alcançar um modelo de atenção à saúde de acordo


com os princípios e diretrizes do SUS e da AB permanecem. Crises
econômicas e políticas afetam diretamente o financiamento do SUS e
influenciam a tomada de decisão e definição de estratégias em várias
áreas, inclusive na AB.

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Nos últimos anos, a mudança no financiamento de todo o SUS e a
aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n. 9.520/2016,
que congela os gastos com saúde e educação por 20 anos, acabaram
contribuindo para um financiamento mais precário das ações de saúde
em todos os municípios. Foi após a aprovação dessa PEC que a PNAB
foi revista e atualizada em 2017, incluindo arranjos e composições de
equipe, formas de financiamento e critérios de desempenho.

De maneira resumida, é possível avaliar as principais similaridades e


diferenças entre as três edições da PNAB no Quadro 1 a seguir:

Quadro 1 – Comparação entre as três edições da PNAB


PNAB 2006 PNAB 2011 PNAB 2017
Tipos de equipes UBS com ou sem UBS com ou sem UBS com ou sem
Saúde da Família. Saúde da Família. Saúde da Família.
Composição das Equipe Equipe Equipe
equipes (eSF ou multiprofissional, multiprofissional, multiprofissional. O
eAB) mínimo quatro mínimo quatro ACS. número de ACS fica
agentes comunitários a critério da gestão
de saúde (ACS). Carga horária de municipal, não sendo
trabalho de 40 horas mais necessário o
Carga horária de semanais, para todas mínimo de quatro
trabalho de 40 horas as categorias (médico agentes por equipe.
semanais, para todas pode dividir a carga
as categorias. horária em até duas Carga horária
equipes). mínima de dez
horas semanais
por profissional,
totalizando 40 horas
por categoria.

11
População UBS sem SF: até 30 mil UBS sem SF: até 180 A depender do
adscrita (por pessoas. mil pessoas. perfil do município
unidade) e do tipo de equipes
UBS com SF: até 12 mil UBS com SF: até 12 cadastradas.
pessoas. mil pessoas.
População Equipe de SF: Equipe de SF: Não há limite de
adscrita (por pessoas cadastradas.
equipe) - Máximo de 4 mil - Máximo de 4 mil
pessoas. pessoas.

- Até 12 ACS por - Até 12 ACS por


equipe. equipe.

- Até 750 pessoas por - Até 750 pessoas por


ACS. ACS.

Equipe de AB: Equipe de AB:

- Um enfermeiro para - Um enfermeiro para


até 30 ACS. até 12 ACS.

- Até 750 pessoas por - Até 750 pessoas por


ACS. ACS.

Forma de PAB – Piso da Atenção Bloco de Recurso per capita


financiamento Básica, com uma parte financiamento da (cadastro por equipe);
fixa e outra variável Atenção Básica pagamento por
(PAB fixo e variável); desempenho e para
pagamento provimento.
por oferta, por
desempenho e para
provimento.
Fonte: elaborado pela autora.

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Como podemos observar, a última edição da PNAB apresenta
mudanças com relação à composição das equipes, à carga horária dos
profissionais, ao tamanho da população adscrita e, o mais importante, à
forma de financiamento das equipes. Para compreendermos o impacto
dessas mudanças, é importante destacar a AB contínua com o dever
de operacionalizar os princípios e as diretrizes do SUS e das Redes de
Atenção à Saúde (RAS), que são (BRASIL, 2017, art. 3º):

I. Princípios:

a. Universalidade.
b. Equidade.
c. Integralidade.

II. Diretrizes:

a. Regionalização e hierarquização.
b. Territorialização.
c. População adscrita.
d. Cuidado centrado na pessoa.
e. Resolutividade.
f. Longitudinalidade do cuidado.
g. Coordenação do cuidado.
h. Ordenação da rede.
i. Participação da comunidade.

Esses princípios e essas diretrizes devem estar presentes não só


na atuação das equipes, mas também no planejamento de ações e
estratégias de cuidado, seja no nível local (serviço de saúde), seja no
nível central (gestão municipal, estadual e federal).

13
2.1 O processo de trabalho na AB

Para que a AB consiga alcançar os seus objetivos, presentes nos


princípios e nas diretrizes apresentados, algumas estratégias podem (e
devem) ser utilizadas pelas equipes de saúde. Dentro de uma equipe
de saúde, seja eAB ou eSF, existem as atribuições específicas para cada
categoria profissional e as atribuições para todos na equipe, de maneira
compartilhada e integrada. Dessa forma, a organização do processo
de trabalho das equipes é fundamental para que se consiga obter os
preceitos desse modelo de atenção à saúde.

2.1.1. Territorialização

O processo de territorialização pode ser definido, de maneira simplista,


como o mapeamento da área geográfica onde cada equipe de saúde
atua, com representações gráficas dos seus diversos dispositivos (casas,
escolas, igrejas, comércio) e das vulnerabilidades existentes nesse
território, as quais podem ser condições precárias de moradia, pontos
de venda de drogas, famílias em situação de pobreza, entre outras. Cada
equipe deve discutir em conjunto como elaborar esse mapa do território
e o que deve estar em destaque.

A territorialização, no entanto, é um processo que vai além desse


mapeamento. O próprio conceito de território é amplo e complexo, indo
além da interpretação de um local geograficamente delimitado. Cada
território é um espaço de saúde que a equipe deve conhecer, com o qual
deve ser capaz de interagir e no qual deve intervir, para dessa forma
ser capaz de atuar no processo saúde-doença daquela região e daquela
comunidade.

Essa é uma atribuição fundamental de todos os profissionais das


equipes de saúde na AB e o ponto de partida para conhecer os recursos,
as potências, as fragilidades e os desafios que aquele território traz e

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para analisar qual o impacto dessas múltiplas faces na saúde de uma
população. Devem estar incluídos nesse processo de territorialização,
sempre que possível, alguns elementos capazes de ampliar o olhar sobre
o território, como conhecer a história, a cultura e as tradições do lugar;
buscar dados demográficos e epidemiológicos, se disponíveis; verificar
a situação socioeconômica da população e os recursos econômicos,
sociais e ambientais que aquela região possui (SANTOS; RIGOTTO, 2011).

É importante ter em mente que territórios inseridos em uma zona rural


vão ser diferentes daqueles inseridos em uma zona urbana; municípios
de pequeno porte vão apresentar suas particularidades quando
comparados a municípios maiores; bairros residenciais serão diferentes
de regiões comerciais ou industriais; e assim por diante. Dessa forma,
o papel da equipe de saúde é conseguir avaliar cada especificidade dos
territórios para entender de que forma isso afeta a saúde das pessoas, a
fim de poder planejar o seu cuidado.

O cadastramento das pessoas e famílias do território e sua atualização


são ferramentas essenciais no processo de territorialização.

2.1.2. Cuidado integral

O cuidado integral prevê a atenção em espaços que vão além da


unidade de saúde, fazendo parte dessa cuidado espaços do próprio
território, como residências, escolas, locais de trabalho e outros espaços
sociais. Para isso, a equipe deve dispor de um planejamento das
atividades que permita ampliar esse atendimento e esse olhar.

A visita domiciliar é uma forma de garantir o atendimento integral,


presente desde os primeiros arranjos de equipes na AB. É importante
perceber que expandir o atendimento da equipe para o domicílio
permite muito mais do que a ampliação de acesso ao serviço de saúde,
ou seja, permite captar elementos que nem sempre estão disponíveis no
atendimento realizado dentro da unidade de saúde, como a dinâmica

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familiar, as condições de moradia e higiene e os recursos (materiais
e sociais) que a família possui. O atendimento na casa das pessoas
também fortalece o vínculo e estreita as relações entre o usuário do
serviço e a equipe de saúde, o que influencia em uma melhor adesão
ao tratamento e, consequentemente, em um maior impacto na saúde
desses usuários.

Além da visita domiciliar, a unidade de saúde pode articular ações com


líderes comunitários, efetuar atividades educativas e de prevenção em
escolas e estabelecimentos comerciais e apoiar a discussão de políticas
públicas voltadas para aquele território.

Outra forma de promover o cuidado integral é buscar a coordenação


do cuidado e ordenação da rede de assistência, papel fundamental da
AB. Embora este seja um grande desafio na maior parte das realidades,
é papel da equipe de saúde da AB buscar ser o primeiro contato do
paciente com o sistema de saúde. Quando for necessário encaminhar
algum paciente para outro ponto de atenção, como um pronto-socorro,
uma maternidade ou um ambulatório de especialidades, a equipe de AB
deve garantir a continuidade do cuidado. Em outras palavras, mesmo
que um paciente com diabetes descompensada seja encaminhado ao
serviço especializado (para o endocrinologista ou nutricionista, por
exemplo), ele não recebe “alta” da AB, e a equipe deve atuar de forma
proativa para continuar o seu acompanhamento.

Promover formas de garantir a comunicação entre os serviços


auxilia nessa tarefa, como mecanismos eficientes de referência e
contrarreferência e prontuário eletrônico. A visita domiciliar também
pode ser um complemento nesse aspecto, quando outras formas de
comunicação não existirem ou não forem efetivas.

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2.1.3. Organização da agenda de trabalho

Considerando todos os princípios e todas as diretrizes da AB que já


foram apresentados, é necessário pensar sobre a forma de planejar
a oferta de serviços para a população. De maneira geral, as Unidades
Básicas de Saúde (UBS) devem buscar um equilíbrio entre a oferta
de ações programadas de saúde e o acolhimento e atendimento da
demanda espontânea. Como exemplos de ações programadas temos
consultas agendadas (ou de rotina), grupos de atendimento (como
grupos de hipertensos, gestantes, atividade física), procedimentos
(curativos, trocas de sondas etc.), vacinas, coleta de exames, visitas
domiciliares e reuniões de equipe, entre outras.

A organização da agenda e a forma como esses serviços são ofertados


para a população dependem de vários fatores, como composição
da equipe e número de profissionais, além do perfil epidemiológico
e demográfico da população. Em um território onde moram mais
pessoas idosas, por exemplo, provavelmente serão priorizadas ações
voltadas para essa população, como uma oferta maior de consultas
e grupos para hipertensos e diabéticos. Em um território com mais
mulheres em idade fértil, devem ser ofertadas mais consultas de pré-
natal e puericultura, além de ações para garantir a cobertura vacinal de
crianças. Em comunidades mais vulneráveis, com maior concentração
de violência doméstica e drogadição, serão necessárias mais ações
intersetoriais e reuniões para a discussão de casos. Aqui novamente
podemos perceber a importância do processo de territorialização, pois,
quando a equipe conhece seu território e a sua população, fica mais fácil
definir estratégias e prioridades de cuidado.

Além das ações programadas, a demanda espontânea – aquele


atendimento que é necessário, mas não foi programado, ou seja, não foi
agendado – costuma ocupar um espaço considerável da agenda, sendo
muitas vezes um desafio para a equipe de saúde. Quando a AB assume
seu papel de ser o primeiro contato com o paciente, a resolutividade da

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equipe é essencial. Assim, absorver essa demanda espontânea é peça-
chave, pois evita que a população procure outros serviços de saúde que
na sua percepção possam ser mais resolutivos, como os serviços de
urgência e emergência.

O acolhimento e o atendimento da demanda espontânea também são


uma estratégia para garantir a adesão às orientações e prescrições da
equipe, além de fortalecer o vínculo do usuário com o serviço. É aquele
atendimento realizado para um paciente com queixas agudas, como
dor de cabeça, febre e dor abdominal, por exemplo. Também pode ser
o atendimento para pacientes com doenças crônicas descompensadas,
com uma crise hipertensiva ou uma cetoacidose diabética. O
acolhimento pode ser feito por todos os membros da equipe de saúde,
que podem direcionar o atendimento de cada paciente dentro da
unidade, conforme sua necessidade individual.

Quando há uma demanda reprimida dos atendimentos agendados


(por exemplo, uma consulta agendada para depois de dois meses),
existe uma tendência de aumentar a demanda espontânea do serviço.
Por isso, organizar a agenda de trabalho da equipe de forma a atender
às necessidades da população é elemento essencial para um cuidado
integral e resolutivo.

2.1.4. Trabalho em Saúde

Para articular todos os elementos expostos neste material, o trabalho


da equipe de saúde, individual e coletivo, ocorre entre indivíduos. Para
Merhy (2007), esse encontro entre sujeitos configura um trabalho vivo
em ato, no qual se produz (ou não) o cuidado. É nesse encontro, nessa
micropolítica do trabalho, que o profissional de saúde utiliza tecnologias
de cuidado, que podem ser tecnologias leves, leves-duras e/ou duras. O
autor define como tecnologias duras os instrumentos de cuidado, como
um estetoscópio, um tomógrafo ou um respirador; como tecnologias

18
leves-duras os conhecimentos técnicos específicos de cada profissional
(o saber do médico, do enfermeiro, do agente comunitário de saúde); e,
por último, como tecnologia leve aquela que existe no encontro entre o
profissional de saúde e o usuário.

Os profissionais da AB utilizam essas três tecnologias na realização do


seu trabalho, que é essencialmente o cuidado da população sob a sua
responsabilidade. O processo de territorialização, a busca pelo cuidado
integral e a organização das agendas de trabalho estão diretamente
(e indiretamente) relacionados a essa micropolítica. É nessa interação
(profissional-usuário e profissional-profissional) que surgem conflitos,
tensões e novas possibilidades de cuidado, a partir dos diferentes atores
desse processo (MERHY, 2007).

A realização de reuniões de equipe é um momento em que os


profissionais de saúde podem discutir e refletir sobre o impacto dessas
relações no cuidado com a população. Muitas vezes, encontrar tempo
disponível para essas reuniões é um verdadeiro desafio, pela sobrecarga
de trabalho e pela alta demanda de cuidados e atendimentos que
vêm da população. No entanto, ter espaços para discutir o processo
de trabalho da equipe e todos os seus desdobramentos deve ser visto
como mais uma ferramenta de cuidado da população.

3. Considerações finais

A AB busca alcançar um modelo assistencial baseado no cuidado integral


e individual, articulando os demais pontos de atenção do sistema de
saúde como coordenadora do cuidado. Vimos que na sua trajetória
histórica houve muitos avanços, ainda que existam muitos desafios a
serem superados.

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A construção do SUS está intimamente relacionada com a evolução da
AB no Brasil. Desde o movimento da Reforma Sanitária até as novas
diretrizes para a AB no País, muitas foram as transformações sociais
e políticas que ocorreram. Os profissionais de saúde são os atores
principais nesses cenários de práticas para consolidar as mudanças de
olhares e de práticas que vêm sendo planejadas nessas últimas décadas.

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21
Doenças Crônicas Não
Transmissíveis
Autoria: Mariana S. C. Vianna
Leitura crítica: Marcia Cristina A. Thomaz

Objetivos
• Conhecer as Doenças Crônicas Não Transmissíveis
(DCNT) e o seu impacto no perfil epidemiológico
brasileiro e na qualidade de vida da população.

• Compreender as principais políticas públicas


brasileiras voltadas para o cuidado das DCNT.

• Entender o papel da Atenção Básica no cuidado das


DCNT e o seu papel na Rede de Assistência à Saúde.

22
1. Doenças Crônicas Não Transmissíveis

As últimas décadas foram de muitas transformações no País, com


aumento da expectativa de vida, melhora das condições de vida,
ampliação do acesso a serviços de saúde e mudanças no perfil
epidemiológico da população. Desde a sua implantação, o Sistema Único
de Saúde (SUS) vem contribuindo para essas mudanças e impactando
nos indicadores de saúde. Com um sistema de saúde público e universal,
o País observou uma expansão da cobertura de Saúde da Família, da
distribuição de medicamentos gratuitos e das ações voltadas para um
cuidado integral e em rede.

Algumas melhorias sociais e econômicas também contribuíram para


melhorar a qualidade de vida dos brasileiros, como a diminuição do
analfabetismo, o aumento da escolaridade da população, o acesso ao
saneamento básico e os programas de transferência de renda, como o
Bolsa Família, que impactam também na saúde das pessoas. Embora
ainda exista muita desigualdade no Brasil, e isso é percebido pelas
diferenças nos indicadores sociais e de saúde nas regiões brasileiras, a
construção e consolidação do SUS fez parte dessas mudanças.

A transição demográfica da população brasileira trouxe novos desafios.


Se no início do século XX a mortalidade infantil e as doenças infecciosas
reduziam a expectativa de vida das pessoas, o início do século XXI traz
uma preocupação com as Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT).
Principal causa de morte em países desenvolvidos e emergentes, entre
eles o Brasil, essas doenças são responsáveis por mortes prematuras
(antes dos 69 anos de idade), trazendo impactos sociais e econômicos.
São, na sua maior parte, evitáveis com mudanças de hábito e estilo de
vida, já que são fatores de risco para as DCNT o tabagismo, a obesidade,
o abuso no consumo de álcool e o sedentarismo. Os gráficos a seguir
mostram as mudanças na pirâmide etária da população brasileira para
2010, 2020 e 2030.

23
Gráfico 1 – Pirâmide etária brasileira – 2010

Fonte: adaptado de IBGE (2020).

Gráfico 2 – Pirâmide etária brasileira – 2020 (projeção da população)

Fonte: adaptado de IBGE (2020).

24
Gráfico 3 – Pirâmide etária brasileira – 2030 (projeção da população)

Fonte: adaptado de IBGE (2020).

Com o envelhecimento progressivo da população brasileira, é esperado


um aumento da incidência das DCNT, principalmente se medidas
de prevenção e promoção da saúde não forem aplicadas em tempo
oportuno.

As DCNT são as doenças cardiovasculares, as neoplasias, as doenças


respiratórias e o diabetes mellitus. Acometem todas as camadas
socioeconômicas da população, mas atingem mais pessoas idosas, com
baixa escolaridade e baixa renda (BRASIL, 2011). Foram responsáveis
por 75% dos óbitos em 2015 no Brasil, embora tenha havido redução
dessas taxas nos últimos anos (MALTA et al., 2017). Essa redução é
resultado de várias ações desenvolvidas pelo SUS nos últimos 20
anos, como a ampliação da cobertura de Saúde da Família, a Política
Nacional de Promoção da Saúde e o Plano de Ações Estratégicas para o
enfrentamento das DCNT para 2011-2022. Outras ações concomitantes

25
contribuíram para ampliar a integralidade do cuidado do SUS, como as
Redes de Atenção à Saúde (RAS) e as Regiões de Saúde.

Entre as DCNT, as doenças cardiovasculares são a principal causa de


morbimortalidade no Brasil. A hipertensão arterial é o seu principal
fator de risco, sendo altamente prevalente na população brasileira e
afetando 24,7% da população das capitais em 2018 (BRASIL, 2011; 2019).
As neoplasias são a segunda causa de mortalidade, e seu diagnóstico e
tratamento precoce são fundamentais para diminuir esse número. Entre
os tipos de câncer mais comuns estão os cânceres de mama, colorretal
e de colo de útero, entre as mulheres; e as neoplasias de próstata,
colorretal e de sistema respiratório, entre os homens (INCA, 2020).

O diabetes mellitus e suas complicações podem se tornar altamente


incapacitantes, sendo importante o seu diagnóstico precoce e o
rastreamento das suas complicações, como as neuropatias. As
mudanças de estilo de vida são fundamentais para a melhora desse
quadro.

As doenças respiratórias crônicas incluem a asma e as doenças


pulmonares obstrutivas crônicas (DPOC). A distribuição de
medicamentos para o tratamento da asma, de forma gratuita, e a
diminuição do tabagismo vêm contribuindo para a redução da incidência
desses agravos (BRASIL, 2011).

1.1 Enfrentamento das DCNT

Em 1986, ano em que acontecia a 8ª Conferência Nacional de Saúde no


Brasil, ocorria no Canadá a Primeira Conferência Internacional sobre
Promoção da Saúde, na cidade de Ottawa. A Carta de Ottawa formaliza
as intenções dessa Conferência, em consonância com os princípios
defendidos na Conferência de Alma-Ata de 1978, e define a promoção
da saúde como o “processo de capacitação da comunidade para atuar
na melhoria de sua qualidade de vida e saúde”, a fim de alcançar o

26
bem-estar físico, mental e espiritual (BRASIL, 2002, p. 19). Conforme o
documento, a busca pela saúde deve extrapolar o limite das ações de
saúde, combinando diversas políticas públicas para o desenvolvimento
de cidades e comunidades saudáveis.

No contexto dos países da América, durante a Conferência Pan-


Americana de Saúde, foi aprovada, em 2002, a iniciativa CARMEN, sigla
para Conjunto de Ações para a Redução Multifatorial de Enfermidades
Não Transmissíveis. Essa iniciativa se apoia na prevenção integrada e na
promoção da saúde, na avaliação das ações executadas e na promoção
da equidade em saúde (BRASIL, 2007).

No Brasil, foi aprovada em 2006 a Política Nacional de Promoção da


Saúde, de acordo com os princípios do SUS e em conformidade com
o defendido na Carta de Ottawa. Seu objetivo principal é “promover a
qualidade de vida e reduzir vulnerabilidade e riscos à saúde relacionados
aos seus determinantes e condicionantes”, integrando diversos atores
(sociais e políticos) para atingir esse fim (BRASIL, 2010a, p. 17).

Em 2011, foi criado o Plano de Ações Estratégicas para o enfrentamento


das DCNT pelo Ministério da Saúde, com o objetivo de:

promover o desenvolvimento e a implementação de políticas públicas


efetivas, integradas, sustentáveis e baseadas em evidências para a
prevenção e o controle das DCNT e seus fatores de risco e fortalecer os
serviços de saúde voltados para a atenção aos portadores de doenças
crônicas. (BRASIL, 2011, p. 14)

Ele organiza-se em três eixos: vigilância, informação, avaliação e


monitoramento; promoção da saúde; e cuidado integral. Além disso,
traz metas voltadas para a promoção de hábitos saudáveis, a ampliação
da oferta de serviços e exames, a redução gradual da mortalidade
prematura por DCNT, entre outras (BRASIL, 2011).

27
Algumas intervenções realizadas, apoiadas pela Organização Mundial
da Saúde (OMS) pela sua efetividade, incluem: aumento de preços
e impostos sobre cigarros; proibição de fumar em locais públicos;
regulação de propagandas de álcool e tabaco; advertências sobre os
efeitos nocivos do tabaco nas embalagens de produtos; políticas de
combate ao uso de álcool e direção; e redução do conteúdo de sal nos
alimentos (BRASIL, 2011). Na assistência à saúde direta, destaca-se o
tratamento da dependência de nicotina, realizado pela Atenção Básica,
com atividades educativas em grupo, distribuição de medicamentos e
acompanhamento contínuo multidisciplinar para apoio na cessação do
fumo.

O combate ao consumo de tabaco talvez seja uma das estratégias mais


bem-sucedidas realizadas, com resultados bem expressivos. Com as
ações de combate ao tabagismo, que tiveram início na década de 1990 e
perduram até hoje, houve uma diminuição expressiva no tabagismo. Em
1989, a prevalência em maiores de 18 anos era de 34,8%, enquanto em
2013 era de 14,7% (INCA, 2020).

Além desse plano de enfrentamento, diversas estratégias foram criadas


concomitantemente e postas em prática, sobretudo pelas equipes
de Saúde da Família do País. Entre essas estratégias, destacam-se
o Programa Academia da Saúde; a política antitabaco; o incentivo
ao aleitamento materno e à alimentação complementar saudável; a
expansão da Atenção Básica e a criação do Núcleo de Apoio à Saúde
da Família (NASF); a distribuição gratuita de medicamentos para
hipertensão e diabetes; e a ampliação de exames de prevenção ao
câncer de mama e de colo de útero (BRASIL, 2011).

Todo esse histórico busca mostrar que a prevenção e o combate


das DCNT estão relacionados às políticas voltadas para a Promoção
da Saúde, principalmente quando são levados em consideração os
fatores de risco que causam o diabetes, a hipertensão e alguns tipos
de câncer. Além de buscar prevenir essas condições, várias dessas

28
ações também buscam mudar o cenário epidemiológico já instalado,
evitando as complicações e a mortalidade precoce causadas por essas
doenças. Dessa forma, o papel da Atenção Básica no contexto do SUS é
imprescindível para colocar em prática a maior parte dessas ações, por
ser o nível de atenção à saúde mais próximo da vida das pessoas, capaz
de articular ações de promoção, prevenção e controle dessas doenças.

Considerando a complexidade de enfrentamento às DCNT, as diretrizes


e os princípios do SUS e o papel esperado da Atenção Básica para a
mudança do modelo assistencial no País, outro desafio surge: como
(re)organizar os serviços de saúde de forma a garantir a integralidade
do cuidado e melhorar os indicadores de saúde relacionados a essas
doenças.

1.2 Redes de Atenção à Saúde

Os sistemas de saúde podem operar de forma fragmentada ou


integrada, muitas vezes de maneira concomitante. De maneira geral, um
sistema fragmentado se organiza por meio de vários serviços de saúde
que trabalham de maneira isolada e sem se comunicarem entre si, sem
uma população adscrita definida, e voltados para atender situações
agudas ou condições crônicas agudizadas, como uma crise hipertensiva.
Nesse tipo de sistema, não existe uma continuidade do cuidado, não
havendo uma articulação entre atenção primária (ou básica), atenção
secundária e atenção terciária (MENDES, 2011).

29
Mendes (2011) também aponta que sistemas de saúde fragmentados
tendem a considerar sua estrutura assistencial de forma hierárquica,
com ordens de complexidade e importância conforme se avança na
hierarquia, o que acontece no SUS. Ao definir seus níveis de atenção
em atenção básica, de média e de alta complexidade, pode-se criar a
ideia equivocada de que a Atenção Básica é menos complexa e menos
importante, valorizando e dando preferência para os demais níveis de
assistência.

Para alcançar os objetivos de saúde propostos desde o movimento da


Reforma Sanitária Brasileira e mudar o cenário de saúde brasileiro,
fortemente afetado pelas DCNT, é necessário que algumas mudanças
ocorram, substituindo o modelo de atenção à saúde fragmentado
hegemônico no SUS por um modelo de atenção organizado em rede.

Tabela 1 – Principais diferenças dos sistemas fragmentados e das


redes de atenção à saúde
SISTEMA REDE DE ATENÇÃO À
CARACTERÍSTICA
FRAGMENTADO SAÚDE
Forma de organização Hierarquia. Poliarquia.
Coordenação da Inexistente. Feita pela APS.
atenção
Comunicação entre Inexistente. Feita por sistemas
os componentes logísticos eficazes.
Foco Nas condições Nas condições agudas
agudas, por meio de e crônicas, por meio de
unidades de pronto uma RAS.
atendimento.
Objetivos Objetivos parciais de Objetivos de melhoria da
diferentes serviços saúde de uma população
e resultados não com resultados clínicos e
medidos. econômicos medidos.

30
População Voltado para Voltada para uma
indivíduos isolados. população adscrita
estratificada por
subpopulações de risco e
sob responsabilidade da
RAS.
Sujeito Paciente que recebe Agente corresponsável
prescrições dos pela própria saúde.
profissionais de
saúde.
SISTEMA REDE DE ATENÇÃO À
CARACTERÍSTICA
FRAGMENTADO SAÚDE
A forma de ação do Reativa e episódica, Proativa e contínua,
sistema acionada pela baseada em plano
demanda dos de cuidados de cada
usuários. usuário, realizado
conjuntamente pelos
profissionais e pela
pessoa usuária, com
busca ativa.
Ênfase das Curativas e Promocionais,
intervenções reabilitadoras preventivas,
sobre condições curativas, cuidadoras,
estabelecidas. reabilitadoras ou
paliativas, atuando sobre
determinantes sociais
da saúde intermediários
e proximais e sobre as
condições de saúde
estabelecidas.

31
Modelo de atenção à Fragmentado por Integrado, com
saúde ponto de atenção estratificação dos
à saúde, sem riscos, e voltado para os
estratificação de determinantes sociais
riscos, e voltado da saúde intermediários
para as condições de e proximais e para as
saúde estabelecidas. condições de saúde
estabelecidas.
Planejamento Planejamento da Planejamento das
oferta, baseado em necessidades, definido
séries históricas pela situação das
e definido pelos condições de saúde da
interesses dos população adscrita e
prestadores. de seus valores e suas
preferências.
Ênfase do cuidado Cuidado profissional Atenção colaborativa
centrado nos realizada por equipes
profissionais, multiprofissionais e
especialmente nos pessoas usuárias e suas
médicos. famílias, com ênfase no
autocuidado.

32
Organização Territórios político- Territórios sanitários
territorial administrativos definidos por fluxos
definidos por uma sanitários da população
lógica política. em busca de atenção.
Sistema de Financiamento por Financiamento por valor
financiamento procedimentos em global ou por capitação
pontos de atenção à de toda a rede.
saúde isolados.
Participação social Participação Participação social ativa
social passiva e a por meio de Conselhos
comunidade vista de Saúde com presença
como cuidadora. na governança da rede.
Fonte: adaptada de Mendes (2011, p. 56).

A Portaria n. 4.279/2010 (BRASIL, 2010b) elenca as diretrizes para a


organização das RAS no SUS, considerando-as como ações e serviços
organizados de várias formas, com características tecnológicas
heterogêneas, integradas por meio de sistemas de apoio, com o objetivo
de alcançar a integralidade do cuidado (BRASIL, 2014).

Com a criação das RAS, foram definidas redes temáticas prioritárias, com
componentes, fases e planos específicos. As redes temáticas definidas
foram: Rede Cegonha; Rede de Urgência e Emergência; Rede de Atenção
Psicossocial; Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência; e Rede de
Atenção à Saúde das Pessoas com Doenças Crônicas. Com a lógica do
cuidado em redes, fica mais próximo de se alcançar o papel da Atenção
Básica de ser a coordenadora do cuidado e organizadora da rede.

Em conjunto com as RAS, também foram definidas Linhas de Cuidado


(LC) voltadas para essas redes prioritárias. Elas são entendidas como
itinerários terapêuticos que um paciente deve percorrer, nos diferentes
pontos de atenção da RAS, de forma a suprir suas necessidades de
saúde (BRASIL, 2013). Com base em protocolos e diretrizes clínicas, a LC
contempla todo o processo saúde-doença de um agravo, desde a sua

33
prevenção até o seu controle, a ser aplicado em qualquer ponto da rede
de atenção, buscando um cuidado integral.

1.3 A Atenção Básica e as DCNT

Para abordar as DCNT, é necessária uma assistência à saúde adequada


para todas as características desses agravos. Quando se fala em RAS,
coloca-se a Atenção Básica no centro do sistema de saúde, para que
ela possa ser efetivamente a coordenadora do cuidado, como mostra a
Figura 1.

Figura 1 – A mudança dos sistemas piramidais e hierárquicos para


as redes de atenção à saúde

Fonte: adaptada de Mendes (2011, p. 84).

Mendes (2012) defende uma nova clínica para a Saúde da Família,


requalificando as relações entre equipe e usuário, ambos ativos no
processo de cuidado e autocuidado. Para o autor, as equipes de Saúde
da Família devem basear a sua atuação nas seguintes dimensões:

34
1. Da atenção prescritiva para a atenção centrada na pessoa:
singularizar o cuidado para cada indivíduo, considerando os
aspectos objetivos e subjetivos de cada um, sendo o usuário ator
no processo de cuidado, e não um ser passivo.
2. Da atenção centrada no indivíduo para a atenção centrada na
família: a família é considerada uma unidade de cuidado, como
parte dos recursos que o usuário pode utilizar no seu cuidado e
como um elo com ele, para melhor entender a sua situação de
saúde.
3. No fortalecimento do autocuidado apoiado: permitir que os
usuários sejam produtores da sua saúde. O portador de uma
doença crônica convive muito mais tempo sozinho com a sua
doença do que na companhia de um profissional da saúde. O
autocuidado é uma forma de empoderar o indivíduo para o seu
cuidado, promovendo a educação em saúde e a sua autonomia
nesse processo.
4. No equilíbrio entre a demanda espontânea e a atenção
programada: considerando as DCNT, a organização da agenda
de serviços das equipes de Saúde da Família deve garantir um
equilíbrio entre atendimentos programados para os usuários e
atendimentos não programados, ou de demanda espontânea,
para atender às situações de agudização dessas condições,
conforme a necessidade desse usuário.
5. Da atenção uniprofissional para a atenção multiprofissional:
ampliar o cuidado do indivíduo para além do cuidado centrado
na consulta médica, com o cuidado prestado por uma equipe
multiprofissional.
6. Na introdução de novas formas de atenção profissional: como
a atenção compartilhada em grupo (diferente dos grupos
educativos) e a atenção contínua, passando o usuário por
atendimentos individuais com vários profissionais. Essas duas
abordagens ainda não foram implantadas no Brasil.

35
7. No estabelecimento de novas formas de relação entre as equipes
da Atenção Básica e a atenção ambulatorial especializada: exige
que a Atenção Básica opere a RAS de forma a coordenar essa rede,
mantendo a sua responsabilidade no cuidado ao usuário.
8. No equilíbrio entre o cuidado presencial e o cuidado não
presencial: ao incrementar as ações não presenciais, amplia-se o
cuidado, podendo ser realizado por monitoramento das condições
de saúde por meio telefônico ou por correio eletrônico.
9. No equilíbrio entre a atenção profissional e a atenção por leigos:
essa assistência promovida por leigos (ou por pares) consiste em
incluir no cuidado ao doente crônico cuidadores leigos, também
portadores dessas condições.

Para contemplar essas dimensões, é necessária a reorganização do


processo de trabalho das equipes atuantes na Atenção Básica. Algumas
estratégias vêm sendo aplicadas por essas equipes, como o Projeto
Terapêutico Singular (PTS) e o Apoio Matricial, realizado pelas equipes do
NASF e pelos serviços de atenção especializada (BRASIL, 2013).

A lógica da LC de DCNT, na Atenção Básica, também articula novos


saberes e novas práticas para as equipes de saúde, pois, diferentemente
de protocolos ou diretrizes clínicas, que costumam ser mais rígidos,
a LC pressupõe novos arranjos assistenciais e de gestão. Assim, na
perspectiva dos macroprocessos (MALTA; MERHY, 2010), a LC de DCNT
abrange a organização da vigilância e da informação em saúde, a
comunicação em saúde, medidas intersetoriais, a organização das redes
de serviço e a identificação de grupos de risco e o uso de protocolos. Já
na perspectiva dos microprocessos, os autores destacam a atuação da
equipe na coordenação do cuidado, a vinculação e responsabilização do
cuidador e a busca da produção da autonomia do usuário.

Diante disso tudo, muitos são os desafios impostos para a Atenção


Básica brasileira. Além da responsabilidade de reorganizar uma rede
de serviços de saúde que ainda opera de maneira pouco integrada

36
e oferece um cuidado fragmentado, as equipes de Saúde da Família
e de Atenção Básica também lidam com dificuldades estruturais no
seu dia a dia, como dificuldade em fixar profissionais médicos, alta
rotatividade de profissionais (o que dificulta a criação de vínculo com
a população) e a diminuição de recursos financeiros nos últimos anos
para o financiamento do SUS, o que dificulta o acesso e a cobertura da
população de maneira a cumprir todas as intenções que foram descritas.

O cuidado às condições crônicas já traz seus desafios pela complexidade


de abordagem, pelo tratamento e pela atenção que exige. Mudanças
de hábitos de uma vida inteira não são alcançadas de uma forma
simples nem pela vontade do profissional de saúde em alcançar esse
objetivo. Integrar a pessoa, a família e a comunidade nesse cuidado é
fundamental e requer novas práticas e novas estratégias para que se
obtenha sucesso nesse enfrentamento.

A Atenção Básica está posta no centro da RAS, mas ainda não ocupou
esse espaço de maneira homogênea pelo Brasil. Cada região brasileira
apresenta a sua realidade em termos de recursos e de indicadores.
Por isso o protagonismo das equipes é fundamental para a mudança
assistencial pensada nos primórdios do SUS: são essas equipes e
esses profissionais que convivem próximos às múltiplas realidades das
pessoas e dos territórios, dispondo das ferramentas para alcançar um
cuidado integral e com equidade.

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38
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Acesso em: 5 out. 2020.

39
Território na Atenção Básica
Autoria: Mariana S. C. Vianna
Leitura crítica: Marcia Cristina A. Thomaz

Objetivos
• Compreender o conceito de território e sua relação
com a saúde das pessoas.

• Entender sobre o processo de territorialização


realizado pelas equipes de saúde da Atenção Básica.

• Refletir sobre a responsabilidade das equipes


da Atenção Básica na produção de cuidado no
território.

40
1. Território e Saúde

Pense na sua casa, no local onde você mora. Amplie um pouco seu olhar
e pense na rua da sua casa. Agora pense no seu bairro. Por último,
pense na cidade onde você mora. Provavelmente, deve ter percebido
que cada uma dessas dimensões apresenta características próprias,
conforme o que consideramos em cada espaço. E se propusermos
o mesmo exercício para alguém que more com você (ou um amigo,
um familiar), vai acabar descobrindo que as percepções de cada um
apresentam suas particularidades também.

Poderíamos continuar esse exercício pensando no estado em


que moramos, na região desse estado, no país... e cada vez que
praticássemos esse exercício, descobriríamos novas nuances e novos
ângulos que, provavelmente, não havíamos percebido antes.

Esse exercício é uma forma de refletir sobre o que é um território, o


qual pode ser analisado a partir de suas dimensões micro (como a rua
da nossa casa) ou macro (como a cidade onde moramos). Também
pode ser investigado sob perspectivas objetivas (como o número de
casas do bairro) ou subjetivas (por exemplo, o lugar onde você mora
é agradável?). Ou seja, território possui um conceito complexo e que
permite múltiplas abordagens.

Existem muitas definições e entendimentos sobre o que é um território.


Ele pode ser compreendido a partir do aspecto geográfico, político,
econômico ou social. Na área da saúde, utiliza-se um pouco de cada uma
dessas compreensões. Como um espaço onde acontecem as relações
sociais e a produção de saúde e doença, é importante que o profissional
de saúde esteja atento para a forma como cada uma dessas nuances
interfere no seu cuidado de saúde – e como esse cuidado deve ser
pensado considerando todos esses aspectos.

41
Observemos as imagens a seguir:

Figuras 1 e 2 – Diferentes territórios

Fonte: Ranimiro Lotufo/ iStock.com.


Fonte: Konstanttin/ iStock.com.

O cotidiano de grandes cidades tem aspectos que diferem do cotidiano


de cidades pequenas; áreas densamente urbanizadas têm características
muito diferentes de áreas rurais. Em outras palavras, as relações que se
desenvolvem nos territórios são influenciadas pelos seus contextos e
pelas suas realidades. O território pode assumir múltiplas funções para
além de um espaço geográfico e suas limitações político-territoriais.

Ao planejar as ações de saúde, devem ser incluídos os aspectos do


território, tanto em nível macro como em nível micro. O planejamento
abrange desde a criação de políticas públicas de moradia, saneamento
básico e atividades econômicas até o planejamento e a distribuição de
unidades de saúde e quantidade de profissionais a serem alocados.
Em cada nível, a produção de saúde e de doença será diferente e,
consequentemente, as ações a serem executadas.

Historicamente, a relação entre a organização e o planejamento das


ações de saúde sobre o território é muito antiga. Desde medidas
sanitárias no período medieval a fim de controlar as pestes até
as normas para a destinação de cadáveres e a criação de espaços

42
de banhos e canalização de esgotos, várias outras ações foram
desenvolvidas com o objetivo de evitar doenças e garantir a saúde das
pessoas, passando pela criação de sanatórios e hospitais (GONDIN,
MONKEN, 2017). A partir da Revolução Industrial na Europa, no século
XVIII, e com a expansão das cidades e de aglomerados urbanos,
o Estado passa a desempenhar um papel fiscalizador e assume a
responsabilidade pelas definições de regras sanitárias, sobretudo para
garantir o fornecimento de mão de obra operária industrial (FOUCAULT,
2007).

A partir do século XIX, a ocorrência de doenças, sua distribuição e


sua relação com o território passaram a ser realizadas de forma
contundente, com o desenvolvimento da Epidemiologia. O trabalho de
John Snow na Inglaterra durante os anos de 1850 conseguiu mostrar a
relação entre o consumo de água contaminada e o surgimento de casos
de cólera na cidade de Londres (BONITA et al., 2010), em uma época em
que houve o descobrimento das bactérias e das doenças causadas por
elas. O trabalho de John Snow é considerado um marco por demonstrar
a causalidade de uma doença em um espaço geográfico. A Figura 3
mostra a distribuição de óbitos de cólera em Londres em 1854. O
quadrado vermelho marca as fontes de distribuição de água, realizada
por companhias de abastecimento diferentes.

43
Figura 3 – Óbitos por cólera na área central de Londres, 1855
Fontes de abastecimento de água.
Mortes por cólera.

Fonte: adaptada de OPAS (2010, p. 42).

O desenvolvimento da ciência e suas descobertas permitiram esclarecer


a relação entre as doenças e suas causas, subsidiando a criação de
políticas públicas e sanitárias. De forma dialética, foi sendo descoberto
o impacto das doenças no território (como nos casos de epidemias) e

44
os efeitos do território no processo saúde-doença (como no caso de
doenças respiratórias associadas à poluição) (FARIA; BORTOLOZZI, 2009).

Com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), os serviços de saúde


passaram a integrar uma rede de assistência regionalizada. Em outras
palavras, as ações de saúde passaram a ser planejadas e executadas
mais próximas ao cotidiano das pessoas. Embora o conhecimento das
relações entre território e saúde não tenha sido descoberto com a
criação do SUS, as políticas de saúde criadas a partir da sua implantação
buscam se apropriar dessas relações e intervir, buscando a promoção da
saúde e a prevenção de doenças.

A proximidade dos serviços de saúde do SUS com o território permite


identificar as singularidades de cada região, conhecer as tradições e a
cultura daquele povo, identificar as necessidades de saúde e planejar
as ações a serem executadas (GONDIN; MONKEN, 2017). Diante da
complexidade de alguns territórios, as equipes de saúde enfrentam
grandes desafios na sua prática diária, pois as relações presentes nesse
território extrapolam, quase sempre, as ações diretas de saúde, sendo
necessárias ações intersetoriais para enfrentar problemas como a
desigualdade social, a violência, os fluxos migratórios, as ocupações
desordenadas e as moradias precárias. As figuras a seguir representam
essa variação de contextos que o território pode trazer.

45
Figuras 4 e 5 – Diferentes territórios, diferentes contextos

Fonte: lindrik/iStock.com.
Fonte: Zé Martinusso/iStock.com.

1.1 Território e Atenção Básica

Com a descentralização das ações de saúde a partir da criação do


SUS, os municípios passaram a ter mais autonomia na organização e
na definição das prioridades de cuidado. Como diretrizes do SUS e da
Atenção Básica, temos a territorialização e a adscrição da população,
que devem garantir o planejamento e o desenvolvimento de ações
conforme as necessidades de saúde das pessoas de um determinado
território (BRASIL, 2017). A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB)
define território como “unidade geográfica única, de construção
descentralizada do SUS na execução das ações estratégicas destinadas
à vigilância, promoção, prevenção, proteção e recuperação da saúde”
(BRASIL, 2017).

Para se apropriarem do território, as equipes de saúde da Atenção


Básica podem utilizar diferentes estratégias e instrumentos para isso.
A PNAB atual não determina mais o tamanho da população adscrita
por equipe, ficando a critério da gestão municipal definir o número de
profissionais e o tamanho da população a ser atendida, a qual leva em
consideração fatores como vulnerabilidade social e indicadores sociais e

46
epidemiológicos (BRASIL, 2017). Essa apropriação do território, ou seja,
a “tradução” da realidade de um grupo social em um espaço geográfico
pode ser chamada de territorialização.

1.2 Territorialização

Imaginemos que hoje é o primeiro dia de trabalho de um profissional


em uma Unidade Básica de Saúde (UBS). Ele conhece a unidade, seus
colegas de trabalho e, de alguma forma, precisa conhecer a população
que é atendida nesse serviço. Como isso pode ser feito?

Geralmente o ponto de partida para se conhecer a população adscrita


de uma UBS é mapeando a área de abrangência e os principais
recursos existentes, além de situações de vulnerabilidade, como
escolas, comércio, ocupações irregulares, pontos de tráfico de drogas,
entre outros. Esse reconhecimento do território, que consiste na
territorialização, deve utilizar as informações do cadastro da população,
realizado por toda a equipe e, principalmente, pelo agente comunitário
de saúde (ACS). Além do cadastro, visitar o território a pé também
permite diferentes percepções e compreensões daquela região e
comunidade.

A territorialização pode ser definida como “o reconhecimento (...) do


território do município segundo a lógica das relações entre condições
de vida, saúde e acesso às ações e serviços de saúde” (TEIXEIRA;
PAIM; VILASBÔAS, 1998, p. 20). Após esse reconhecimento, o mapa do
território pode ser feito (e refeito também como uma ação contínua). É
importante que essa etapa conte com a colaboração de toda a equipe,
para que os aspectos em destaque no mapa sejam avaliados em
conjunto, considerando que as informações mais relevantes deverão
orientar o planejamento das ações de saúde. Graficamente, o mapa
do território pode ser realizado de várias maneiras, desde desenhando

47
em uma cartolina até utilizando recursos de softwares próprios para o
georreferenciamento.

Figura 6 – Representação gráfica de um território

Fonte: tarras79 /iStock.com.

No entanto, territorialização é algo que vai além desse mapeamento.


Na área da saúde, o processo de territorialização tem como objetivo

48
analisar determinada realidade a partir da coleta de dados e da
produção de informações, tanto para a tomada de decisões como para
a avaliação das intervenções que foram realizadas (GONDIN; MONKEN,
2017). É um processo contínuo e constante.

Para a equipe poder conhecer uma população, é necessário articular


várias ferramentas, sendo o mapa do território apenas uma delas.
É preciso agregar informações e dados de diferentes fontes para
realizar um diagnóstico da situação de saúde e das condições de vida
da população sob a responsabilidade das equipes de Atenção Básica.
Esse diagnóstico é dinâmico, uma vez que as informações a serem
obtidas do território vão se modificando, assim como a análise e o
julgamento que as equipes vão fazer a partir dessas informações. Essa
análise da situação de saúde é que vai orientar o processo de decisão, a
definição de prioridades e o planejamento das ações de saúde a serem
executadas pela equipe.

Para facilitar a análise de uma região e executar as ações necessárias,


as equipes de saúde organizam o território em áreas de influência e de
abrangência e em microáreas. A área de influência é aquela que está
além do espaço delimitado geograficamente no território, mas parte
da população acaba sendo atendida pela unidade, principalmente em
atendimentos de demanda espontânea. São os chamados “fora de área”,
expressão muito utilizada pelas equipes de saúde (que por vezes pode
ser estigmatizante).

Já a área de abrangência contempla o território da unidade


propriamente dito, aquele que está sob a responsabilidade da equipe
de saúde. É para a população dessa área que as ações de saúde são
direcionadas, incluindo as ações programadas, os atendimentos de
demanda espontânea, as visitas domiciliares e as ações intersetoriais
de promoção da saúde. Cada equipe de Saúde da Família ou equipe
de Atenção Básica tem a sua área de abrangência definida, devendo se

49
apropriar desse território. As microáreas, por sua vez, são partes dessa
área de abrangência, geralmente sob a responsabilidade de um ACS.

A última edição da PNAB (BRASIL, 2017) não exige mais um mínimo de


quatro ACS por equipe de Saúde da Família, o que permitia organizar
o território em, no mínimo, quatro microáreas. Atualmente, as equipes
podem definir de que forma o território será delimitado a fim de
organizar a sua análise e orientar o planejamento das ações de saúde a
serem ofertadas à população.

Figura 7 – Mapa de uma área de abrangência e as delimitações das


microáreas

Fonte: shirkin_son/iStock.com.

50
Voltando ao questionamento inicial, somente o mapa do território
permite que o profissional conheça a sua população?

A territorialização é um processo que envolve a inclusão de pessoas,


mas também promove a exclusão de alguma população. Ao serem
definidos os limites de atuação de uma equipe de saúde por meio
das suas áreas de abrangência, sempre existirá quem faz parte desse
território e quem está de fora. Por vezes, o processo de territorialização
não considera barreiras geográficas, sociais e culturais importantes, as
quais tanto podem facilitar o acesso da população aos serviços de saúde
como dificultá-lo.

Por exemplo, pessoas podem fazer parte da área de abrangência


de uma equipe, mas não dispor de meios de transporte adequados
para serem atendidas. Da mesma forma, trabalhadores do comércio
de uma área podem necessitar de algum tipo de atendimento, sem
necessariamente residirem naquela região. Esses são exemplos para
tentar demonstrar a complexidade inerente ao que estamos chamando
de território, a qual nem sempre é considerada na territorialização.

Muitas vezes as equipes de saúde e os gestores municipais limitam a


análise do território apenas a um espaço geográfico, em que linhas
imaginárias definem os limites administrativos de cuidado, analisando-
os de maneira parcial e limitando a identificação de problemas de saúde
(SANTOS; RIGOTO, 2011). Os tipos de compreensão da equipe sobre
um território podem influenciar a tomada de decisões, favorecendo a
situação de saúde dessa área ou aumentando as desigualdades e os
problemas de saúde dessa população (FARIA; PAIVA, 2019).

Um dos grandes desafios das equipes é conseguir compreender as


diferentes realidades de um território e produzir o cuidado conforme as
diretrizes do SUS e da Atenção Básica, efetivando a mudança do modelo
assistencial esperada para esse nível de atenção à saúde. Assim, para

51
superar esse desafio, a territorialização seria uma das formas (TEIXEIRA;
PAIM; VILASBÔAS, 1998).

O território pode ser analisado a partir de dados demográficos e


epidemiológicos, pelas vulnerabilidades identificadas, pelos seus
aspectos históricos e culturais, além das condições sanitárias presentes
(como saneamento básico, coleta de lixo e acesso à água potável).
A equipe também pode identificar outros atores sociais presentes
no território, para potencializar o cuidado com ações intersetoriais
(GONDIN; MONKEN, 2017).

Enfim, o reconhecimento de um território e da sua população é


complexo. Imaginando o primeiro dia de trabalho de um profissional em
uma equipe, quanto melhor forem as análises dessa equipe, mais fácil
será para conhecer a população.

1.3 O cuidado no território

Após o processo de territorialização, como o cuidado pode ser ofertado


para a população?

A ferramenta principal para isso é realizar um bom planejamento de


saúde. As equipes de Saúde da Família ou de Atenção Básica devem
ter autonomia e governabilidade para a tomada de decisão dentro da
organização do seu processo de trabalho. Existem diferentes métodos
para o planejamento das ações de saúde na Atenção Básica, como o
método CENDES/OPAS, o planejamento estratégico, a programação em
saúde, os contratos de gestão, o método Lean, além dos instrumentos
obrigatórios para o planejamento da gestão municipal, como o Plano
Anual de Saúde (PAS) e o Plano Plurianual (PPA).

Independentemente do método de planejamento a ser seguido, é


importante que esse processo seja feito em conjunto com a população,
lembrando que uma das diretrizes do SUS e da Atenção Básica é a

52
participação social. O planejamento das equipes e das unidades deve
contar com a participação do Conselho Local de Saúde e o planejamento
municipal deve ser realizado em conjunto com o Conselho Municipal de
Saúde (CMS), o qual pode, inclusive, não aprovar o PAS ou o PPA, caso
não esteja de acordo com o planejamento realizado. Essa é uma forma
de atender aos interesses da população e ofertar um cuidado voltado
para as suas necessidades de saúde.

Além do planejamento, as equipes de saúde também utilizam


outras ferramentas que permitem conhecer melhor o seu território
de abrangência e se aproximarem da população, como o cadastro
atualizado da população, reuniões com o Conselho Local de Saúde e
lideranças locais e visita domiciliar (esta devendo ser realizada para
ampliar o acesso e o cuidado, e não somente para realizar o cadastro ou
o cuidado de pacientes acamados).

Mesmo com essas ferramentas, alguns territórios apresentam desafios


mais contundentes para as equipes de saúde. A segunda edição da
PNAB de 2011 (BRASIL, 2012) ampliou as modalidades de atenção
para populações específicas, com equipes de saúde para a população
ribeirinha, equipes de saúde fluvial e equipes de consultório de rua.
As equipes ribeirinhas e fluviais são específicas para as regiões da
Amazônia Legal e do Pantanal Sul-mato-grossense, enquanto as equipes
de consultório de rua são voltadas para as pessoas em situação de rua.

Essas equipes diferenciadas são uma opção para ampliar o acesso às


ações e aos serviços de saúde. Aqui podemos confirmar que conhecer o
território de atuação e o perfil da população é tão necessário quanto é
para as equipes de saúde “tradicionais”.

As equipes de consultório de rua trabalham com um território


diferenciado em relação às demais equipes, por não atenderem a
uma população com residência fixa. Esse território traz características
e desafios próprios para o cuidado da população em situação de rua,

53
comumente marginalizada e segregada da sociedade em geral. Os
problemas de saúde dessa população requerem um cuidado sensível
e acolhedor, integrado à Rede de Assistência à Saúde e como parte do
cuidado da Atenção Básica, mesmo que com uma equipe e um processo
de trabalho diferentes das equipes de UBS.

Figuras 8 – População em situação de rua

Fonte: elianadulins/iStock.com.

As diretrizes da Atenção Básica podem não ser alcançadas para a


população em situação de rua, por isso a necessidade de uma equipe
específica para ela. Garantir a equidade, a integralidade do cuidado e o
acesso ao cuidado em saúde torna-se particularmente desafiador com
essa população, para a qual os “processos de saúde-doença biológicos,
subjetivos e sociais estão articulados e mutuamente apoiados”

54
(VARGAS; MACERATA, 2018, p. 2). Os autores também apontam que a
vulnerabilidade dessa população deixa em destaque as fragilidades do
sistema de saúde.

Por último, o cuidado no território sempre será um encontro entre


sujeitos. Por isso, é importante que o profissional de saúde esteja
ciente e atento para as relações de poder que estarão presentes nesse
encontro, que poderão interferir na produção de cuidado desejada.
Para Foucault (2007), esse encontro traz uma relação de poder entre o
profissional de saúde (que detém um saber específico e uma autoridade)
e o indivíduo, que se torna um ser passivo e um objeto de cuidado.
Considerando que as práticas de saúde na Atenção Básica devem estar
pautadas pela equidade e pela integralidade, é necessário tornar o
indivíduo ator do processo de cuidado, integrando o território e a equipe
de saúde (SANTOS; RIGOTTO, 2011) e buscando uma relação menos
autoritária entre o profissional de saúde e a população.

É possível perceber que a relação entre território e cuidado traz muitos


desafios para as equipes da Atenção Básica. Muitas são as dificuldades
encontradas no dia a dia que dificultam na superação desses desafios,
como excesso de demanda e falta de tempo para discussão e
planejamento das atividades. É necessário que as equipes organizem
o seu processo de trabalho de maneira a contemplar os objetivos
propostos para a Atenção Básica, considerando toda a complexidade do
seu território.

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2. ed. São Paulo: Santos, 2010.
BRASIL. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde, 2012.
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em: 5 out. 2020.

55
BRASIL. Portaria n. 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional
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20 jul. 2020.

56
Vigilância na Atenção Básica
Autoria: Mariana S. C. Vianna
Leitura crítica: Marcia Cristina A. Thomaz

Objetivos
• Conceituar Vigilância em Saúde.

• Compreender as principais ações de Vigilância em


Saúde e a sua abrangência.

• Refletir sobre a aplicação da Vigilância em Saúde no


trabalho da Atenção Básica.

57
1. Vigilância em Saúde

A ideia de vigiar comunidades e lugares é quase tão antiga quanto a


história da humanidade. As relações do ser humano com o território
e com outros seres humanos favoreceram, em muitas ocasiões, o
surgimento de doenças, surtos e epidemias, exigindo a análise de
informações e a tomada de decisões em prol da saúde da humanidade.

No Brasil, as primeiras ações de saúde pública começaram a ser


praticadas no final do século XIX (GUIMARÃES et al., 2017), mas foi a
partir da década de 1930 que as ações de vigilância passaram a se
organizar de forma mais sistemática, mesmo que com práticas pouco
articuladas entre si. O controle de doenças transmissíveis era realizado
principalmente por meio de campanhas sanitárias específicas, como
campanhas de vacinação (TEIXEIRA et al., 2018a).

Em 1975, com a criação do Sistema Nacional de Vigilância


Epidemiológica, a responsabilidade das ações de vigilância passou a
ser dos estados, além do Ministério da Saúde. Apesar da sua criação, o
sistema local de saúde permanecia sem recursos e sem participar das
decisões dos seus problemas de saúde, com programas de vigilância
verticais (TEIXEIRA et al., 2018a). Com a criação do Sistema Único
de Saúde (SUS) e com a sua orientação para um cuidado de saúde
integral, esse modelo de vigilância fragmentado e centralizado passou
a ser revisto e repensado, para que não compreendesse apenas o
combate à doenças transmissíveis (TEIXEIRA, et al., 2018a), tornando-se
mais participativo e voltado para o processo saúde-doença brasileiro
(OLIVEIRA; CRUZ, 2015).

A década de 1990 foi o período em que essa mudança de olhar para


a vigilância em saúde no SUS começou a se consolidar, ampliando
as ações de vigilância e a sua integração com os diferentes níveis de
atenção, como os serviços de atenção hospitalar e a Atenção Básica (AB).

58
Foi o período em que diversos sistemas de informação foram criados
ou aprimorados, passando a compor uma base nacional informatizada
(TEIXERA et al., 2018a), como o Sistema de Informação de Nascidos Vivos
(SINASC), o Sistema de Mortalidade (SIM) e o Sistema de Informação de
Agravos de Notificação (SINAN).

Durante os anos 2000, houve um aumento da descentralização


das ações de vigilância, com portarias ministeriais e mudanças no
financiamento dessas ações, além da criação da Secretaria de Vigilância
da Saúde no Ministério da Saúde. Essas reformulações culminaram na
criação da Política Nacional de Vigilância em Saúde (PNVS) em 2018,
para nortear o planejamento das ações de vigilância nas três esferas de
governo (BRASIL, 2018a).

A Vigilância em Saúde consiste no processo de coleta e produção de


dados e informações de saúde, com o objetivo de apoiar o planejamento
e a organização das ações de saúde no âmbito do SUS, garantindo a
prevenção e o controle de riscos, agravos e doenças (BRASIL, 2018a) e
incorporando todos os serviços de saúde, de todos os níveis de atenção.
Ela engloba as ações de Vigilância Epidemiológica, Vigilância Sanitária,
Vigilância da Saúde do Trabalhador e Vigilância Ambiental.

Para que se alcancem os ideais do SUS e se cumpra o papel da PNVS,


são necessárias novas formas de trabalho, capazes de incluir os
problemas de saúde, o território, a intersetorialidade e as práticas
sanitárias voltadas para a melhoria de saúde da população (GUIMARÃES
et al., 2017). Para isso, devem principalmente considerar a tripla
carga de doenças que marca o cenário epidemiológico brasileiro: a
persistência de doenças agudas, a prevalência de doenças crônicas não
transmissíveis e o impacto das causas externas à saúde da população
(OLIVEIRA; CRUZ, 2015).

O conceito de Vigilância em Saúde está associado ao modelo de atenção


à saúde proposto pelo SUS, pautado na diversidade de contextos, sociais

59
e culturais, característica própria do país. Essa prática também deve
possibilitar a melhora da qualidade de vida da população, articulando
ações de prevenção e promoção da saúde, por meio da formulação de
políticas intersetoriais que permitam essa melhora da qualidade de vida
da população (GUIMARÃES et al., 2017).

Essas ações de vigilância incluem identificar e analisar riscos à saúde,


individuais ou coletivos, relacionados a alimentos; medicamentos,
imunobiológicos e hemoderivados; serviços de saúde; comercialização
e propaganda de alguns produtos; controle de vetores; além de nortear
políticas públicas a partir de normativas e legislações específicas. Em
outras palavras, estão presentes na vida das pessoas e fazem parte,
de diferentes maneiras, da atuação e do cotidiano dos profissionais de
saúde.

A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) e a PNVS se integram


para a superação desses desafios, compartilhando espaços e
responsabilidades por meio do trabalho das equipes de saúde da AB
(BRASIL, 2018). Mais do que apenas notificar doenças e agravos de
notificação compulsória ou participar de campanhas de vacinação,
as equipes da AB devem incorporar no seu processo de trabalho as
diretrizes de saúde dessas duas políticas, em busca de um cuidado
integral que consiga responder às necessidades de saúde da população.

1.1 Vigilância e Atenção Básica

O principal ponto de intersecção entre a Vigilância em Saúde e a AB é o


território. É nesse espaço das relações sociais, políticas e culturais que
se desdobra o processo saúde-doença e o cuidado em saúde. É desse
território que surgem os dados e as informações de saúde necessários
para um planejamento da assistência à saúde e da organização do
trabalho das equipes de AB.

60
Imaginemos que um profissional está organizando uma atividade de
combate à dengue. Quais informações seriam relevantes para essa
atividade? Quais seriam as atividades mais importantes? Quais seriam as
regiões prioritárias?

É comum os serviços de saúde realizarem ações de prevenção e


combate a doenças e agravos de forma sistemática e até padronizada,
sem considerar as particularidades de cada território. Isso acontece em
campanhas de vacinação, em campanhas de prevenção da tuberculose
e da hanseníase, em ações de promoção da saúde e em situações mais
críticas, como em momentos de surto e epidemia. Isso se deve, em
parte, pela baixa autonomia e participação das equipes e da população
no processo de tomada de decisão das ações de saúde.

Pensemos em uma situação. Uma unidade de saúde conhece bem o


território, tem dados demográficos e epidemiológicos confiáveis, mas,
durante o período de campanha de gripe contra a influenza, a gestão
municipal insiste em cobrar de sua equipe que mais doses de vacina
sejam aplicadas, pois o município ainda não atingiu a meta de cobertura
preconizada. Porém, a equipe tem os registros e a informação de
quem deveria ser vacinado e de quem já se vacinou, concluindo que a
cobertura vacinal do território já foi atendida. O contrário acontece com
mais frequência: as equipes (e a gestão municipal) nem sempre sabem
quem são aqueles que faltam ser vacinados; na verdade, sabem apenas
o número de doses de vacina que faltaram ser aplicadas.

Esse exemplo é para trazer para reflexão os desafios que as equipes de


AB precisam superar para atingir os objetivos da PNAB, da PNVS e do
próprio SUS. Um cuidado integral depende das informações de saúde
do território e vice-versa. A Figura 1 demonstra as semelhanças entre
o processo de trabalho da AB e da Vigilância em Saúde, como um ciclo
contínuo e constante de ações. Usando o exemplo da vacinação contra
influenza, essa figura mostra as etapas necessárias para se avaliar a

61
cobertura vacinal de um local, seja a área de abrangência de uma equipe
ou o território de todo um município.

Considerando o perfil epidemiológico da população brasileira, as


equipes de saúde da AB frequentemente se deparam com problemas
de saúde de etiologias e evolução diferentes. O combate às doenças
infecciosas, às causas externas e às doenças crônicas requer estratégias
específicas, mas todas necessitam dessas etapas para serem analisadas,
compreendidas e resolvidas. O papel da AB no contexto da Vigilância em
Saúde consiste no monitoramento da situação de saúde da população
e no seu papel de coordenadora e ordenadora da rede, buscando
reorientar a rede de saúde e transpor as desigualdades sociais e de
acesso ao sistema de saúde (GUIMARÃES et al., 2017).

Figura 1 – Ciclo de ações da Vigilância em Saúde e da Atenção Básica

Fonte: elaborada pela autora.

62
1.2 O controle de doenças transmissíveis na AB

As doenças transmissíveis têm sido constantes na história da


humanidade, sendo o principal foco de ações de saúde pública ao
longo do tempo (OLIVEIRA; CRUZ, 2015). No Brasil, a primeira lista de
notificação compulsória de doenças e agravos foi publicada em 1969,
sendo alterada muitas vezes conforme o cenário epidemiológico e os
avanços nos tratamentos das doenças, com a última atualização em
fevereiro de 2020. Por notificação compulsória, entende-se obrigatória,
e todos os serviços e profissionais de saúde, atuando no SUS ou não,
são obrigados a informar às instâncias competentes quando ocorre a
suspeita ou a confirmação de alguma doença dessa lista.

Embora a lista de notificação compulsória não contenha exclusivamente


doenças transmissíveis, estas são a grande maioria, justamente pela
importância de saúde pública que representam. Algumas são altamente
contagiosas, como as meningites bacterianas; outras altamente letais,
como a raiva humana e a febre maculosa; e outras imunopreveníveis
e quase erradicadas, como a poliomielite e o sarampo. Essa lista de
notificação inclui doenças transmissíveis; agravos, como acidentes e
violência; eventos de saúde pública; e eventos adversos pós-vacinação
(AYRES et al., 2017). Mesmo que a AB não seja o único nível de atenção
responsável pela identificação e pelo controle dessas doenças, é um ator
importante nesse processo.

As doenças e os agravos definidos nessa lista de notificação contemplam


compromissos internacionais, ocorrências de epidemias ou surtos
de doenças, sua magnitude (elevada incidência, prevalência e
mortalidade), seu potencial para disseminação, sua transcendência (suas
consequências imediatas ou tardias) e sua vulnerabilidade (AYRES et al.,
2017).

É na AB que o combate a algumas doenças encontra um espaço


privilegiado de ações de prevenção e controle com bons resultados,

63
como o controle da tuberculose, da hanseníase e da poliomielite,
mesmo que utilizando estratégias diferentes. O combate à poliomielite,
vinculado a campanhas maciças de vacinação desde a década de 1980,
permitiu erradicar a doença no país; a detecção precoce da hanseníase
na AB contribuiu para a diminuição da sua prevalência no território
nacional (TEIXEIRA et al., 2018b); e o combate da tuberculose, com o
seu tratamento supervisionado e a busca ativa no território, incluiu a
AB como um dos pilares para a redução de casos no território nacional
(BRASIL, 2019).

Além dessas doenças, a ocorrência de epidemias e surtos de doenças


infecciosas emergentes e reemergentes também exige ações de
vigilância por parte das equipes de AB, como as epidemias frequentes
de dengue; as recentes epidemias de febre amarela e os surtos de
sarampo; o surto de Zika e o nascimento de bebês com microcefalia; e,
mais recentemente, a pandemia do vírus Sars-CoV-2.

O controle dessas emergências sanitárias precisa considerar os


diferentes aspectos que se relacionam com cada uma dessas doenças,
como as desigualdades sociais, o controle de vetores, a oferta de
vacinas, o acesso a serviços de saúde e o deslocamento das pessoas
pelos territórios, tanto local quanto globalmente. O desafio para as
equipes da AB são enormes, uma vez que os problemas (e às vezes as
epidemias) se sobrepõem.

Algumas atitudes são essenciais para que as equipes da AB consigam


atuar no controle das doenças transmissíveis, as quais devem ser
praticadas de maneira contínua, como mostra a figura a seguir.

64
Figura 2 – Atitudes da AB para garantir a Vigilância em Saúde

Fonte: elaborada pela autora.

Conhecer o território: as equipes na AB dispõem de muitas


informações de saúde, mas nem sempre fazem o melhor uso delas.
Para conhecer o território, podem ser utilizados os dados do cadastro
da população e os demais dados oficiais, como o censo populacional.
Ter essas informações sistematizadas é necessário para não apenas
conhecer, mas também para identificar situações de saúde atípicas e
intervir da melhor maneira possível. Mapear os casos de dengue, por
exemplo, permite conhecer em que região eles se concentram, dando
subsídios para uma melhor tomada de decisão da equipe.

Identificar e intervir nos problemas: continuando com o exemplo da


dengue, um território apresentar dez casos da doença em um único
quarteirão é diferente de apresentar dez casos em vários quarteirões.
As equipes de saúde devem incorporar na sua rotina de trabalho a
busca ativa de casos e algumas ferramentas da epidemiologia, como
saber calcular a incidência de determinado agravo, a sua letalidade e

65
se afeta mais crianças ou idosos, por exemplo. Além dos protocolos e
das condutas clínicas para tratar a dengue, a tuberculose ou o Covid, as
equipes precisam estar atentas para identificar os problemas de saúde e
intervir de maneira coletiva, quando necessário.

Avaliar a situação de saúde e os resultados: as equipes devem


organizar a oferta de cuidados conforme as necessidades de saúde da
população, devendo, assim, estarem aptas a avaliar a situação de saúde
do território e avaliar o impacto das ações realizadas, por meio dos seus
resultados. Se a equipe detecta casos de varicela em uma creche, por
exemplo, além das orientações de saúde necessárias à equipe da creche
e aos pais, também deve monitorar as demais crianças para avaliar se
as medidas tomadas surtiram o efeito desejado. Isso inclui vacinação de
bloqueio, busca ativa de casos com as famílias e até a reorganização da
agenda de serviços, para garantir o acesso nessas situações específicas.

Integrar (o cuidado e as ações intersetoriais): o cuidado da AB é


parte de uma engrenagem maior, que é o SUS. Como coordenadora do
cuidado e ordenadora da Rede de Atenção à Saúde, a AB é a principal
responsável por articular ações com os demais serviços de saúde e
com outros atores sociais, como organizações não governamentais,
defesa civil e demais atores políticos. O diagnóstico de uma meningite
bacteriana, por exemplo, pode ser feito em uma unidade hospitalar,
mas é AB quem vai avaliar os comunicantes, ir ao domicílio e ficar atenta
ao surgimento de novos casos. Da mesma forma, a AB pode fazer o
diagnóstico de HIV de uma pessoa, mas continua sendo responsável pela
integralidade do seu cuidado mesmo que essa pessoa seja encaminhada
a um serviço especializado.

Para assumir o protagonismo da Vigilância em Saúde no que compete


à AB, as equipes de saúde devem se apropriar de conhecimentos
e habilidades voltados para esse objetivo. Aqui, são incluídos os
protocolos e as diretrizes clínicas, importantes para o diagnóstico e o
tratamento dessas doenças e desses agravos, os sistemas de informação

66
que já foram citados e os conhecimentos da Epidemiologia (como
cálculos de taxas de incidência, prevalência e mortalidade), para a
melhor compreensão da situação de saúde das pessoas.

1.3 As Vigilâncias

A Vigilância em Saúde compreende muitas ações, com atribuições


específicas para cada nível de atenção de saúde, trazendo também
vigilâncias específicas. Para compreender melhor as especificidades de
cada tipo de vigilância, vejamos o quadro a seguir:

Quadro 1 – Especificidades dos tipos de Vigilância


Tipo de vigilância Definição Principais ações
Vigilância Processo contínuo - Notificação compulsória.
Epidemiológica de coleta, análise,
interpretação e divulgação - Investigação epidemiológica.

de informações sobre a
- Resposta às emergências em
ocorrência e a distribuição
Saúde Pública.
de doenças e de agravos da
população.
- Rede de Frio de imunobiológicos.

- Registro e monitoramento
de doenças crônicas não
transmissíveis.

67
Vigilância Sanitária Controlar e fiscalizar - Normatizar, controlar e fiscalizar
procedimentos, produtos produtos, substâncias e serviços.
e substâncias de interesse
para a saúde. - Estabelecer normas e padrões
para fabricação, consumo e oferta
de serviços de interesse para a
saúde.

- Cadastrar e licenciar serviços de


interesse para a saúde.

- Controlar, fiscalizar e
acompanhar a propaganda
e a publicidade de produtos
submetidos à regulação sanitária.

Vigilância da Saúde do Detectar, conhecer - Notificação de acidentes de


Trabalhador e analisar os fatores trabalho.
determinantes e
condicionantes dos agravos - Exposição de trabalhadores a
à saúde relacionados aos materiais biológicos.

processos e ambientes de
- Atenção à Saúde do Trabalhador
trabalho.
por meio dos Centro de Referência
da Saúde do Trabalhador
(CERESTs), incluindo a exposição
a agrotóxicos, lesões por
esforço repetitivo e distúrbios
osteomusculares relacionados ao
trabalho.

- Fiscalização de ambientes de
trabalho, incluindo o combate ao
trabalho infantil.

68
Vigilância Ambiental Analisar e atuar nos fatores Vigilância:
ambientais de risco à saúde
da população - Da qualidade da água para
consumo humano.

- De populações expostas a
contaminantes químicos.

- Em saúde ambiental das


populações expostas à poluição
atmosférica.

- Em saúde ambiental associada a


fatores físicos.

- Em saúde ambiental dos riscos


associados a desastres.

Fonte: adaptado de Gondim, Christófaro e Miyashiro (2017).

As relações de cada uma dessas vigilâncias com o trabalho das equipes


da AB são muito abrangentes. Considerando que todas constituem
a PNVS, as responsabilidades são compartilhadas por cada esfera de
governo e pelos serviços de saúde. O ponto em comum delas é que
todas atuam a partir de um território, sob a responsabilidade quase que
direta das equipes de AB.

A AB está inserida na Vigilância em Saúde e vice-versa. Seja nas ações


de vacinação, na notificação de doenças, no acompanhamento de
trabalhadores rurais ou na detecção precoce de contaminação de um
ambiente, as equipes de saúde da AB integram uma rede de assistência
à saúde em que cada uma das especificidades e cada um dos objetivos
da Vigilância em Saúde se encontram. Garantir o cuidado em rede,
considerando os princípios de um cuidado integral e o conceito
ampliado do processo de saúde e doença que norteiam o SUS, ainda

69
é um grande desafio para a maior parte das equipes de saúde no
País, sendo por isso importante que cada profissional da AB assuma o
protagonismo nessa integração, a fim de alcançar esses objetivos.

Referências Bibliográficas
AYRES, A. R. G. et al. Vigilância Epidemiológica. In: GONDIM, G. M. M.; CHRISTÓFARO,
M. A. C; MIYASHIRO, G. M. (org.). Técnico de vigilância em saúde: contexto e
identidade. Rio de Janeiro: EPSJV, 2017. p. 157-192.
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2. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2019. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.
br/bvs/publicacoes/manual_recomendacoes_controle_tuberculose_brasil_2_ed.pdf.
Acesso em: 5 out. 2020.
BRASIL. Resolução MS/CNS n. 588, de 12 de julho de 2018. Brasília: Ministério
da Saúde, 2018. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2018/
Reso588.pdf. Acesso em: 27 jul. 2020.
BRASIL. Portaria n. 1.378, de 9 de julho de 2013. Regulamenta as
responsabilidades e define diretrizes para execução e financiamento das ações de
Vigilância em Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2013. Disponível em: https://
bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt1378_09_07_2013.html. Acesso em:
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GONDIM, G. M. M.; CHRISTÓFARO, M. A. C.; MIYASHIRO, G. M. (org.). Técnico de
vigilância em saúde: contexto e identidade. Rio de Janeiro: EPSJV, 2017.
GUIMARÃES, R. M. et al. Os desafios para a formulação, implantação e
implementação da Política Nacional de Vigilância em Saúde. Ciência & Saúde
Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 5, p. 1407-1416, 2017. Disponível em: https://www.
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OLIVEIRA, C. M.; CRUZ, M. M. Sistema de Vigilância em Saúde no Brasil: avanços
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TEIXEIRA, M. G. et al. Vigilância em Saúde no SUS – construção, efeitos e
perspectivas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p. 1811-

70
1818, 2018b. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S1413-81232018000601811. Acesso em: 16 jul. 2020.

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Bons estudos!

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