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Revista da

SOCIEDADE DE
CARDIOLOGIA DO
ESTADO DO RIO
Artigo GRANDE DO SUL

Princípios de mudanças comportamentais e manejo

dos fatores de risco relacionados ao estilo de vida


Salvador Sebastião Ramos

Especialista em Cardiologia pela SBC


Especialista em Medicina do Esporte pela SBME
Médico do Serviço de Cardiologia do Hospital Mãe de Deus e da Prevencor

Endereço para contato:


Endereço: Rua Costa, 30 – conj. 403 – fone: 32302677
e-mail: [email protected]

INTRODUÇÃO tem adotado uma perspectiva de motivação como algo


relativamente imutável, ou seja, o paciente está motivado para a
Princípios de mudanças comportamentais
mudança e então pode ser ajudado, ou não está motivado, portanto
O estilo de vida tem sido associado com as
não é possível a mudança. O enfoque atual não é assim tão rígido.
causas de várias doenças, destacando-se, entre elas, as
Uma técnica, conhecida como Entrevista Motivacional, difundida de
cardiovasculares.
forma ampla na Europa e nos Estados Unidos, e mais recentemente
Várias teorias tentam explicar a influência de
no Brasil, postula que a aderência à mudança depende de sua
diferentes variáveis, como crenças e valores individuais, na tomada
1 motivação, e que essa pode ser modificada ao longo do tempo.
de determinadas atitudes comportamentais .
A Entrevista Motivacional representa, na
O objetivo de auxiliar o paciente na mudança de
verdade, uma intervenção terapêutica que agrega abordagens já
comportamentos, embasado em evidências científicas de clara e
existentes, como a terapia centrada no paciente e terapias breves,
importante influência, tanto na prevenção quanto na recuperação de
acrescentando alguns conceitos novos, e que têm como objetivo
doenças cardiovasculares já estabelecidas, representa um dos
promover a mudança de comportamento explorando sua
grandes desafios ao profissional da saúde. O entendimento deste
ambivalência 2. A ambivalência representa um conflito sobre uma
enfoque complementa, nas consultas, o fornecimento de
decisão, de um lado querendo fazer algo a respeito do seu
informações sobre o risco associado ao comportamento e à
comportamento, porém, ao mesmo tempo, não querendo, condição
prescrição de medicamentos.
difícil de resolver, pois cada lado do conflito tem seus benefícios e
Para o adequado manejo destas questões, não
custos. Ao invés de serem propostas soluções ou conselhos, são
raro, o acompanhamento por profissionais como psicólogos e
oferecidos recursos de crítica que propiciem o espaço para uma
psiquiatras está indicado. Entretanto, o conhecimento de alguns
mudança natural. São buscadas razões para a transformação no
princípios básicos relacionados às mudanças comportamentais é
próprio paciente, e, ao invés de impor ou persuadi-lo, orientando-o a
fundamental aos profissionais da saúde envolvidos no atendimento
convencer-se sobre a necessidade da mudança 3.
individual do paciente, auxiliando no entendimento da aderência ou
A Entrevista Motivacional baseia-se em dois conceitos. O
não e dos resultados obtidos com o tratamento.
da ambivalência, já mencionado, e o da prontidão para mudar.
A tomada de decisões para mudanças é
influenciada pela motivação do paciente. Em geral, a prática clínica

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Prochaska e DiClemente desenvolveram uma continentes, em 262 centros, incluindo 15.152 casos e 14.820
abordagem, conhecida como modelo transteórico, descrevendo a controles. Dos nove fatores identificados no estudo, dislipidemias,
prontidão do indivíduo para mudar, e que procura classificá-lo em tabagismo, hipertensão, diabetes, obesidade abdominal e fatores
diferentes estágios. Esse modelo baseia-se na premissa de que a psicossociais aumentaram o risco, enquanto consumo de
mudança comportamental é um processo e que as pessoas têm frutas/vegetais, atividade física regular e consumo moderado de
diferentes níveis de motivação/prontidão para se modificar. Esses bebidas alcoólicas reduziram o risco, sendo de menor impacto a
estágios recebem diferentes designações e apresentam ingestão de álcool. Estes achados foram observados em ambos os
características próprias. São eles: sexos, em todas as idades e em todas as regiões. Dislipidemias e
Pré-contemplação: não há qualquer intenção de mudar; tabagismo foram responsáveis por mais de dois terços do risco. Os
não encara o seu comportamento como um problema; ocorre, demais fatores, também associados de forma significativa,
portanto, uma “resistência” ou “negação”; nesta fase, o paciente apresentaram algumas diferenças nas diversas regiões geográficas.
deve ser estimulado a pensar na mudança, devendo receber Uma análise mais detalhada permite observar
informações claras e objetivas sobre os benefícios. que alguns destes itens estão ligados diretamente ao estilo de vida
Contemplação: há conscientização sobre os riscos do (tabagismo, ingestão de frutas/vegetais, atividade física, consumo
comportamento; considera a mudança, mas ao mesmo tempo a de álcool com moderação), sendo que os demais, além de provável
rejeita (ambivalência); é o momento de trabalhar os motivos que o componente genético/ambiental, também são influenciados por
levaram a adotar o comportamento e estabelecer metas de como comportamentos. Como citado, o risco atribuível a estes fatores foi
poderá vencê-los; considerando que esta fase pode ser curta ou de 90%. Quando incluído o histórico familiar, o risco atribuível
durar vários anos, sendo que alguns pacientes nunca progridem aumentou de maneira discreta, passando para 91%, salientando
além deste estágio, a insistência pelo profissional da saúde deve ainda mais a importância do estilo de vida no contexto da
ser retomada nas consultas subsequentes. prevenção da DAC.
Preparação: quando aceita, está pronto para mudar; Considerando os riscos observados com
nessa fase, deve ser encorajado a marcar uma data para a tabagismo, ingestão de frutas/vegetais e atividade física, os autores
mudança; a necessidade ou não de algum suporte extra deve aqui colocam, na discussão do estudo, que não fumar, ingerir
ser considerada. regularmente frutas/vegetais e praticar exercícios, poderia levar à
Ação: o paciente toma a atitude que o leva a realizar a redução de 80% do risco relativo para o IAM. Salientam também
transformação; os primeiros dias requerem decisão firme, que os achados são semelhantes ao do US Nurses Health Study 6,
comportamento positivo, em especial observando as recompensas no qual um estilo de vida saudável poderia evitar mais do que três
da mudança. quartos do risco de DAC e AVC na mulher.
Manutenção: nessa fase o paciente deve ser monitorado Devido à limitação de espaço, faremos breve
quanto aos progressos e ás dificuldades, sendo fundamental a abordagem sobre o manejo dos fatores de risco diretamente ligados
adoção de estratégias que visam prevenir recaídas; manter a ao estilo de vida (tabagismo, alimentação inadequada e
mudança, com frequência, não é um processo fácil, podendo sedentarismo), porém indicando fontes complementares
retornar a qualquer uma das fases anteriores; alguns pacientes (referências) que possibilitem aprofundar o tema.
podem comportar-se de forma semelhante a uma porta giratória, Em relação ao tabagismo, as Diretrizes para
com idas (progresso) e vindas (recaídas); deve-se estar a par de cessação do tabagismo – 2008, da Sociedade Brasileira de
que alguns apresentam várias recaídas até que a mudança se Pneumologia e Tisiologia 7, constituem uma ferramenta atualizada e
estabeleça de forma definitiva. abrangente para auxiliar o profissional de saúde no manejo do
tabagista. A publicação destaca que a dependência do tabaco é
Manejo dos fatores de risco relacionados ao estilo de cada vez mais reconhecida como condição crônica, podendo
vida necessitar de repetidas intervenções. Evidências recentes também
No estudo INTERHEART 5, cujo objetivo foi são apresentadas, embasando o papel fundamental do
avaliar fatores de risco associados à doença arterial coronariana em aconselhamento, tanto em intervenção isolada ou em grupo, quanto
populações com histórico étnico, estilos de vida e níveis sócio- associado ao tratamento farmacológico. A escolha das orientações
econômicos diversos, nove fatores de risco foram responsáveis por a serem fornecidas pelo profissional deve levar em consideração os
mais de 90% do risco atribuíveis à incidência de um primeiro IAM. recursos disponíveis no local de atuação e as circunstâncias
Foi um estudo do tipo caso-controle realizado em 52 países dos 5 específicas do paciente.

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A primeira parte das diretrizes aborda a avaliação global quanto em grupo, mesmo quando é necessário o tratamento
do tabagista. É destacada a avaliação do grau de dependência à medicamentoso.
nicotina, sendo recomendado o Fagerström test for nicotine O uso de medicamentos constitui recurso adicional
8
dependence , questionário de seis perguntas (quadro 1). Soma quando a abordagem comportamental é insuficiente pela presença
superior a seis pontos indica ser provável o paciente ter desconforto de elevado grau de dependência à nicotina. Os fármacos com
9
significativo ao deixar de fumar (síndrome de abstinência) . evidências de eficácia são classificados em nicotínicos e não-
Também é fundamental a avaliação do grau de motivação, podendo nicotínicos. A terapia de reposição de nicotina (adesivos
ser utilizado o modelo transteórico de Prochaska e DiClemente, em transdérmicos, goma de mascar, spray nasal, pastilhas), a
publicação focada no tabagista 10. bupropiona e a vareniclina são consideradas de primeira linha,
A Entrevista Motivacional, construída em um cenário enquanto nortriptilina e clonidina são fármacos de segunda linha no
comunicativo entre paciente e profissional, cria um ambiente tratamento 7.
favorável para a verbalização de conflitos, medos e expectativas, Estratégias para cessação do tabagismo no adulto e
possibilitando ajudar na abordagem da ambivalência relativa ao peculiaridades da abordagem em populações especiais são
11
tabagismo e facilitando mudanças . apresentadas e discutidas em revisão sistemática também sugerida
Quadro 1 – Teste de Fagerström para a dependência à para leitura complementar 12.
nicotina. Outro fator importante relacionado ao estilo de vida é uma
1. Quanto tempo após acordar você fuma seu primeiro cigarro? alimentação inadequada, a qual influencia e aumenta a prevalência
(3) nos primeiros 5 minutos de fatores de risco como a obesidade, as dislipidemias, o diabetes e
(2) de 6 a 30 minutos a hipertensão arterial. Dados alarmantes, em especial relacionados
(1) de 31 a 60 minutos ao aumento da obesidade e todo o contexto do risco
(0) mais de 60 minutos cardiometabólico a ela associado, representam hoje um grande
2. Você acha difícil não fumar em lugares proibidos? desafio na prevenção e tratamento das doenças cardiovasculares.
(1) sim O estudo multicêntrico europeu conhecido como EUROASPIRE,
(0) não que avalia de maneira periódica a prevalência de fatores de risco
3. Qual o cigarro do dia que traz mais satisfação? modificáveis em pacientes com DAC, já estabelecida (pós IAM,
(1) o primeiro da manhã síndromes isquêmicas agudas ou revascularização miocárdica
(0) os outros cirúrgica ou por cateter), teve seus dados mais atuais recentemente
4. Quantos cigarros você fuma por dia? publicados. Comparando os dados do EUROASPIRE I (período de
(0) menos de 10 19951996, com 3.180 pacientes), II (período de 1999-2000, com
(1) 11 a 20 2.975 pacientes) e III (período de 2006-2007, com 2.392 pacientes),
(2) 21 a 30 observou-se que fatores de risco como tabagismo e hipertensão
(3) mais de 30 arterial permaneceram praticamente inalterados. Em relação à
5. Você fuma mais frequentemente pela manhã? hipercolesterolemia, observou-se importante redução da
(1) sim prevalência, representada por 94,5% no I, 76,7%, no II e 46,2%, no
(0) não III, refletindo, na opinião de vários autores, o aumento do uso e da
6. Você fuma mesmo doente, quando precisa ficar acamado a eficácia das estatinas. Por outro lado, um dado preocupante esteve
maior parte do tempo? relacionado ao aumento significativo da prevalência de obesidade
(1) sim (IMC > 30 kg/m2), representada por 25% no I, 32,6%, no II e 38%,
(0) não no III, acompanhado pelo aumento da prevalência de diabetes
(17,4% no I, 20,1% no II e 28% no III) 13.
Total: 0-2 = muito baixa; 3-4 = baixa; 5 = média; 6-7 = elevada; 8- No manejo da alimentação associada ao risco
10 = muito elevada cardiovascular, sugerimos leitura da abrangente publicação do
Grupo de Estudos em Nutrição da SOCERGS, e convidados, na
A segunda parte da diretriz sobre a abordagem revista referente a setembro/outubro/novembro/dezembro de 2009,
terapêutica salienta que os métodos baseados na terapia cujo título é Nutrição e Cardiologia 14.
comportamental cognitiva são fundamentais no manejo do fumante Em relação ao sedentarismo, a primeira etapa consiste na
em todas as situações clínicas, tanto no atendimento individual adequada avaliação pré-participação para a prática de exercícios,

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abordada em outro capítulo desta revista, sendo importante para a 7. Reichert J, Araújo AJ, Gonçalves CMC, et al. Diretrizes para
individualização da prescrição e na prevenção de riscos. Quanto ao cessação do tabagismo da SBPT (Sociedade Brasileira de
manejo, mais especificamente sobre a prescrição, alguns elementos Pneumologia e Tisiologia) – 2008. J Bras Pneumol
necessitam ser informados de forma clara ao paciente, como a 2008;34(10):845-80.
escolha do tipo de exercício, a intensidade, a duração da sessão, a
frequência semanal e o ritmo de progressão. Um mínimo de 8. Heatherton TF, Kozlowski LT, Frecker RC, Fagerström KO. The
atividades predominantemente aeróbicas, de intensidade Fagerström Test for Nicotine Dependence: a revision of the
moderada, de 150 minutos semanais, tem sido recomendada em Fagerström Tolerance Questionnaire. Br J Addict 1991;86(9):1119-
15
artigos de revisão com base em publicações de instituições como 27.
16
a American Heart Association . Exercícios de resistência muscular
localizada (musculação, por exemplo), 2 a 3 vezes por semana, 9. Halty LS, Hüttner MD, Netto IC, Santos VA, Martins G. Análise da
também devem ser incluídos no programa, agregando benefícios utilização do questionário de tolerância de Fagerström (QTF) como
significativos e com detalhamento da prescrição sendo encontrado instrumento de medida da dependência nicotínica. J Pneumol
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em publicações específicas . As indicações e contraindicações 2002;28(4):180-6.
para portadores de DAC, pós-IAM, revascularizados e outros,
apresentam algumas características próprias que devem ser 10. DiClemente CC, Prochaska JO. Self-change and therapy
observadas 18. change of smoking behavior: a comparison of processes of change
Considerando a saúde/doença cardiovascular não apenas in cessation and maintenance. Addict Behav 1982;7(2):133-42.
como um produto da estrutura individual, fica evidente a importância
do conhecimento dos princípios básicos de mudanças 11. Fuentes-Pila JM, Calatayud P, López E, Castañeda B. La
comportamentais para o adequado manejo dos fatores de risco entrevista motivacional: llave del proceso de cambio em la
relacionados ao estilo de vida. dependência nicotin-tabáquica. Transtornos Adictivos
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