• Carolina Juliano
Atualizado em
Menina andando de skate (Foto: Getty Images)

Menina andando de skate (Foto: Getty Images)

O simples mencionar da palavra “gênero” provoca sentimentos que vão da curiosidade à repulsa, passando pelo medo e preconceito. Todos esses sentimentos saem de um mesmo lugar: a desinformação. Falar sobre igualdade de gênero não é o mesmo que discutir identidade de gênero e muito menos orientação sexual. Nenhuma dessas discussões tem a ver com ideologia. Entender os conceitos significa compreender a formação de nossos filhos como pessoas, como sujeitos com identidade e personalidade.

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Os conceitos podem confundir

Entender que meninos e meninas podem ser corajosos, fortes, sensíveis e emotivos, que podem chorar livremente, que ambos podem se vestir como melhor se sentem e brincar com o brinquedo com que mais se identificam. E deixá-los livres para que manifestem esses sentimentos e comportamentos, segundo especialistas, vai fazer com que eles sintam que são amados pelo que são, e não pelo que os pais querem que sejam e, assim, se desenvolvam plenamente.

E mais: segundo um estudo desenvolvido por pesquisadores da Universidade de Uppala, na Suécia, publicado no Journal of Experimental Child Psychology, crianças que crescem em ambiente sem distinção de gênero como determinante para suas atividades e atitudes, cujas práticas incluem evitar diferenciação de brinquedos, roupas, são menos influenciadas pelos estereótipos e crescem mais abertas e confiantes para desempenhar qualquer função na sociedade.

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Sobre dúvidas e receios


Se olharmos para a geração dos novos pais, os millennials, e compararmos com as gerações anteriores, é possível perceber uma maior clareza no que diz respeito à igualdade de gêneros e estereótipos, porque é uma geração que tem mais acesso à informação e está exposta a uma maior diversidade.

“A geração de pais de hoje tem mais abertura e informação, portanto permite uma fluidez e espontaneidade muito maiores nos papéis e na expressão de gênero de seus filhos”, diz a neuropsicóloga Ana Del Nero, especialista em gênero de São Paulo.

No entanto, o sociólogo André de Paula Ferreira, da Universidade Federal Fluminense, diz que a nossa sociedade ainda é estruturalmente desigual e vive um momento de conservadorismo muito grande. “Há uma diversidade maior, parte dela é o mercado que tenta atender com produtos que fogem dos tradicionais para meninos e meninas. Tudo isso é resultado de um movimento, de todo um processo de mudança social – grande parte devemos ao feminismo, mas é uma luta constante, contínua e permanente. Tenho amigos de 30 anos que não aceitam o fato de eu ter a guarda compartilhada do meu filho de 4 anos, por exemplo.”

Lidar com o “diferente do modelo tradicional” não é simples para muitas pessoas. Em uma cidade do interior de São Paulo, um pai de 43 anos, que prefere não se identificar, admite que não gosta que o filho, de 7, brinque com bonecos da irmã mais nova, de 4. Na casa deles, os brinquedos são bem separados por gênero, o menino tem bolas, carrinhos, heróis, e a menina, bonecas e casinhas. Para ele, muita coisa se aprende pela repetição e observação, e é preciso dar exemplos masculinos para os meninos, e femininos para as meninas, para que eles tenham uma direção.

A mãe, de 41, partilha da mesma opinião e não aprova nem que o filho jogue games tidos como femininos que uma prima da mesma idade tem em seu tablet. Ela acredita que games de lutas ou carros são “mais apropriados” para o filho. O casal tem dificuldade em digerir tantas informações e nomenclaturas novas sobre gênero, e toma a realidade que viveram em suas infâncias como exemplo. “Na nossa época não existia nada disso”, dizem.

“Quando nosso(a) filho(a) nasce e é identificado o seu sexo biológico pelo médico, imediatamente atribuímos a ele ou ela o gênero correspondente. É uma menina ou é um menino. E projetamos neles uma série de expectativas e desejos a que nós, pais, gostaríamos que correspondessem – a começar pelo quadro na porta da maternidade, muitos já definem ali que aquele ser é um menino e vai torcer para o time do pai, ou que aquela menina vai ser uma bailarina”, explica o psiquiatra Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (AMTIGOS), do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP).

Prova disso é o que acontece nos atendimentos no AMTIGOS. O ambulatório funciona há dez anos e vem sendo um centro importante de informação, orientação e tratamento psicológico para pais que identificam comportamentos em seus filhos que destoam do que idealizaram para eles, e para crianças que, de fato, apresentam algum distúrbio. Hoje, o ambulatório atende 90 crianças, 300 adolescentes e há uma lista de espera de 140 famílias.

Porém, cerca de 20% das que procuram o AMTIGOS não passam da triagem, porque o comportamento apresentado não caracteriza nenhum distúrbio, mas ainda assim é visto como problemático pelos pais. Meninas que não querem usar laço no cabelo nem vestido e meninos que se interessam por brincar de boneca são alguns dos “motivos” que os levam a buscar a instituição.

Segundo a neuropsicóloga Ana Del Nero, quando a criança não tem liberdade para ser autêntica e espontânea ela se fecha e se retrai, porque sente que não é digna do amor de seus pais – e isso vai se perpetuar em outros relacionamentos. “Ela pode acreditar que sua essência é errada e má, e vai construindo uma personalidade que não tem autoestima, que não consegue se relacionar com os outros, porque já tem a expectativa de não ser aceita.”

É possível criar crianças sem gênero


Nos Estados Unidos, há um movimento recente de pais que procuram criar seus filhos de forma neutra. A criança nasce e apenas eles sabem qual é o seu sexo biológico. Dão a ela um nome neutro e a criam com roupas e brinquedos variados, atividades e brincadeiras livres.

O psiquiatra Alexandre Saadeh afirma que procurar uma neutralidade negando que existe uma diferença biológica pode deixar o pequeno sem parâmetros, o que pode prejudicar o seu desenvolvimento. A psicóloga Ana Del Nero concorda, e diz que negar que há diferenças é negar a realidade. “É como ignorar que existem pessoas com pele mais clara e outras com pele mais escura. É complicado porque, pensando em uma criança pequena, isso pode fazer com que ela duvide da própria percepção.”

Mais clareza e leveza


Na casa da jornalista Carolina Baggio, 43, quem joga futebol é Nina, 9. Bento, 6, nunca se interessou pelo esporte. “Ela ainda chama atenção pelo fato de realmente curtir futebol. Para nós, é nítido que ela se diverte, e isso é o que importa”, conta.

Carolina faz parte dos pais que optam por criar os filhos com direito à escolha de roupas e brinquedos e livres para se expressarem. Em geral, querem dar para eles uma liberdade que não tiveram em sua própria infância. “Quando eu era pequena fui chamada de ‘Ana Machadão’ (uma referência a uma personagem de novela dos anos 80 que era uma mecânica de carros) por querer lutar judô”, lembra.

A jornalista reforça que buscou, desde sempre, não colocar rótulos com os filhos, essa ideia de que roupa ou brinquedo tem gênero. “Nesse sentido, as escolhas da Nina, quando fogem do padrão, como o futebol, são mais leves, pois recebem nosso apoio e afeto. Acho que faltou isso na minha infância, essa tranquilidade de simplesmente escolher o que eu gostava. Eu acabava fazendo, mas no fim me sentia ‘inadequada’. Brinco que cada vez que um pai ou mãe fala ‘isso é de menino ou de menina’ no parquinho, morre uma estrelinha no céu.”

“Sempre digo que brinquedo não tem sexo. Brinquedo é para brincar e fala muito sobre as expectativas das crianças, de quem elas são, e dos papéis sociais onde elas vão se incluir. Elas se expressam pela brincadeira”, diz Saadeh. “E as definições do que é masculino e feminino estão mudando, antigamente não tinha time de futebol feminino. As crianças gostam de experimentar tudo e nenhum brinquedo vai redefinir o que ela é de nascimento.”

COMEÇA EM CASA, NA ESCOLA...
Mas deixar o filho usar um vestido e depois repreendê-lo com uma frase como “chora igual uma menina” não colabora para criar um ambiente de igualdade saudável. “A coerência entre o que pensa e como age é o mais difícil, mas é o mais importante porque as crianças aprendem pelo exemplo. No fim, fica para elas o que o pai ou a mãe fez, e não o que falou”, diz Ana Del Nero.

Para a neuropsicóloga, o fato de vivermos numa sociedade heteronormativa, bastante machista e patriarcal, faz com que a busca por essa coerência seja um exercício constante. “Somos atravessados por isso o tempo inteiro, faz parte da nossa subjetividade. É muito difícil encontrar alguém livre desse imaginário do que é um menino ou uma menina e do que é esperado deles.  Mas reconhecer que errou e pedir desculpas é dar um ótimo exemplo, dizer que pensava assim antes, mas aprendeu que aquilo não faz mais sentido. Isso também é ser coerente. Tudo está sempre em transformação.”

Na escola que o educador e colunista da CRESCER Marcelo Cunha Bueno dirige, os alunos do quarto ano aprenem História pela perspectiva da mulher. “Até hoje, sempre estudamos sob o foco do homem, do guerreiro, do caçador, do imperador. Aprendendo sob a ótica da mulher construímos uma subjetividade”, explica.

Uma confirmação do quanto isso é importante é o resultado de uma pesquisa realizada pela Universidade de Nova York, nos Estados Unidos, publicada na revista Science. Ela revelou que meninas de 6 anos, influenciadas pelos estereótipos de gênero, acreditam que brilhantismo é uma característica masculina. Os pesquisadores analisaram o comportamento de 400 crianças diante de uma série de exercícios e testes, e constataram que, ao contrário dos meninos, elas não acreditam que seu bom desempenho escolar esteja relacionado a habilidades inatas.

“O fato de essas ideias estarem presentes em uma idade tão precoce mostra que haverá muito tempo para afetar as trajetórias educacionais de meninas e meninos”, disse o professor Andrei Cimpian, coautor da pesquisa. Além de iniciativas como a da escola de Bueno, há práticas cotidianas que qualquer um pode adotar e que ajudam a desmistificar esse lugar em que as mulheres e os homens se enxergam na sociedade. As ações podem começar na divisão das tarefas de casa, igualmente, entre todos, já que a vivência é a melhor prática. Pai e mãe cozinham, lavam a louça e cuidam da casa e dos filhos. E as tarefas são repartidas com as crianças.

Conversar sobre a busca pela igualdade de gênero também sempre abre portas, desde falar sobre sentimentos, salientando que qualquer um pode se sentir triste, sensível e chorar, até conversas mais elaboradas sobre mulheres fortes, importantes e de destaque em diversas áreas, como as ativistas Greta Thunberg e Malala, as cientistas brasileiras que sequenciaram o genoma do coronavírus recentemente, mulheres do esporte, da política – é positivo ter em mente a inclusão dessas personagens nas conversas do dia a dia. Exemplificar que elas e eles podem e devem ocupar o lugar que quiserem na sociedade. Mulheres podem ser cientistas, homens podem ser cabeleireiros.

Livre para experimentar
Nuno tinha 2 anos quando ganhou um vestido e adorou. A mãe, a professora Helena Weisz, 45, deixou que o menino usasse a roupa para ir à escola, mas não sem se preocupar que ele sofresse julgamentos. “Antes de sair, disse a ele que outras pessoas poderiam não entender e dizer que ele estava usando roupas de menina, mas ele não se importou e foi feliz da vida”, conta.

O menino, que hoje tem 6 anos, também gostava de peças cor-de-rosa, mas, aos 3, mudou completamente e não quis mais usar nada que identificasse como “de menina”. “Não sei até que ponto conseguimos criar filhos livres das imposições de gênero. Entendo que a identidade de gênero ocorre quando eles vão crescendo, e sempre deixei o Nuno livre, mas não sei se ele
se identificou com o gênero masculino ou se cedeu à pressão que existe na sociedade.”

A neuropsicóloga Ana Del Nero diz que o mais importante é os pais serem coerentes e fazerem aquilo que sentem, tranquilos e seguros nessas situações. “Porque se você tem um filho que quer
ir à festa do amigo vestido de princesa Elsa, mas você vive numa cidade conservadora e sabe que ele vai ser julgado e talvez excluído pelos amigos, será que você se sente seguro para enfrentar isso com ele?”

RESSIGNIFICAR...
Quando o engenheiro Eden Castelo Branco, 41 anos, e seu companheiro, o relações-públicas Everton Schultz, 42, decidiram adotar um menino também pesou a vontade de oferecer a ele o respeito e a liberdade que não puderam ter em sua infância. Depois de 15 anos de união, o casal iniciou o processo para ser pai de um menino. “Eu queria um filho para, de alguma forma, revisitar a minha infância e poder proporcionar a ele o apoio que não tive”, conta Eden. “Cresci ouvindo que menino não pode chorar, não pode ser sensível. E eu era muito emotivo e fui endurecendo na minha adolescência.”

O Henrique chegou para o casal há um ano, com quase 5 anos. No abrigo em que ele estava, trabalhavam com as crianças as diferentes concepções familiares. Com ajuda de um livro, os psicólogos mostravam aos pequenos os modelos de família que existem, como a monoparental, com uma mãe, ou com um pai, ou famílias com duas mães, dois pais e a tradicional com pai e mãe. O Henrique desde o início pediu uma com dois pais.

“Mas estão tão impregnados na sociedade os diferentes papéis de homens e mulheres, que no dia em que ele saiu do abrigo, quando viramos a esquina ele comentou: ‘eu não vou ter mamãe, né?’”, conta Eden. “Dissemos que não, porque tinha escolhido ter dois pais e perguntei o que a mãe faz por uma criança. O Henrique disse ‘cuida’. E quem cuida de você? Meus papais. E o que mais ela faz? A mãe dá o leite de manhã, faz a comida. Perguntei ‘e quem faz isso para você em casa?’ Meus papais, ele disse. E o que mais a mamãe faz? A mamãe dá amor e carinho. E quem dá para você isso? Ele respondeu de novo ‘meus papais’. E se aquietou.”

Everton diz que está o tempo todo desconstruindo os estereótipos com o filho. “Um dia ele me disse que menino não podia usar batom, e eu respondi que batom era uma cor que qualquer um pode passar nos lábios para ficar bonito, basta gostar. Me senti um ativista nessa conversa. Mas é preciso desconstruir essas ideias, e a orientação sexual dele não vai depender de nada disso. O maior desafio de estar numa família não tradicional é fortalecê-lo como indivíduo para que isso não o afete.”

Atenção e apoio
Alguns tópicos para propor reflexão e ação:

Brinquedo não tem sexo”, diz o psiquiatra Alexandre Saadeh. Por isso, é importante proporcionar o livre brincar para os pequenos. Os brinquedos falam das expectativas das crianças, de quem elas são, e dos papéis sociais nos quais vão se incluir.

Se o menino quer usar a fantasia da Frozen, permita. Trata-se de uma personagem forte e isso possibilita que ele experimente um papel feminino e possa até entender melhor as mulheres.

A criança só se interessa por roupas ou brinquedos do outro gênero? Deixa-a brincar com o que quiser e observe o seu comportamento. Na maioria dos casos, é apenas uma fase de descobertas – meninos também gostam de cores fortes, como pink, e meninas, de atividades dinâmicas, como o futebol. Nada disso irá redefinir o que a criança trouxe do nascimento.

Se as preferências por roupas e brinquedos do gênero oposto se intensificarem até os 4 ou 5 anos, a ponto de a criança não se reconhecer e apresentar algum tipo de sofrimento, os pais devem procurar um especialista para fazer um diagnóstico.

No Brasil, há três centros especializados nas questões de gênero: o AMTIGOS (da USP, em São Paulo), o Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp, em Campinas, e o GTênero (da Universidade Federal do Rio Grande do Sul), em Porto Alegre.

OS FILHOS NÃO SÃO DOS PAIS
O psiquiatra Alexandre Saadeh diz que os pais precisam aprender que os filhos não são deles, são pessoas autônomas que vão fazer o seu caminho. “O papel dos pais tem de ser o de educar, civilizar e dar uma diretriz para ajudar essa pessoa a ser um cidadão legal, honesto, com todos os ideais civilizatórios. Os pais vão ensinar o respeito ao próximo, vão ajudar a lidar com frustrações, mas eles são quem eles são.”

“A geração que estamos criando agora não pode ser uma geração de confronto, como é a nossa, que combate o machismo, a violência. A geração dessas crianças precisa resistir ao que sobrar de forma criativa e generosa”, acrescenta o educador Marcelo Bueno. “ E fazemos isso mudando as entradas do pensamento, apresentando reflexões que fazem parte de um discurso maior a fim de criar uma geração para não ser somente de combate, mas que pense de forma generosa a respeito da diferença.” E assim estaremos criando meninos e meninas que vão fazer do mundo um lugar mais justo e de igualdade para as próximas gerações.

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“Ele pedia boneca e eu comprava bonecos, como Playmobil. Ele brincava de maternidade com os bichinhos de pelúcia e eu e meu marido julgávamos que era uma fase e ia passar”, conta a mãe, Elaine Horita, 41, gerente de compras.

Tesoura cega? (Foto: Crescer)

 (Foto: Crescer)

INCERTEZA E PRECONCEITO
“O que mais angustia os pais que pedem ajuda é não saber o que está acontecendo com o filho e, às vezes, a criança é tão pequena que não é possível saber a causa de determinados comportamentos”, explica a neuropsicóloga Ana Del Nero, especialista em gênero (SP).“ Junto com a incerteza eles também se preocupam com o preconceito, pois foram criados de outra forma, são de outra geração.”

A sociedade brasileira, segundo a neuropsicóloga, é muito conservadora e isso explica por que os pais no Brasil estão chegando para buscar ajuda muito cedo, quando a criança tem por volta dos 4 anos. “Na Holanda, isso ocorre quando os pequenos têm 6 ou 7 anos. Há mais tolerância, aceitação e uma fluidez maior entre o que é esperado de cada gênero. Aqui a sociedade é muito pautada por parâmetros binários. Desde bebê há uma enorme rigidez em relação às expectativas de gênero. O que sai disso é visto como problema.”

No caso da Elaine, esse processo de aceitação durou oito anos e ela só permitiu que a filha se desenvolvesse como melhor se sentia quando começou a sofrer bullying pesado na escola. “Inclusive físico, ela chegou a ser empurrada de uma escada e depois, em casa, repetia que não queria viver assim, que não podia ser quem realmente era. Procuramos ajuda e uma noite saí com ela para escolher roupas novas. Quando a deixei livre, aquela tarefa que sempre era um pesadelo tornou-se prazerosa. Ela foi à seção feminina e escolheu o que queria.”

A nova carteira de identidade, que permite inserir, além do nome de registro no nascimento, um nome social, ajudou Elaine a matricular a filha na escola como Mirela. “Mas ainda temos muitos enfrentamentos. Apesar de haver resoluções que garantam, por exemplo, que ela utilize o banheiro feminino, as escolas não estão preparadas nem se sentem seguras para cumprir, ainda por conta da rejeição dos outros pais.”

“Famílias que têm acesso a discussões mais elaboradas sobre organização familiar já aceitam uma conversa sobre igualdade entre meninas e meninos, mas ainda têm pouca informação sobre crianças transgêneros e continuam com dificuldade de aceitar”, diz o educador Marcelo Cunha Bueno, colunista da CRESCER. “Na escola que dirijo, quando envio comunicados usando os dois gêneros, falando de forma igual para todos, tendem a comentar que estou entrando na tal da ‘ideologia de gênero’”.

De acordo com Bueno, pais aceitam que a escola democratize ou problematize coisas que eles já sabem explicar. Mas sobre outras, não, porque muitos têm a crença de que uma pessoa ser trans, homossexual ou heterossexual é definido pela influência do meio.“Não há doutrinação de gênero. O que existe é um olhar para as diferenças e para as possibilidades infinitas da construção do gênero, de forma crítica e reflexiva.” Para o educador, “a família não pode ter medo de abordar essas questões, mas para isso precisa buscar conhecimento, e acredito que a escola pode compartilhar”.

“Quando me perguntam como é a vida da Mirela hoje, eu sou até bem egoísta e falo de mim, que sou muito grata porque ela está trabalhando os meus preconceitos desde que começou a falar, mas a verdade é que todos ganhamos”, conta Elaine. “A Mirela é hoje bem mais feliz, melhorou seu desempenho escolar e também o seu comportamento comigo em casa. Ela foi muito bem aceita pelos colegas, as dificuldades que tivemos foram com os pais de alunos, mas nesses momentos recorremos às leis, está ali escrito que ela pode usar o banheiro feminino, e ponto, não há discussão. Pela minha família também foi aceita, do lado do pai ainda tem um pouco de dificuldade de aceitação da avó, mas conversamos muito e falamos que cada um tem um jeito de lidar com o assunto. E seguimos.”


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