• Sabrina Ongaratto
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Após a morte da filha, Andreia Friques se tornou nutricionista materno infantil (Foto: Divulgação)

Após a morte da filha, Andreia Friques se tornou nutricionista materno infantil (Foto: Divulgação)

Qual é a maior dor que uma pessoa pode sentir? É possível se recuperar após a perda de um filho? Como encontrar um novo sentido para a vida e ir a luta? A enfermeira de UTI pediátrica e agora nutricionista materno infantil, Andreia Friques, 39 — além de criadora e presidente da Associação Brasileira de Nutrição Materno Infantill (ABRANMI) e autora de quatro livros — encontrou as respostas para todas essas perguntas.

Ela, que é a nova colunista da revista CRESCER, abriu o coração para contar sua surpreendente e emocionante história, que enolve a morte de sua filha, Marina, na época com um 1 ano e 3 meses. "Eu ia para a faculdade chorando, voltava chorando, ia para a academia chorando, cuidava do meu filho chorando. Eu vivia uma vida normal chorando", lembra ela, que também é mãe de Miguel, 11, e Davi, 7.

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Marina com Davi e Miguel (Foto: Reprodução Instagram)

Andreia com Davi e Miguel (Foto: Reprodução Instagram)

A NOTÍCIA

"Quando engravidei de Marina, em 2008, meu marido, que é médico, atuava como pediatra e eu era enfermeira de UTI neonatal. Meu primogênito, Miguel, tinha 6 meses e ainda mamava no peito. Com apenas 7 semanas de gravidez e passando muito mal, fui fazer um ultrassom sozinha — meu marido sempre me acompanhava, mas, logo nesse dia, ele não pode ir. A médica viu que tinha algo errado com o bebê, mas como era minha amiga, não teve coragem de me falar.

Poucos dias depois, ela contou ao meu marido. Lembro dele chegando em casa transtornado. Sentou ao meu lado e falou: 'O bebê é muito malformado'. Pegou as imagens do ultrassom e explicou que era muito grave: 'Talvez uma síndrome que a gente nunca tenha visto'. Eu estava acostumava a ver mulheres de todas as raças e classes sociais tendo filhos malformados. Por que não poderia acontecer comigo? Quando ele saiu do quarto, ajoelhei-me e pedi a Deus por aquele bebê. Eu disse que se ele nascesse vivo e eu conseguisse pegá-lo no colo, iria agradecer por cada dia de vida que ele vivesse. Eu já amava aquela criança. Então, levantei e começamos a luta.

Já na próxima consulta, a médica pediu para que eu não criasse expectativas ou esperasse por um milagre. Também me informou que, pela gravidade, eu poderia entrar na justiça para ter direito a fazer um aborto. Mas eu não me importava em sofrer por aquele bebê. Depois disso, contrariando todas as expectativas, a gravidez evoluiu bem e foi até o final. Eu vivi normalmente — sem me iludir, é claro, pois sabia que ela poderia nascer completamente malformada, mas não contava isso abertamente pra todas as pessoas. Fiz enxoval e seguimos. Eu estava muito preparada.

A CHEGADA DE MARINA

Marina (Foto: Reprodução Instagram)

Com Marina (Foto: Reprodução Instagram)

Em julho de 2009, o dia do parto chegou e, logo que Marina nasceu, percebi que ela tinha uma bola na nuca por causa do acúmulo de líquido, como se tivesse duas cabeças. Eles correram com ela para a UTI, mas me mantive serena e tranquila o tempo todo. Entrei na fila das mães para a visita e passei a ser uma mãe de UTI, em uma unidade que eu montei, eu fundei e contratei as pessoas. Travamos uma batalha pela vida dela. Foram muitos exames e várias complicações.

Para a nossa alegria, um mês depois, ela recebeu alta e fomos para casa. Mas eu percebi que ela sentia muita dor ao mamar. Eu avisava aos médicos, mas fui rotulada como uma 'mãe transtornada'. A pediatra dizia que era ansiedade minha. E logo eu, que eu era uma experiente enfermeira de UTI, senti na pele o que as mães sentem. Infelizmente, quando você tem um filho com uma síndrome, os especialistas deixam de ouvir o que a mãe tem para falar. É como se ela fosse apenas uma 'estressada' e ouvem tudo com um 'porém'. Mas eu via o sofrimento dela.

Depois de passar por muitos especialistas, Marina simplesmente parou de mamar. Internamos e finalmente descobrimos ela tinha um Volvo Gástrico, um vício de rotação, isto é, toda vez que ela mamava, o intestino saia do lugar e, por isso, ela sentia tanta dor para mamar. Além disso, o estômago era pequeno demais, não cabia quase nada. Marina passou a usar sonda e, dessa vez, foram dois meses de internação, cirurgias e infecções. Nessa época, montamos uma UTI em nossa casa.

NUTRIÇÃO

Já em casa, ela teve um período de sete meses de febre, todos os dias. Às vezes, às 5h30 da manhã, eu já tinha dado três banhos nela. Tínhamos até pranchetas para anotar todas as medicações. Era como se fosse uma UTI de verdade. Nessa época, comecei a fazer faculdade de nutrição. Mesmo com tudo o que estava acontecendo, fazia poucos períodos. Não tinha intenção de ser nutricionista e trabalhar com isso, eu queria aprender para ajudar Marina. Lembro que muitas noites, enquanto a vigiava, eu estudava. Eu estudava pensando nela, tentando descobrir o que ela tinha e como eu poderia ajudá-la.

Eu salvei diretamente a vida de Marina pelo menos umas três vezes e fazia, inclusive, intervenções como a colocação do oxigênio. Eu não tinha vida. Vigiava minha filha o tempo todo e também tinha Miguel, com apenas 2 anos de idade. Suas brincadeiras eram fingindo que estava dando injeção na irmã, medindo a febre dela... Quando meu marido chegava em casa, eu logo passava um relatório: 'Ela evacuou vinte vezes, teve cinco convulsões, fiz isso ou aquilo'. 

Andreia e Marina (Foto: Reprodução Instagram)

Andreia e Marina (Foto: Reprodução Instagram)

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Algumas semanas antes de ela falecer, conversei com um grande amigo, que era o pastor da minha igreja. E ele me disse algo que me libertou: 'Andreia, a vida da Marina não é sua responsabilidade. O dom da vida pertence a Deus e não a você. Ela está viva hoje não porque você a manteve viva, mas porque Deus quis assim. Se não for a hora dela, ele vai usar qualquer pessoa para salvar a vida dela. Mas se Deus quiser, ele vai levá-la dos teus braços'. Foi como se tivesse tirado um fardo enorme das minhas costas, pois eu realmente me sentia responsável pela vida de Marina.

Logo depois, ela entrou em um processo de desnutrição e precisou de internação para fazer uma endoscopia. Eu sempre percebia quando o quadro dela estava ficando grave, mas, nesse dia, eu não percebi, e fui almoçar com meu marido, coisa que eu nunca fazia. Cantei uma música para ela, disse que ia almoçar e a abracei. Pouco tempo depois, me ligaram para dizer que ela estava muito mal. Sentei na sala de espera, percebi tudo o que estava acontecendo e fui entendendo que, talvez, ele quisesse levá-la naquele dia. E depois de tudo o que ela passou, de tanta luta pela vida, de todo o sofrimento, pensei que, se ela conseguisse voltar para casa, estaria muito debilitada. Percebi que era egoísmo lutar para deixá-la viva.

A DESPEDIDA

Em muitos momentos eu pedia: 'Não leva a minha filha, não leva, se não, eu vou morrer'. Eu nunca aceitava. Mas, nesse dia, entreguei, orei e falei que aceitaria, não insistiria mais. E assim aconteceu. As enfermeiras e os médicos eram nossos amigos. Marina teve uma infecção generalizada, foram várias paradas cardíacas e eles ficaram fazendo reanimações por muito, muito tempo. Eu sabia que eles não tinham coragem de deixá-la ir por nossa causa, porque viram toda a nossa luta por ela. Mas, nesse momento, pedi ao meu marido que falásse a eles que, se ela tivesse partindo, se ela estivesse em parada ainda, para que a deixassem ir.

Pouco tempo depois, a pediatra responsável, que era minha amiga de infância, pediu que eu fosse me despedir de Marina. Como enfermeira, eu já sabia do protocolo. É de praxe, quando uma criança morre, deixar todos os aparelhos ligados para que os pais possam se despedir. E foi assim comigo também. Quando cheguei pertinho dela, os médicos e enfermeiros ficaram em volta do leito e, em voz alta, comecei a agradecer por todos os dias que ela tinha vivido. Fui me despedindo, falei que a estava devolvendo, que sabia que ela era tinha sido um presente e que, no futuro, estaríamos juntas novamente sem UTIs, convulsões, internações, cateter ou dor. Foi tão sobrenatural, que, imediatamente, quando eu acabei de orar, o alarme do aparelho que media as frequências cardíacas dela soou. Nesse momento, ela entrou em asistolia. O coração dela parou. E eu entendi que Deus tinha levado Marina. 

O LUTO

Na época em que Marina estava muito doente, eu era professora e dava aula em uma universidade. Tive que me afastar. Cheguei a pedir uma licença não remunerada, mas eles sugeriram que eu pedisse demissão. Me senti injustiçada, mas, em maio, acabei pedindo para sair. Em julho, Marina morreu. Fiquei sem a Marina e sem emprego. Fiquei sem nada, no fundo do poço. Ela morreu, eu deitei na cama, depois de tanta luta, e pensei: 'Nunca mais vou conseguir levantar dessa cama'. A dor de uma mãe que perde um filho é paralisante, parece que alguém te mutilou, sem anestesia, sem nada. Parece que arrancaram metade do seu corpo. Eu sentia que eu era uma mutilada, eu sentia eu andava na rua com apenas metade do meu corpo e as pessoas viam isso.

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Dias depois, ainda na cama, meu marido me disse: 'Você não vai ficar nessa cama, você tem que recomeçar. Você queria ser nutricionista para ajudar a sua filha, agora você tem que pensar nas outras Andreias e na outras Marinas que existem. Há muitas mulheres precisando de você, passando pelo mesmo que você passou. Existem muitas crianças precisando de você. Termine a sua faculdade e use toda a sua experiência, tudo o que você sabe para ajudá-las'. E eu fiz isso.

O RECOMEÇO

Uma semana depois, eu voltei para a faculdade. Eu ia chorando, voltava chorando, ia para a academia chorando, cuidava do Miguel chorando. Eu vivia uma vida normal chorando. Fiquei mais um tempo sem trabalhar, só estudando. Me dediquei, cuidei do Miguel, dei um tempo para a cabeça e fui me apaixonando pela nutrição. Nessa época, meu marido e eu decidimos não ter mais filhos pelo receio de ter um bebê com o mesmo problema de Marina. Ela batia palminha, ria... Tinha o cognitivo preservado, mas seu corpo sofreu muito.

Marina e Davi (Foto: Reprodução Instagram)

Com Davi (Foto: Reprodução Instagram)

No entanto, um ano depois da morte dela, uma geneticista que estava com uma amostra de sangue da nossa filha para fazer pesquisas, entrou em contato dizendo que tinha descoberto qual era a síndrome dela. Fizemos alguns exames e ela atestou que não tínhamos essa mutação. No mesmo mês, tirei o DIU e engravidei. E foi aí que veio Davi, que é nosso príncipe. Ele nasceu exatamente dois anos depois da morte de Marina, e foi maravilhoso pra mim.

Quando ela morreu, eu não queria outro filho, eu queria ela de volta. Mas quando decidi ter Davi, eu já queria outro filho. Eu estava preparada. Tinha certeza de que seria outra história. Um novo bebê devolve alegria para a casa, renova, traz novos sonhos, risos e descobertas. Mas Davi não veio para ocupar o lugar de Marina. Até o nascimento dele, eu chorava todos os dias. Todos os dias, eu derramava uma lágrima por Marina. Depois que o Davi nasceu, eu lembro dela e tenho certeza que sempre vou lembrar, mas passei a ocupar minha mente com uma alegria.

UMA NOVA MISSÃO

Davi nasceu em julho e, em agosto, eu me formei em nutrição. Peguei o diploma com ele mamando no peito. Decidi ser nutricionista para ir além e alcançar outras pessoas. Foquei e me apaixonei 100% pela nutrição materno infantil. Naquela época, os profissionais diziam que se eu focasse nas crianças, eu 'morreria de fome', pois, segundo eles, os nutricionistas que cuidavam da mãe, também cuidavam da criança. Não acreditei nisso. Podemos mudar o mundo através da nutrição materno infantil. Ela passou a ser uma missão na minha vida. Direcionei minha carreira, fiz especialização, mestrado e doutorado. 

Eu acreditei numa nutrição de consultório, do olhar integral para a criança, para a família, da prevenção, do aleitamento materno, da introdução alimentar adequada, de promover a saúde, de entender que a saúde do casal que se prepara para engravidar influência a saúde da criança, da importância dos primeiros mil dias. Comecei a estudar ainda mais; frequentava de sete a oito congressos por ano; criei uma rede social, pois notei que as mães chegavam no consultório totalmente desorientadas pela internet. Decidi que levaria informação para quem também não pudesse chegar até mim fisicamente. 

Em 2016, dei uma palestra no Congresso Internacional de Prática Molecular. Foi a primeira vez que um nutricionista focado na área participou. E, desde então, a história da nutrição materno infantil mudou. Demos início a uma nova geração de nutricionistas. Escrevi quatro livros, montei cursos e até uma pós-graduação focada nessa área. Foi um sucesso absoluto. Reunimos profissionais do país inteiro e, em dois anos, já estamos na sexta turma. 

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Acredito que o maior desafio hoje é conscientizar e capacitar as pessoas para que elas entendam que o estilo de vida do casal antes de engravidar, durante a gestação, o aleitamento materno, a introdução alimentar e os primeiros anos dessa criança vão determinar a saúde dela pro resto de sua vida. Foi por isso também que decidi criar a Abranmi — Associação Brasileira de Nutrição Materno Infantil —, em novembro do ano passado.

Hoje, eu entendo que tenho uma cicatriz profunda no coração, mas ela não dói mais. Ela está ali para mostrar o que Deus fez na minha vida. Hoje, eu vivo muito feliz, 100% realizada e alegre. Se precisasse, eu passaria por tudo novamente, mil vezes. A história da Marina foi uma benção na minha vida. Eu tenho essa filha, que um dia vou reencontrar, e lembro dela com alegria. Recebo mensagens de milhares de mães dizendo que também conseguiram recomeçar. Se eu consegui, elas também podem sobreviver aos traumas que tiveram. E acredito que por meio da história da Marina, estou alcançando essas pessoas que realmente precisam."

Lembranças de Marina (Foto: Reprodução Instagram)

Lembranças de Marina (Foto: Reprodução Instagram)

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