• Daniela Arrais
Atualizado em
maternidade-amamentacao-maes-gemeos (Foto: Marina Wajnsztejn)

 (Foto: Marina Wajnsztejn)


Na casa da publicitária Mariana Quintanilha, 35 anos, e da jornalista Julia Gutnik, 33, há quatro meses as madrugadas são insones – porém muito felizes –, com as duas se revezando para amamentar os gêmeos Stella e Gabriel. Fruto de uma inseminação cruzada (leia mais ao lado), os bebês foram gerados com os óvulos de Mariana e gestados na barriga de Julia.

O que torna a história ainda mais especial é que Mariana fez uma indução de lactação, nome dado ao tratamento para estimulação dos seios, para que ela também pudesse amamentar os filhos (saiba mais a seguir). “Aquele corpo tão pequeno se aninhando no seu, a mãozinha pousando no seio, os olhos que começam concentrados e vão se fechando aos poucos, um suspiro gostoso de saciedade e felicidade no final. Quase toda mãe sonha com isso. Sonha alimentar seu bebê com leite e amor. Para nós, um casal de duas mães, esse sonho poderia ser dobrado. E a vontade ficou ainda maior quando descobrimos que teríamos dois filhos”, conta Mariana.

Juntas há oito anos e meio, as cariocas começaram a falar em filhos no primeiro ano de relacionamento. “No começo, eu era mais resistente”, confessa Julia. Antes, porém, queriam construir a vida juntas. “Eu ainda não havia viajado para o exterior e queria conhecer o mundo. Também queria ter estabilidade profissional”, diz Mariana. Com o tempo, compraram um apartamento – “Nossa primeira conquista juntas”, lembra – e daí passaram a discutir mais intensamente a maternidade. Na mesma época, os amigos começaram a ter filhos e aquilo foi inspirando as duas.

E O PAI?

Uma das primeiras questões práticas a resolver era a falta de espermatozoide. “Chegamos a pensar em engravidar com a ajuda de um amigo. Mas essa ideia durou uma semana apenas. Ao mesmo tempo que queríamos que o pai fosse alguém cuja história conhecêssemos, ficamos com algumas dúvidas: e se a família dele quisesse acompanhar? E se ele quisesse interferir na escolha de escola?”, lembra Mariana.

Conversando com um amigo – e possível candidato –, elas perceberam que abrir mão da paternidade seria a melhor opção. “Se já é complicado ter duas mães, imagina duas mães e um pai?”, questionou Mariana. Foi então que decidiram buscar uma clínica de fertilização. Nervosas, marcaram a primeira consulta sem saber bem como seguir. Logo descobriram que havia duas alternativas: recorrer a um banco de sêmen brasileiro ou a um norte-americano. Esse último, mais completo, permitia conhecer o histórico de doenças da família do doador, gostos pessoais e até a nota que ele tirara no vestibular para entrar na universidade. Foi a escolha delas.

O tratamento começou em outubro de 2015. “A gente sempre quis fazer uma inseminação cruzada. Essa é a experiência mais próxima de uma maternidade de um casal heterossexual que poderíamos ter”, conta Julia. Mas tudo era mais lento do que imaginavam. Só para importar o sêmen foi preciso um mês e meio. Depois, três tentativas e mais de um ano até a gravidez. “Descobrir que eram gêmeos foi muito emocionante”, conta Julia.

A alegria se misturava a dúvidas e inseguranças – e que grávida não passa por isso, não é mesmo? – para as duas: “Por um lado, o processo da gravidez foi muito solitário para mim. Eu era mãe, mas não tinha barriga. Claro que ver meu filho na barriga da minha mulher era maravilhoso, mas como eu viveria essa gravidez? Como me envolveria? As pessoas não me viam como mãe, nem como grávida”, conta Mariana. O caminho dela foi pesquisar muito. “Vivemos um momento de grande desencontro. Eu estava sentindo a gravidez fisicamente, mas a Mariana precisava sentir aquilo psicologicamente. Afinal, as duas estavam grávidas”, diz Julia. A jornalista, por seu lado, tinha outro dilema a trabalhar: “Às vezes, me angustia saber que gestei os dois mas que, geneticamente, eles não têm nada meu”.

No meio do processo, mais uma vontade: as duas queriam amamentar os bebês. “A questão era que, além das dificuldades e incertezas tão comuns às mulheres que amamentam, tínhamos uma extra: uma de nós não teria os hormônios da gravidez para impulsionar a produção de leite”, lembra Mariana. Muitas pesquisas depois, elas descobriram que seria possível realizar mais esse sonho. “O primeiro passo foi querer – muito. Depois, foi necessário um longo tratamento. Mas, hoje, estamos as duas de licença-maternidade e os nossos filhos se alimentam exclusivamente de leite materno”, comemora Mariana.
Este, no entanto, estava longe de ser o último desafio enfrentado pelo casal: os bebês nasceram prematuros (com 33 semanas) e ficaram 22 dias na UTI neonatal.

GRAVIDEZ CRUZADA


Mariana e Julia recorreram a uma fertilização in vitro com doação do óvulo de uma e transferência para o útero da outra. O processo funciona assim: primeiro é feita a estimulação ovariana de uma das parceiras, o que pode durar de dez a 14 dias. Perto do oitavo dia de estímulo, é feito um monitoramento do número e tamanho dos folículos via ultrassonografia. “Quando os folículos chegam a 18 milímetros, é dada uma medicação para desencadear a ovulação. Cerca de 35 horas depois, os óvulos são captados”, explica o ginecologista Mauricio Abrão, diretor da clínica de reprodução inVida (SP), a qual o casal recorreu.

Os óvulos maduros são então fecundados. De três a cinco dias depois, os embriões são transferidos para o útero da receptora. Para que o endométrio desta esteja preparado para receber e nutrir o embrião, um mês antes, ela começa a receber doses baixas de estrogênio e progesterona. Quando o processo funciona dentro do esperado, o teste de gravidez dá positivo dez dias após a transferência. Esse tipo de fertilização custa em torno de R$ 25 mil.

SER MÃE NA PRÁTICA

maternidade-amamentacao-maes-gemeos-2 (Foto: Acervo pessoal)

Mariana, Gabriel, Stella, e Julia. (Foto: Acervo pessoal)


Esse período de apreensão serviu também para elas entenderem o papel de mãe. “Na UTI, você não está sozinha, tem alguém ensinando você a ser mãe: como pegar o bebê, colocar no peito. Você ganha confiança aos poucos. Mas, de maneira geral, a maternidade é uma experiência solitária e nova, na qual você testa seus limites físicos e emocionais, o que pode ser devastador.

No nosso caso, somos duas mães dividindo a responsabilidade, as descobertas e as angústias. Acho curioso que algumas pessoas me perguntam como aguentamos passar tudo isso juntas o tempo todo. A minha questão é justamente o contrário: como alguém consegue passar por isso sozinha? Como é não ter o seu cônjuge (homem ou mulher) ao seu lado na fase mais intensa e complexa da sua vida? O começo da maternidade é um universo tão novo e tão difícil que não sei se conseguiria enfrentá-lo sem ela”, diz Julia. “Há um antigo provérbio africano que diz: It takes a village to raise a child (em tradução livre: É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança). Eu não poderia concordar mais. Hoje, quando penso que tantas mulheres passaram sozinhas pelo que estamos passando, vejo quão fortes elas são”, emociona-se.

PRIMEIRA VEZ

Durante os 22 dias de hospital foi necessário reescrever algumas regras. “Desde o momento zero, quando os bebês saíram da sala de parto e foram para a UTI, ninguém questionou o fato de a Mari também ser mãe e ter direito a informações e acesso a eles. Aliás, nas plaquinhas das incubadoras, abaixo do nome deles e ao lado do meu, impressos, estava sempre escrito a caneta: ‘Mãe: Mariana’. Uma prova de que, se o sistema não está pronto pra gente, damos um jeito e ‘hackeamos’ o sistema”, lembra Julia.

Dois dias após o parto, quando o casal recebeu as primeiras orientações sobre o uso do banco de leite, foi a vez de comunicar que as duas iriam amamentar. “De novo, ninguém nos questionou. Descobrimos depois que houve um certo debate no hospital sobre o nosso caso, porque fomos o primeiro casal de mães de prematuros que, ao precisar do banco de leite, pediu liberação para as duas mães. Mas em nenhum momento me senti tratada de forma diferente de qualquer casal. Na verdade, sempre me senti acolhida por uma equipe fantástica de profissionais num dos momentos mais vulneráveis que já vivi. Torço para que todos os casais gays que precisarem passar pelo que passamos tenham a sorte de estar num hospital e maternidade acolhedores e abertos para as diferenças como nós estivemos”, comemora Julia.

Outra etapa que precisaram desbravar foi o registro das crianças com o nome das duas. Tiveram de provar, com uma carta do médico embriologista com firma reconhecida, que os bebês haviam sido gerados com óvulos de uma na barriga da outra. “Fizemos o que foi exigido pelo cartório, mas me senti ofendida. Ninguém pede aos outros casais um teste de DNA para comprovar a paternidade de uma criança. Mas o processo de transformação para uma sociedade mais igualitária e tolerante é lento mesmo, eu sei. Precisamos nos manter otimistas e firmes para que a mudança seja efetiva”, diz Julia.

AMAMENTAÇÃO SEM GESTAÇÃO

A indução da lactação é feita não apenas por casais homoafetivos, mas também por mães que recorrem à barriga de aluguel (ou solidária) ou que adotam o bebê e têm desejo de amamentar. “Mari me procurou quando Julia estava na 20a semana de gestação, dizendo que tinha um desejo enorme de amamentar. Aquele era o momento certo para começar essa preparação”, diz a enfermeira obstetra e consultora em amamentação Beatriz Basile Kesselring, do Núcleo Cuidar (SP). O tratamento combina medicamentos, acupuntura, massagem e estímulo de sucção por meio de bomba elétrica. “É um processo que exige dedicação diária”, alerta Beatriz.

O obstetra e ginecologista Gustavo Kesselring, dos hospitais São Luiz e Albert Einstein (SP), que auxiliou no procedimento, detalha: “Mariana tomou um hormônio na forma de pílula anticoncepcional. E mais um remédio que tem como efeito colateral o estímulo da produção de prolactina, hormônio responsável pelo leite. Somamos a eles tratamento fitoterápico, sucção com bomba e estímulo mecânico das mamas.” Em 30 dias, a mulher começa a sentir a mama inchada e cheia. “É um tratamento viável para quem não teve a chance de ter seus bebês na barriga, mas querem essa interação importante da amamentação”, diz o obstetra.

Quando Gabriel e Stella nasceram, ficaram na UTI e foi preciso que as duas fizessem a ordenha para oferecer o leite a eles com sonda e mamadeira. Enquanto a dupla aprendia a mamar e a produção de leite engrenava, os bebês se alimentavam mais em Julia. Em paralelo, Mariana usava um translactador, acessório semelhante a uma sonda fina que fica fixada no mamilo e em um recipiente com leite. Ele permite que o bebê se alimente enquanto suga o mamilo, estimulando-o. “A mulher precisa estar muito motivada. É um processo cansativo: acordar de madrugada, fixar o translactador, colocar o bebê… No caso delas houve motivação e persistência. Elas se apoiaram e essa cumplicidade foi responsável pelo sucesso da amamentação”, diz Beatriz.

LICENÇA DOBRADA

Passo seguinte: conseguir licença-maternidade para as duas. Ainda não há uma de definição legal no Brasil para casos de duas mães (ou dois pais) – os processos no INSS são analisados caso a caso. O casal encontrou uma advogada especializada em direito LGBT para ajudar. “Eu tive que convencer o mundo de que seria mãe. Eu tive que convencer o sistema de que eu tinha direito à licença-maternidade. No hospital, a questão era o direito ao acesso à UTI. Tudo que o mundo via como óbvio para a Julia, a mãe da barriga, precisava de convencimento da minha parte”, diz Mariana – que acabou conseguindo a licença na empresa em que trabalhava mesmo sem saber da decisão do INSS.

Os desafios só fortaleceram as duas, tanto como casal quanto como mães. Tanto que já pensam em mais um filho. “Sempre pensamos em fazer a inseminação cruzada duas vezes. Não imaginávamos que íamos ter gêmeos, então temos que repensar. Mas a verdade é que estamos guardando as roupinhas. Ficamos animadas!”, diz Mariana. A ideia desta vez é que ela receba os óvulos  e experimente a gestação, como Julia. Uma história que reforça que há várias maneiras de realizar o desejo de ser mãe, só basta amor no coração!

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