'A vida pulsa. Nossos filhos e filhas acabam por nos desvendar'

Posso te contar um segredo? – perguntou Carmelita, que tinha uns 70 anos. Ela morava em Minas Gerais, tinha vindo visitar a filha que morava em São Paulo, que a levou para me ver no teatro. Estou em cartaz com a peça Eu de Você e tenho vivido uma das experiências mais incríveis da minha vida. A dramaturgia é construída a partir de histórias reais, que pedimos por um anúncio no jornal e na internet. Histórias delicadas que não vemos por aí em posts, histórias que nos foram confiadas. É bonito de ver como as pessoas ficam tocadas com a peça. Depois do espetáculo, muitas me esperam no saguão. Foi o caso da Carmelita e de sua filha.

Mãe e filha se abraçam — Foto: Thinkstock

Ela me falou que tinha vindo de longe. Sua filha se orgulhava da mãe, professora aposentada da zona rural, que andava todo dia 14 km para dar aula, recolhendo a pé os alunos das fazendas até a escola. Fiquei encantada com aquela imagem que me deram ali, de presente: uma professora alta pastoreando os pequenos por quilômetros até a escola.

– Você é maravilhosa – ela me disse.
– Você que é – eu falei para ela.

Ela olhou nos meus olhos com um olhar que nunca vou esquecer.
– Posso te contar um segredo?

Aproximou-se do meu ouvido e contou o segredo. Paralisei. Bom, se é segredo, não me cabe contar aqui. Quando se afastou de mim, olhou de canto de olho para a filha e disse:
– Nem ela sabe.

A moça ficou em silêncio, mas o que vi acontecer em seu rosto é o motivo desta coluna. Em segundos, muitos sentimentos reuniram-se numa única feição. “Eu sei. Ela é que não sabe que eu sei. Não acredito que está contando pra você aquilo que nunca contou pra mim. Que bom que ela está conseguindo falar.”

Levei pra casa estampado na mente o rosto daquela filha, que hoje era um pouco mãe daquela mãe. Aquela mãe que tinha feito o possível e o impossível para privá-la das dores do mundo e que, perdida no tempo, esqueceu que a filha já tinha desenvolvido a capacidade de suspeitar e ler entrelinhas para adivinhar os segredos deste mundo. A filha, que já era uma mulher capaz de olhar a mãe de fora e amá-la imperfeita. Na peça, eu falo um texto da Simone de Beauvoir que diz: “Toda dor dilacera, mas o que a torna intolerável é que quem a sente tem sempre a impressão de estar separado do resto do mundo. Partilhada, a dor ao menos deixa de ser um exílio”.

Uma tanto da Carmelita ainda permanecia assim, exilado de sua filha tão amorosa. E agora, ela tinha confiado a mim a sua liberdade. Trocamos telefone. Queria saber mais.

Fui pra casa pensando em que momento podemos contar com o ombro amigo dos nossos filhos para partilhar as nossas dores. Fiquei com medo de também ter perdido a hora de sair do exílio. O que eles já saberiam a meu respeito que eu não sabia que sabiam?

A vida pulsa. Nossos filhos e filhas acabam por nos desvendar, e nem sempre nos damos a chance do deleite da cumplicidade, ainda que tardia, de um segredo. No dia seguinte, recebo uma mensagem da filha me agradecendo. Depois da peça, as duas finalmente conversaram. Foi bom termos trocado contato para eu ganhar de presente o fim dessa história.