Conta uma história de quando você era pequena. Essa frase era corriqueira na boca dos meus filhos. Contei-lhes muitas. Tenho, nessa minha cabeça já pra lá de adulta, memórias muito nítidas da minha infância. Mas, curiosamente, elas param na adolescência. Tenho um intervalo de esquecimento, ou sabe-se lá o nome dessas defesas que a nossa mente cria, que deu cabo de boa parte das lembranças da minha juventude. Gostaria de lembrar, pois foi uma época de transformações fundamentais na menina que fui. Mas meus filhos se deliciaram com as lembranças que guardei da fase anterior.
![Memórias mais antigas podem começar com 2 anos e meio, revela estudo — Foto: Crescer](https://s2-crescer.glbimg.com/tOoTy6oNjBUvWJtymZ0t19kYI3M=/0x0:512x320/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_19863d4200d245c3a2ff5b383f548bb6/internal_photos/bs/2022/k/A/FcYjAyQfSEy7NJD5ju1Q/2020-10-07-gettyimages-510418653.jpeg)
Dia desses, minha amiga Mariana contava a seus pequenos a famosa história de sua avó, que deixou cair o bolo no meio da festa e não pôde conter as crianças pegando-o do chão.
— Mostra o vídeo – disse um dos meninos.
— Não tem vídeo, meu amor.
Esticando a conversa, minha amiga se deu conta de que seu filho de 6 anos já acha que tudo está gravado. Que tudo que se viveu, a história da humanidade, está registrada em algum lugar, em nítidos pixels que menosprezam nossa memória.
Apesar de assustadora, confesso que fiquei com inveja de tal ideia. Iria correndo atrás das histórias que não lembro bem, me surpreenderia com experiências que não imagino estarem aqui incrustadas e, quiçá, poderia percorrer o caminho invisível que as transformaram no que sou hoje. Entenderia mais de mim? Provavelmente, não. E perderia um tempo precioso vendo tais vídeos, que poderiam me roubar ainda outras vivências que, se fossem gravadas, também estariam à disposição da minha investigação de mim mesma. Parei. Acho que a vida é mesmo pra escorrer.
Mas precisamos aprender a descer nessa corredeira com uma boa embarcação porque, daqui a pouco, a nossa memória talvez vá mesmo contar com o vídeo de apoio, pois o nível de presença e fixação das experiências já estará alterado pela velocidade.
Vivemos um tempo desafiador, que parece ficção científica. A inteligência artificial é uma realidade e não sabemos o que fazer para que nossos filhos não usem o ChatGPT nos trabalhos de escola. É assustador. E fascinante.
Alguns dias depois, minha amiga lidou com uma briga dos irmãos.
— Quem bateu primeiro?
Joaquim, o mais velho, chorou quando o menor o acusou. A juíza, que bem conhecia a dinâmica, insistiu: “Quem bateu primeiro? Última chance”.
Joaquim berrava. Chico mantinha a cara de pau. Mariana apelou.
— Tudo bem. Vou ver o vídeo!
Chico correu atrás dela. "Fui eu!"
Com certeza, essa será uma boa lembrança que vai contar aos netos. E não estará gravada. Rezo aqui pela memória de Mariana e seus filhos. E descanso ao pensar que o fato de ela ter partilhado este episódio comigo, e eu com vocês, já nos sugere o compromisso de ser o melhor HD a armazenar as histórias de todas e todos nós. A partilha, a narrativa, a contação das experiências vividas é a melhor maneira de construir e fortalecer a memória.
![Denise Fraga é atriz, casada com o diretor Luiz Villaça e mãe de Nino, 23 anos, e Pedro, 21 (Foto: Cauê Moreno/Editora Globo) — Foto: Crescer](https://s2-crescer.glbimg.com/zAa2UbocDpWL8AD1maotOIGXoiE=/0x0:338x338/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_19863d4200d245c3a2ff5b383f548bb6/internal_photos/bs/2022/j/B/08CtuBRD2eAZilOQoT1A/2021-08-31-thumbnail.jpeg)
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