Tenho tido insônia. Dia desses, depois de rolar de um lado para o outro por duas horas sem conseguir pregar o olho, sentei na cama. Me alonguei segurando os pés, de puro desespero. Levando a cabeça lá pra baixo, me lembrei que minha avó Rita, quando custava a dormir, deitava na cama ao contrário, cabeça para o lado dos pés. Lá fui eu. Achei meio ridículo ainda me submeter a uma crendice de infância. Fiquei ali, sem dormir, pensando nelas.
A vela acesa que me disseram que eu tinha dentro da cabeça. Que eu tivesse cuidado para não tomar vento porque, se a vela apagasse, eu morreria. Os caroços de fruta que cuspi com cuidado, pois, se os engolisse, poderia nascer um pé da árvore dentro de mim.
Lembrei da pressa da minha avó em cobrir os espelhos na tempestade para não atrair raio para dentro de casa, dos chinelos virados que matariam a minha mãe, da tira de pano que minha avó amarrava no pé da mesa quando se perdia alguma coisa, dos pulinhos para pagar as promessas a São Longuinho. Enfim, crendices. E ao final, crendice ou não, adormeci ali pensando nelas. Acordei ao contrário. O Luiz estranhou.
Tomamos café falando sobre o tema. Crendices ou mistérios? Meu desespero em dormir tinha me feito voltar ao mistério e fiquei pensando em como eles têm me faltado. Melhor: a capacidade de acreditar neles, simplesmente. Me lembro de um artigo da [psicanalista] Vera Iaconelli a respeito da possibilidade, ou não, dos nossos filhos acreditarem nas fake news. Ela terminava concluindo que eles provavelmente não acreditariam, mas talvez estivessem destinados a não acreditar em mais nada. Frio na espinha. Será que nossas pequenas e pequenos ainda têm a capacidade de respeitar uma crendice, uma superstição? Será que deixaríamos? Nossa honestidade a toda prova, que já não os deixa acreditarem nem em Papai Noel, talvez os salve das crendices. Tudo bobagem. Mas, e o mistério? Nossos filhos desvirarão os chinelos com medo da nossa morte? Eu mesma não propaguei isso em casa. Mas continuo a desvirar os meus. Penso na minha mãe. Às vezes não, vai só pelo hábito. Não cubro mais os espelhos, confio nos para-raios. Engulo sementes. Mas a verdade é que dormi quando me virei na cama.
Nesse mundo pulverizado por imagens, opiniões e certezas, que vão comprometendo dia após dia a nossa capacidade de imaginar, minguando a fluidez das incertezas, o poder da dúvida, talvez o que esteja mesmo em jogo seja a nossa fé no mistério. Ou o próprio mistério, em si.
Meus filhos barbados olham para mim com aquela cara de “mamãe e suas bobagens”. Mas, nas viagens de avião, Pedro me diz: não esquece de fazer o negócio. O negócio é um sinal da cruz na decolagem. Crendice que tem me salvado em pousos e decolagens, voando de lá para cá, de onde, por acaso, escrevo esta coluna. Que ela chegue ao seu destino na volta da rede, quando aterrissarmos e sairmos do modo avião, esse novo tipo de mistério que uso e acredito sem questionar.
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