Dona Wilma tem uma matrioska. Sua filha trouxe de Moscou. Pra quem não sabe, matrioska é aquela boneca russa de madeira que você abre no meio e encontra outra, que você abre no meio e encontra outra e outra e outra. Às vezes, são sete, oito bonecas encaixadas nelas mesmas.
Malu tem 6 anos. Sua avó é vizinha de muro de Dona Wilma. Dona Wilma é uma pedagoga aposentada que tem muito jeito com as crianças. Malu chega na casa da avó e já vai pra casa da Dona Wilma. A avó de Malu fica um pouco enciumada e põe a culpa na matrioska. Na verdade, não tem mais como a gente saber se a Malu gosta mais da Dona Wilma ou da matrioska.
![Matrioska — Foto: macrovector/Freepik](https://s2-crescer.glbimg.com/eUT2buSSL14YNCPDCiGqHr4ZIW4=/0x0:1500x900/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_19863d4200d245c3a2ff5b383f548bb6/internal_photos/bs/2023/J/B/bmVoBNShKXdayZBznZCQ/matrioska.jpg)
Já faz alguns anos que a menina chega na sua casa, pega a matrioska e começa a descascar na mesinha da sala. Chegar na última é seu objetivo. A pequenininha é a sua preferida naquela infinidade de mulheres cascas, mulheres que abrigam mulheres, que fizeram cascas como uma cebola e que, por vezes, nem sabem mais quem são. Mulheres que carregam suas tataravós sobre suas bisas, suas avós, mães e netas, tentando se livrar dos disfarces incrustados pelo medo, pelo hábito, pelo tempo e pela tradição. Um brinquedo simbólico, essa matrioska.
Malu quer sempre brincar com a pequenininha, a única que é inteira, maciça e não abriga nenhuma outra. Simplesmente é. Ela é a própria Malu, que não deve nada a ninguém, nem à sua avó, que grita por ela do outro lado do muro para que venha almoçar.
Dona Wilma adora ver a Malu brincar. Dona Wilma tem hoje dificuldade de locomoção mas, ainda que pudesse sentar no chão da sala, não ousaria interferir na ordenação que a pequena dá às bonecas. Malu não ordena, desordena. E os anos ensinaram a esta pedagoga cheia de cascas que elas pouco lhe valeram. Que não precisa encaixar o que parece que deve ser encaixado. Que a boneca pequenininha pode dançar solta na grandona, fazendo um chocalho. Que a cabeça da grande encaixando-se na terceira menor faz uma mulher engraçada e baixinha. Malu formaliza na mesinha o que Dona Wilma precisou de anos para aprender. Mas a velha pedagoga não ousa dizer a Malu o que a vida lhe ensinou, porque desconfia que Malu daqui a pouco vá esquecer o que já sabe.
Malu fatalmente vai perder um pouco da inteireza ao crescer. Vai criar cascas, abrigar outras mulheres, filhas e netas. Vai abrigar a si mesma, vai esconder-se em outra de si e, muitas vezes, vai esquecer sua pequenininha preferida e inteira para se proteger numa casca que, apesar de todas as tentativas de se ordenar, vai sobrar ali, em pé e oca.
Dona Wilma observa a menina em silêncio e reza para que essa pequena cintilante passe rápido pelo processo das cascas e que volte o mais rapidamente possível à inteireza. E que consiga sempre sentar no chão.
![Denise Fraga é atriz, casada com o diretor Luiz Villaça e mãe de Nino, 23 anos, e Pedro, 21 (Foto: Cauê Moreno/Editora Globo) — Foto: Crescer](https://s2-crescer.glbimg.com/zAa2UbocDpWL8AD1maotOIGXoiE=/0x0:338x338/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_19863d4200d245c3a2ff5b383f548bb6/internal_photos/bs/2022/j/B/08CtuBRD2eAZilOQoT1A/2021-08-31-thumbnail.jpeg)
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