Na tarde do último domingo (8), a psicóloga Luciana Jamas, 39, estava vendo televisão com o filho Gustavo, 9, quando o jornal começou a mostrar grupos de vândalos golpistas invadindo e destruindo o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal, em Brasília (DF). Nas imagens, apareciam vidraças, móveis, obras de arte e outro objetos sendo quebrados. Não demorou muito para que o pequeno perguntasse o que estava acontecendo.
"Ele ficou muito triste ao ver os estragos que fizeram... Explicamos, de uma forma que ele pudesse entender, que aquelas pessoas estavam protestando por não concordarem com o resultado da eleição. Mas também deixamos muito claro que aquela forma de protestar era errada, que era considerada crime e que nada justifica destruir o patrimônio público", lembra.
Gustavo perguntou, então, o que aconteceria com as pessoas que estavam invadindo os prédios. A mãe explicou que, como estavam fazendo algo contra a lei, provavelmente todas seriam presas. "Ele, por fim, continuou chateado e perguntou se poderíamos assistir a outra coisa, pois não queria mais ver aquelas notícias. Respeitamos e mudamos de canal", diz.
Conversar é preciso
O que aconteceu na casa de Luciana não é um caso isolado. É natural que as crianças fiquem com dúvidas e façam perguntas sobre notícias com grande repercussão, como a do último domingo (8). Por mais que, na prática, os pequenos ainda não tenham conhecimento político e nem idade para votar, eles também acabam sendo contagiados pela atmosfera de tensão dos pais, dos parentes, dos noticiários...
"A criança pode até não entender, mas ela está sentindo o clima tenso, ouvindo as conversas, vendo os pais o tempo todo no celular. E, independente da posição política da família, a criança precisa se sentir segura nesse momento", explica Flávia Pereira, professora e educadora parental pela Escola da Educação Positiva (SC).
Não há muito como fugir: essa segurança só pode ser passada por meio de uma escuta atenta e uma conversa franca. É preciso ouvir o que seu filho tem a dizer, quais são suas dúvidas sobre o episódio e como ele se sente diante daquela situação. Por mais que pareça difícil ter esse papo com os pequenos, se há perguntas e interesse pelo assunto, a conversa precisa existir — usando o bom senso e adaptando a forma de explicar de acordo com a idade da criança, é claro.
"Não nomear as coisas e não falar nada é uma escolha que só vai deixar a criança mais insegura. Não precisa pintar um herói e um vilão nessa história, isso é uma discussão dos adultos, mas precisamos colocar as leis e explicar o que está acontecendo de errado. É importante trazer um olhar lúdico e questionar quais valores queremos passar, enquanto pais", completa.
Respeito às regras do jogo
Não existe uma fórmula única para traduzir para as crianças um acontecimento político tão marcante como o do último domingo (8). A maneira de conduzir essa conversa depende de muitos fatores. Qual é a idade do seu filho? Quanto a família está envolvida com esse assunto? O que ele já sabe sobre o episódio? Quais dúvidas foram levantadas?
Segundo a psicopedagoga e psicanalista Mônica Pessanha (SP), se as crianças forem muito pequenas, não tiverem contato com o assunto e não surgirem perguntas, não é preciso "puxar" o papo. Mas é natural que, a partir dos 8 anos, já exista uma curiosidade em entender melhor os acontecimentos. "As crianças vivem em um mundo conectado e estão constantemente interagindo com mensagens políticas. Então, discutir política com elas é uma forma de se envolver de forma autêntica", afirma.
E, nesse caso, discutir política com os pequenos não significa sair em defesa de um ou outro candidato ou partido político. O que importa neste momento é explicar que, independente da preferência da família, o respeito aos adversários e às regras deve ser sempre mantido. Foi o que fez psicóloga Luciana Jamas, do começo da reportagem. "Expliquei para o meu filho que numa eleição é sempre assim, que só tem um ganhador e, às vezes, pode acontecer de não ganhar quem preferimos... Mas reforcei que, mesmo assim, não podemos protestar dessa forma [violenta] que vimos na televisão", disse.
A psicanalista e educadora parental Elisama Santos (SP) dá uma dica de um jeito didático e lúdico de dar essa explicação. "Estamos falando do jogo democrático e a melhor analogia que podemos usar com as crianças é justamente essa, de um jogo de tabuleiro. Podemos dizer que as pessoas que invadiram os prédios perderam uma partida, mas ficaram com muita raiva porque queriam ganhar de qualquer jeito. Para descontar essa frustração, destruíram tudo e jogaram o tabuleiro no chão, porque não sabem aceitar as regras que já estavam combinadas antes", diz.
Essa é uma ótima oportunidade, inclusive, de explicar para as crianças o que devemos fazer quando ficamos frustrados. Sentir raiva e ficar bravo é normal, mas isso não é justificativa para agir com violência e nem destruir coisas que pertencem a todo mundo. "Se quebrarmos o tabuleiro, como é que vamos continuar jogando? Precisamos explicar para as crianças que, mesmo para questionar, existe um jeito certo. Até podemos não gostar das regras e querer mudá-las, mas, para isso, precisamos conversar com todas as pessoas do jogo antes. Se a maioria decidir que a nova regra é legal, aí a gente pode implantar. Isso é democracia", completa.
Exemplo negativo
De fato, o que aconteceu em Brasília no último domingo (8) é um exemplo negativo para as crianças. Nas redes sociais, o advogado Pedro Hartung, diretor de políticas e direitos das crianças do Instituto Alana, repudiou os atos golpistas e pediu que as famílias conversem com seus filhos sobre o ocorrido. "Hoje as crianças de todas as famílias brasileiras tiveram o pior exemplo civil da nossa história recente de país! Viram adultos (pais, mães, avôs etc.), tomados de ódio, vandalizarem o patrimônio público e tentarem um golpe nas instituições brasileiras", escreveu.
Em nota enviada à imprensa, a Sociedade Brasileira de Pediatria também condenou o episódio. "Nossas crianças e adolescentes, que representam o futuro, têm que ser cuidadas e preservadas de exemplos espúrios e criminosos como os de hoje em Brasília. Por elas, não podemos aceitar a impunidade, tampouco apoio ou leniência", diz o comunicado.
Mas como preservar as crianças quando esse exemplo negativo está mais perto do que imaginamos e, muitas vezes, dentro de casa? Por mais que pareça uma realidade distante, os vândalos mostrados pela televisão também são pais, tios, avós, primos... A empresária Priscila Valente, 31, de Teresina (PI), teve de aprender a blindar a filha Maria Tereza, 8, nesse sentido. "Temos parentes que são apoiadores do que está acontecendo e que, inclusive, cogitaram ir para Brasília participar", conta.
A forma que ela encontrou de preservar a filha foi reforçando os valores que acredita e explicando que tudo o que foi televisionado é errado e criminoso. "Sempre deixamos claro para ela o nosso posicionamento. Aproveitamos a chance para reforçar nossa reprovação em relação a esse tipo de conduta [dos vândalos]. Falamos da importância dos locais invadidos, do respeito às instituições do governo, mostrei os criminosos sendo levados nos ônibus...", conta.
Para a psicanalista Elisama Santos, nesses casos, os pais devem ser um pouco mais cautelosos ao ter essa conversa. "Não podemos reduzir uma pessoa a uma atitude, ainda mais se essa pessoa for uma pessoa com quem a criança tem uma relação de afeto. Se for o caso de a criança ter algum conhecido que participou dos atos ou apoia, antes de dizer qualquer coisa, pergunte sobre como ela está vendo essa situação", diz.
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