Histórias
 


Desde 23 de dezembro de 1995, o propósito de Ivanise Esperidião é um só: encontrar a filha Fabiana. Neste dia, a menina saiu de casa e nunca mais voltou. "Eu não perdi só minha filha. Eu também perdi minha identidade, minha família, minha saúde física e mental. Há quase três décadas, a minha vida virou uma interrogação. Às vezes alguém fala 'Eu imagino sua dor'. E eu falo 'Não queira imaginar o que é viver isso, não queira'. Eu não desejo nem por um segundo, para ninguém, o que eu tenho passado", diz.

Ivanise Esperidião da Silva Santos, presidente e fundadora da ONG Mães da Sé — Foto: Reprodução/Instagram
Ivanise Esperidião da Silva Santos, presidente e fundadora da ONG Mães da Sé — Foto: Reprodução/Instagram

Na época em que tudo aconteceu, Fabiana tinha apenas 13 anos. Ela saiu acompanhada de uma amiga, para uma festa a cerca de 300 metros de sua casa, no bairro de Pirituba, em São Paulo (SP). No caminho de volta, se despediram e cada uma seguiu seu caminho. Neste trajeto, Fabiana desapareceu e a família nunca mais teve notícias de seu paradeiro.

Sem pistas do que havia acontecido com a filha, Ivanise começou uma busca solitária por notícias. Ela investigava o caso sozinha e repassava informações para a polícia. Até que, meses depois, foi convidada pela TV Globo para contar sua experiência no horário nobre. A partir daí, tudo mudou. Conheceu centenas de outras famílias com histórias parecidas e reuniu parte delas em um ato na Praça da Sé.

O encontro deu origem a uma ONG, a ABCD (Associação Brasileira de Busca e Defesa à Criança Desaparecida), em 1996. De lá para cá, as Mães da Sé, como ficaram conhecidas, já ajudaram a localizar quase 6 mil pessoas desaparecidas. "Só temos esse resultado porque temos parceiras com a iniciativa privada, principalmente as campanhas publicitárias. Isso nos traz uma visibilidade muito grande", contou.

Neste mês de agosto, mais uma ação publicitária promete trazer luz a essa questão. A Cappuccino, agência do coletivo Weber Shandwick, lançou a campanha "T-Search", com camisetas estampadas com rostos de crianças desaparecidas. “O nome é autoexplicativo e faz alusão à palavra T-shirt (camiseta) e search (busca). Se usamos camisas de quem admiramos, por que não vestir uma por uma causa que precisa ser de todos nós?”, pergunta Vitor Elman, copresidente da Cappuccino e idealizador da campanha.

A venda das camisetas da campanha T-Search serão revertidas para a ONG Mães da Sé — Foto: Divulgação
A venda das camisetas da campanha T-Search serão revertidas para a ONG Mães da Sé — Foto: Divulgação

Quem quiser adquirir uma das camisetas poderá fazê-lo pelo site tsearch.com.br. A renda será revertida à ONG Mães da Sé. "Estou muito otimista com essa campanha das camisetas. Tenho certeza que vai ter um grande impacto social. É isso que nós precisamos: que a sociedade tenha empatia pela nossa causa. Enquanto a sociedade não tiver a consciência de que precisa ser nossa principal aliada nessa luta, não vamos avançar muito", completa Ivanise.

A seguir, confira o depoimento completo de Ivanise à CRESCER:

Ivanise na Praça da Sé, mostrando um cartaz com fotos da filha — Foto: Reprodução
Ivanise na Praça da Sé, mostrando um cartaz com fotos da filha — Foto: Reprodução

"Viver a dor do desaparecimento é mil vezes pior do que viver a dor da morte, porque você vive a dor da incerteza. Você não sabe o que fizeram com o seu filho. Se ele está vivo, por que ninguém nunca viu? Se ele está morto, cadê o corpo?

Há quase três décadas, a minha vida virou uma interrogação. As pessoas acham que, pelo fato de já de já ter passado tantos anos, eu já acostumei com essa dor. Mas eu nunca vou acostumar a viver sem a minha filha. Nunca. Todos os dias quando eu acordo, a primeira coisa que vem à minha cabeça é a minha filha.

A lembrança que eu tenho da Fabiana é que quando ela tinha 13 anos, aí eu fico tentando imaginar como ela está hoje, com 42. Já fizeram a progressão de idade, ficou bem parecida com ela, mas aquilo não me convence. Eu olho para aquela foto da progressão e, para mim, aquela mulher é uma desconhecida.

Eu fico tentando imaginar o dia que eu encontrar minha filha. Como será que ela está? Será que ela engordou ou será que continua magrinha como era? Eu acredito que tenha crescido mais do que quando tinha 13 anos, quando desapareceu. Ela deve estar bem alta, porque puxou a família do pai.

Mas tudo isso é uma interrogação. É uma sensação muito ruim, de impotência. É um silêncio profundo. Mesmo com tudo que eu já fiz e continuo fazendo, até hoje não encontrei uma resposta. Aí você chega a uma conclusão de que tudo que você fez não foi suficiente. Como mães de pessoas desaparecidas, tudo que nós queremos é encontrar uma resposta. Seja da forma que for: positiva ou negativa. Nós só precisamos acabar com essa angústia.

A dificuldade em achar pistas

Quando a minha filha desapareceu, eu me senti culpada pelo fato de não estar em casa quando ela saiu. Se eu estivesse em casa, não teria deixado ela sair oito horas da noite em uma avenida muito movimentada, mesmo que fosse acompanhada de uma amiga. A culpa é o sentimento nato da mãe. 'Se eu não tivesse deixado sair, ela não teria desaparecido.' É uma frase que nós, mães, carregamos talvez como forma até mesmo de nos autoflagelar.

Os três primeiros meses foram muito difíceis. Primeiro, porque a Fabiana desapareceu em uma avenida muito movimentada, mas que não tinha câmera nem para fotografar os carros. A gente não tinha internet e nem telefone celular, isso era coisa de gente de uma classe social privilegiada.

E tinha outra coisa: a sociedade não conhecia esse fenômeno. Eu lembro que bati na porta de todas as emissoras de televisão, de todas revistas. Mas naquela época tudo era muito difícil, né? A imprensa não falava sobre, não divulgava o desaparecimento de pessoas, a sociedade não tinha conhecimento deste fenômeno.

A sociedade só foi tomar ciência desse fato com a novela Explode Coração, da autora Glória Perez. Em todas as novelas, ela aborda um tema. Nessa novela, ela colocou o tema das pessoas desaparecidas e eu fui chamada para gravar um depoimento.

Até esse momento, eu não conhecia nenhuma mãe que tinha filhos desaparecidos. Eu achava que era só eu, e, por isso, beirei à loucura. Cheguei ao limite, a ponto de as pessoas me chamarem de louca mesmo. E talvez eu estivesse mesmo enlouquecendo, porque nenhuma mãe está preparada para perder um filho dessa forma.

Eu lembro que, quando eu cheguei ao Rio pra gravar a novela da Glória, me deparei com um monte de mães com histórias muito parecidas. Cada uma com a sua revolta, relatando o descaso das delegacias, o descaso com as investigações, que nunca tinham continuidade. E, assim, pela primeira vez, eu tive contato com outras mães que estavam vivenciando o mesmo drama que eu. Aquilo me impactou muito.

A esperança renovada

Quando fui chamada para gravar a novela, só fazia três meses do desaparecimento da Fabiana. As chances de eu encontrá-la eram muito grandes. Meu depoimento ia passar numa novela em horário nobre na Globo. Voltei do Rio com a perspectiva de que, na hora que minha história fosse mostrada, alguém veria minha filha e eu ia encontrá-la.

Eu mesma não assisti ao depoimento. Nessa época, eu estava só pele e osso. Pesava trinta e seis quilos, sendo que tenho um metro e cinquenta de altura. Era uma busca muito solitária, eu investigava sozinha e passava as informações para a polícia.

Famílias de desaparecidos se reúnem nas escadarias da Catedral da Sé, no centro de São Paulo — Foto: Reprodução/Instagram
Famílias de desaparecidos se reúnem nas escadarias da Catedral da Sé, no centro de São Paulo — Foto: Reprodução/Instagram

No dia seguinte à minha aparição, eu fui procurada por duas jornalistas de dois jornais diferentes que tinham uma visibilidade muito grande. Eu aproveitei aquela oportunidade e eu fiz um desabafo. Sem nenhuma pretensão e, talvez até de uma forma responsável, eu deixei um número de telefone para quem quisesse me ligar.

Para minha surpresa, no dia seguinte, eu acordei umas oito horas da manhã com o telefone tocando. Eram mães, pais, irmãos, produção de jornais, de programas de televisão… As pessoas perguntavam quando e onde poderiam me encontrar. Naquela época, era na Praça da Sé, em São Paulo, que aconteciam as grandes manifestações. Falei para as pessoas me encontrarem na escadaria da Catedral da Sé.

No dia 30 de março de 1996, cheguei à Praça da Sé perto das nove da manhã. As escadarias estavam repletas, com mais de 100 pessoas. Eu não tinha noção de que São Paulo tinha tanta gente desparecida. A partir daquele dia, transformei minha dor numa luta e não parei mais.

O nascimento das Mães da Sé

O jornalismo trabalha com o factual. E, naquele momento, nós éramos o factual. De repente, todas as emissoras de televisão, todos os jornais e revistas, queriam entrevistar as mães da Sé e levá-las em seus programas. E eu continuei alimentando a expectativa de que eu ia encontrar a minha filha. Com a novela não deu, mas agora era certeza, porque eram várias emissoras divulgando a foto da minha filha.

Em oito meses de trabalho, 48 pessoas foram encontradas. E assim o tempo foi passando, o número de pessoas encontradas também foi aumentando e o de pessoas procurando nossa ajuda também. Hoje eu tenho 5886 pessoas encontradas, mas não encontrei minha filha ainda.

Eu parei de trabalhar, porque assumi essa responsabilidade. Trabalhei por três anos dentro da minha casa, mas aí fizemos um estatuto e legalizamos. Criamos a Associação Brasileira de Busca e Defesa à Criança Desaparecida, mas quase ninguém nos conhece por esse nome, por nossa razão social. As pessoas nos conhecem como Mães da Sé. E não fomos nós que que nos intitulamos assim. Foram as matérias que passaram a nos chamar desse jeito.

Os rastros da perda

Até o dia 23 de dezembro de 1995, na minha concepção de felicidade, eu era uma pessoa feliz. Eu tinha uma família formada, era casada. Tinha duas filhas adolescentes muito estudiosas, muito inteligentes. Depois, eu tive que aprender a viver um dia de cada vez. Eu não perdi só minha filha. Eu também perdi minha identidade, minha família, minha saúde física e mental. Hoje eu tomo remédios para dormir, antidepressivos, porque às vezes eu tenho minhas crises de ansiedade.

Desde 1996, as Mães da Sé já ajudaram a localizar mais de 5 mil pessoas desaparecidas — Foto: Reprodução/Facebook
Desde 1996, as Mães da Sé já ajudaram a localizar mais de 5 mil pessoas desaparecidas — Foto: Reprodução/Facebook

Vou ao psiquiatra e até hoje faço terapia, porque me ajuda muito a manter minha saúde mental para dar continuidade a esse trabalho que eu faço. Mas não é fácil. Tem horas que bate um desespero muito grande. O tempo passa muito rápido. Eu nunca imaginei que ia ficar durante tanto tempo sem notícias da minha filha. Mas os anos foram passando e minha angústia continua até os dias de hoje.

E esse trabalho é hoje a minha razão de viver. A cada pessoa que eu consigo encontrar por meio do meu trabalho, a minha esperança se renova mil vezes. A gente chora, mas de alegria, quando consegue devolver filho pra uma mãe. Até mesmo quando a gente não encontra essa pessoa viva. A família vai pelo menos poder enterrar os restos mortais do seu filho, dar um enterro digno. Na grande maioria, eles já foram enterrados como pessoas desconhecidas. Eu tento conscientizar as famílias que a busca chegou ao fim. Não é o que queremos, mas é uma resposta.

Uma dor materna

Alguns anos depois do desaparecimento da Fabiana, veio a minha separação. O pai das meninas foi embora, inclusive de São Paulo. Se aposentou e voltou para a terra dele, refez a vida. Eu me sentia muito sozinha, porque essa luta é da mãe. Raramente você vai ver um pai procurando por um filho ou estando ali dando apoio para a mãe. Eles alegam — e eu ouvia muito isso do pai da minha filha— que precisam trabalhar porque têm uma família para sustentar. Nisso, eles não deixam de ter razão. Mas e nos dias de folga? Por que não dão apoio moral?

Meu coração de mãe diz que a minha filha está viva em algum lugar desse planeta. E é por causa dessa certeza que eu tenho sobrevivido. Sobrevivo na certeza de que na hora que eu menos esperar Deus vai trazer a minha filha para mim. Se um dia eu receber uma ligação da delegacia dizendo que encontraram a ossada da minha filha, a minha busca chegou ao fim.

Mesmo se eu encontrar a minha filha hoje, eu vou continuar à frente desse trabalho até o dia em que eu viver. Eu vejo minha filha em cada pessoa que consigo encontrar. Porque foi com esse trabalho, com essas mulheres, que eu aprendi a dividir a minha dor. Elas fazem parte da minha história, elas fazem parte da minha vida. Nós somos uma família, irmanada pela mesma dor que é a dor da perda. Estamos pelo mesmo objetivo que é encontrar os nossos filhos. Pelo mesmo amor que é o amor de mãe, que é diferente de qualquer amor do mundo. Só uma mãe entende a dor da outra.

Às vezes alguém fala "Eu imagino". E eu falo "Não queira imaginar o que é viver isso, não queira". Eu não desejo nem por um segundo, para ninguém, o que eu tenho passado há quase três décadas. Eu vivo um dia de cada vez. E todos os dias a minha esperança se renova. Como cristã, eu não acredito em coincidência. Eu acredito que quando a gente nasce Deus já traça um propósito para você. E eu não posso fugir dos planos de Deus. Se ele determinou para mim que a minha vida seria instrumento para que eu falasse sobre esse fenômeno que ninguém falava, eu só peço que Deus me dê saúde e sabedoria para continuar."

Mais recente Próxima Pais tatuam alfabeto para facilitar comunicação com filho autista não verbal
Mais de Crescer

Pediatras recomendam o aleitamento exclusivo nos primeiros seis meses de vida do bebê

Por que seu bebê não precisa tomar água?

A mãe dela aceitou passar por uma cirurgia arriscada — era a única chance de ajudar sua filha a sobreviver. Hoje, Jessica agradece a oportunidade de estar viva e ter dado à luz seu primeiro filho

Filha surpreende ao dar à luz após receber metade do fígado da mãe: "Vida bônus"

A família de Belo Horizonte (MG) até tentou, mas o balão insistiu em não estourar. O vídeo foi compartilhado nas redes sociais e acabou viralizando!

Chá revelação dá errado, mãe cai na gargalhada e vídeo viraliza

Em uma publicação nas redes sociais, a influenciadora contou que usou o carro para se locomover dentro do terreno da própria casa onde mora

Virgínia aparece dirigindo apenas uma semana depois da cesárea: afinal, pode?

Luciene Maria Alves, de Belo Horizonte (MG), conta como o cachorro auxilia sua filha a superar os desafios do dia a dia. “Parece que ele entende suas limitações”, comentou ela, que é mãe de Luísa, 7 anos

Golden ajuda menina com malformação cerebral a interagir com o mundo: "Cão terapeuta por natureza"

Mulheres prefeririam fazer exame de colo de útero em casa para evitar constrangimento

Mulheres preferem fazer exame de colo de útero em casa para evitar constrangimento, mostra pesquisa

A mãe explica que tenta ensinar a filha sobre consentimento — "Só quero que minha filha cresça sentindo que tem algum controle sobre seu próprio corpo". O post gerou polêmica. Saiba como ensinar sobre consentimento para as crianças!

Mãe quer que avó peça consentimento para beijar neta e divide opiniões online

Peter e Peggie Taylor se conheceram há 80 anos, durante a Segunda Guerra Mundial e, neste ano, os dois completaram 100 anos de idade cada

Há 80 anos juntos e com 17 bisnetos, casal comemora 100 anos de idade

Os pais prometeram um presente quando a mãe começou a sentir as contrações do parto, a caminho do hospital — e a cobrança veio logo depois!

Reação inesperada de menina ao conhecer irmãozinho viraliza na web

Sarah, seu marido David e seus quatro filhos, da Alemanha, enfrentaram dias de incerteza e angústia durante as férias na Irlanda, após o desaparecimento da cadela Mali, que ficou sumida por 15 dias

Cão desaparece em viagem de férias e é encontrado duas semanas depois pela família, em penhasco