• Texto: Evanildo da Silveira | Edição: Luiza Monteiro
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O pampa agoniza: conheça as ameaças ao bioma do Rio Grande do Sul (Foto: Eduardo Vélez Martin)

O pampa agoniza: conheça as ameaças ao bioma do Rio Grande do Sul (Foto: Eduardo Vélez Martin)

Enquanto o Pantanal e a Amazônia ardem em chamas vistas com olhos indignados e estupefatos do mundo todo, o pampa, bioma que ocupa metade sul do Rio Grande do Sul, todo o Uruguai e parte da Argentina, agoniza em silêncio — e longe dos holofotes. Todos os anos são destruídos, em média, 125 mil hectares da sua cobertura original com vegetação nativa campestre, que hoje ocupa apenas 33,6% dos 19,3 milhões de hectares de área total da região. Entre 1985 e 2018, a extensão em que ela foi suprimida chegou a 2 milhões de hectares, o que representa 24,3% do que havia no início desse período.

Esses números são do estudo A agonia do pampa, realizado pela Rede Campos Sulinos, composta por pesquisadores dedicados ao estudo da biodiversidade nessa parte do país. Eles analisaram uma série histórica de mapas anuais de cobertura e uso da terra no Brasil, desde 1985, divulgados no início de 2021 pelo Projeto de Mapeamento Anual da Cobertura e Uso do Solo do Brasil (MapBiomas). A conclusão é que o pampa é o segundo bioma mais alterado do país, atrás apenas da Mata Atlântica, que tem só 12% da sua área original preservada. Segundo o biólogo e consultor ambiental Eduardo Vélez Martin, da Rede Campos Sulinos, o trabalho focou em quantificar a área da vegetação campestre a cada ano, em todo o pampa e também em 160 cidades. “Foi uma radiografia completa do que está ocorrendo no bioma, que torna possível identificar os municípios e regiões em situação mais crítica e aqueles que ainda se encontram bem conservados”, conta Martin.

O estudo também avaliou a perda mais recente da vegetação nativa, depois da promulgação da Lei Federal 12.651/2012, que dispõe sobre a proteção aos biomas do país. “Infelizmente os resultados mostram que a negligência dos órgãos públicos na implementação desse importante dispositivo legal tem contribuído para o estado crítico para o qual o bioma se encaminha”, lamenta Martin. Em 2012, a área de vegetação nativa campestre preservada era de 7,2 milhões de hectares, o que representava 37,5% do total do bioma. Seis anos depois, haviam sido destruídos 753,6 mil hectares, chegando a 6,5 milhões de hectares ou 33,6% da região. Os pesquisadores alertam que, se esse ritmo de supressão continuar, em 2050 a área de vegetação campestre atual terá sido reduzida em mais da metade, ocupando somente 12,9% do pampa.

Mas o que está causando tudo isso? Uma lista de fatores. Além da falta de políticas públicas que valorizem os serviços ambientais, há necessidade de iniciativas que incentivem a pecuária, tendo em vista que essa atividade econômica é compatível com a sustentabilidade da região, assim como outras formas de cultivo. “Também faltam ações que garantam áreas de proteção ambiental ou outras que contemplem os diferentes tipos de ecossistemas presentes no bioma”, acrescenta o biólogo e doutor em Ciências Florestais Leonardo Deble, professor da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), no Rio Grande do Sul.

A aplicação da Lei Federal 12.651/2012 também é um entrave. O Art. 2º da norma estabelece que “as florestas existentes no território nacional e as demais formas de vegetação nativa, reconhecidas de utilidade às terras que revestem, são bens de interesse comum a todos os habitantes do País”. Os campos gaúchos estão incluídos justamente nessas “demais formas de vegetação nativa”, o que é prejudicial na avaliação de especialistas. “Nota-se que predomina ainda na legislação uma linguagem que dá a entender que a proteção de florestas teria precedência ou maior importância do que a de outras formas de vegetação, e isso se reflete na prática, quando a lei precisa ser aplicada”, diz o agrônomo Valerio De Patta Pillar, professor do Departamento de Ecologia do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Pesquisadores alertam que, se ritmo de supressão continuar, em 2050 a área de vegetação campestre atual terá sido reduzida em mais da metade, ocupando somente 12,9% do pampa. (Foto: Eduardo Vélez Martin)

Pesquisadores alertam que, se ritmo de supressão continuar, em 2050 a área de vegetação campestre atual terá sido reduzida em mais da metade, ocupando somente 12,9% do pampa. (Foto: Eduardo Vélez Martin)

A isso se soma, de acordo com Pillar, a negligência do governo estadual em aplicar a legislação federal, principalmente a de proteção da vegetação nativa campestre. “Em 2015, cedendo a pressões do setor produtivo, o governador [José Ivo Sartori] assinou um decreto estadual (nº 52.431/2015) prevendo que remanescentes de campos nativos usados pela pecuária poderiam ser considerados ‘área rural consolidada por supressão de vegetação nativa com atividades pastoris’, uma categoria esdrúxula não prevista na Lei federal 12.651/2012”, critica o docente da UFRGS. Acontece que a criação de gado não suprime a vegetação nativa campestre. “Ao contrário, a mantém e é essencial para a conservação da biodiversidade típica desses ecossistemas”, assegura Pillar.

Mesmo assim, a pecuária no Rio Grande do Sul não recebe os incentivos necessários para acontecer de forma sustentável. “Com isso, vem perdendo terreno para a agricultura, muitas vezes praticada em locais com condições de solo e de clima considerados inadequados”, acrescenta Eduardo Vélez Martin. De fato, os dados do estudo A agonia do pampa confirmam o aumento da área destinada à produção agrícola, mas não só: também cresceram na região a silvicultura (plantio de árvores) e as pastagens cultivadas, principalmente destinadas à soja. Entre 1985 e 2018, o território da agricultura passou de 5,9 milhões para 7,4 milhões de hectares, ou de 30,7% para 38,3% do pampa. Já a silvicultura saltou de 79,9 mil hectares para 465,7 mil (0,4% para 2,4%) nesse período.

Uma das principais medidas apresentadas na pesquisa para ajudar a reverter o quadro atual é incentivar que a pecuária nos campos nativos seja reconhecida por políticas públicas e mecanismos de mercado como forma de produção sustentável e principal atividade mantenedora do pampa. Os pesquisadores recomendam ainda a criação de unidades de conservação, como Áreas de Proteção Ambiental (APA) e Áreas de Relevante Interesse Ecológico, ou de proteção integral, a exemplo do Refúgio de Vida Silvestre (REVIS) e do Monumento Natural (MONA). Nessas áreas, seria possível exercer a pecuária extensiva e outras atividades reconhecidas como sustentáveis sem necessidade de desapropriação. Entre as medidas sugeridas também está a realização de campanhas educativas e de alerta sobre a importância dos campos nativos — para todos os seres que os habitam.

Perdas irreversíveis

Para muitas pessoas, essa perda de vegetação nativa do pampa pode ser menos importante do que a de florestas. Afinal, imaginam, aquelas vastidões onduladas de campinas não devem ter uma grande biodiversidade. É um engano. “Os campos da bacia do Prata, do qual o pampa faz parte, são extremamente ricos em espécies”, destaca Deble. Inclusive, em termos de biodiversidade, eles podem ser comparáveis ao Cerrado, com a diferença de que têm menos árvores e mais gramíneas.

O número de plantas, por exemplo, é surpreendentemente grande, chegando a 4 mil espécies. “O pampa é o paraíso da vegetação herbácea, com mais de 2.150 [espécies] já catalogadas, das quais várias endêmicas, ou seja, que só são encontradas nesse bioma”, conta o docente da Unipampa. O especialista também ressalta que é notável a quantidade de cactos: são mais de 40 tipos.

O pampa é o paraíso da vegetação herbácea, com mais de 2.150 espécies já catalogadas (Foto: Eduardo Vélez Martin)

O pampa é o paraíso da vegetação herbácea, com mais de 2.150 espécies já catalogadas (Foto: Eduardo Vélez Martin)

A fauna é igualmente rica, com mais de 500 espécies de aves, sendo que cerca de 15% são exclusivas dos campos. Há ainda 100 espécies de mamíferos terrestres e uma diversidade de anfíbios e répteis ainda não totalmente inventariada. “Neste último grupo, destacam-se mais de 100 tipos de serpentes e de sapos, principalmente do gênero Melanophryniscus, dos quais cerca de 10 são exclusivos do pampa”, revela Deble.

A região também é abundante em peixes, que estão igualmente ameaçados. Merecem destaque diversas espécies endêmicas de peixes-anuais, principalmente a Austrolebias spp. Esses peixes são habitantes efêmeros de brejos e poças de água, dependentes das estações secas quando os adultos morrem e deixam os ovos que sofrem maturação, e das estações chuvosas quando os filhotes nascem e atingem a maturidade reprodutiva. A fauna de invertebrados ainda é pouco conhecida, mas diversos insetos, principalmente do gênero Cerambycidae, borboletas e aranhas foram registrados nas últimas décadas por lá.

Toda essa riqueza faunística se deve ao fato de que o pampa se caracteriza por ser uma região de transição zoogeográfica, com presença de muitas espécies que têm seu limite sul de distribuição geográfica, enquanto outras têm ali seu limite norte “É, portanto, um local de encontro delas”, diz o pesquisador da Rede Campos Sulinos. Segundo Martin, é expressivo o número de aves migratórias que frequentam o bioma, tanto vindas da América do Norte como do norte e do sul da América do Sul. “Cerca de 480 tipos já foram registrados, sendo que um quinto deles é tipicamente campestre”, observa.

Com a eliminação da vegetação nativa, grande parte dessa biodiversidade está em risco, podendo ocorrer extinção de muitas espécies típicas do bioma. Pode haver ainda perda de serviços ambientais, como regulação da atmosfera e do ciclo hídrico, além de ameaças à preservação de nascentes, controle da erosão, formação de solos, tratamento de efluentes, polinização, controle biológico e produção de alimentos, recreação e matérias-primas. “Sem esquecer dos aspectos culturais, com a descaracterização regional”, lembra Deble. É ilusão, portanto, pensar que só se tem a ganhar explorando de maneira irresponsável um bioma tão rico — e tão nosso quanto qualquer outro.