Saúde
Estudo da UFPR revela efeito tóxico da cloroquina nos vasos sanguíneos
Pesquisa mostra que uso do medicamento pode causar danos no funcionamento das células endoteliais, sendo um potencial agravante para quadros de Covid-19
5 min de leituraDesde o início da pandemia de Covid-19, diversos cientistas decidiram mudar temporariamente a rota principal de seus estudos para concentrar esforços no combate à crise de saúde mundial. É o caso de um grupo de pesquisadores da Universidade Federal do Paraná (UFPR) que, em 2016, deu início a uma investigação sobre o comportamento das células endoteliais de pessoas acometidas pela Doença de Fabry, um distúrbio genético raro que acomete um a cada 117 mil homens no mundo.
Em setembro de 2020, no entanto, o grupo percebeu que os resultados que estavam sendo observados poderiam contribuir para a discussão em torno do tratamento de outro tipo de paciente: os infectados pelo Sars-CoV-2. É resultado dessa percepção o artigo veiculado na revista científica Toxicology and Applied Pharmacology no último dia 4 de fevereiro, que alerta para os efeitos tóxicos causados pela cloroquina no endotélio humano, membrana que reveste nossos vasos sanguíneos.
O que levou um estudo inicialmente dedicado à Doença de Fabry a levantar hipóteses sobre a Covid-19 foi justamente o medicamento que, apesar de ter sua ineficácia clínica comprovada no combate ao Sars-CoV-2 em diversas pesquisas, continua sendo usado no tratamento da infecção pelo vírus no Brasil.
Mas o objetivo primário do grupo nada tinha a ver com a relação entre o remédio e o novo coronavírus. "Estávamos usando a cloroquina para provocar nas células um quadro clínico observado em pessoas com Doença de Fabry”, explica Andréa Emília Marques Stinghen, professora do Departamento de Patologia Básica da UFPR e orientadora do estudo, em entrevista a GALILEU.
Nesse distúrbio raro, dores intensas atingem as extremidades do corpo devido à atividade deficiente da alfa-galactosidase A, enzima que degrada gorduras dentro dos lisossomos – organelas que realizam a digestão intracelular. De forma semelhante, esse fenômeno também pode ser induzido pela cloroquina – fato já comprovado pela literatura científica. Foi por esse motivo que os cientistas trataram linhagens de células endoteliais humanas com uma quantidade clinicamente relevante do remédio. A ideia era mimetizar, in vitro, as células de uma pessoa com a Doença de Fabry, a fim de observar características como morfologia e reações em cadeia.
Um dos primeiros a explorarem o efeito da ausência dessa enzima especificamente em células endoteliais, o trabalho acabou indo além: trouxe novas hipóteses sobre os potenciais riscos da cloroquina no tratamento de pessoas com Covid-19.
A reviravolta – e o que ela traz de novidade
Após 72 horas mergulhadas em quantidades de cloroquina semelhantes às absorvidas pelo corpo humano, as células apresentaram resultados que chamaram a atenção dos pesquisadores: acúmulo de organelas ácidas, aumento dos níveis de radicais livres e queda na produção de óxido nítrico. O desfecho foi um quadro conhecido como “estresse oxidativo” ou, como resume Stinghen, um cenário em que as células param de produzir as substâncias que as protegem e passam a fabricar toxinas em excesso.
Foi aí que, em meio à pandemia de Covid-19 e às discussões em torno do uso da cloroquina para tratar a enfermidade, uma nova questão surgiu entre o grupo: se o estudo mostrava que o medicamento danifica as células que revestem os vasos sanguíneos e a Covid-19 também é apontada como uma doença vascular, quais seriam os riscos de seu uso no tratamento de pessoas infectadas pelo Sars-CoV-2?
“Ao atacar as células endoteliais, presentes em todos os vasos sanguíneos do corpo humano, a cloroquina pode afetar a circulação de órgãos como coração, rins e pulmões, alguns dos mais atingidos pela Covid-19”, responde Paulo Cézar Gregório, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Microbiologia, Parasitologia e Patologia da UFPR. “Por isso, a nossa hipótese é a de que o uso do medicamento pode agravar o quadro de pessoas com a doença”, diz o autor da pesquisa.
Já se saber que a Covid-19 é uma doença sistêmica – que afeta uma série de órgãos – e, por isso, também é capaz de atingir os vasos sanguíneos que permeiam o corpo humano. Em casos graves, um dos eventos associados à enfermidade é a trombose, caracterizada pela formação de coágulos que provocam inflamação ou obstrução de sangue na região da veia atingida. Em contato com a cloroquina, esse quadro, segundo a pesquisa, poderia ser consideravelmente potencializado.
“A cloroquina foi uma promessa de curta duração, já que é um medicamento usado há mais de 70 anos para combater outras doenças, tem baixo custo e apresentou um efeito inibitório in vitro do Sars-CoV-2, porém essa eficácia nos ensaios clínicos não existe”, reitera Paulo. O autor do estudo explica que, no caso da Covid-19, os riscos atrelados ao uso do medicamento não superam o benefício da inibição da replicação viral, o que é diferente do observado em doenças como malária e lúpus. Nesses casos, as vantagens associadas ao remédio são maiores do que os efeitos colaterais, o que justifica sua prescrição.
Para Fellype Carvalho Barreto, professor do Departamento de Medicina Interna da UFPR e um dos orientadores da pesquisa, a descoberta se soma a outros achados que também discutem os riscos ligados ao uso da cloroquina no tratamento de pacientes com o novo coronavírus, como arritmia e problemas hepáticos. “É um tema já superado em outros países [o uso da cloroquina para tratar Covid-19], mas que ainda é forte no Brasil”, observa o médico. “Então, a pesquisa ajuda a refletir sobre o potencial de toxicidade desse remédio e alerta para um novo risco de sua prescrição ou incentivo nesses casos”.
Respeito à ciência
No Brasil, autoridades como o presidente Jair Bolsonaro e o atual ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, já afirmaram que a cloroquina poderia ser usada como “tratamento precoce” contra a Covid-19. Essa politização do medicamento, para a professora Andrea, além de ter levado ao uso errôneo do fármaco, provocou nas pessoas uma falsa sensação de proteção.
"Isso teve um impacto social amplo, porque muitos pensaram ‘vou tomar a cloroquina e assim não preciso mais usar máscara’, gerando uma reação em cadeia que contribuiu para o que estamos vivendo hoje no país”, considera a orientadora do estudo.
Para ela, a pesquisa também reitera um ponto sem o qual o combate ao coronavírus não funciona: o respeito às evidências científicas. “A pandemia jogou luz sobre o papel da ciência na sociedade, especialmente a ciência produzida no seio das universidades e institutos públicos, de onde estão saindo as vacinas do país contra o novo coronavírus”, destaca.
*Com supervisão de Luiza Monteiro