• Marília Marasciulo
Atualizado em
Ilustração de um

Ilustração de um "creme' indo tomar um banho de sol (Foto: Getty Images)

Há milênios a humanidade busca formas de se proteger dos raios solares. No Egito, os principais produtos eram a mamona, o jasmim e o óleo de amêndoas. Na Grécia Antiga, os atletas olímpicos besuntavam seus corpos nus em misturas com óleo de oliva. E na era moderna, quando frequentar a praia virou um hábito de lazer, a proteção passou a ser física — basta olhar fotos antigas e ver as pessoas com roupas do dia a dia ou trajes de banho que iam da cabeça aos pés.

Foi só em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial, que uma substância realmente eficaz foi criada. Os soldados norte-americanos que combatiam em territórios no oceano Pacífico sofriam muito com as queimaduras, até que um farmacêutico chamado Benjamin Green produziu um creme viscoso, de cor avermelhada e feito à base de petróleo. O produto foi logo adotado pelo exército e depois teve sua fórmula aprimorada para o grande público, que hoje tem acesso a uma variedade de níveis de proteção e texturas oferecidas por diferentes marcas.

Mais recentemente, porém, alguns ingredientes dos filtros solares passaram a ser questionados por parte da comunidade científica. A partir principalmente do início dos anos 2000, começaram a surgir estudos que apontam possíveis consequências ruins do uso de protetor à saúde e ao meio ambiente. Eles sugerem, por exemplo, que a reação da luz solar com as substâncias químicas dos filtros gera subprodutos potencialmente tóxicos quando absorvidos pela pele. Ou ainda que esses compostos, quando entram no mar, são prejudiciais ao ecossistema.

Seria a hora de atualizar aquele famoso poema que, no início deste milênio, fez sucesso no Brasil na voz do jornalista e apresentador Pedro Bial? A resposta pura e simples é não. “Em termos de saúde pública, o uso do protetor solar para prevenir contra o câncer de pele é muito importante”, destaca o dermatologista Sérgio Schalka, coordenador do Consenso Brasileiro de Fotoproteção. “A única alternativa para as pessoas é voltar a ter o comportamento do século 19 de não sair ao sol ou ir à praia vestido completamente. Enquanto o benefício é claro e relevante, o risco é bastante discutível.” Mas isso não significa que não seja necessário aprofundar as pesquisas e, caso a toxicidade das substâncias se confirme, encontrar substitutas — o que já vem sendo feito por muitas fabricantes, apesar de o assunto ainda ser rodeado por controvérsias.

"Muitos estudos têm problemas metodológicos (...) querem ver o efeito tóxico [do protetor] e acabam usando uma quantidade muito maior do que uma pessoa aplicaria""

Paulo Newton Tonolli, doutor em bioquímica pelo Instituto de Química da USP

Segurança em xeque

Atualmente, existem dois métodos principais de proteção solar. Os filtros físicos contêm nanopartículas que funcionam como barreira contra a radiação vinda do Sol, caso do óxido de zinco e do dióxido de titânio. Já os filtros químicos funcionam a partir de moléculas orgânicas que captam a energia dos raios ultravioleta (UV), mudam a estrutura das ondas e as devolvem em um comprimento maior, de modo que não são absorvidas na pele. Em geral, os produtos modernos combinam ambos os componentes para garantir o fator de proteção solar (FPS) prometido.

Dentre as várias substâncias filtrantes presentes nos protetores solares, a oxibenzona é considerada a principal vilã. Pesquisas atribuem a ela prejuízos à saúde das pessoas e à natureza. Experimentos de laboratório em animais revelaram que ela tem um efeito estrogênico, colaborando para a disrupção hormonal. Estudos em humanos mostraram um potencial alergênico da substância. E em testes feitos em aquários, altas doses do composto colaboraram para o branqueamento de corais.

Já na década de 1990, poucos anos depois dos primeiros filtros serem lançados no Brasil, estudos demonstraram que a oxibenzona é absorvida pela pele durante a aplicação do protetor solar em uma taxa entre 1% e 2%. Posteriormente, uma análise de 2.517 amostras de urina coletadas nos Estados Unidos entre 2003 e 2004, cujos resultados foram publicados em 2008, mostrou que a substância foi detectada em 96,8% dos voluntários. O fato de o composto circular na corrente sanguínea gerou preocupações sobre sua toxicidade.

Uma das primeiras pesquisas a mostrar o potencial malefício da oxibenzona foi publicada em 2001. Em análises in vitro e in vivo, cientistas liderados pela pesquisadora Margret Schlumpf, da Universidade de Zurique, na Suíça, administraram a substância em ratos imaturos por via oral. As conclusões apontaram para seu efeito estrogênico, afetando o desenvolvimento do útero das cobaias e levantando preocupações sobre os efeitos hormonais do composto químico.

Estudos semelhantes indicaram que a oxibenzona também pode prejudicar a vida marinha, colaborando para o branqueamento de corais. As primeiras evidências são de 2008. Com estudos in situ e em laboratório, pesquisadores liderados pelo biólogo marinho Roberto Danovaro, da Universidade Politécnica de Marche, na Itália, introduziram quantidades de filtro solar em amostras oriundas dos oceanos Atlântico, Índico e Pacífico, além do Mar Vermelho. A conclusão foi categórica: “Os protetores solares causam o branqueamento rápido e completo dos corais duros, mesmo em concentrações extremamente baixas. O efeito dos protetores solares se deve aos filtros ultravioletas orgânicos".

Recentemente, o óxido de zinco — principal componente dos filtros físicos, em geral tidos como mais seguros — também foi alvo de dúvidas. Uma pesquisa divulgada em outubro de 2021, feita pelas universidades de Oregon, nos EUA, e de Leeds, na Inglaterra, revelou que, após poucas horas de exposição solar, a substância perde o efeito filtrante e se torna, inclusive, tóxica. “Durante os testes, descobrimos que o óxido de zinco causa degradação de outros absorvedores de UV, e a proteção fornecida pelos protetores solares foi reduzida de forma significativa em um tempo relativamente curto, principalmente na região UVA”, disse o professor James Hutchinson, da Universidade de Oregon, em comunicado.

imagem ilustrativa de uma cadeira de praia embaixo de um guarda sol (Foto: Getty Images)

imagem ilustrativa de uma cadeira de praia embaixo de um guarda sol (Foto: Getty Images)

Método arriscado

Estudos como esses causaram reações de governos e órgãos reguladores mundo afora. Quando as primeiras pesquisas começaram a surgir, agências regulatórias de países da Europa e dos Estados Unidos passaram a limitar a presença da oxibenzona em 6% (no Brasil, o limite permanece 10%). Nos EUA, a limitação veio em 2013 e, na União Europeia, em 2008. Legislações ambientais, com o intuito de proteger os corais, proibiram o uso de produtos com a substância no Havaí e na ilha de Key West, ambos nos Estados Unidos, e no arquipélago de Palau.

Filtros químicos também não são mais recomendados para crianças devido ao risco de provocar alergia. “A principal preocupação é em relação a quanto essas moléculas, ao receberem energia da luz, podem se decompor em outras moléculas, e esses subprodutos penetrarem na pele”, explica o pesquisador Paulo Newton Tonolli, doutor em bioquímica pelo Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em fotoquímica e fotobiologia. “Mas, muitas vezes, os estudos têm problemas metodológicos. Às vezes, querem ver o efeito tóxico e acabam usando uma quantidade muito maior do que uma pessoa acabaria aplicando na pele”, pondera.

Na visão do dermatologista Schalka, não existem justificativas para evitar o uso de protetor solar por causa de resultados como esses. “A oxibenzona está no mercado americano há pelo menos 30 anos. É massivamente oferecida. Do ponto de vista clínico, nunca se observou nenhum tipo de doença relacionada ao contato com essa substância ou com protetor solar em geral”, ressalta.

Essas ponderações são corroboradas por revisões críticas que se debruçaram sobre pesquisas já realizadas. Um artigo publicado em 2020 no International Journal of Dermatology analisou 29 estudos sobre efeitos da oxibenzona em humanos e concluiu que “as evidências não são suficientes para estabelecer uma relação causal entre níveis elevados e sistêmicos de oxibenzona e octinoxato [outra substância dos filtros solares] e resultados adversos para a saúde”. Já um trabalho publicado também em 2020 no periódico Environmental Toxicology and Chemistry analisou 12 pesquisas sobre os impactos do composto na vida marinha e a conclusão foi semelhante: de que existem “evidências limitadas para sugerir que sua presença está causando danos significativos aos recifes de coral”.

"As pessoas tendem a ouvir o que elas querem e se agarram a isso para justificar hábitos que não são saudáveis [não usar protetor]""

Tatiana Blumetti, dermatologista e membro da SBD

Maior risco não é usar

Entre dermatologistas, a unanimidade é de que o principal risco está em não utilizar filtro solar. Desenvolvidos para prevenir queimaduras, os protetores ganharam uma importância maior ainda a partir do entendimento de que os raios UVA e UVB emitidos pelo Sol colaboram para o desenvolvimento do câncer de pele. De acordo com o Instituto Nacional do Câncer (Inca), o câncer de pele é o tipo mais comum no Brasil. Entre 2020 e 2022, estima-se que a doença, em suas variadas formas, atingirá mais de 600 mil homens e mulheres.

Segundo a dermatologista Tatiana Blumetti, assessora do departamento de oncologia cutânea da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD), são três os principais tipos de câncer de pele. O mais comum é o carcinoma basocelular, que se desenvolve nas células basais da pele, na camada mais profunda. Manifesta-se em tumores pequenos, como feridas que não saram, e tem uma capacidade reduzida de metástase.

O segundo tipo mais comum é o carcinoma espinocelular, que tem origem na camada cutânea mais superficial. É um pouco mais agressivo que o basocelular e pode gerar alguns tipos de metástase. Por fim, o mais severo e menos comum é o melanoma, que mesmo pequeno, com tumores medindo cerca de 6 milímetros, pode se espalhar para outros órgãos, como cérebro, pulmão e fígado, e levar à morte. “Daí o conceito errado de que câncer de pele não é grave”, adverte Blumetti.

Regulamentação rigorosa

Com tantas contestações, muitos dos elementos “polêmicos” presentes nos filtros já estão entrando em desuso. “Se falar de protetor solar hoje em relação há cinco ou 10 anos, eles estão bem melhores. Muitos nem usam mais as substâncias ‘duvidosas’”, afirma Schalka. E isso ocorre por iniciativa da própria indústria. “Por exemplo, hoje, para crianças e bebês, só são produzidos os protetores físicos com óxido de zinco. E estão desenvolvendo outros componentes menos tóxicos, obtidos a partir de extratos naturais, como a bixina, do urucum”, aponta Tonolli.

Esse também é um compromisso e uma posição oficial da Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (ABIHPEC), entidade que representa o setor. “As discussões sobre ingredientes de proteção solar são constantes, globais e baseadas em ciência. A ABIHPEC acompanha tais fóruns de discussão aqui no Brasil, assim como no mundo todo e, junto com seus associados, tem todo o interesse em seguir buscando o desenvolvimento de novas moléculas, cada vez mais tecnológicas”, declara a instituição, em nota enviada à reportagem.

Ilustração de uma gota de protetor solar  (Foto: Getty Images)

Ilustração de uma gota de protetor solar (Foto: Getty Images)

Por aqui, todos os produtos de higiene pessoal, cosméticos e perfumes são regularizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa. Nisso se incluem os filtros solares, que devem seguir três listas: a de substâncias proibidas, a de substâncias de uso restrito e a de substâncias permitidas para conservantes, corantes, filtros ultravioletas e alisantes/onduladores. “Essas listas são periodicamente atualizadas considerando o processo de desenvolvimento científico e tecnológico na área de cosméticos. Os critérios para a atualização das listas, reconhecidas pela comunidade científica, consideram os aspectos de saúde e segurança para o usuário”, explica a agência, também em nota.

Na Anvisa, os filtros solares são classificados como produtos de Grau 2, de modo que precisam de comprovação de segurança e eficácia. Fabricação e comercialização dependem da concessão de registro publicado no Diário Oficial da União. Esse registro é concedido após aprovação da equipe técnica da Coordenação de Cosméticos, que avalia os estudos de eficácia apresentados pela fabricante no ato da solicitação.

Embora a regulamentação brasileira considere a comunidade científica global e a legislação de outros países e blocos, como Estados Unidos e União Europeia, há algumas particularidades. Nos EUA, por exemplo, os protetores solares são enquadrados como medicamentos; na Europa, assim como no Brasil, são considerados cosméticos, mas a forma de declarar o FPS é diferente. Aqui, o rótulo deve apresentar o número inteiro do fator de proteção, que precisa ser de no mínimo 6 e menor que 100. Na União Europeia, o valor mínimo também é 6, mas produtos com FPS acima de 50 podem constar 50+ na rotulagem.

Mesmo que nenhuma agência de saúde tenha constatado resultados clínicos de malefícios, a preocupação com a absorção de substâncias químicas no corpo e no ambiente é válida. “Não vamos mentir, é verdade que existem alguns protetores com componentes nas fórmulas que podem ter absorção. Eles provavelmente vão acabar sendo removidos do mercado”, reconhece a dermatologista da SBD. “Mas as pessoas tendem a ouvir o que elas querem e se agarram a isso para justificar hábitos que não são saudáveis. ”

Até o momento, as evidências científicas seguem apontando para o que já sabemos há décadas: use filtro solar.