• Marilia Marasciulo
Atualizado em
Antropólogo sul-africano James Suzman (Foto: Divulgação)

Antropólogo sul-africano James Suzman (Foto: Divulgação)

A humanidade nunca alcançou tamanho nível de riqueza. Ao mesmo tempo, temos a impressão de que trabalhamos cada vez mais e que estamos sempre estressados. Entender esse dilema sob uma perspectiva histórica foi o que levou o antropólogo sul-africano James Suzman a escrever Trabalho: uma história de como utilizamos nosso tempo. Publicado em 2020, o livro foi lançado no Brasil em maio pela editora Vestígio.

Segundo suas pesquisas, a noção de trabalho que ainda carregamos nos dias de hoje remete ao início da Era Agrícola, quando a espécie humana deixou de ser caçadora-coletora para se assentar em comunidades rurais — que depois evoluíram para as grandes civilizações. “Havia uma espécie de equivalência natural entre trabalho e recompensa. E isso moldou todas as instituições contemporâneas”, diz o autor, em entrevista a GALILEU.

Nascido em Joanesburgo, na África do Sul, Suzman atualmente é pesquisador na Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Dedicou sua carreira a estudar os povos Sãs, constituídos por um conjunto de etnias autóctones de caçadores-coletores em territórios que abrangem Botsuana, Namíbia, Angola, Zâmbia, Zimbábue e África do Sul. Essas pesquisas o ajudaram a entender como nossos ancestrais lidavam com o trabalho e de que forma essa relação evoluiu ao longo de milênios.

“Estamos em um dos únicos momentos da história em que podemos ver as consequências das nossas ações futuras e enfrentar a provação de fazer as mudanças antes que o desastre ocorra”, afirma. Além da perspectiva histórica, Suzman fala sobre os legados da mentalidade agrícola na economia e na sociedade, a importância das leis trabalhistas e o que podemos fazer para repensar e mudar nossa relação com o trabalho. Leia a entrevista a seguir.

Quando e como o trabalho se tornou tão importante para os humanos?

Acho que começou a se tornar importante depois da invenção da agricultura. Pensemos na longa jornada histórica da humanidade. Sabemos que o Homo sapiens moderno surgiu há aproximadamente 340 mil anos. E hoje a maioria de nós [cientistas] reconhece que os primeiros ancestrais dos Homo sapiens eram provavelmente tão inteligentes e capazes como somos atualmente. Então, nesse período da história humana, em 95% do tempo fomos caçadores-coletores.

Em estudos recentes que fizemos com sociedades caçadoras-coletoras atuais, percebemos que elas tendem a focar todo o trabalho nas necessidades do presente. Evidências de armazenamento de comida, por exemplo, estão ausentes dos registros históricos daquela época. Até o início da agricultura, eles tinham o que chamamos de economia de retorno imediato. E isso, claro, é fundamentalmente diferente do que a maioria de nós faz hoje, em que a maior parte do nosso trabalho é para realizar algum desejo do futuro.

Como a mentalidade do trabalho duro moldou nossas sociedades?

Escrever este livro, em parte, foi para tentar entender isso como um fenômeno histórico. Por que, quando nossas necessidades básicas se encontram atendidas, continuamos a trabalhar duro? Isso ocorre porque somos criaturas culturais. Somos criados pelo nosso contexto, pelo que conhecemos, pelas moralidades que herdamos, pelas maneiras antigas de fazer coisas. Tivemos cerca de 10 mil anos de expansão agrícola crescente e, durante esse período, todas essas ideias e normas foram se tornando profundamente enraizadas no tecido social e cultural. E isso continuou a ser amplificado até o início da Era Industrial. Até então, havia uma clara correspondência entre o quão duro você trabalhava e o quanto você ganhava. Havia uma espécie de equivalência natural entre trabalho e recompensa, e isso moldou todas as instituições contemporâneas.

E como todo esse processo nos afeta hoje?

A dificuldade é que essas normas culturais evoluíram em um ritmo diferente, e para responder a um conjunto de problemas diferentes. Atualmente, estamos em um mundo onde a energia produzida pelo trabalho é desproporcional. Não há mais equivalência, embora a gente ainda esteja organizando nosso trabalho como se fôssemos agricultores. Ainda temos essa ideia de que a preguiça é um pecado terrível. Consideramos positiva a resposta instintiva de nos sentirmos culpados por não trabalhar. E, ao mesmo tempo, continuamos dizendo para nós mesmos, apesar de todas as evidências contrárias, que o trabalho duro gera recompensas, que pessoas ricas construíram suas fortunas com trabalho. E na verdade é o contrário disso.

Estamos numa era em que o capital gera novas fortunas e que pessoas que trabalham mais e mais duro tendem a ser, na verdade, as mais pobres. Então, estamos nesta situação: temos instituições, ideias, jeitos de pensar, crenças e normas que herdamos do passado, mas que não funcionam mais tão bem. Ainda assim, estamos agarrados a elas e continuamos a mantê-las como a base do nosso sistema político e econômico.

Então, essa nossa relação desequilibrada com o trabalho poderia ser considerada também uma das causas das tensões sociais?

Se olharmos para as grandes civilizações, como o Egito ou os Maias, a maior parte das pessoas vivia em áreas rurais, onde havia essa simples relação entre energia, prosperidade e trabalho. Mas isso mudou depois da revolução dos combustíveis fósseis. Desde o início da Revolução Industrial, e conforme fomos ficando mais industrializados e mecanizados a cada avanço tecnológico, até chegarmos à revolução digital, acabamos por dar muito mais valor a quem é dono dos recursos, ou das máquinas, porque são elas que realizam a maior parte do trabalho. O trabalho deixou de ser a causa primária da criação de riquezas, e a propriedade dos ativos tornou-se o principal motor da criação dos próprios ativos.

Desde então, principalmente a partir da revolução digital, vemos essa crescente desigualdade global. Essa desigualdade que não é baseada no quão duro você trabalha, mas em quem possui os ativos e quem não os possui. O conjunto desses ativos cria mais valor, rendimentos, dividendos e assim por diante. E essa economia baseada em ativos, aliada a uma grande desigualdade, produz muita tensão social. O que, do meu ponto de vista, parece ser o motivo oculto por trás de muita dessa destruição política que vem ocorrendo na última década. Isso é parte do legado de ter um sistema econômico e de recompensa laboral baseado na mentalidade agrícola em uma era tecnológica. Não funciona. É como tentar ligar o motor de um carro abastecido com leite.

Desde a Revolução Industrial, o trabalho deixou de ser a causa primária da criação de riquezas, e a propriedade dos ativos tornou-se o principal motor da criação dos próprios ativos (Foto: Museum Victoria)

Desde a Revolução Industrial, o trabalho deixou de ser a causa primária da criação de riquezas, e a propriedade dos ativos tornou-se o principal motor da criação dos próprios ativos (Foto: Museum Victoria)

A mentalidade de abundância e acúmulo traz também consequências ambientais. qual o tamanho do impacto disso para o planeta?

Nós vivemos em uma era de extraordinária vulnerabilidade ambiental, e mesmo assim os governos estão cegos pelo crescimento econômico. Tudo diz respeito a crescer e crescer ano a ano, um ciclo perpétuo de crescimento e consumo.

Mas quando paramos para realmente ver, quais são os benefícios do crescimento eterno? Porque a única coisa que me parece particularmente clara é que criar esse foco em crescimento perpétuo é também criar uma cultura baseada em coisas descartáveis, em consumo excessivo de energia. Nada é feito para durar, tudo agora é descartável. Parte disso é porque queremos que as pessoas fiquem comprando coisas melhores e substituindo-as, em vez de reciclar ou reutilizar.

No livro, você cita a famosa tese do economista John Keynes de que em 2030 as pessoas trabalhariam menos. Hoje, temos muita abundância, mas também estamos trabalhando mais do que nunca. O que deu errado?

Gostamos de pensar em nós mesmos como pessoas de criatividade infinita e no controle. Não acredito nisso. Acho que somos seres culturais muito focados em hábitos. Criamos essas instituições um tanto complicadas, que uma vez criadas se tornam muito difíceis de desemaranhar. Acredito que a maioria das pessoas reconhece que essas coisas que criamos para organizar nossa vida, a política e a economia, não servem mais. Mas o desafio de desfazer isso é assustador. Acho que os humanos foram projetados e evoluíram para gostar da continuidade.

“Continuamos dizendo a nós mesmos, apesar de todas as evidências, que o trabalho duro gera recompensas” 

Suzman critica a mentalidade de que trabalhar muito nos levará ao sucesso

E há um bom motivo histórico e cultural para o fato de sermos adaptados a desenvolver sistemas, buscar a repetição e temer a insegurança. Em muitos pontos da história, as pessoas ficaram teimosamente agarradas a ideias simplesmente por terem medo das alternativas. Isso explica por que as grandes mudanças normalmente só ocorrem quando algo terrível está para acontecer, quando todo o sistema está em vias de colapsar. E eu acho que o grande desafio que temos pela frente é que agora estamos em um dos únicos momentos da história em que podemos ver as consequências das nossas ações futuras e enfrentar a provação de fazer as mudanças antes que o desastre ocorra.

Na sua visão, o que devemos fazer para romper com esses hábitos e, talvez, trabalhar menos?

O objetivo não necessariamente é esse. Alcançar isso é um subproduto de fazermos as coisas direito. Mas a verdade é que eu não sei qual é a resposta. E acho que ninguém sabe, porque estamos em um mundo que muda rápido e constantemente, com novas tecnologias surgindo. Sabemos que os sistemas antigos não servem mais para seus propósitos. Isso é bem óbvio, porque não conseguimos mais resolver nossos problemas com eles. Os custos ambientais, a desigualdade emergente: nós não sabemos como substituir isso, porque não tentamos coisas diferentes.

Para mim, a chave é desenvolvermos o que chamo de uma mentalidade experimental. Uma abordagem como a de um engenheiro quando se depara com um novo desafio e precisa experimentar novas tecnologias e ferramentas, e estar preparado para falhar. É ter humildade de reconhecer que não temos as respostas em uma bandeja. Eu gostaria que tivéssemos mais líderes políticos que propusessem nas eleições: “O que nós vamos fazer é experimentar tal coisa, vamos tentar isso e ver se funciona.”

Mas você acha que o mundo estaria preparado para esse tipo de mudança?

Impressionantemente, quando a mudança nos é imposta, acabamos por nos tornar muito bons nela. Sabe, se há três anos você dissesse para mim que eu passaria a maior parte de 2020 na minha casa, somente com meus filhos e minha esposa, sem ver mais ninguém, e a maior parte do país também o faria, e que isso aconteceria de forma razoavelmente eficaz, eu não acreditaria. Mas somos incrivelmente adaptáveis quando forçados, quando reconhecemos a virtude de fazer algo. Então, o ponto é como nos fazer ficar preparados. De novo, eu não sei se estamos prontos, mas essas coisas costumam acontecer em resposta a algum desastre externo.

“Mais pessoas trabalham mais e mais, enquanto o valor real [do trabalho] é criado pelas máquinas” 

James Suzman analisa o papel das leis trabalhistas no cenário econômico atual

E eu acho que, em termos de hábitos de trabalho, nós vimos uma mudança gigantesca em como os funcionários de escritórios trabalham após o surgimento da Covid-19. Ela causou uma mudança fundamental e abriu uma linha de diálogo sobre o futuro do trabalho de uma maneira que nós não achávamos que fosse possível há dois ou três anos.

Nos últimos anos, vimos muitos direitos trabalhistas sendo desmantelados no Brasil, levando as pessoas à economia informal. E isso também aconteceu de forma acentuada com a pandemia, em que muitos ficaram desempregados e os trabalhos tradicionais foram perdidos. Qual a importância dos direitos trabalhistas para mantermos uma abordagem saudável em relação ao trabalho?

No curto prazo, são essenciais. Mas não acho que eles são tão importantes quanto foram no passado. No último século, ao mesmo tempo em que houve sindicalização, tivemos uma diminuição no valor do trabalho humano. Mais pessoas trabalham mais e mais, enquanto o valor real é criado pelas máquinas. Hoje existem muitas empresas e não é mais possível ameaçá-las com greves, porque elas não dependem de pessoas. Então, como o trabalho perdeu valor, as proteções trabalhistas se tornaram menos efetivas.

Nós precisamos pensar que não se trata mais apenas de salário. Eu gostaria de ver, por exemplo, os sindicatos realmente advogando para que os trabalhadores tenham participação societária nas empresas. Nós vivemos em uma economia baseada em ativos, em riqueza e valor em vez de trabalho duro e salário. Então acho que o mais eficaz é encontrar mecanismos para garantir que todos tenham algum tipo de acesso ao valor que é gerado. Embora as proteções trabalhistas sejam absolutamente vitais, temos que reconhecer que a economia está mudando e pensar em outras maneiras de não apenas proteger, mas capacitar os mais pobres e marginalizados em nossa sociedade.

E como você vê o futuro do trabalho?

Vou falar minha ideia caso resolvêssemos todas as questões econômicas. Para mim, os humanos são criaturas estranhas que desejam trabalhar. Somos criaturas com propósito. Quando não temos trabalho para fazer, ficamos perdidos e entediados. E costumamos usar a palavra “trabalho” para descrever nossas tarefas. Eu, por exemplo, no final do dia cozinho. Mas para um monte de gente isso é uma chateação, algo que elas costumam pagar para alguém fazer ou reclamam quando precisam fazer para os outros.

Quando olhamos para o mundo ao nosso redor, neste momento muitos estão trabalhando em coisas realmente chatas, mas recompensadoras. Eu gostaria de ver um mundo no qual maximizamos o valor do potencial humano. E isso envolve deixar as pessoas fazerem coisas que lhes dão prazer real. Em vez disso, vivemos em um mundo onde, por causa desse sistema econômico arcaico, desencorajamos as pessoas realmente talentosas de fazerem aquilo que elas deveriam estar fazendo de melhor. Se Mozart estivesse vivo hoje, provavelmente ele não teria tempo para escrever concertos, porque estaria dirigindo uma van da Amazon.

Voltando ao que você escreve no livro, o que podemos aprender com os nossos ancestrais para chegar a esse ponto ideal?

Por séculos, os economistas falaram como é da natureza humana sempre querer mais do que podemos ter. Mas uma lição fundamental dos nossos ancestrais é que isso não é verdade. Na maior parte da história humana, as pessoas foram extremamente boas em estar satisfeitas com apenas o suficiente. Acho que a lição fundamental é que a felicidade e o contentamento não necessariamente vêm do ter.

TRABALHO: UMA HISTÓRIA DE COMO UTILIZAMOS O NOSSO TEMPO, de James Suzman (Vestígio, 368 páginas, R$ 74,90) (Foto: Divulgação) (Foto: Reprodução)

TRABALHO: UMA HISTÓRIA DE COMO UTILIZAMOS O NOSSO TEMPO, de James Suzman (Vestígio, 368 páginas, R$ 74,90) (Foto: Divulgação) (Foto: Reprodução)

Você diria que, para enfrentarmos todas essas crises que estão diante de nós, precisamos começar a repensar nossa relação com o trabalho?

Sim, tudo isso é parte de um sistema integrado. Nossa relação com o trabalho está emaranhada nas nossas relações com o meio ambiente, com o consumo, com a produção e com a maneira que organizamos nossa economia. Eu acho que isso é como o nó górdio que Alexandre, o Grande, não conseguia desfazer. Então, ele pegou uma espada e cortou tudo de uma vez.

Acho, lamentavelmente, que podemos estar em uma posição em que pode ser muito difícil desemaranhar cada um desses elementos individuais. Nossa relação com o trabalho é um símbolo e um produto de um maior e mais complexo conjunto de questões institucionais que precisamos mudar. E parte da dificuldade de fazer isso sozinho é o jeito como nossa economia é organizada. Algumas pessoas estão simplesmente ocupadas demais tentando fazer as coisas somente para colocar comida na mesa. Acho que, de certa forma, uma das coisas que isso requer é uma grande liderança. Alguém preparado para cortar o nó.