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Em 1607, o astrônomo alemão Johannes Kepler publicou esboços do que ele acreditava ser a passagem de Mercúrio pelo Sol, a partir de observações com sua câmara escura. Porém, posteriormente, foi comprovado que o “planeta” que ele havia visto era, na verdade, uma mancha solar. Apesar do equívoco, o que ninguém imaginava era que, hoje, quatro séculos depois, esses mesmos desenhos poderiam ajudar os cientistas a prever atividades solares.

Em comunicado à imprensa, Hisashi Hayakawa, autor do estudo que revisou as observações de Kepler, afirma que, por anos, os desenhos tiveram a sua importância subestimada: “Como esse registro não foi uma observação telescópica, só foi discutido no contexto da história da ciência. No entanto, esse é o esboço de mancha solar mais antigo já feito, o que quer dizer que pode ser usado para análises quantitativas dos ciclos solares no século 17”.

Por isso, Hayakawa e sua equipe se propuseram a recriar as condições e posições das manchas registradas por Kepler a partir de técnicas mais modernas. Dito e feito. O exercício resultou em informações inéditas sobre o ciclo solar, anterior àquelas registradas por Thomas Harriot e Galileu Galilei (conhecido como “-13”, pela contagem regressiva de 1755, quando o pico foi reconhecido pela primeira vez).

A descoberta foi publicada recentemente na revista científica Astrophysical Journal Letters. Segundo os seus responsáveis, este estudo é chave para resolver a controvérsia sobre a duração dos ciclos solares no início do século 17, que estão associados à transição de ciclos solares regulares para o grande mínimo solar.

Um século chave para a astronomia

O século 17 foi um período crucial no ciclo solar, não só por conta das observações das manchas solares estarem começando, mas também porque a atividade solar passou dos ciclos solares normais para o grande mínimo solar (ou Mínimo de Maunder). Esse fenômeno único na história foi um período anormalmente prolongado de baixa atividade de manchas solares.

Desde 1715, a atividade das manchas solares aumentou e diminuiu em um ciclo de 11 anos. Às vezes, os picos chegam um pouco mais cedo ou mais tarde, e sua altura variou – mas, de modo geral, o padrão é regular o suficiente para previsões. De 1645 a 1715, no entanto quase não houve manchas solares, muito menos um ciclo.

Um grupo de manchas solares a olho nu em 11 de maio de 2024, conforme fotografado por um dos autores do referido artigo — Foto: ETH Teague
Um grupo de manchas solares a olho nu em 11 de maio de 2024, conforme fotografado por um dos autores do referido artigo — Foto: ETH Teague

Ainda não se entende completamente como o padrão de atividade solar mudou de seus ciclos regulares para o grande mínimo. Mas os cientistas sabem que isso foi um processo gradual.

Por mais que sua precisão seja contestada, os anéis das árvores fornecem um vislumbre do registro da atividade solar. Uma reconstrução baseada em dados desses anéis identificou um ciclo de apenas 5 anos, seguido por um de 16 anos, na preparação para o Mínimo de Maunder.

“Se for verdade, isso seria realmente interessante. No entanto, outra reconstrução baseada em anéis de árvores indicou uma sequência de ciclos solares com durações normais”, explica Hayakawa. “Então, em qual reconstrução devemos confiar? É extremamente importante verificar essas reconstruções com registros independentes – de preferência observacionais”.

Esta é justamente a questão que as observações de Kepler podem ajudar a responder. Os desenhos do astrônomo foram feitos com duas horas de diferença, trazendo, assim, uma progressão dos ciclos solares.

Revisão das observações de Kepler

O registro de manchas solares de Kepler é uma referência observacional essencial. Assim, ao analisar os registros e compará-los com dados contemporâneos e estatísticas modernas, os pesquisadores fizeram quatro descobertas importantes:

  1. Depois de “reprojetar” os desenhos de manchas solares de Kepler e compensar o ângulo da posição solar, os cientistas colocaram o grupo de manchas solares de Kepler em uma latitude heliográfica baixa. Isso sugere que o famoso desenho esquemático da imagem solar que Kepler diagrama em seu livro não é igual ao texto original de Kepler e as duas imagens da câmera obscura, que mostram a mancha solar na porção superior esquerda do disco solar;
  2. Ao aplicar a lei de Spörer e o conhecimento obtido com as estatísticas modernas sobre manchas solares, identificou-se que o grupo de manchas solares observados por Kepler provavelmente estava localizado no final do ciclo solar -13, e não no início do ciclo solar -14;
  3. As descobertas contrastam com observações telescópicas posteriores, que mostram manchas solares em latitudes mais altas. “Isso mostra uma transição típica do ciclo solar anterior para o ciclo seguinte, de acordo com a lei de Spörer”, disse Thomas Teague, um observador do WDC SILSO e membro da equipe, referindo-se ao astrônomo alemão Gustav Spörer, que descreveu uma migração de manchas solares de latitudes mais altas para mais baixas durante um ciclo solar; e
  4. O estudo permite que os autores aproximem a transição entre o ciclo solar anterior (-14) e o próximo ciclo solar (-13) entre 1607 e 1610, estreitando as datas possíveis quando ocorreu. Com base nisso, os registros de Kepler sugeriram uma duração regular para o ciclo solar-13, desafiando reconstruções alternativas que propõem um ciclo extremamente longo durante esse período.

Legado de Kepler

“Kepler contribuiu com muitos marcos históricos em astronomia e física no século 17, deixando seu legado até mesmo na era espacial”, afirma Hayakawa. “Aqui, acrescentamos a isso ao mostrar que os seus registros de manchas solares são anteriores aos registros telescópicos de manchas solares existentes de 1610 por vários anos. Seus esboços de manchas solares servem como um testamento de sua perspicácia científica e perseverança diante de restrições tecnológicas”.

Sabrina Bechet, pesquisadora do Observatório Real da Bélgica, acrescenta: “É fascinante ver os registros de legado de figuras históricas transmitirem implicações científicas cruciais para cientistas modernos - mesmo séculos depois. Duvido que eles pudessem imaginar que seus registros beneficiariam a comunidade científica muito mais tarde, bem depois de suas mortes. Ainda temos muito a aprender com essas figuras históricas”.

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