Ciência

Por Marcelo Takeshi Yamashita* | The Conversation Brasil

Em 13 de dezembro de 2023, completa-se um ano desde que pesquisadores do Laboratório Nacional Lawrence Livermore (LLNL, na sigla em inglês), dos Estados Unidos, convocaram uma coletiva de imprensa para anunciar que pela primeira vez um experimento de fusão nuclear feito em laboratório retornou um saldo energético positivo. Ou seja: a energia proveniente da reação nuclear foi maior do que a energia utilizada para realizar o experimento.

Em agosto deste ano, o mesmo laboratório veio a público noticiar que obteve a proeza pela segunda vez.

No fim do ano passado, veículos de imprensa do mundo todo repercutiram o anúncio em diversas manchetes sensacionalistas, como “Cientistas anunciam feito inédito em fusão nuclear e abrem caminho para energia limpa infinita” (CNN Brasil) e “Fusão nuclear: como cientistas alcançaram ‘Santo Graal’ da energia limpa” (BBC News Brasil).

Ainda que de maneira mais contida, importantes revistas do meio acadêmico também deram a notícia: “Com explosão histórica, um avanço de fusão há muito procurado” (Science) e “Laboratório de fusão nuclear atinge ‘ignição’: o que isso significa?” (Nature).

Ocorre, porém, que pouquíssimos veículos levantaram o questionamento obrigatório para qualquer resultado científico: onde está o artigo da pesquisa? Neste caso, a resposta é simples: em lugar nenhum. Não existe artigo técnico, detalhando o experimento, para que outros cientistas possam, pelo menos, verificar o que foi feito.

Anúncios de avanços científicos com base apenas em coletivas de imprensa deveriam suscitar preocupação entre todos os jornalistas, destacando a necessidade de uma abordagem mais cautelosa diante de tais divulgações.

A história mostra (mas parece que não ensina) os problemas advindos do anúncio precoce de resultados científicos mirabolantes. Em 1989, a imprensa noticiou que cientistas teriam conseguido fundir núcleos atômicos à temperatura ambiente – façanha que recebeu o nome de “fusão a frio” – em um experimento relativamente simples.

No artigo da fusão a frio, os químicos Martin Fleischmann e Stanley Pons afirmavam ter fundido núcleos de deutério num experimento eletroquímico envolvendo um metal chamado paládio, mergulhado em água pesada — água onde um dos átomos de hidrogênio na conhecida molécula H2O foi substituído por um de deutério, um átomo de hidrogênio com um nêutron no núcleo além do usual próton.

Nessa época, o preço do paládio subiu vertiginosamente, e o assunto foi debatido no Congresso americano, com parlamentares defendendo o aporte de US$ 25 milhões para fomentar o projeto de fusão a frio.

Mas bastaram alguns meses após o anúncio de Fleischmann e Pons para que boa parte da comunidade científica se pronunciasse dizendo que o alarde da fusão a frio não fazia nenhum sentido.

Isso reforça ainda mais a importância da publicação de um artigo científico formal, revisado por pares, para que os especialistas da área possam verificar qualquer problema na descoberta – neste caso, evitou-se que mais recursos públicos fossem gastos com algo que não funcionava.

Diferente da fusão a frio, algo surpreendente e muito improvável para ser verdade, o resultado anunciado do experimento atual da fusão com lasers não espanta do ponto de vista da Física – não é uma descoberta que mudaria paradigmas de teorias bem estabelecidas –, mas, se confirmado pela comunidade científica, seria um importante ganho tecnológico na direção da solução do problema da geração de energia limpa.

Imagem colorizada de experimento de fusão no Laboratório Nacional Lawrence Livermore, EUA. — Foto: Lawrence Livermore National Laboratory
Imagem colorizada de experimento de fusão no Laboratório Nacional Lawrence Livermore, EUA. — Foto: Lawrence Livermore National Laboratory

Com a ressalva de que ainda se trata de pesquisa básica, com um avanço de poucos milímetros numa caminhada de milhares de quilômetros, até o uso prático da tecnologia para a geração de energia.

Segunda vez

Em 7 de agosto deste ano, a agência de notícias Reuters deu a informação de que o Laboratório Lawrence Livermore havia conseguido obter o saldo energético positivo pela segunda vez.

Coincidentemente, o anúncio veio apenas 10 dias depois que Annie Kritcher, engenheira nuclear responsável pelo projeto de fusão e escolhida como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo pela revista Time, me enviou um e-mail respondendo a questionamentos do porquê ainda não haviam publicado um artigo, e a razão pela qual foram primeiro à imprensa antes de validar os seus resultados em uma publicação revisada pelos pares.

Em resposta à minha mensagem, Kritcher diz:

“O anúncio foi feito antes de uma publicação por causa do amplo conhecimento do resultado após o experimento. Nosso laboratório desejava abordar o resultado de forma oportuna. Estamos trabalhando em um conjunto de artigos técnicos sobre o experimento de 5 de dezembro de 2022 e estamos nos preparando para submetê-los nos próximos meses à PRL (revista Physical Review Letters). O artigo anexado é um documento de projeto técnico sobre o resultado anterior N210808. Estamos muito interessados em publicar, mas o processo científico de publicação pode levar muitos meses."

Quem está acostumado aos trâmites da publicação de um artigo científico sabe que o processo editorial pode ser complicado e demorado, mas isso não deveria ser uma novidade para pesquisadores experientes do LLNL.

Ademais, pela relevância do achado, causa estranhamento que junto ao press release, e após um ano do anúncio, ainda não tenha saído nenhum artigo publicado em uma revista de boa qualidade.

Para efeito de comparação, o anúncio para a imprensa da detecção das ondas gravitacionais (assunto que deu o Prêmio Nobel de Física de 2017 a Rainer Weiss, Barry C. Barish e Kip Thorn, da colaboração LIGO/VIRGO), feito em 11 de fevereiro de 2016, veio acompanhado de um artigo técnico, publicado na mesma data, na prestigiosa revista Physical Review Letters.

Não se pretende aqui, de modo algum, questionar a reputação ou a boa-fé dos pesquisadores envolvidos no anúncio, mas o ônus da prova é sempre de quem alega que um fenômeno foi produzido. Afirmar que a divulgação do resultado foi feita de “forma oportuna” em uma coletiva de imprensa, com vários políticos presentes, talvez sugira que a “oportunidade” em vista não era exatamente científica.

Parafraseando Carl Sagan, alegações extraordinárias exigem evidências extraordinárias. Olhar as coisas com o devido ceticismo e compreender que o tempo da ciência e o tempo da notícia são completamente diferentes pode ajudar o jornalista a controlar a tentação de se aumentar algum “achado” para transformá-lo em notícia. Anunciar uma coletiva e dizer à imprensa que se fez algo é bem diferente de convencer os demais especialistas no assunto e publicar um artigo.

Ou, como se diz por aí: falar, até papagaio fala.

*É professor do Instituto de Física Teórica, assessor-chefe da Assessoria de Comunicação e Imprensa, Universidade Estadual Paulista (Unesp)

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