Quânticas

Por Marcelo Lapola

Marcelo Lapola é doutor em Astrofísica e Cosmologia pelo ITA e professor do Centro Universitário da Fundação Hermínio Ometto.

O Universo sempre parece ser mais complexo do que a nossa ciência. Quanto mais avançamos em teorias e observações experimentais, novos problemas surgem. Mesmo assim, esses esforços nos fazem avançar, sem nos restringirmos a dogmas ou “teorias de estimação”. Já dizia o velho Einstein: “Uma coisa aprendi em uma longa vida: que toda a nossa ciência, medida em relação à realidade, é primitiva e infantil. E, ainda assim, é a coisa mais preciosa que temos”.

Há muito o que se descobrir ainda. Um dos mistérios mais emblemáticos do nosso tempo é a chamada “tensão de Hubble” – você pode ter ouvido falar nela em discussões sobre a “crise da cosmologia”. Diferentes métodos de medir a taxa de expansão do Universo, a chamada constante de Hubble, estão dando resultados diferentes; e nós, cosmólogos, não temos a mínima ideia do porquê.

Mas novos achados podem ajudar a solucionar esse problema. Em 2019, astrônomos analisaram fotos captadas pelo Telescópio Espacial Hubble três anos antes e descobriram que uma supernova havia ocorrido em uma galáxia muito, muito distante, a MRG-M0138. Porém, em dezembro de 2023, o Telescópio Espacial James Webb – que é mais moderno que o Hubble – captou uma nova imagem distorcida dessa galáxia (devido a um efeito conhecido como lente gravitacional) e revelou que ela abriga uma segunda supernova.

Esquerda: Em 2016, o Telescópio Hubble avistou uma supernova com imagem multiplicada, apelidada de Supernova Requiem, em uma galáxia distante lenteada pelo aglomerado de galáxias intermediário MACS J0138. Direita: Em novembro de 2023, James Webb identificou uma segunda supernova com imagem multiplicada na mesma galáxia usando seu instrumento NIRCam — Foto: NASA, ESA, STScI, Steve A. Rodney (University of South Carolina) and Gabriel Brammer (Cosmic Dawn Center/Niels Bohr Institute/University of Copenhagen), CSA, STScI, Justin Pierel (STScI) and Andrew Newman (Carnegie Institution for Science)
Esquerda: Em 2016, o Telescópio Hubble avistou uma supernova com imagem multiplicada, apelidada de Supernova Requiem, em uma galáxia distante lenteada pelo aglomerado de galáxias intermediário MACS J0138. Direita: Em novembro de 2023, James Webb identificou uma segunda supernova com imagem multiplicada na mesma galáxia usando seu instrumento NIRCam — Foto: NASA, ESA, STScI, Steve A. Rodney (University of South Carolina) and Gabriel Brammer (Cosmic Dawn Center/Niels Bohr Institute/University of Copenhagen), CSA, STScI, Justin Pierel (STScI) and Andrew Newman (Carnegie Institution for Science)

Ao comparar as diferenças nos momentos em que as imagens das explosões aparecem, é possível medir a história da taxa de expansão do Universo. Assim, agora, cientistas acreditam que será possível pôr fim a esse mistério cosmológico após uma nova observação das supernovas em MRG-M0138 por volta de 2035 (se tudo der certo!). Mas, até lá, o enigma ainda parece estar longe de sua solução.

Longa investigação

Quando o Telescópio Espacial Hubble foi lançado, em 1990, um de seus principais objetivos era justamente medir a constante de Hubble.

Em meados dos anos 2000, foi iniciado um projeto com o telescópio que usa duas ferramentas de padrão ouro para medir distâncias na astronomia: as variáveis cefeidas, que são estrelas pulsantes, e as supernovas do Tipo Ia, uma categoria de estrelas em explosão. O objetivo era fazer medições com uma precisão que nunca havia sido vista antes, incluindo a checagem de observações da radiação cósmica de fundo em micro-ondas, que ajuda a entender o início da história do Universo.

Os idealizadores desse projeto, os astrofísicos Adam Riess, Brian Schimdt e Saul Perlmutter, ganharam o prêmio Nobel de Física em 2011 pelas incríveis descobertas que fizeram. O maior dos achados foi que o Universo está se expandindo aceleradamente; isto é, a velocidade de sua expansão aumenta com o tempo.

Já foram feitas diversas previsões de quão rápido o Universo deveria estar se estendendo hoje. Uma delas foi feita pelo satélite Wilkinson Microwave Anisotropy Probe (WMAP), da Nasa, cuja missão analisou o fundo cósmico de micro-ondas de 2001 a 2010. Depois, a sonda Planck, da Agência Espacial Europeia (ESA), ofereceu dados ainda mais precisos entre 2009 e 2013.

Galáxias selecionadas por programa do telescópio espacial Hubble para medir taxa de expansão do universo. Linha central mostra campo de visão total do Hubble. A linha inferior aproxima campos de visão. Gigantes vermelhas estão identificadas por círculos amarelos — Foto: Nasa/ESA/Universidade de Chicago/ESO
Galáxias selecionadas por programa do telescópio espacial Hubble para medir taxa de expansão do universo. Linha central mostra campo de visão total do Hubble. A linha inferior aproxima campos de visão. Gigantes vermelhas estão identificadas por círculos amarelos — Foto: Nasa/ESA/Universidade de Chicago/ESO

Ao medirem o fundo de micro-ondas cósmico, cientistas extrapolaram para o tempo presente o modelo padrão da cosmologia, que descreve a evolução do Universo após o Big Bang. Assim, foi determinado, em última instância, que o cosmos deveria estar se expandindo a uma taxa de 67,4 ± 0,5 quilômetros por segundo por megaparsec. Isso significa que o Universo aproximadamente dobrará de tamanho em cerca de 10 bilhões de anos.

Vale observar que o parsec é usado para medir distâncias cósmicas. Ele equivale a cerca de 3,26 anos-luz, algo em torno de 31 trilhões de quilômetros. Um megaparsec é aproximadamente 31 quintilhões de quilômetros.

Mas, além dessas medições da radiação cósmica de fundo, astrofísicos também conduziram análises com o Telescópio Espacial Hubble, e fizeram medições de corpos celestes – como as já citadas variáveis cefeidas e as supernovas do Tipo Ia. Com essas observações, eles determinaram que a taxa de expansão local é de cerca de 73,0 ± 1,0 quilômetros por segundo por megaparsec. Essa é a medição local mais precisa da taxa de expansão do Universo atualmente.

Ou seja: usando esse outro método, os cientistas chegaram a um dado bem diferente da previsão do modelo padrão da cosmologia.

Os dois valores agora estão separados um do outro por cerca de cinco vezes a barra de erro mútua. Esse é a discrepância que chamamos de tensão de Hubble. Trata-se de uma diferença enorme quando se trata de medidas experimentais.

Para entender o problema em outros termos: imagine que você mede uma criança de dois anos e usa a curva de crescimento infantil para prever a altura dela quando adulta. Porém, na hora de conferir essa pessoa anos depois, você percebe que ela não atingiu a altura calculada com base no modelo médico.

No caso das taxas de expansão discrepantes do Universo, temos o estado presente da medição versus uma medição muito precisa em um universo mais jovem, além de dispormos das previsões do modelo padrão da cosmologia (que seria como a curva de crescimento infantil no exemplo acima).

A questão é que já vimos muitas crianças crescerem, então temos uma boa compreensão de como elas crescem. Porém, só vimos um Universo, e ele está cheio de coisas que ainda não entendemos profundamente.

Matéria e energia escuras

A tensão de Hubble nos leva a pensar que estamos ignorando algo nesses estudos cosmológicos. Ou, ainda, que o modelo do Big Bang para a evolução do Universo, amparado na Teoria da Relatividade Geral, não é suficiente para explicar o que está acontecendo ao nosso redor.

De fato, para prever e realmente extrapolar o estado do Universo desde o seu início até os dias atuais, temos que entender seus componentes – especialmente a energia escura e a matéria escura. Embora a primeira represente 70% do cosmos e a segunda, entre 25% e 27%, conforme estimativas, ainda não as compreendemos detalhadamente; não sabemos sua microfísica a fundo.

Para fazer essas previsões da expansão do Universo, assumimos que a energia escura e a matéria escura estão em suas formas mais simples possíveis. Mas pode ser que esses dois componentes sejam muito mais complexos do que supomos, e nossa compreensão atual deles esteja atrapalhando a interpretação das medições cosmológicas. Essa é uma das diversas explicações para a tensão de Hubble que encaramos hoje.

Como o anjo que Michelangelo dizia ver no bloco de mármore antes mesmo de esculpi-lo, a resposta para a crise na cosmologia já está entre nós, somente à espera de ser descoberta.

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