TNC Brasil

Por Edenise Garcia *

De acordo com o Relatório de Riscos Globais do Fórum Econômico Mundial de 2023, entre os 10 principais riscos do mundo nos próximos dois anos, nove afetam diretamente a segurança alimentar: crise do custo de vida, desastres naturais e eventos climáticos extremos, confrontos geoeconômicos, falha na mitigação das mudanças climáticas e na adaptação às mesmas, erosão da coesão social e polarização, danos ambientais em larga escala, crise nos recursos naturais e migração involuntária em massa. Esses riscos não são novos. Em 2012, a volatilidade dos preços da energia esteve entre os 10 maiores riscos, juntamente com a crise alimentar e, em 2013, a disparidade de renda apareceu entre as principais preocupações.

Os altos níveis de dívida pública e privada de governos nacionais e a recessão econômica em combinação com a pandemia e a guerra na Ucrânia expõem a fragilidade do sistema alimentar global atual, contribuindo para a alta dos preços e diminuição da oferta de energia, fertilizantes, commodities e alimentos em geral. Em paralelo, os efeitos das mudanças climáticas, como o aumento na frequência de inundações, secas e geadas precoces, ondas de calor e incêndios florestais, e suas consequências indiretas – como quebras de safra, diminuição da disponibilidade de água e início da migração climática – também colocam em risco a segurança alimentar de uma população global crescente.

Para piorar essa tendência, os problemas se retroalimentam. Por exemplo, o recente aumento das tarifas de energia na Europa provocado pela tensão geopolítica está provocando o fechamento de muitas indústrias de fertilizantes, um setor que consome cerca de 2% da produção energética global, mas que é essencial para o modelo agrícola adotado atualmente. Além disso, a Rússia é responsável por 25% dos fertilizantes nitrogenados produzidos no mundo. Com a guerra, o preço dos fertilizantes atingiu em 2022 os valores mais altos já registrados, dificultando a compra por pequenos produtores rurais, diminuindo a produção de alimentos e afetando diretamente os países mais vulneráveis na África e na América Latina.

As desigualdades existentes dentro e entre as nações estão sendo exacerbadas à medida que grandes economias enfrentam recessão e sobre-endividamento. Diante da iminência de fome, as escolhas que muitas famílias, organizações ou governos nacionais enfrentam acabam colocando em segundo plano as questões ambientais, em particular as climáticas. Compromissos de descarbonização da economia estão sendo rompidos, provocando uma divergência entre o que é cientificamente necessário e o que é politicamente viável. A distração com as preocupações mais imediatas pode resultar em ações lentas e descoordenadas de mitigação e adaptação às mudanças climáticas e acentuar ainda mais a ocorrência de eventos mais extremos, a perda de biodiversidade e as chamadas “policrises”, provocadas por impactos diversos e em cascada.

Apesar do risco de crise, o momento abre oportunidades para mudanças em várias frentes. Uma delas está na adoção de um sistema alimentar mais seguro, resiliente e sustentável. No Brasil, produtos da sociobiodiversidade menos conhecidos, mas de alto valor nutritivo, por exemplo, poderiam ser cultivados em maior escala e fomentados nos mercados mundiais, gerando mais renda para povos indígenas e outras comunidades tradicionais, num processo de engajamento da sociedade, academia, governo e setor privado. Além disso, a extração desses produtos contribuiria para a valorização das florestas e outros tipos de vegetação nativa, contribuindo para a diminuição do desmatamento.

A adaptação da produção agrícola às novas condições de temperatura e regime de chuvas é outra oportunidade para garantir a segurança alimentar a longo prazo. Agricultores podem adotar novas variedades de culturas híbridas; diversificar os sistemas de cultivo e as espécies cultivadas; fazer a transição para técnicas de uso do solo mais eficientes e que garantam a sustentabilidade do solo (como o plantio direto); utilizar culturas de cobertura, que ajudam a proteger o solo; fazer a rotação de cultivos, utilizar novas abordagens de gestão de água etc.

Outras medidas sustentáveis e de baixo carbono que melhorem a eficiência da agricultura – ou seja, que maximizem a produção de alimentos em relação ao uso de insumos agrícolas e evitem ou minimizem danos ambientais – são benéficas tanto para a segurança alimentar quanto para a redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE). Entre essas medidas está a recuperação, para uso agrícola, de áreas degradadas ou abandonadas, em vez da expansão da agricultura sobre áreas de vegetação nativa – no Brasil, uma área quase equivalente ao tamanho do estado de São Paulo (22 milhões de hectares) é coberta por pastagem com alto grau de degradação.

Por outro lado, avanços tecnológicos e medidas inovadoras podem abrir novos caminhos no modo de se produzir alimento, trazendo soluções para alguns dos desafios mais complexos do setor agrícola. Pesquisadores têm trabalhado em técnicas que permitem que algumas culturas de cereais, por meio de microrganismos, retirem o nitrogênio do ar e o transformem em derivados essenciais ao desenvolvimento das plantas. Com isso os cereais passam a produzir seus próprios nutrientes, reduzindo o consumo de fertilizantes sintéticos, que contribuem para as emissões de GEE e afetam a qualidade da água, já que cerca da metade dos produtos aplicados não é aproveitada pelas plantas e acaba sendo levada pelas chuvas para lagos, rios e outros sistemas aquáticos.

No entanto, é preciso ir além das medidas diretamente relacionadas à produção e reformar a arquitetura do sistema alimentar global, incluindo finanças e políticas internas e externas que o sustentam, em benefício do desenvolvimento sustentável. Um levantamento das Organização das Nações Unidas de 2021 indicou que 87% dos subsídios aos setor agrícola podem causar danos sociais ou ambientais. Entre estes estão subsídios que colocam grandes produtores rurais em vantagem sobre pequenos ou que incentivam o uso de agrotóxicos e fertilizantes sintéticos.

Por fim, num cenário de grandes desigualdades sociais no âmbito global, uma das oportunidades para se evitar a insegurança alimentar está nas mãos de uma parcela mais favorecida dos próprios consumidores que, embora pequena, possui a opção de diminuir a demanda por produtos alimentícios de maior impacto socioambiental devido a mudanças na dieta. Muito importante também a redução do desperdício. Entre 30 e 40% dos alimentos, tanto nos países desenvolvidos quanto nos países em desenvolvimento, são atualmente desperdiçados. A diferença é que nos países em desenvolvimento, isto se dá por perdas pré-consumo, enquanto nos países desenvolvidos o desperdício de alimentos é dominado por perdas pós-consumo.

Seja qual for a oportunidade, é preciso abordar a questão de segurança alimentar a partir de uma visão sistêmica. Está claro que medidas que aumentem a produção de alimentos, mas que aumentem também a degradação ambiental e as emissões de GEE não nos ajudarão a enfrentar os desafios alimentares do futuro.

* Edenise Garcia é diretora de ciências na The Nature Conservancy (TNC) Brasil.

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